Aprés un rêve

[dropcap]G[/dropcap]abriel Urbain Fauré, nascido em Pamiers, na comuna de Ariège, no dia 12 de Maio de 1845, há pouco mais de 175 anos, foi um dos mais proeminentes compositores franceses da sua geração, para além de organista, pianista e professor. O seu estilo musical influenciou numerosos compositores do século XX. De entre os seus trabalhos, destacam-se, de entre mais de 100 canções, Après un rêve e Clair de lune, a obra sinfónica Pavane e o Requiem, para além dos nocturnos para piano. Embora as suas composições mais conhecidas e acessíveis sejam as primeiras, Fauré compôs as suas obras mais reconhecidas e turbulentas – que contrastam com o charme das primeiras composições, nos últimos anos de vida, num estilo mais complexo de harmonia e melodia.

Fauré nasceu no seio de uma família nobre mas com poucas ligações à música. O seu talento começou a revelar-se ainda em pequeno e, aos nove anos de idade, foi enviado para a École de Musique Classique et Religieuse (mais conhecida por École Niedermeyer) em Paris, onde recebeu formação como organista de igreja e mestre-de-coro. Após a morte de Niedermeyer, um dos seus professores foi Camille Saint-Saëns, que se tornaria seu grande amigo. Depois de terminar os estudos, em 1865, trabalhou como organista e professor, sobrando-lhe pouco tempo para a composição. Quando começou a ser bem-sucedido, já com alguma idade, no cargo de organista da Igreja de la Madeleine e de director do Conservatório de Paris, ficou ainda com menos tempo para compor mas, nas férias de Verão retirava-se para o campo para se concentrar nas suas composições. Nos últimos anos de vida, pese embora uma crescente surdez e outros problemas de saúde, Fauré foi reconhecido em França como o principal compositor da sua época. Em 1922, já completamente surdo, recebeu uma homenagem nacional sem precedentes, na Sorbonne, prestada pelo Presidente da República, na qual participaram os mais ilustres artistas franceses da época. Fora de França, a música de Fauré levou décadas a ser aceite, excepto na Grã-Bretanha, onde teve muitos admiradores ainda em vida.

A sua música tem sido descrita como uma ponte de ligação entre o romantismo e o modernismo, surgido no último quartel do século XIX. Quando Fauré nasceu, Chopin ainda compunha e, quando morreu, começava-se a ouvir jazz e a música atonal da Segunda Escola de Viena. O Grove Dictionary of Music and Musicians, que o descreve como o compositor mais avançado da sua geração em França, salienta que as suas inovações harmónicas e melódicas influenciaram o ensino de música a muitas gerações. Fauré faleceu em Paris no dia 4 de Novembro de 1924.

As Trois mélodies, Op. 7 de Gabriel Fauré são um conjunto de canções para voz e piano constituído por Après un rêve (Op. 7, n.º 1), uma das obras vocais mais populares e belas de Fauré, Hymne (Op. 7, n.º 2) e Barcarolle (Op. 7, n.º 3). As canções foram escritas entre 1870 e 1878 mas não foram concebidas como um conjunto; o número de opus 7 foi-lhes imposto de maneira retrospectiva na década de 1890, quase 20 anos depois da sua primeira publicação.

Après un rêve (publicada em 1877) descreve o sonho de um voo romântico com um amante, longe da Terra e “em direcção à luz”. Contudo, ao acordar para a verdade o sonhador anseia voltar à “noite misteriosa” e à estática falsidade do seu sonho. O texto do poema é uma adaptação livre para francês de Romain Bussine de um poema anónimo em italiano. ​A cantilena de Fauré é uma cornucópia de abundância melódica: a música desenvolve-se organicamente do princípio ao fim, cada frase conduzindo inevitavelmente à seguinte, um florescimento sem fim, por sua vez suportado por harmonias inevitáveis, mas o toque popular de Fauré disfarça a maior das subtilezas. A versão mais conhecida desta canção é para violoncelo e piano, arranjada por Pablo Casals.

Hymne adapta o texto de um poema de Charles Baudelaire. O significado do texto de Hymne é vago para aqueles que não estão familiarizados com o tema recorrente de Baudelaire de um paradoxo: a espiritualidade do sensual e a sensualidade do que é santificado. A adaptação de Fauré do texto centra-se subtilmente nesta ideia. Esta peça, como Après un rêve, mantém um ambiente etéreo.

O texto da terceira peça do conjunto, Barcarolle, é de Marc Monnier. A peça está escrita na forma de barcarola usando um animado compasso de 6/8 . Através da canção, a figura rítmica, que consiste numa colcheia unida a um terno de semicolcheias, seguido de outra colcheia, é passada entre a voz e o piano. ​

 

Sugestão de audição:
Gabriel Fauré: Trois mélodies, Op. 7
Janet Baker (mezzo-soprano), Geoffrey Parsons (piano) – Hyperion, 1990

7 Jul 2020

Seis propostas para o próximo milénio

[dropcap]E[/dropcap]stávamos em 1984 quando Italo Calvino reuniu um conjunto de textos ensaísticos para um ciclo de conferências na Universidade de Harvard. Seis lições, um conjunto a que procurou ser coeso, metódico e analítico face ao futuro da literatura e do livro, da criação literária, dos seus propósitos e formas, bem como ao subtil articular destas componentes. Disserta sobre o objecto-livro, das línguas ao longo do século vinte e das suas vertentes imaginativas que deram origem a formas cognitivas fazendo da linguagem uma pura plasticidade criativa. Se para tanto pensarmos que o século vinte foi o da propagação do livro, e que para trás a faixa reduzida da sua utilização foi uma constante, e que no postulado da tecnologia ele se recolhe cada vez mais, digamos que a sua existência como grande expressão tem neste século o máximo significado. Nas línguas Ocidentais, ele não só é soberano, como vai dar origem a infindáveis formas de leitura como elemento puro de práticas combinatórias.

Leveza, Rapidez, Exactidão, Visibilidade, Multiplicidade, na verdade cinco, estando na dissertação a sexta, que é do autor a sua própria voz, talvez o Peso, em contraste com a primeira com que abre a sessão. Ao agrupar estes fundamentos ele dá corpo a uma constância onde nada deve por isso ficar de fora, e joga-as na fluidez que requer certamente o exercício de uma vida inteira. Nem sempre estas prerrogativas vistas do lado de quem não se associa à vertente imaginária e treino constante saem em simultâneo, ou saindo uma, pode não ter o suporte da outra, daí a linguagem ser de facto o mais agreste elemento face ao entendimento quando as suas componentes não se encontram devidamente filtradas, sobretudo, quando se trata de linguagem tangível, na outra, bem formulada pelos elementos indicados, os campos abrem-se de forma clara e quase sempre iluminam. É com tais recursos que a intertextualidade foi uma prática ao longo do século vinte, ampliando o texto literário até às malhas da quase composição de signos gráficos alinhados numa complexa rede de significados, ele transmite-nos isto sem retórica de permeio e uma incrível visão temática.

Fala da poesia como uma tensão para a exactidão a partir de Paul Valéry, e ela só tem paralelo com o grau de maravilha alcançado na Leveza que atravessa a manifestação, e já nela, olhar de maneira nova de um outro ponto de vista pode ser uma sua marca, e não uma dissolvência onírica para fugas presenciais. Para a Visibilidade, invoca uma tendência perdida: o poder de focar visões de olhos fechados, passando a lembrar os caracteres alfabéticos negros da página, o que faz lembrar um belo poema árabe que diz assim “minha pupila só resgata o que da página está cativo, o branco na margem certa e da palavra o negro vivo” o amor pelo desenho gráfico está bem patente nesta forma de olhar os caracteres, o que inspira e atrai. Rapidez é também neste caso uma alegórica associação entre Vulcano e Mercúrio, onde a paciência mineral indicará a inspirada força para o impulso imediato num reflexo de ajustamento de ambas, amadurecer e libertar da contingência efémera o reflexo sombrio da impaciência e da angústia da página em branco.

Na Multiplicidade, há no entanto que defendê-la da arbitrariedade, o puzzle do nosso enredo interior não deve ser labiríntico e dever-se-á conectar com as imensas ressonâncias dos fluídos captados por esferas associativas que façam da estranheza do pensamento a divulgação de um acréscimo do ritmo construtivo, um teste com os recursos ao nosso dispor no treino inventivo que se sedimenta ao longo de um processo que trará uma liberdade maior e uma harmonia constante. Este trabalho foi o último de Italo Calvino que viria a morrer um ano depois, o que denota um apuramento quase no fim arremessando o essencial e pondo a funcionar elementos que se juntaram para coroar uma vida, e quando pensamos nisso, queremos atrasar o nosso próprio reservatório de capacidades não vão elas soltarem-se ficando nós a sentir que esta maravilha esconde a breve finitude dos nossos dias. Muitas vezes acontece isso, e se a vida continua para lá de um ajustamento destes, parece então que as funções caem ou tendem a repetir-se retirando-lhes o vigor, o que não raro acontece quando não se dá conta de uma certa decadência. Foi para ele uma fixação que levou tempo a elaborar, este trabalho, já atento aos sinais futuros e ao grau de dissolvência do contributo do objecto-livro como fonte de propagação de leitura. Creio que todas as etapas nos satisfazem pelo brilhantismo demonstrado e capacidade de recorrer a formas inovadoras. O milénio chegou, e indo até aqui num passado recente, conseguimos ler melhor a etapa seguinte de um livro sempre inacabado que é a criação humana e a sua flutuação nos tempos que nos impelem a recriar sempre fórmulas de entendimento, e mais, conhecimento acrescido das nossas potencialidades, onde só as distâncias dão o espaço necessário para abordagens mais vastas.

“…. talvez só então eu estivesse a descobrir o peso, a inércia, a opacidade do mundo: aspectos que se agarram logo à escrita se não descobrirmos a maneira de lhes fugir”

7 Jul 2020

A afinadora de perguntas

[dropcap]N[/dropcap]a semana passada vimos aqui o segundo e último livro da escritora irlandesa Jane Mcgrade, «Desde Que Morrem Os Homens», mas o seu primeiro livro, «Aquele que Vai Para Escritor», de 1949, não é menos arrebatador. Neste seu livro, a escritora começa de um modo «mcgradiana» a destruição da literatura: «À minha volta, quase ninguém lê os livros que me interessam. Não importa que sejam as pessoas com quem falo num jantar ou aquelas com quem converso na universidade. Os livros que me importam não importam a ninguém. E do mesmo modo que acontece comigo, assim imagino que aconteça com outros. Assim, antes de se pensar em tornar-se escritor, deve ter-se consciência de quem ninguém se importa com isso. “Isso” é o que se escreve. Porque a escrita tal como a entendo não é natural. É natural o relato de acontecimentos, o testemunho de episódios, a criação de vidas tão longe da vida que nos fascina ou ainda a cópia dos dias que de tão perto e tão vazios são como os nossos. Isso, sim, é natural. Mas a escrita que abre feridas na superfície da consciência, que mostra falhas da existência, que põe em causa o próprio acto de escrever e de pensar não é natural e não importa às pessoas. Talvez um dia se consiga provar que ou esses livros são os fundamentais ou esses livros são perniciosos, não apenas contra-natura, mas que nos afastam do melhor de nós. Até lá, continuemos a escrever com a crença que melhor nos couber, sem tirar os olhos do horizonte do desinteresse alheio.» Logo de início Jane Mcgrade larga as redes do seu brilhante pessimismo sem qualquer contemplação com o leitor. Põe não só a si mesma em causa, mas também o livro que começa a escrever. No fundo, e ao longo do livro, soa omnipresente o não se saber nada do que estamos a fazer quando escrevemos. E este não saber nada não é apenas em relação à arte da escrita, mas a relação da escrita com o mais profundo da existência. Escreve à página 18: «De onde vem a ideia de que a literatura é algo de bom para a existência? Como sabemos isso? Ou talvez mais correctamente, como podemos saber isso? Será a literatura melhor para a existência do que nadar todos os dias ou correr atrás de uma bola num campo verde junto com outras pessoas?» Aquilo que importa a Mcgrade – já o tínhamos visto na semana passada com a questão da origem e do impulso para o suicídio – não é dar respostas, mas formular perguntas o mais certeiro que lhe for capaz. Escreve: «Afinar perguntas não é a mais nobre das actividades, mas é a mais nobre das minhas.» (p. 29)

Estamos diante de um texto pequeno, 78 páginas, bem menor que «Desde Que Morrem Os Homens». E na página 32 surge esta frase enigmática: «Todo aquele que escreve faz o quê? Imagine-se que uma criança pergunta a uma escritora o que é que ela faz na vida e que a escritora lhe responde que escreve livros. Não satisfeita, e não o poderia estar, a criança insiste em querer saber o que é isso de escrever livros. Ela, a criança, não quer saber o que é um livro, mas o que é escrever um. Isto é, ela quer saber o que é que eu faço.

E não lhe sei responder. Posso dizer muitas coisas. E digo muitas coisas. Mas não lhe sei responder.» Por conseguinte, para Jane Mcgrade a actividade de escrever não é apenas obscura em relação aos efeitos na existência, mas também é obscura na sua compreensão. «Não é só aquele que vai para escritor que desconhece ao que vai, também o escritor desconhece onde está.» (p. 33)

Jane Mcgrade tinha um fascínio enorme por Nietzsche, e faz uma citação à página 40, de uma passagem de «Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral»: «O descurar do individual e do real dá-nos o conceito, do mesmo modo que nos dá a forma, enquanto a natureza não conhece quaisquer formas e conceitos e, portanto, quaisquer géneros, mas apenas um X para nós inacessível e indefinível. Portanto, também a nossa posição entre indivíduo e género é antropomórfica e não provém da essência das coisas […].» O que pretende Mcgrade ao trazer este texto de Nietzsche, se há nele um elogio da metáfora e uma negação do conceito? Há em todo este texto um desprezo pela verdade. Neste texto, o filósofo alemão propõe a metáfora como caminho, não para o conhecimento mas para a nossa relação com a vida, ao invés do conceito, que nunca pode abraçar a vida. Mas veja-se aonde Mcgrade nos quer levar, à página 42: «Ver o conceito como uma grosa que apara diferenças, quando tudo na natureza é desigual, talvez seja a maior evidência de que a literatura nos pode servir bem a existência.» Ou seja, a escritora irlandesa recorre a esse texto de Nietzsche não como «prova» de defesa da literatura, mas como «possibilidade» de defesa. Uma vez mais, não há respostas, apenas uma contínua afinação da pergunta.

Termino esta viagem ao primeiro livro de Jane Mcgrade com a última frase do livro, absolutamente luminosa: «Antes de caminhardes para escritor, lembrai-vos de que quando se escreve não se lê.”

7 Jul 2020

Parte do corpo

[dropcap]C[/dropcap]omo uma parábola. O braço e a omoplata. Depois da arquitectura do betão e do aço e muito depois do ferro e do vidro. A omoplata e o braço. Uma arquitectura do corpo. O local do corpo e o sentimento de lugar. Passo uma carícia pela pele grossa e macia do lugar de costas voltadas. O lugar da omoplata. Naquele ponto, sei que podem nascer asas para voo.

Às vezes, mesmo o que é arrepiante se move para uma emoção estética. Quando Stelarc implantou uma orelha de cultura biológica no braço, fiquei sem fala. A sua profunda noção da obsolescência do corpo. O fascínio pela robótica. A ambição sensorial de terminais ligados em rede a possibilitar a interacção de terceiros. Esta solidão excessiva do humano no humano e face ao puramente humano. E estamos a chegar lá, com este enorme abanão à ilusória proximidade do outro. Qualquer coisa de profundamente metafórico na imposição a essa extensão das mãos, os órgãos do tacto, do sentido figurado do ouvido. Ouvimos o que é próximo e se nos aproxima em ondas de sensação. Aproximamos as costas da mão – o braço agora que não se pode tocar – de um rosto para ouvir melhor. Mesmo talvez, o que não é dito. Mas foi na primeira década deste milénio. Quando de cartilagens da costela, da jovem soldado S. B., como em gesto bíblico, se constrói um órgão que vai crescer debaixo da pele do antebraço, enervar-se e ter circulação, provocar sensações, e subir ao seu lugar antes do rosto, pode-se pensar que tudo é possível e que a arte é o imaginário que conduz a ciência à realização de sonhos. Ou, pelo contrário, a ciência a ajudar a arte a exprimir utopias.

As pessoas são apaixonadas – ou estão – ou passionais, ou emocionais ou frias ou distraídas ou sentem-se indiferentes. Fazem as coisas que fazem, sob o signo de um estado. Mais cerebral ou mais emotivo. Ou de uma alquimia irrepetível, porque instantânea, entre os dois lados. E isso, que diz da pessoa? Que é, ou que fez? As coisas fazem-se de uma maneira, Nem sempre a mesma e cada coisa nem sempre igual. Coisas são lugares pontuais. Somos colhidos na arena, pelo momento e sem pensar. Somos o braço, somos a capa, ou somos o touro.

Mas que dizer daquilo que tanto tempo nos toma – esses enormes intervalos do fazer e que são o ser em todo o desamparo e estado puro – e em que estacionamos num modo que, esse sim, pode tornar-se, por prolongado esforço, dorido, insuportável? A sós connosco e sem as coisas que fazer ou a ter que encetar, ou terminar, ou viver, ou passar nelas, ou passar por elas. Nesses intervalos que são como silêncios entre notas musicais, esses, os mais difíceis de levar. Essa pode ser a escolha mais relevante. A de como estar nos tempos prolongados que nos acolhem sem a euforia e o esquecimento do fazer. E com as mesmas dúvidas.

Podemos escolher o sentir, nesse território envolvente, estrutural. Penso: ou vejo magenta ou vejo o touro. Ver o interior da capa, ou o crepúsculo sereno. Que lhe serve de fundo.

Sento-me com vista para o infinito. E vejo-o chegar. Todos podemos ser salvos. Por quem faz crescer uma asa naquele ponto exacto da omoplata que parece ter sido criado para isso. Ou duas. E o simples adejar que refresca, parte do corpo e torna-se voo. Como numa animação 3D. Porque são dois e iguais os ossos largos que unem os braços. E planos, como um território propício a levantar voo. Semelhantes no corpo mapa a aeródromos de brincar.

E depois, ouvindo melhor, percebe-se de quem era a omoplata, ali, numa pulsação recente. Uma pequena dor de crescimento. Cada um salva através do outro. Essa magia íntegra do olhar. Oiço o trote volumoso do monstro, lá do fundo do corredor e do tempo. Os monstros não são bons ou maus. Somente assustadores.

Quando lhe abraçar o ouvido ao lugar a que me encosto, espero não ouvir a asa partida. Dúvida legítima: quem se anuncia é a trote sonoro, como coisa, ou denso silêncio, como lugar? Depois fico quieta, entretanto. A pensar com que parte do corpo devo ouvir. E de que lado.

6 Jul 2020

A depressão e outros lugares em Neptuno

[dropcap]F[/dropcap]ico em casa porque a casa sou eu. Protejo-me nas quatro paredes diagnosticadas com perturbações mentais. Alguém me disse que se um esquizofrénico e um borderline (limítrofe) fossem para uma ilha, o esquizofrénico continuava a ser esquizofrénico mas o boderline não iria revelar sintomalogia.

O seu pilar intermediário influente é calculado pela armadura interpessoal. O cálculo da armadura de flexão em vigas nem sempre considera a largura do pilar intermediário influente. Isto é, se a casa for o silêncio e o pensamento o turista que aproveita o alojamento local para experimentar novas identidades, o escoamento de ideias pode perfeitamente fazer-se pelo saneamento público das convenções sociais, sem demais complicações. É isso, sonho em ser lugar-corpo fragmentado entre geografias. Extraterrestre holístico. Não dá. Tenho de tomar a fluoxetina, fluxo de palavras nas áreas suburbanas do cérebro. Cá vai: passei pela infância despercebida. Claro, havia censores pendurados ao longo dos corredores que iam dar aos outros. Palavras que quando chegavam já vinham em ferida ou, se não feriam, pousavam em feridas como álcool. Ardia. Quando ardia, eu gritava. Qualquer um gritaria. Mas para quem passa na rua e ouve esta gritaria toda dentro de casa, não compreende, enerva-se. As vigas estão lá, está tudo pintado, porque é que esta casa tão normal é tão imprevisível. Barulhenta. Música sempre muito alta na cave dissociativa, janelas que se partem sozinhas porque autodestrutivas, flores a crescerem na extremidade dos transtornos, belas telas penduradas no quarto onde a casa vai para se abandonar continuamente.

Que casa é esta que não sabe o que ser, sendo sempre tanta coisa e nada em simultâneo? Às vezes, tem toda a mobília que consegue comprar, rebenta pelas costuras de tanta estante, arcas, peças em estilo Hepplewhite, cómodas, toucadores, cadeiras sem espaldar, chaise longue para a psicanálise doméstica. Outras é só vazio. Ouvem-se martelos a destruir paredes de pladur, alcatifas rasgadas com as mãos.

– Habitará ali algum demónio? Perguntam-se os vizinhos. – Será ele quem cuida do jardim?

Alguns dizem conhecer um jardim tropical que rodeia aquela casa, com aves-do-paraíso, hibiscos, orquídeas fluorescentes. Várias pessoas relatam a visão deste jardim. À entrada lê-se numa placa romântica “Neptuno”. É um jardim único, soberbo, sobrepõe-se a muitas das coisas já conhecidas. Muitos, nunca o encontram.

A personalidade, essa, que é suposto ser fixa, definida, perturba-se ou, noutras palavras, propõe-se a transformar o acto de perturbar – temporário, por natureza – num acto fixo: um distúrbio. Há escadas entre os factores genéticos do ladrilho. Há estruturas cerebrais específicas para lidar com determinados comportamentos emocionais, como o Sistema Límbico. O limbo, núcleo rochoso ao redor do trauma, esse lugar fora dos limites do céu onde não existe a remissão do pecado (original?) mas existem diversas camadas de nuvens, tempestades ciclónicas. Neptuno não consegue receber a radiação solar necessária para fornecer energia às elevadas turbulências da sua atmosfera. Assim, é esta casa-corpo, mente erigida por um qualquer arquitecto de Neptuno, misantropo e empático, violento e frágil. Um paradoxo consciente. Vou para a cama com o arquitecto, antagonista dos receptores dopaminérgicos. Mantemos afinidade com os receptores serotoninérgicos. É agora que vou tratar das orquídeas. Em Neptuno, rego orquídeas contínuas, num jardim tropical, Jardim-Ilha onde sou sã para sempre.

3 Jul 2020

A história está cheia de homens

[dropcap]H[/dropcap]á um aroma de fim do mundo neste 2020. É um ano que parece condensar em si tudo quanto de mau teria de ser distribuído por pelo menos meia dúzia de anos para ser razoavelmente normal. A grande anomalia negativa – uma pandemia de nome manso – tem vindo a fazer sobressair em cada um de nós os aspectos de personalidade que o dia-a-dia normalmente não exige. As circunstâncias excepcionais revelam as pessoas, sobretudo o seu aspecto moral, e a ética é fundamentalmente imprevisível, por mais que à mesa do café se jurem as acções mais nobres.

Há quem ache que, passados três meses de semi-isolamento bem comportado, já chega. A economia está de rastos. A maior parte das pessoas está a ser obrigada a fazer contas à vida e a racionar (ainda mais) as despesas. Há obviamente uma casta de criaturas que passa por isto sem que as suas finanças sejam minimamente beliscadas. São aqueles cuja conchinha protectora lhes permite entrar e sair de casa pela garagem e ver da cidade apenas o que o percurso do costume lhes mostra através do vidro lateral do banco traseiro. Até nisso esta crise tem sido cruelmente reveladora: a maior parte de nós pode perder o pouco que constituiu como barreira para a indigência num espaço de meia dúzia de meses. Ter uma casa e comida na mesa é um trabalho a tempo inteiro. Não há anos sabáticos para o sobrevivente. Não há almoços grátis. O pouco que somos capazes de fazer numa alegria despreocupada surge nos breves intervalos da nossa fixação apreensiva no futuro e no que ele nos reserva.

Embora o Facebook seja território estupidamente fértil para toda a sorte de especialistas poliédricos – num dia as alterações climáticas, no outro a epidemiologia estatística – a verdade é que imediatamente por baixo de uma espuma muito superficial de dados e citações o que se salta à vista é uma ignorância confrangedora.

Uma ignorância como laivos de bully, que se defende da sua própria insegurança atacando em todas as direcções, como um bêbedo socando o ar em seu redor. Uma ignorância que acha os factos desinteressantes e as explicações insuficientes. Uma ignorância que se foca aquém ou além do que está a acontecer e não no que está a acontecer. Uma ignorância que atira para cima da mesa toda a espécie de conspirações descabeladas.

Uma ignorância que por detrás de qualquer acontecimento vê parte de um plano mais vasto de domínio, mentira e controlo. Não chega ser uma pandemia, foi criada. As máscaras não são apenas uma forma de determos a propagação do vírus, são uma forma de controlo. Um medicamento não é só um medicamento, é uma decisão política. E deste espartilho com que se vestem para interpretar o mundo, zangados e tristes, acusam os restantes de medo infundado.

Andámos séculos para conseguir expurgar da natureza Deus e o diabo e os seus inúmeros agentes. Newton ensinou-nos que as maçãs não caem por nos quererem dizer coisas, mas por causa da gravidade. A medicina contemporânea mostrou-nos que o desrespeito às leis de Deus não causa doenças; as bactérias e vírus sim.

Quanto tempo mais será preciso para desparasitar a realidade dos nossos medos subconscientes? Ou dar-se-á o caso de sermos estruturalmente incapazes de viver sem estarmos sempre a tentar encontrar, mesmo que o facto se apresente pornograficamente nu, o lado escondido das coisas?

3 Jul 2020

Recordar é viver?

[dropcap]O[/dropcap]rtega Y Gasset fala das alturas da vida para referir aquilo que nós designamos em Português para falar do tempo, quando dizemos: naquela altura. Quando dizemos naquela altura referimos um tempo passado. Como se constitui? É porque podemos circunscrevê-lo temporalmente como já passado, uma fase que já acabou: o liceu, uma relação amorosa, uma viagem, umas férias, uma época da vida que resulta da intercepção de diversas actividades e da ligação com diversas pessoas, momento histórico relevante? Como nos aparece? A qual dos eus aparece? A mim, mas a quem de mim? A mim como sou agora no presente? Ou sou eu quem lá vou? Encontramo-nos num qualquer ponto do tempo como se houvesse um compromisso, a meio caminho, a meio tempo? Como se dá essa visita? E para aparecer, está morto e enterrado para nós?

Percebemos que as disposições estão mortas, que não nos damos com determinadas pessoas, os estados de espírito mudam com a presença e ausência de pessoas, os momentos da vida trazem vibrações diferentes, já nem nos lembramos bem de como era nessa altura pelo menos não inteiramente. Há um “cheirinho” de como era então para nós. Abre-se-nos, revela-se-nos de como estávamos agora a um eu mais sóbrio ou diferente ou pelo menos a uma versão de nós que pode perceber a verdade dos acontecimentos. Haverá só uma verdade? A verdade? A quem aparece o passado que é exumado na vibração, ondulação, estado, espírito, sopro, anelo, modo, modulação, com a voz própria que tinha tido então. Como podemos escutá-lo musicalmente? Ou como mergulhamos? Dá-se esse mergulho na dimensão da época nessa altura não é apenas uma invocação representativa. Conseguimos ir lá pela disposição. É o elemento que faz a homogeneização, que faz o transporte, o elo comum, o transporte temporal faz-se no modo modulação vocalização. Não se faz de nenhum outro modo, descemos ou subimos, transitamos para essa época ou não através do modo maneira modulação ou não transitamos.

Como com as nossas próprias vidas, pode estar presente o espírito daquela época e somos assim transportados para lá ou vem até nós e modifica completamente a cidade inteira a nossa vida presente. A actualidade é a linha de surf ou o lençol de água com a temperatura e a corrente que nos leva e isola das outras linhas de água com temperaturas diferentes e correntes em direcções diferentes, mas estamos sempre inexoravelmente na constituição de um tempo unidirecional ainda que perdidos em diversas alturas que parecem descarrilar como carruagens de um mega comboio que embateu e vemos todas as épocas ao mesmo tempo sem perceber a sua repartição cronológica. Tal como o tempo das nossas vidas também não tem uma datação exacta a não ser grandes épocas: a infância, o princípio das nossas vidas, o princípio da juventude, a idade adulta ou então o tempo do trauma. A nossa vida distingue-se entre o tempo do trauma que é o que marca a iniciação trágica a que só sobrevive quem encontra uma possibilidade de superar ou então se afunda e vê apenas a possibilidade perdida do que poderia ter sido e não foi.

O dia de ontem está a uma altura mais baixa ou mais alta? O dia de amanhã está a um nível mais alto ou mais baixo do que o dia de hoje? Não estamos no tempo da superfície, estamos num tempo de profundidade ou de relação não compreensível com a superfície e com a profundidade.

Quando aparecem memórias de infância não as vemos como olhamos para postais com paisagens ou fotos com pessoas que já morreram. Ao aparecerem têm o poder daqueles aparelhos que agora inventaram com o poder de criar uma realidade virtual que fazem a pessoa que mete o capacete na cabeça com o ecrã incorporado mergulhar no oceano imaginário que está na sala de estar. O passado inteiro virtual tem um poder total sobre a nossa vida. Expulsa a situação presente. Lembra-nos as músicas que ouvíamos, o que fazíamos, as pessoas com quem nos dávamos, a malta do liceu, o ano escolar, a nossa casa de adolescentes. Tudo está organizado pela brisa marítima que efectivamente se faz sentir e quimicamente transforma todas as moléculas do meu ser mudando o meu corpo presente no meu corpo passado, ressuscitando o meu corpo passado no meu corpo presente, transfigurando a Terra e o Universo, fazendo-o ser como era. Recordar é viver?

3 Jul 2020

A descaracterização da nossa Casablanca

[dropcap]N[/dropcap]a década que precedeu a pandemia, a massificação do turismo tornou-se num tema que agora parece esquecido. A memória tem cartilagens frágeis. Foram inúmeras as crónicas que evocaram a venezilândia irrespirável em que se estavam a transformar as cidades portuguesas com as mochilas a militarizarem o nomadismo insaciado dos alojamentos locais. Este cansaço, de que o eléctrico 28 a rebentar pelas costuras foi um símbolo vivo em Lisboa, teve os seus antecedentes.

Embora a atmosfera fosse de fuga dramática e não de um lúdico à procura de sentido, o início da segunda grande guerra mundial fez de Lisboa, como escreveu Alfred Dölin em ‘Viagem ao Destino’, “uma grande fábrica de produção de barulho”*. Alves Redol, no seu romance ‘O Cavalo Espantado’ (1960), deu conta das grande novidades que a guerra abruptamente trouxera a Lisboa: “O relógio do Carmo insinuava as horas. Foi então, aí por 1939, que do outro lado da praça, e a pedido dos estrangeiros sem sol para os aquecer na vida, se puseram cadeiras no passeio” (…) “E as estrangeiras sentaram-se por ali” (…) “atando o tempo de ansiedade naquele trampolim que tanto podia levá-las mais depressa ao lar abandonado, como atirá-las para um exílio em terras americanas” (…) “Ficou ali uma montra de pernas e de coxas para todas as gulas lisboetas, sem pudores recalcados”.

Para além do aeroporto marítimo de Cabo Ruivo, era a Sintra, no aeródromo da Granja do Marquês, que muitos dos refugiados chegavam. Josephine Baker reportou essas primeiras chegadas, numa das várias vezes que aterrou em Portugal: “Quando se abriu a carlinga estávamos em Portugal, em Sintra. Estava bom tempo. As pessoas sorriam. Já não era um cenário de guerra”. Só em Outubro de 1942, com a abertura do aeroporto da Portela, o movimento aéreo seria transferido de vez para Lisboa.

Entre o verão de 1940 e o fim do outono do ano seguinte, Nova Iorque era o grande objectivo. Não para todos, é claro. Mas grande parte das vanguardas artísticas da época não se eximiu à peregrinação. Antes de embarcar em Lisboa no transatlântico “Excambion”, na companhia de Salvador Dalí e de René Clair, Man Ray, tal como foi registado por Maria João Castro (num artigo que merece ser lido do princípio ao fim*), “passou o tempo por entre os cafés, os museus, a nadar nas piscinas e a ouvir música em night-clubs”. Antoine de Saint-Exupéry, que esteva alojado no Hotel Atlântico do Estoril, deu duas conferências e depois partiu lado a lado com Jean Renoir que chegara a Lisboa vindo do norte de África. Peggy Guggenheim, Max Ernst e respectivas famílias passaram igualmente algumas semanas em Lisboa, enquanto esperavam por lugar no Clipper. A 13 de Julho de 1941 voaram todos para a América. Dois meses antes, tinha chegado a Lisboa Marc Chagall oriundo de França e fugido à gestapo.

O impacto destas travessias na vida local, que, como se sabe, iam muito para além dos artistas do século, mereceram eco internacional. Numa reportagem escrita em 1940 (‘In Lissabon gestrandet’), Erika Mann, filha de Thomas Mann, deixava claro que Lisboa era “o único porto livre e neutral da Europa, tendo-se transformado no ponto de encontro e na sala de espera de todos aqueles que fogem de Hitler. De facto, não foi nem uma exposição universal, nem um festival o que atraiu tantas pessoas para estas ruas. São exilados, apátridas, aqueles que aqui se concentram. O seu número oscila, mas nunca deixam de ser milhares: sem bagagem, sem dinheiro, muitas vezes sem papéis, é assim que os refugiados aqui chegam. E que coisa podem fazer? Apenas uma: ficar cá enquanto tiverem autorização para isso. Apenas esperar. E por quê? Pelo navio salvador que os levará daqui, para qualquer lugar, desde que seja longe, o mais longe possível do inimigo, que lhes ia no encalço para onde quer que fossem”.

Três dias depois do ataque a Pearl Harbour, a 10 de Dezembro de 1941, a American Export Lines cancelou a partida de um navio pronto a deixar o porto de Nova Iorque com destino a Lisboa e anunciou que todas as futuras viagens estavam canceladas. Era a guerra a chegar também aos EUA e o início do fim da grande e tantas vezes trágica transumância.

Talvez o registo mais carregado de nostalgia desta breve irrupção pertença a Antoine de Saint-Exupéry, enigmaticamente fascinado com a “Exposição do Mundo Português”, que se realizara entre Junho e Dezembro de 1940, como se o mundo estivesse a viver um momento de júbilo e não de catástrofe. Em ‘Lettre à un Otage’, livro escrito em 1942 já durante o seu exílio no Estados Unidos, o autor de O Principezinho afirmava que Lisboa lhe aparecera “como uma espécie de paraíso claro e triste” (…) “Lisboa, que edificara a mais deslumbrante exposição que já houve no Mundo, sorria com um sorriso um tanto pálido” (…) “Lisboa em festa desafiava a Europa. Eu errava, pois, todas as noites, com melancolia, por entre os êxitos daquela exposição de um gosto extremo, em que tudo roçava a perfeição. E achava Lisboa, sob o seu sorriso, mais triste que as minhas cidades apagadas”*.

Essa tristeza crespuscular manteve-se viva e aos olhos de todos quase até ao fim do século XX. O que a alterou foi a abertura de portas, a liberdade e os muitos covis e  delírios que têm atado aos velhos altares a tecnologia, a globalização, as novas mobilidades e, por vezes, algum dinheiro fácil. Depois da pandemia, as venezilândias regressarão e com elas regressará também o tema recorrente da “descaracterização”. Com toda a certeza, sem a “bóia de salvação” que Alfred Döblin tanto sublinhou no seu tempo. A verdade é que só se ama em Casablanca uma única vez na vida.

*Castro, Maria João. ‘Por entre a bruma do cais da Europa: ecos estrangeiros na Lisboa da segunda grande guerra mundial’ em Colóquio ‘Arte & Discursos: dos factos aos relatos construídos por estrangeiros acerca de Portugal’, FCSH-Nova, Lisboa, 2014. Disponível em http://www.fcsh.unl.pt/artravel/pdf/brumadocais.pdf [Consult. 18/06/2020].
*Döblin, Alfred. ‘Viagem ao Destino’, Asa, Lisboa, 1997.
*Saint-Exupéry, Antoine de. ‘Carta a um Refém’, Relógio D’Água, Lisboa, 2015.

2 Jul 2020

No outro lado do espelho

[dropcap]É[/dropcap] notícia dos últimos dias, nos jornais e na televisão. O título é invariavel: Em Maputo, bebé nasce sem ânus. Irresistível chamada; lida a notícia vemos que há uma imprecisão na parangona, a desembocadura do intestino existe, houve apenas um desvio de rumo e o dito cujo “floresceu” no abdómen.

Não consegui apurar onde, excita-me a ideia de que se localize no umbigo, seria de uma ironia insolúvel, mas o que interessa ressaltar é a dificuldade de nomear o que é.

A coisa até me diverte, embora às vezes me enfureça.
Pergunto ao gabiru:
Brada, a loja das fotocópias?
Pai, está a ver o restaurante chinês, ali na esquina?
Restaurante chinês? — Eu fartinho de saber que é um restaurante português e ele, que trabalha a vinte metros devia saber igualmente. Mas repete — O restaurante chinês, da esquina…
Para quê contrariá-lo?

Sim, pai, a tabacaria é ao lado…
Encaminho-me na direcção do dito restaurante, chinês do Minho.

Na estante atrás do balcão, na tabacaria, dispõem-se várias caixas com canetas, de variegadas marcas, feitio e cor. Contudo, a prateleira só exibe um preço marcado, sob a caixa que arruma as esferográficas vermelhas. Gosto das vermelhas e do preço, 15 meticais, mas prefiro outras que estão ao lado. Pego em duas e nas fotocópias e proponho-me pagar. E diz-me a dona:

São 395 meticais.
Engasgo-me:

Como, se as fotocópias são 15 e as canetas 30?
Não…- Esclarece pronta — As de 15, são só as vermelhas… estas, são 190 cada…
– Ah, bom não se adivinhava. Dado que só tem marcado um preço por prateleira…
– É para facilitar…

Não facilita e gaguejo, face àquela lógica invertida ou manca de rigor; envergonhado:
– Nesse caso levo uma vermelha…

Esta característica de uma outra orientação na ordem das coisas também às vezes a encontro em casa. Pede-me a minha mulher:
– … se vais passar por lá, preciso que me troques cem dólares na tabacaria.
– Na tabacaria? – Indago, conhecendo a “peça”.
– Na tabacaria! – Confirma – A que fica ao frente ao BCI. Está claro?
– Está claríssimo!

Meia hora depois a situação está enevoada. Para trás e para a frente no rasto tabacaria. Enfim, troco o dinheiro em frente ao BCI, numa perfumaria.

Para que confio eu em ti, se há vinte anos que sei, quando dizes Está na gaveta direita, está na gaveta esquerda… –, queixo-me em casa. Os “tiques” de cada casal.
Não há, em Maputo, uma localização que pergunte na rua que não conheça percalços, uma probabilidade altíssima da indicação estar errada.

Fiz um livro de entrevistas com uma figura interessante, um médico que já foi ministro da saúde e director do Hospital Central de Maputo e com muitas histórias para contar. A primeira vez que fui a casa dele, orientararam-me, com solenidade:

– Na rua X, mesmo, mesmo, em frente à esquadra da polícia.
Lá estive a rabiar, eram 80 metros à esquerda.

Pior se pergunto a um “cinzentinho” (como popularmente se chama aos polícias), com toda a convicção do mundo manda-me para os antípodas do pretendido.

Toda a gente “sabe” e não confessa que não sabe… Pelo motivo mais simpaticamente estulto: considera-se má educação não corresponder a uma solicitação, sendo preferível dar uma indicação errada do que não a dar.

Uma vez fui perguntando por um endereço em Nampula e quase cheguei a Quelimane.
Corolariamente, no aeroporto de Nampula nenhuma loja correspondia ao que se anunciava no lettring. Se estava Agência de Viagens vendia-se artesanato, se dizia Boutique de Senhora vendiam-se embalagens de comida para cães, etc. Bom, em Nampula, a minha preferida é a Livraria Central que tem motos na montra e, lá dentro, pneus e peças para tractor. No Gurué a única livraria da cidade vende todo o tipo de colchões, fronhas e lençóis. Livros, talvez, em sonhos.

Estas inversões lógicas estendem-se à cronologia e à noção da própria idade. Numa entrevista, perguntámos a uma miúda a idade e respondeu para a câmara, muito serena:
– Tenho noventa e nove anos.

Estivemos dez minutos a explicar-lhe por a+b que isso era impossível, ela contou então que nascera num ano que em que houvera muita produção de melancia. Voltámos a gravar o depoimento, ela, muito espontânea apresentou-se e depois concluiu:
– … tenho dezanove anos… assim serve?

De outra vez, em Quelimane, onde dei aulas, numa esplanada, uma miúda que dizia ter dezanove anos (parecia ter quinze) meteu-se comigo com intenções peregrinas. Para a dissuadir perguntei-lhe:
– Sabes que idade é que eu tenho?

Ela olhou-me fixamente e depois atirou:
– Tens oitenta e oito, é isso!

Numa gargalhada, contrapuz o argumento final: num homem de oitenta e oito o guindaste está avariado.
Popularmente, em Maputo, os verbos significam o seu oposto: trazer por levar, ir por vir, buscar por levar, emprestar por pedir emprestado, etc.

Conto isto porque hoje encontrei uma citação de Evelyn Baring, que governou o Egipto por mandato da coroa britânica entre 1883 e 1907 e que a dado momento da sua volumosa história do Egipto escreve:

A falta de precisão, que degenera facilmente em falsidade, é, de facto, a principal característica do espírito oriental (…) o espírito oriental, tal como as suas ruas pitorescas tem uma absoluta falta de simetria.

É uma generalização absolutamente abusiva, que convém relativizar, embora — vá lá saber-se como funcionam os meandros do espírito — me desperte uma hipótese ontológica atordoadora, a de existir uma simetria psíquica planetária e oculta:

Eles, os que vivem deste lado oriental (e digo eles, porque é diferente cá morar momentaneamente ou pertencer-se) vivem afinal no seu lado certo do planeta, a nossa cabeça, como a da Alice, é que ainda está no outro lado do espelho.

2 Jul 2020

Chegar tarde à festa

[dropcap]N[/dropcap]o dia 12 de Junho deste ano estranho aconteceu uma coisa rara: o New York Times publicou uma entrevista a Bob Dylan, que o escritor de canções acedeu fazer uma semana antes do lançamento do seu primeiro disco de originais em oito anos: Rough And Rowdy Ways, assim se chama. Dylan nunca foi grande apreciador de interacções com a comunicação social (como o seu grande ídolo Sinatra, a quem dedicou os dois discos anteriores) mas neste caso deverá ter pesado o facto de que o entrevistador tivesse sido um amigo seu, Douglas Brinkley.

Por esta altura a crítica já incensou o duplo álbum, uma chuva de estrelas por tudo o que é imprensa “especializada”. Pela minha parte, confirmo: bastariam o épico de 17 minutos que é Murder Most Foul (a propósito e a partir do assassinato de John Kennedy) e o ainda mais excelente I Contain Multitudes para provar que o homem está em forma e ainda por cima conta com cúmplices do calibre de Fiona Apple, entre outros. Mas regressemos à entrevista, que é o ponto de partida para esta conversa. Em rigor não traz grandes surpresas ou afirmações bombásticas. Dylan fala do estado do mundo, coisa que as suas canções sempre fizeram. Brinkley não é um entrevistador brilhante até porque nem sequer é jornalista e em quase todas as perguntas que faz as respostas estão contidas no enunciado. Sobre a morte de George Floyd e o que isso espoletou, por exemplo, Brinkley pergunta a Dylan o que acha do fenómeno, listando as canções que falam justamente do assunto racismo e de violência policial (cf. Hurricane, 1976). Espanta como o autor de canções teve algo mais a dizer do que “sim” ou “não”.

Há no entanto perguntas e respostas que valem a pena. Sobre o soberbo I Contain Multitudes o entrevistador pega num verso para saber da relação de Dylan com a sua mortalidade: “I sleep with life and death in the same bed”. A réplica de Dylan aqui é menos interessante do que a sua letra mas nem por isso menos verdade: o homem tem 79 anos, é natural que pense nisso. E diz que pensa na morte “de uma maneira geral, não de uma forma pessoal”.

Mas o que realmente me chamou a atenção a ponto de ser o pretexto desta crónica foi quando a dada altura o entrevistador revela o seu espanto quando em Murder Must Foul o cantor homenageia Glenn Frey e Don Henley, compositores principais da banda The Eagles. E é este espanto que me interessa, porque o que faz é disfarçar o preconceito de Brinkley – o que está no subtexto da pergunta é “como é que um génio como tu pode gostar de uma banda como os The Eagles, tão mainstream e ainda por cima de sucesso”? Dylan não só lista alguma das canções da banda mas ainda diz que Pretty Maids All In The Row é uma das maiores canções de sempre.

Este fenómeno é comum e universal. Trata-se de um preconceito de gosto, um pré-juizo inofensivo (por oposição a outros mais importantes, torpes e nefastos) que desperta a surpresa quando alguém que respeitamos os quebra. O próprio Dylan foi alvo disso: como é que um dos melhores escritores de canções poderia gostar de Sinatra, um tipo que cantava sempre de smoking e em casinos. A resposta, sabemos, é simples: porque Dylan adora canções e conhece a vida de Sinatra.

Há pouco tempo tive uma experiência semelhante: ao ouvir uma canção dos Crosby, Stills & Nash fui arrebatado: como é que estes hippies (subcultura que sempre desprezei) puderam escrever uma canção tão perfeita como Helplessly Hoping ? Na minha ignorância nem sequer me dava ao trabalho de os ouvir. Até o dia em que os ouvi e fiquei deslumbrado.

Vivemos na época em que a formulação mais comum que se utiliza para designar o que não está de acordo com os nossos gostos é “nunca ouvi/li/discuti mas”. A atitude de curiosidade saudável parece ter sido perdida neste mundo de trincheiras em que vivemos, feita de maniqueísmos e ignorância. Mais ainda, a predisposição para ser devidamente contrariado é algo em vias de extinção. E é tão necessária. Teremos sempre preconceitos, disso ninguém duvide. E alguns, eventualmente, serão bons. Mas temos de estar dispostos a que alguém os arrase com inteligência e gentileza. Sem isso não pode haver caminho que valha a pena fazer.

A propósito da minha tardia descoberta da canção mencionada, um amigo comentou: “Às vezes é melhor chegar tarde à festa”. Tem toda a razão. Melhor sempre encontrar alguém do que chegar cedo e estar sozinho.

1 Jul 2020

Memória de um local dilecto

[dropcap]T[/dropcap]chaikovsky compôs a obra Souvenir d’un lieu cher (Memória de um local dilecto), Op. 42, para violino e piano, entre Março e Maio de 1878. O primeiro andamento, Méditation, foi composto em Março desse ano em Clarens, na Suíça, onde Tchaikovsky também escreveu o seu Concerto para Violino, crê-se a pedido do seu aluno e possivelmente apaixonado, Iosif Kotek. Originalmente, era para ser o andamento lento do concerto, mas o compositor pô-lo de parte, compondo em seu lugar uma Canzonetta.

No dia 16 de Maio, regressado à Rússia, começou a trabalhar numa obra em três partes para violino e piano, a única vez que compôs para essa combinação de instrumentos. No dia 25 de Maio, Tchaikovsky partiu para Brailovo, a casa de campo da sua mecenas Nadezhda von Meck, onde concluiu a obra no dia 31 de Maio.

Para o primeiro andamento, usou a Méditation descartada, reorquestrada para violino e piano. As duas peças (a Méditation e a Canzonetta), são bem da mesma veia melódica, dessa elegia por vezes simples no seu enunciado mas profundamente pungente na sua finalidade expressiva. Os restantes andamentos, Scherzo e Mélodie, foram compostos após Tchaikovsky ter terminado o Álbum para Crianças em Maio de 1878. O Scherzo tem a aparência rítmica de uma tarantela, na qual a vitalidade rítmica ofegante lembra tudo o que Tchaikovsky deve a Schumann: uma mesma angústia febril, um mesmo sentido de evocações fantásticas.

Mas a parte central do Scherzo constitui um contraste notável e é um Tchaikovsky mais mundano que aí surge, com uma melodia docilmente dançante que poderia ter saído de qualquer cena de um ballet. No finale, Mélodie, o compositor renuncia à bravura habitual dos andamentos conclusivos, substituindo-a por uma serenidade melodiosa que, após a densidade emocional dos andamentos precedentes, traz um bem-vindo raio de luz.

O compositor, ao deixar Brailovo, deixou o manuscrito original da obra ao encarregado da propriedade, Marcel, para ser entregue a Nadezhda von Meck, em sinal de gratidão. Numa carta à sua mecenas, escreve:

“Deixei as minhas peças, dedicadas a Brailovo, a Marcel para lhas entregar… Na minha opinião, a primeira é a melhor, mas foi a que me deu mais trabalho. Ao entregá-las a Marcel, fui acometido de uma melancolia indescritível, que permaneceu em mim até este momento; os lilases ainda em flor, a relva ainda por cortar e as roseiras apenas a começarem a florir!” Na mesma carta, o compositor pediu a Nadezhda von Meck que providenciasse uma cópia da obra, a qual foi feita por Władysław Pachulski, um membro da casa von Meck, e enviada a Tchaikovsky em Setembro desse ano. Enviou então a cópia ao seu editor, Pyotr Jurgenson, que publicou as obras em Maio de 1879, como Op. 42, tendo Tchaikovsky declarado na ocasião “estar extremamente encantado com a edição”. Em 1880, Méditation foi publicada separadamente, e tornou-se desde então conhecida como uma peça independente. Scherzo e Mélodie foram publicados em Abril de 1884. Em 1896 Jurgeson publicou a obra completa num arranjo para violino e orquestra de Alexander Glazunov, e nesta forma tornou-se talvez mais conhecida do que na sua forma original para violino e piano. Em 1908, foi lançada uma nova edição das peças para violino e piano, editada por Leopold Auer.

Sugestão de audição:
Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Souvenir d’un lieu cher, Op. 42
Julia Fischer (violino), Yakov Kreizberg (piano) – Pentatone, 2016
30 Jun 2020

A origem do impulso para o suicídio

[dropcap]J[/dropcap]ane Mcgrade, escritora irlandesa nascida em Dublin em 1921 e falecida em 1962 por afogamento ao largo da ilha de Lesbos, escreveu um fascinante livro chamado «Desde Que Morrem Os Homens», publicado em 1957. Não é um romance nem um ensaio, antes pelo contrário. Trata-se de um texto apátrida, de difícil categorização, onde se procura a origem da morte do humano e o seu impulso para o suicídio. O livro não conta uma história, mas as suas investigações também não têm fundamentação científica, apenas literária. O livro começa assim: «Vários são os textos antigos que nos relatam um tempo em que ainda não se morria. Um tempo em que não havia humanidade. Pois quer se trate de Adão e Eva, quer se trate dos Titãs, não podemos encontrar aí as nossas origens, ainda que os textos antigos assim o reclamem.

Mas pode aquele que não morre passar a morrer? Pode um imortal passar a mortal? Nós somos aqueles que caíram? Somos realmente os filhos de um erro?» Percebemos de imediato que vamos entrar num mundo estranho. Perguntar pela origem do humano, não através da ciência ou da religião, mas através da literatura, isto é, pelo relato, pelos textos escritos. Para Jane Mcgrade esses textos não são de somenos importância.

Escreve à página 17: «Porque escrevemos desde o início dos tempos que a origem da vida humana reside num erro? A vida humana começa com uma expulsão. Depois da expulsão, a existência. Dito assim, parece uma metáfora do próprio nascimento. Será que é disso e só disso que se trata, de uma metáfora do momento em que nos desligamos das entranhas da mãe e caímos no mundo? Ou há algo de real, neste ver e relatar a existência como uma expulsão? A saber, trata-se realmente do relato do que aconteceu, seja lá quem nos expulsou, de onde ou porquê? E estes relatos não terão produzido afectos que se tornaram reais, tão reais como as palavras que influenciaram o mundo?» O que está em causa para a escritora é a ligação dos textos, dos relatos, à origem da existência. Escreve à página 76: «Ainda que não existam factos que se relacionem directamente com os textos, de algum modo os textos têm de se relacionar com a origem da nossa existência, isto é, com a origem da nossa morte, de começarmos a morrer. Há um momento em que começamos a morrer e os textos dão-nos conta disso. Passou a ser verdade ou passámos a ter consciência disso?» Esta distinção é fundamental para Mcgrade. «Desde Que Morrem Os Homens» procura saber de onde vem a ideia de um tempo antes da morte. Ideia essa que se liga a uma outra: a de a existência ser uma culpa, uma expiação, um erro. «Fizemos mal, ou o mal, e passámos a existir.» (p. 45) A existência como a invenção do mal é uma ideia que inaugura a própria escrita. Os primeiros textos estão marcados com esta distinção entre um antes, a que já não podemos voltar, e um agora que será para sempre o arrastar de um erro cometido no passado. E mesmo que não tenha sido verdade – alguma vez o poderemos saber? –, as palavras passaram a ser vividas como se tudo tivesse sido verdade, fazendo com que isso passasse a fazer parte da própria existência.

É na segunda parte do livro que a questão do suicídio começa a aparecer como horizonte do questionamento. À página 113 de «Desde Que Morrem Os Homens», escreve: «Não é certo que o impulso para o suicídio que algumas pessoas têm não advenha de uma estranha ligação com a nossa origem. Essas pessoas estão mais expostas à culpa, ao erro que sentem que são do que as outras. De algum modo, estas pessoas são mais antigas. Um dia ainda teremos instrumentos que nos permitam investigar estes sentimentos, que nos trarão à tona o mistério da nossa origem. Então veremos que a existência e o suicídio estão intimamente interligados na sua essência.» Jane Mcgrade, ela mesma atraída ao longo da vida pela ideia de suicídio – há quem defenda que o seu afogamento foi suicídio –, entendia este misterioso impulso como um inapelável fazer-se sentir do tempo original da culpa de expulsão. Embora também apareça escrito quase no final do livro, página 177: «Talvez o impulso para o suicídio seja no fundo a crença de que só assim poderemos voltar ao paraíso. A crença de que há que recusar a existência com as próprias mãos de modo a poder ganhar o que ela nos fez perder.» Podemos dizer, sem fugir à verdade, que a pergunta pela origem da existência é também a pergunta pelo impulso para o suicídio. Para Jane Mcgrade, não é possível perguntar pelo primeiro tema sem ficar obcecado pelo segundo.

A escritora irlandesa deixou-nos um livro estranho, por onde quer que se leia, e que tem tido ao longo do tempo muito poucos leitores. Talvez o século XXI venha a operar uma mudança nesta tendência.

30 Jun 2020

Z.

[dropcap]N[/dropcap]as equações matemáticas a incógnita é X. Nele, ele próprio. Z. Um diminutivo de infância que lhe ficou. A recobrir o conteúdo secreto, de anonimato e ausência.

Quem quer falar da morte? A tristeza tem que sair, suada pelos poros, ou afoga-me. Faço-lhe companhia nestas palavras como noutras alturas, noutras distâncias menores. Uniram-nos laços de sangue e de estranheza. Dão-nos os pêsames e os sentimentos, mas há um mundo de questões que se abriu desta caixa de Pandora e fica a atormentar. Porque também vamos morrer sós e sem ninguém saber por uns dias, uns anos. Faleceu hoje. De manhã. É verdade. Foi hoje, há três dias. Mas a data pode ser uma mentira. As pessoas morrem quando sabem que morreram ou morrem-nos quando o sabemos. E que sabemos nós? Que nos morrem em vida, ou se nos deixam morrer como às vezes vivem para lá do momento em que nos deixaram sem nos deixar saber. Como se fosse hoje, mas passaram dois anos. Extraviado. Morre-se quando se sabe que morreu. Não sei o que ele soube. Nós, só agora. Com esta mágoa acrescida da tristeza de não o ter sabido antes. Mesmo se assim, parece que viveu um pouco mais até ao veredicto do olhar.

Foi uma estrela pop. Uma fantasia com que em jovem sonhou gostar de ser lembrado. Uma estrela desconhecida, dos anos sessenta e setenta. Mas que importa se, pensando bem, nunca alguém conhece ninguém. E tornou-se irreconhecível. Como somos até para nós próprios, em dados momentos. Ensaios à capela à porta fechada. Vagos espectáculos. Vinis vindos de França. Sonhos. Era uma fotografia a preto e branco nas revistas cor-de-rosa que me mostrava. Lembro-me. Fotografia de estúdio, de corpo inteiro, casaco ao ombro e pose de charme contemplativo. Ou de rosto, em formato de postal. Autografadas na diagonal com uma assinatura grande e expressiva. Que se foi apagando com o tempo. E como cromos das cadernetas de estrelas de cinema, em cores artificiais e contrastante e que eu espiava em segredo. Eram bonitas. As estrelas a pousar oblíquas para a câmara, de penteados rigorosos em ondas. Que coisa, sonhar com a fama.

Morreu só. E só dois anos depois, soubemos. Deixamos as pessoas morrer sós porque as deixámos viver sós. Sem querer. Ou porque o quiseram ou porque fomos nós. Tinha vocações várias, cursos. Que dariam para tudo e não deram para nada. Era considerado estranho. Porque cada um acha a estranheza do outro sempre mais estranha do que a sua. Tinha uma vida estranha. Passou mal mas deixou bens. Suprema ironia. Talvez sentisse essa vontade de deixar algo de si. Mas deixou também o que foi e muito que não foi e se lhe adivinhava sonho.

Para além disso um rasto de invisibilidade para além dos afectos que o lembrem. Essa insignificância, imputada ao que fez ou não fez, porque sem reconhecimento. Ele a perder-se nuns casacos, cada vez mais, grandes demais. Porque era também o corpo a sumir-se-lhes no interior. Engolido pelo interior da cabeça e por uma espécie de visibilidade que realmente se esfumava.

Os lugares de Z. – todas as casas – deram-me sempre que pensar. Conjuntos de quartos tornados interiores. Janelas fechadas, paredes a perderem-se atrás de camadas de mobiliário, sobrepostas em altura e longitude, no sentido de um centro. A ocupação compulsiva do espaço até ao preenchimento total. Sempre a compará-lo com o conceptualismo da Land art, penso em Walter de Maria, nas “Earth room”, salas cobertas de uma terra limpa e uniforme, inóspita e perfeitamente estéril. E depois penso no interior das casas de Z. progressivamente tornadas inóspitas pela acumulação. Penso nas instalações de De Maria, com elementos minimais de geometria perfeita, volumes ou planos, organização rigorosa de formas rectilíneas dispostas no chão. Sempre no limite do essencial. O conceito de caminho e o de lugar O paralelismo perfeito sem pontes.

Talvez a apontar ao infinito transposto para o interior de espaços. E em Z. o excesso.
Ou Richard Long. Outra apropriação do espaço com instalação de coisas da terra meticulosamente ordenadas. Sinais repetitivos e orientados como caminhos ou como pontos focais do universo vindo do exterior ou, se no exterior, o ordenamento no rigor do que de origem natural, não o possui à partida. Ordem e sentido. E Z. vive também a apropriação do espaço interior, ocupado com objectos anódinos, materiais que acusam um critério de irrelevância essencial. Sacos, folhetos publicitários empilhados numa organização impecável, a ocupar todos os lugares do corpo, de sentar de comer de andar. Uma invasão obsessiva de todo o espaço útil da casa, como uma envolvência uterina. Ou uma fronteira onde estranhos passam a ser todos, por falta de lugar. Era recolector-colecionador, com um critério exclusivo de inutilidade, cumprido em cada objecto danificado e incompleto. Quase reduzido a matéria ferida de vida anterior. Eram esses os que levava para casa. Como animais doentes. Se Long introduz o conceito do próprio processo como obra de arte, também aí caminha Z.

E um dia, sacos de plástico de supermercado, dezenas. Lívidos, impecáveis, alinhados no chão e esticados na vertical, com pequenos conteúdos indecifráveis. Talvez víveres como na preparação de um cerco. Ou de um mergulho na ausência. A ocupar todo o chão. Seriam pacotes de leite, conservas, bolachas. Nunca espreitei mas é o que imagino. O cúmulo de uma necessidade íntima, de um anseio, psíquico, mágico. Talvez por isso nunca se saberá um objecto de arte. Tudo vai desaparecer como lixo de volta ao lixo. Uma instalação honesta, esta. A obra que não se destinou ao olhar. Veemente, necessária e imperativa.

O meu padrinho. De invisível estrela pop ao desconhecido conceptual. Uma anónima pegada na vida, que nem na morte se anunciou. Porque morreu sem me dizer? Falámos, pouco antes, mas depois fechou as portas como sempre. Nunca sabíamos dele senão quando queria. Agora, sabemos para onde foi. Mas não de onde. No lapso enorme entre uma morte e a outra. Se casa é o interior da cabeça virado do avesso, vamos agora entrar-lhe pelo secreto conteúdo de uma e outra adentro. Como de uma “showroom”. Uma viagem penosa. Face à morte de uma personagem do teatro de vida, a vida, ela própria passa a fazer-nos girar numa órbita diferente. Subtilmente diferente. Desviada.

A verdade é que morreu exactamente como uma estrela. Uma presença no firmamento de quem o lembrava, muito depois de, sem se saber, já lá não estar afinal.

29 Jun 2020

Os poderes do Senado para o Governador

[dropcap]M[/dropcap]acau era administrada e governada por o Senado, eleito entre os homens bons da cidade, até aparecer em 1623 um Governador permanente, nomeado pelo Vice-Rei da Índia em nome do Rei de Portugal. Com funções de Capitão de Guerra apenas tinha o comando militar na defesa da cidade e ao Senado cabia a administração civil, comercial e financeira, sendo o Procurador o seu tesoureiro. A este competia gerir também o cofre pertencente à Coroa, que por ano recebia um quinto do rendimento do território, destinado desde 1714 ao pagamento dos gastos civis, militares e eclesiásticos. Quando o Vice-rei da Índia em 1738 quis reformar as finanças libertou o Procurador desse encargo, substituindo-o por um outro da vereação do Senado, com o dever de prestar contas anuais a Goa.

A razão do Procurador deixar de ser tesoureiro do Senado deveu-se ao excessivo abarcamento de funções, o que não beneficiava a causa pública, antes contribuía grandemente para as más consequências que de tão imperfeito regime por longo tempo resultaram. Com o tso-tang a viver em Macau desde 1736, “O concurso das autoridades chinesas a governarem connosco a mesma cidade tornava sobremodo melindrosas e difíceis as nossas relações com o império vizinho, da boa direcção das quais dependia unicamente, se pode dizer, a manutenção dos nossos direitos, em razão da enorme distância da metrópole. Viu-se ainda que ao Procurador competia ser ministro da cidade nas multiplicadas negociações desse dificultoso trato, mas a acumulação de deveres, ou inconciliável exigência das circunstâncias que se davam, ou fácil carência de política definida e igual em cidadãos que, devendo o cargo a uma eleição de curto prazo, mais se prendiam a interesses alheios;” um esforço de sobre-humana ubiquidade, segundo o B.O..

Goa sem as contas de Macau

As providências reais enviadas para Macau em 1783 pela Rainha D. Maria I retiravam ao Senado o governo e ampliavam a autoridade ao Governador, o verdadeiro representante do poder central nos assuntos político-administrativos da Cidade. Acusava o Senado de ignorância em matéria de governo e obrigava-o a não tomar nenhuma resolução administrativa, nem determinar coisa alguma sobre negócios relativos aos chineses, nem pertencentes à Fazenda Real, sem antes apresentarem o assunto ao Governador, o Capitão Geral de Macau.

Tal se devia à recusa desde 1738 do Senado apresentar contas anuais a Goa e por isso, nas providências vinha determinado que as contas seriam examinadas pelo Governador e pelo Ouvidor. Era Governador de Macau desde 18 de Agosto de 1783 Bernardo de Lemos e Faria quando o Ouvidor Lázaro da Silva Ferreira examinou os livros do cofre real e encontrou “um défice de 320 mil taéis, devido, conjecturou ele, à aceitação de fiadores fraudulentos e insolventes para os fundos da hipoteca de carga – parentes, amigos e protectores que, no poder, não fizeram caso do pagamento e acumularam dívidas, sendo que muitos devedores estavam mortos ou insolventes. Tivesse-se exigido o reembolso aos cidadãos honestos, que eram os fiadores, seria dado um golpe mortal no comércio e navegação da colónia, nos quais o dinheiro estava investido. Dadas as circunstâncias, o príncipe regente informou o Senado, numa carta datada de 1799, que a dívida à rainha, no valor de 291.193 taéis, tinha sido perdoada”, segundo Montalto de Jesus.

Andrew Ljungstedt refere “em 1784 para fazer face às despesas da cidade (o dinheiro público era empregado para pagamento de salários e despesas extraordinárias) precisava-se de 35 mil taéis de prata e o excedente do rendimento era dado em empréstimos com risco de mar, de modo que o capital nacional em circulação crescia de ano para ano. Em 1802 cresceu a 173.690 taéis. Em 1809, foram emprestados a juro de risco de mar, de 20 a 25%, 159.400 taéis. [Com aprovação real de 1810 foi criada em 1817 a Casa de Seguros de Macau, onde o Senado tinha acções.] Em 1817 já não foram dados em empréstimos mais do que 40.400 taéis e as despesas ordinárias e extraordinárias subiram a quase 80 mil taéis.

Em 1826 a cidade tinha uma dívida de mais de 122 mil taéis. Em 1830, as alfândegas renderam 69.183 taéis, mas as despesas foram de 109.451 taéis. A dívida pública de Macau em 1832 era de 150 mil taéis e em 31 de Dezembro de 1834 subia a 165.134.688 taéis. Nesse ano os rendimentos procedentes das alfândegas eram 75.283.613 taéis, sendo as despesas totais de 89.900.686 de taéis.” (1 tael de prata correspondia a 37,72 gramas).

Mercadoria proibida

A China proibia pela primeira vez em 1796 a importação de ópio, ilegalizado desde 1729, endurecendo mais ainda as medidas.

Para conseguir a prata afim de adquirir mercadorias (chá, seda, porcelana), sem as poder transaccionar na China por ópio, a Companhia Inglesa das Índias Orientais decidiu então, segundo Guo Weidong, “limitar-se à produção da droga na Índia. Enquanto isso, comerciantes ingleses independentes continuavam suas operações comerciais de ópio sob o controlo de Macau”, onde montaram o centro para o seu comércio, com a participação de portugueses. Mesmo governadores de Macau, das duas últimas décadas do século XVIII, investiram por conta própria nesse tráfico.

Em 1820, os traficantes ingleses estavam na ilha de Lin Tin, local seguro e de fácil acesso, e tal era o volume recebido que, “grandes barcos encontravam-se ancorados no Mar Lingdingyang para receber ópio por atacado e numerosos juncos chegavam ao mesmo Mar, de onde partiam carregados de ópio para o vender nas diversas províncias litorais da China”, segundo Guo Weidong, que refere, em 1837 “Três quartos do ópio produzido em Malwa foram exportados directamente de Bombaim por barcos ingleses, tendo o governo colonial da Índia Inglesa cobrado 125 rupias por caixa como imposto de exportação. E um quarto desse ópio continuou a seguir a rota tradicional, isto é, transportado em primeiro lugar para uma colónia portuguesa de onde seguia em barcos portugueses para a China, e essa parte de ópio não deixava de passar por Macau.”

Novo folgo

A 5 de Janeiro de 1822 Macau aderia à Monarquia Constitucional e um mês depois apareceu uma Representação a advogar uma Câmara eleita pelo povo. O sufrágio popular ocorreu a 19 de Agosto numa assembleia-geral reunida no Senado e presidida pelo Governador José Osório de Albuquerque, sendo eleitos os membros do novo governo constitucional: dois juízes com exercício de Ouvidor, três vereadores e um procurador. No dia seguinte, o vereador Presidente da eleita Comissão liberal pediu ao governador que resignasse, ficando o Brigadeiro Francisco de Melo como governador de armas. Estavam assim restaurados os poderes legislativos, executivos e judiciais do Senado, retirados nas Provisões de 1783, quando foram centrados no Governador e Ouvidor. A 23 de Setembro de 1823, os conservadores, com a ajuda dos militares vindos de Goa, retomavam o governo, mas só com a reforma de 1834 o Governador ganhou verdadeira autoridade civil em Macau.

29 Jun 2020

Que deus não perdoe!

[dropcap]A[/dropcap]cordo assarapantado: no meu sonho uma brigada fundamentalista assaltava as bibliotecas e incendiava todos os exemplares do Moby Dick porque, espumavam com verdadeira incontinência, no romance de Melville se matam baleias.

Passei os últimos dias a reler o romance e estou literalmente esmagado com a magnitude de Melville e a violência do seu fracasso.  O livro, de 1851, foi zurzido pela crítica e o principal motivo para o declínio da carreira do autor.

Moby Dick é um romance tingido por reflexões éticas e filosóficas que também se manifestariam em Pierre or the ambiguities (1852), outra obra-prima, desta feita uma obscura exploração alegórica da natureza do mal em quinhentas páginas. Mas se Moby Dick não foi um sucesso comercial, Pierre or the Ambiguities foi um fiasco retumbante. O que levou o seu editor a recusar o manuscrito, hoje perdido, do livro seguinte: The Isle of the Cross.

Herman Melville morreu em 28 de setembro de 1891, aos 72 anos, em Nova York, na total obscuridade – quarenta anos depois de ter assistido à sua derrocada. Aliás, além de The Isle of the Cross, Melville só voltaria a escrever Billy Budd, publicado trinta e alguns anos depois da sua morte, e passaria as suas últimas três décadas de vida em deceptiva congelação, sem chegar a adivinhar o sucesso que a sua obra alcançaria no século seguinte.

Face a Moby Dick, escrito com um domínio total sobre todos os recursos técnicos do romance e as suas modulações expressivas, é monstruoso pensar na solidão de Melville e na desproporção entre a sua natural consciência de quanto os seus livros valiam e a frustre recepção dos mesmos – a mágoa com que abandonou a sua arte é, para nós, incomensurável.

Entretanto, registe-se esta curiosidade no Moby Dick, no capítulo 41: «(…) as realidades da vida rivalizam com os prodígios das lendas antigas, mesmo quando se trata de uma velha história como a da serra da Estrela, em Portugal, onde se diz existir perto do cume um lago em cuja superfície flutuam carças de navios naufragados no oceano.» A serra da Estrela, à qual Melville, no original, chama “montanha interior” mas que na edição brasileira da Cosac & Naify é amesquinhada, não passando de um “monte da Estrela”.

Pois no futuro será a cordilheira-Melville que vai voltar a ser aplainada sob a vaga dos literalistas que dominarão as próximas décadas. Como escreveu Pacheco Pereira: «Ninguém liga nenhuma ao facto de uma certa forma de ignorância agressiva estar a crescer, e a como isso se está a tornar um grave problema social, e político (…) será um retrocesso civilizacional (…) A dificuldade de separar a verdade da mentira, o crescimento das teorias conspirativas, as ideias contra a ciência, tudo isto está a ganhar terreno. O populismo moderno dá-lhes uma expressão política eficaz.».

E como são literalistas, tudo o que seja expressão simbólica escapa-lhes, e até o melhor da emulação desportiva e da sua dupla significação de redenção e sacrifício será desentendido. Aí, igualmente o boxe será banido: serão postas numa pira os filmes Body and Soul, do Robert Rossen, The set-up, de Robert Wise, O Touro Enraivecido, de Scorsese, e A Million Dollar Baby, de Clint Eastwood – quatro obras-primas a arder, sob a fúria iconoclasta.

Receio que os esbirros, o pesadelo advertiu-me, venham cá a casa incendiar o belíssimo On Boxing, da insuspeita Joyce Carol Oates e o impagável The fight, a genial reportagem que Normal Mailer escreveu sobre the rumble in the jungle, a mítica disputa do título dos pesos-pesados, entre Muhammad Ali e George Foreman, em Kinshasa, no antigo Zaire. São duzentas e trinta páginas trepidantes, do melhor New Journalism. Norman Mailer escrevia sobre boxe como quem soltava rápidos jabs, e aí se lia:

«Talvez que a doença resulte de uma falha de comunicação entre a mente e o corpo. Isso é certamente verdadeiro no caso de uma doença tão rápida como o nocaute. A mente não consegue mais transmitir uma palavra sequer aos membros. O extremo dessa teoria, exposta por Cus D’Amato quando treinava Floyd Patterson e José Torres, é que um pugilista com desejo autêntico de vencer não pode ser nocauteado se vê o soco aproximar-se, pois então não sofre nenhuma interrupção dramática de comunicação. O soco pode machucar, mas não é capaz de liquidá-lo.»

The rumble in the jungle, tinha eu quinze anos, em 30 de Outubro de 1974, motivou uma das minhas primeiras «directas», para conseguir ouvir às quatro da manhã, pelo rádio, a reportagem do combate. Noite sobre a qual escreveria um poema, que assim termina:

«(…) E o tempo, sorna, de sorriso a tiracolo, a descarnar-me as gengivas,/ a enrodilhar-me nas suas veias de lobo,/ enquanto Ali – grafitos indeléveis no céu/ de Órion – ginga ao canto, furtando-se/ ao amasso de Foreman, e resiste,/ uma e outra vez, dando enlace e realce/ ao delicado equilíbrio das estrelas ascendentes.»

Tudo isso será queimado e já começou. Começou no silêncio que tem vigorado sobre os cinquenta e dois jovens executados no distrito de Muidumbe, pelos terroristas de Cabo Delgado. Executados porquê? Porque, na aldeia de Xitaxi, quando os grupos armados tentavam recrutar jovens no distrito de Muidumbe, estes ofereceram resistência a ser instrumentos do Mal, a qual provocou a ira dos invasores, que os balearam indiscriminadamente. O silêncio oficial que se abateu sobre estes jovens que rejeitaram servir a ignomínia – lembremos que o nocaute começa numa falha de comunicação entre a mente e o corpo -, aliada à abóbada de indiferença com que os media internacionais, tão ocupados nas estatísticas do Covid ou nas últimas traquinices de Trump, amorteceram o impacto do caso, reflecte um franco declínio civilizacional, nem que seja porque talvez, diria Melville, as almas daquelas cinquenta e uma vitimas fossem afinal a quinta roda que fazia mover a carroça.

E eu, como apóstata, confesso: estamos fodidos!

26 Jun 2020

As alturas da vida I

“Não o tempo abstrato da cronologia, que é todo plano,
mas o tempo vital ou que cada geração chama o “nosso tempo” tem sempre uma certa altitude, sobe hoje acima de ontem, ou mantém o ritmo ou desce.” Ortega y Gasset

 

[dropcap]R[/dropcap]epresentamos o tempo como uma linha recta, traçada no quadro da sala de aula. À esquerda fica o passado. À direita, o futuro. Mesmo ao meio, à nossa frente, o tempo presente. Como é que o agora não coincide com os nossos olhos, mas está ali à nossa frente no quadro, no ponto zero? Esta representação é a vários títulos ilusória.

Temos de mergulhar para dentro da linha. A linha geométrica não tem interior, mas tem de ter extensão. O tempo estende-se. Não me mexi desde que comecei a escrever estas linhas para além dos dedos. E, contudo, o tempo passou. Não precisamos de entrar para lado nenhum. Estamos já no lado de dentro do tempo. Entramos já desde sempre no movimento do tempo que se distende.

Se mergulharmos para a linha das abcissas, deixaria de haver lado esquerdo a prolongar-se imaginariamente para a eternidade no passado. Deixaria de haver lado direito, a prolongar-se para o futuro. Haveria, quando muito frente e trás, se fosse uma linha recta ou subidas e descidas sinuosas se representarmos a recta como um rio sinuoso, como o caudal rápido e fluído da corrente de um rio, mas sem sabermos bem onde está a foz e onde está a nascente.

Mantidas as regras, o que para nós está à esquerda, estaria atrás de nós, seria a nascente. O que para nós, ao olhar para o quadro, está à direita, o futuro, estaria à nossa frente. Podemos imaginar que a nascente tem o leito do rio mais estreito e que a foz o tem mais largo. Mas podemos imaginar que estamos na parte estreita do rio sem sabermos se estamos a descer para a foz ou a subir para a nascente. Não importa aqui saber se estamos virados para a nascente ou a montante para a nascente. A jusante ou a montante estamos lá dentro, vamos ao sabor da corrente ou debatemo-nos a nadar ou a navegar. O que importa é que estamos na recta, na linha e não estamos de fora a olhar para o que está traçado no quadro ou na nossa imaginação.

Mas a imagem não é adequada se pensarmos que estamos lá metidos de uma forma comprimida. A compressão no tempo é de uma outra ordem. A linha do rio é a vida toda. Quando estamos num espaço fechado e estreito como um saco-cama ou uma carruagem apinhada de gente ou quando estamos no cimo de uma montanha a céu aberto, estamos metidos na mesma recta do quadro, embora não o percebamos.

Quando estamos a olhar para as nuvens a passar lá em cima, muito altas, no céu, podemos imaginar que elas estão paradas e que somos nós que nos estamos a deslocar. Cada secção da linha é tão extensa que abrange o universo e assim não tem nem exterior nem interior, não tem limite. A sua dimensão é temporal. Tudo transcorre no interior. Não tem exterior.

Mas de onde vem o tempo, para onde vai? O trânsito do tempo, o seu caudal, o seu fluxo, a sua correnteza, as suas marés, são precisamente as fases, as épocas com diferentes alturas. Mas há uma estrutura ainda mais complexa. Estamos a ver tudo à superfície e estamos a boiar, por assim dizer, e a nossa relação com a água não é só a relação com a superfície. A superfície pressupõe camadas mais profundas até atingir o fundo. Há alturas, por isso dizemos que um rio é fundo, muito fundo ou pouco fundo. A navegação pressupõe diversas alturas e por isso é perigosa consoante a altura dos cascos e a natureza da navegação. É no mergulho e na profundidade que vemos diversas correntes tridimensionais com diversos lençóis de água e numa relação entre superfície e fundo, imersão e emersão, afundamento e naufrágio, vinda à superfície. A vida implica a compreensão desta representação de ir ao fundo das coisas que não é apenas uma ideia da espeleologia, mas do mergulho, formas de descida até ao fundo do mar e do rio. E subidas formas de emersão à superfície. Ficar escondido do inimigo, os submarinos, os homens rã, os tesouros, o mundo das sombras. O que está escondido no fundo do mar.

26 Jun 2020

“O código da vanguarda” [1964], de Jean-François Revel

[dropcap]«F[/dropcap]igurativo, especialista em temas marítimos, grande produção: efeitos de ondas, linhas costeiras, venda directa a partir de 20 fig. ao verdadeiro coleccionador amador. Bom preço.»

Este pequeno anúncio tirado ao acaso da imprensa mostra que não é necessário ser-se de vanguarda para ter dificuldades em triunfar.

Procurar visibilidade através do canal que é habitualmente usado para oferecer estúdios mobilados revela, no caso de um artista, uma dificuldade de integração, que o senso comum reserva aos verdadeiros inovadores.

Ao contrário do que é de regra, vemos que foram os criadores classificados, quero dizer classificados como de vanguarda, os que alcançaram facilmente, desde a guerra, o auge da fama. Com vastos e reverentes públicos, com solicitações oficiais calorosas, entrámos na era da vanguarda de massas.

A ponto de vermos o Times Literary Supplement, sensível a esse paradoxo, dedicar dois números especiais (6 de Agosto e 4 de Setembro de 1964) à vanguarda, analisando-a no mesmo plano doutros fenómenos colectivos da sociedade de consumo.

Até ao início da guerra, a vanguarda não era senão uma etapa na evolução de todos os géneros literários: tornou-se um género literário por si própria. O público acredita que existe uma vanguarda em si mesma, mesmo sem o academismo contra o qual é suposto lutar. Não é mais o anúncio de um estilo, é um estilo.

No entanto, a noção de vanguarda é, por definição, relativa: é concebível apenas em relação a um academismo hegemónico e significa “o que precede”, “o que está à frente”, “o que prepara”.

Um escritor “marginal” pode perfeitamente não ser de vanguarda, na medida em que não tem posteridade. E como pode ele saber se terá uma?

Pensar “sou um precursor” é tão ingénuo quanto o famoso “nós, homens da Idade Média”. E caso tenha posteridade, essa mesma posteridade não mais será vanguarda, uma vez que aprofundará e ampliará invenções anteriores.

Contudo, existe hoje um código da vanguarda cujos principais artigos são os seguintes:
O primeiro: na arte apenas conta o que “renova”, o que tem carácter de pesquisa.

Isto é, a bem dizer, perfeitamente correcto. Foi preciso um século e meio para que as pessoas admitissem que a obra de arte é o que não pode ser refeito, em oposição à estética baseada na imitação de alguns modelos definidores de um belo fixo.

Dito isso, apressamo-nos a reintroduzir a imitação dentro da vanguarda, como se a novidade fosse uma propriedade imanente, eternamente vinculada a uma certa maneira de escrever ou pintar.

Afirmava que toda a vanguarda tem uma posteridade já que é preciso ser-se a vanguarda de alguma coisa. Mas essa posteridade não é forçosamente composta por discípulos, homens de retoma mais do que de rebelião. O verdadeiro epígono nem sempre é detectado à primeira vista, nem sempre é aquele que exibe o rótulo.

Assistimos assim a uma dessas falsificações de uma ideia justa, tão recorrentes na actual, prolixa estética. Do facto de que qualquer obra interessante é, por natureza, inovadora, passamos aos sinais externos de novidade, congelados da forma mais torturantemente académica.

Um dos aspectos fundamentais dessa «novidade» (e trata-se do segundo artigo do código) seria a obscuridade, a dificuldade.

Novamente, ideia justa ao início: qualquer trabalho é difícil porque o acesso não é prefigurado por nenhum hábito. Só que essa dificuldade não está necessariamente situada ao nível dos meios de expressão ou construção.

Em suma, confundimos duas coisas: a obscuridade com base na novidade, consequência da impreparação do público de um certo período (as telas impressionistas, «indecifráveis» em 1875) e o hermetismo desejado.

Porém, o hermetismo verbal não está ligado, por natureza, à novidade. É uma estética, entre outras, que também comporta o seu academismo.

Desde a Idade Média que vemos, alternadamente, períodos de poética «sombria» e «clara»: escola de 1660 contra requintes barrocos, Apollinaire após o simbolismo, etc. Por volta de 1660-1670, os «claros», Racine, eram a vanguarda. Identificar vanguarda com gongorismo não pode ser considerado senão como uma ingenuidade de seguidista, que pretende ver atestada a sua identidade de pioneiro.

Acrescento que o desconcertante e o novo podem ser pouco significativos. Em 1920, ao conceber O Enigma de Isidore Ducasse, Man Ray produzia novidade, anunciando a Arte Pop e o «novo realismo»; produzia certamente mais «novo» do que Matisse nesse momento. Não deixa de ser verdade que o seu achado, mesmo carregado de futuro (e ainda tem de avaliar-se esse futuro), foi, à época, menorizado, ao contrário da pintura de Matisse. Por outro lado, foi já dito, e é verdade, que Rauschenberg explorou as velhas descobertas Dada feitas há quarenta anos: mas o que ele extrai delas dá-lhe, no entanto, uma obra cujo stimmung nada tem em comum com o dada.

Um outro artigo do código da vanguarda actual, artigo recente e curioso, tende a fazer do tédio o sinal de valor. Toda a grande obra deve entediar. Era já hora de o afirmar, pois sabemos quão rica é a safra desde há dez anos.

É um facto que entrámos na era do tédio, quero dizer, do respeito pelo tédio, desde há uma quinzena de anos, e os públicos mais banais alcançaram uma capacidade de resignação entusiástica cujo limite ainda se desconhece.

Aqui, novamente, lidamos com a distorção de uma ideia justa. É verdade, de facto, que nenhuma obra de arte está sujeita à obrigação de entreter o primeiro que chegue. O critério «eu gosto», «eu não gosto» não tem qualquer interesse, ou melhor, deve ser avaliado em função do espectador assim como da obra.

Uma obra difícil cansa aquele que não pode compreendê-la, mas essa não é uma propriedade que lhe seja inerente. O facto de obras grandiosas parecerem maçadoras aos que não conseguiram estabelecer contacto com elas não implica que qualquer obra aborrecida seja grandiosa.

Hoje em dia, existe provavelmente uma vanguarda que não é a vanguarda recebida. Esta última recusa o mundo. A nossa sociedade do bem-estar pode querer recuperar o risco na forma de um safari cultural permanente. Culpa em relação ao período anterior, do qual se explora, de modo publicitário, os erros críticos? Eterna incapacidade de discernir o bom do mau, sendo a solução, preguiçosa, a de aderir acriticamente a um sistema, a uma atmosfera, a um tom?

Porquê esta necessidade de chamar obras de vanguarda às que, muito simplesmente, são aquelas do nosso tempo, aquelas que admiramos, que amamos, que todo o mundo conhece?

«Certos homens só podem permanecer de vanguarda por um tempo relativamente curto», escreveu Douglas Cooper no segundo dos números do Times a que aludi no princípio. Mas o facto novo é que o artista de hoje tem necessidade, para obter ânimo, de dizer a si mesmo que o seu acto é sempre o primeiro.

Um «ready-made» de Marcel Duchamp, que é muito simplesmente um desses porta-garrafas outrora usados por comerciantes de vinho para segurar pelo gargalo as garrafas quando lavadas – Duchamp comprou-o em 1914 –, foi recentemente fundido em bronze, em oito cópias, competindo os fãs por essas várias réplicas bastante dispendiosas.

Tal é o destino de um objecto lançado pela vanguarda, há cinquenta anos, à cara do público com o intuito de ridicularizar a própria noção de obra de arte. O autor dessa provocação, ao autorizar a operação que a comercializa como objecto de arte, não anula, retroactivamente, o significado do seu gesto?

tradução de:
“Le code de l’avant-garde”
in REVEL, Jean-François, Contrecensures, Paris, Jean-Jacques Pauvert, 1966, pp. 110-115
24 Jun 2020

A nova utopia (12)

A nova utopia é um símbolo de distinção.
O novo utopista aprende árabe
com um refugiado palestino,
francês com um haitiano,
quéchua em vez de castelhano.
É obrigado a fazer logística de prestígio online.
Não é um sofá velho da Era do Patriot Act,
um tolo de um dia de sol em Guantánamo.
É um connoisseur de todos os lixos.
Já ouviu algo a respeito do slogan:
“O petróleo é nosso !”
O novo utopista é obrigado a ser um etimólogo,
defende a origem lendária da palavra cadáver,
CArne DAta VERmem,
embora saiba que cadáver, do latim cadaver,
deriva do verbo cadere:
“cair, cair no combate, morrer”.
É contra uma guerra sem combatentes,
é a favor da greve dos coveiros,
do adeus impossível e da incineração de corpos.
O novo utopista é um obscuro terrorista do moribundo.
Os sinos da igreja tocam o morto largado na rua.
O novo utopista é também um xamã Yanomani:
inala yakoana, o rapé alucinógeno,
para mais um rito fúnebre.
O petróleo se alastra pelos mangues:
camarões, caranguejos, ostras e peixes, todos mortos!
Dinheiro não tem princípio.
Toda meta é alcançável: just do it.
A verdade é a verdade, seja dita por Agamenon
ou por um ladro.
O novo utopista é uma espécie em perigo de extinção.
Narra, para as crianças, a lenda do duende do beco.
É um gnomo, no oco de um tronco, mas não um espectro.
É a favor de patíbulos:
agora ao menos um morto por justiça,
a chuva rebate em seus dentes postiços,
genocida, usurário:
até a Virgem Maria o abortaria.
Encara o ofício de não poder morrer, quando tudo morre.
O novo utopista expropria cadáveres de luxe
para lhe desferir tiros.
O cara enfia fezes de cachorro na boca da mulher.
Um narco, de barato, fuzila três de suas belas garotas.
Um filhote de jiboia carbonizado
pelo incêndio da floresta,
jacaré sujo de resíduos de carvão.
Mancha de petróleo no mar.
Terapia do choque econômico.
O bebê resgatado de um bueiro
é também apenas uma notícia.
Mais um óbito: cadáver intacto na calçada,
não é da guerra, não é da blitz,
cruzes, túmulos, vala comum, é a vida.
O novo utopista trava
um duelo suicida com a história.
Uma estrela cai.
Um coro de anjos, à base de anfetaminas, canta:
“A mulher do mineiro
se pode chamar de viúva.
Ele passa o dia inteiro
cavando a própria sepultura”.
O novo utopista é contra o tributo da urina
em mictórios públicos.
O novo utopista é contra a importação
de capitais infectados.
O novo utopista é um editor de igualdade,
é contra o protesto pop:
glamour freak de boutique haute-bourgeois.
Negros, indígenas, white trash, lixo branco até virar gás.
A nova utopia, às vezes, entra em stand by.

Régis Bonvincino

24 Jun 2020

A Abertura Solene

[dropcap]A[/dropcap] Abertura Solene Para o Ano de 1812 em Mi bemol Maior, Op. 49, conhecida por Abertura 1812, de Tchaikovsky, tornou-se uma das obra mais populares do compositor, em conjunto com os seus ballets O Quebra-nozes, A Bela Adormecida e Lago dos Cisnes. A abertura comemora o fracasso da invasão francesa da Rússia em 1812 e a subsequente devastação do “Grande Armée” de Napoleão. De carácter altamente nacionalista, é também conhecida pela sua sequência de tiros de canhão que é, em alguns concertos ao ar livre, executada com canhões verdadeiros.

Foi encomendada a Tchaikovsky pelo director de concertos da Sociedade Imperial Russa e amigo e mentor do compositor, Nicolai Rubinstein, tendo em mente os 25 anos da coroação do Czar Alexandre II, em 1881, e a abertura da Exposição Universal das Artes e Indústrias em Moscovo, em 1882. A abertura da Exposição coincidiria também com a consagração de uma nova catedral cristã ortodoxa, a Catedral de Cristo Salvador, mandada erigir pelo Imperador Alexandre I para comemorar o fracasso da invasão, em honra dos soldados russos mortos, situada a algumas centenas de metros a sul do Kremlin, e que levou mais de 40 anos a construir. A catedral, que ostentava um sino gigante de 24 toneladas, seria apenas inaugurada no dia 26 de Maio de 1883, com a coroação do Imperador Alexandre III, sendo dinamitada em 1931 por ordem de Stalin, por ser um símbolo do Czarismo, para dar lugar ao colossal Palácio dos Sovietes, que iria albergar o Soviete Supremo da URSS, o maior edifício do mundo, mas cuja construção não chegaria a ser concluída, devido à invasão alemã em 1941. A igreja foi reconstruída a seguir à dissolução da União Soviética, entre 1995 e 2000, à semelhança da original.

Embora não apreciasse particularmente este tipo de encomenda, como confessou numa carta à sua patrona Nadezhda von Meck, Tchaikovsky aceitou-a e começou a trabalhar no projecto em Outubro de 1890, concluindo-o em seis semanas.

Napoleão era um general temido e o exército francês era considerado imbatível. Em 1812, a França invadiu a Rússia na tentativa de forçar Alexandre I a entrar no delicado sistema de alianças de Napoleão e, mais especificamente, aderir ao Bloqueio Continental. Todavia, a Campanha da Rússia terminou na retirada do exército francês. Complicações da campanha, como por exemplo o alongamento das linhas de suprimento e a presença de um exército imperial russo cada vez maior e melhor preparado, resultaram na destruição do exército, que de 600.000 homens, foi reduzido a 40.000. Alguns russos consideraram mesmo que houvera uma ‘intervenção divina’ a favor da Rússia.

A Abertura 1812 começa com um coro inspirado no hino Deus ajude o vosso povo, da Igreja Ortodoxa Russa e baseia-se no antagonismo entre a vitória francesa inicial e a posterior revanche russa, contrapondo o hino da Rússia e o hino da França. Este país é musicalmente representado pelo tema de La Marseillaise, hino da Revolução Francesa. A vitória russa posterior, no mês seguinte, é representada por um diminueto do hino czarista Deus Salve o Czar e é seguido pelo sonoro troar de canhões. A obra inclui ainda fragmentos do folclore russo e temas religiosos.

Após a Revolução dos sovietes e a consequente extinção do hino czarista, a abertura sofreu modificações, sendo o tema original substituído pelo coro final da ópera Ivan Susanin, de Mikhail Glinka, cujo nome original é “A Vida pelo Czar”, modificação também realizada por ordem do regime soviético.

Na sua forma completa, a peça é executada por coro, orquestra sinfónica e banda militar com o auxílio de peças de artilharia e carrilhão. Em execuções em salas fechadas, costuma-se substituir os canhões por tímpanos (tambores), a fim de se obter um efeito semelhante ao do disparo das peças.

A abertura foi estreada em Moscovo no dia 20 de Agosto de 1882, dirigida por Ippolit Al’tani debaixo de uma tenda levantada perto da inacabada Catedral de Cristo Salvador.

Tchaikovsky em pessoa dirigiu a obra na cerimónia de consagração do Carnegie Hall em Nova Iorque, uma das primeiras vezes que um compositor europeu importante visitou os Estados Unidos. Curiosamente, tornou-se também um acompanhamento frequente de exibições de fogo-de-artifício no Dia da Independência dos Estados Unidos.

Sugestão de audição:
Pyotr Ilyich Tchaikovsky: 1812 Overture in E-flat minor, Op. 49
Ochestra of the Mariinsky Theatre, Valery Gergiev – Mariinsky, 2009
23 Jun 2020

A morte de Empédocles

[dropcap]S[/dropcap]e dúvidas existem, devemos no entanto considerar envenenados os elementos, e mais que todos, o Ar, essa mistura gasosa que nos cerca, e por que nem sempre o leve se mantém ligeiro, devemos respirar com a parcimónia dos condenados os ares do mundo, que parecem munidos de um salvo- conduto letal para as nossas transfusões vitais. Longe… perto… na rota dos ventos não há distância! Em todo o circuito respirável imbuído que foi de devastações ambientais como aquele de um continente a arder, de camadas de ozono que nem o Diabo poria ali algum mais fresco enxofre, nós, resistimos muito àquela «improvável leveza do ser». Hoje não! E não vale a pena andar-se atrás do rastilho viral que está muito para além daquilo que se busca, e muito ainda aquém da sua trágica eficácia.

Este é também o título da bela obra poética dramatúrgica de Holderlin, e toda ela se reveste dos elementos essenciais para produzir entendimento entre as fronteiras da vida e da morte, das funções que equilibram, ajustam, e desequilibram os sistema contendo todo o apreço do autor pela cosmogonia de um homem que tinha a aura dos mitos. Focando-se na tragédia, toda ela é quase infinita e ocupa em nós um estranho oxigénio que deixámos há muito de saber respirar, é uma versão consentida de um círculo incomum fechado aos nossos saberes. Holderlin com esta sua obra transborda para além dos conflitos pessoais com a própria personagem e sustenta-a numa viragem de ciclo histórico, um fim de uma era, uma outra consciência social, neste caso, assente na radical passagem que foi a Revolução Francesa de que sentia espiritualmente próximo, por isso é também uma redefinição de ciclos trazendo para a esfera do seu presente os elementos imutáveis para a continuidade. E ele só se assemelha à tragédia grega enquanto reposição de uma fonte de energia que faz o herói suicidar-se por sacrifício, e não por autoanálise de um mal provocado pelo seu orgulho diante das forças naturais, e é a essa necessidade de repor uma ordem violada pela soberba que está aqui como o suicídio de Empédocles. O diálogo não é com a Cidade, mas com as forças todas da vida – não há ordens dadas – há talvez uma consciência muito poética de que não se pode romper os equilíbrios orquestrados por um todo que nenhum ser por si domina- bem pelo contrário, nele só deve influir para que não se rompa. Este elemento expiatório dá à morte uma noção de qualidade que não herdámos, ela não se encontra separada das suas consequências e porquanto não houver essa noção de um princípio inefável que penetre a vida, todas as coisas terão sucessivamente de pôr e repor estas passagens.

Diante de mudanças com características tamanhas, poder-se-ia pensar que “abrir” será voltar ao mesmo – mas não-! Qualquer abertura que resulte daqui será também o requalificar de muita coisa, pois que nada fica estático no ponto onde foi deixado, e, mais que deixado, amargamente abandonado por um mundo que ainda se crê detentor de algum poder que já não tem. A morte de um taumaturgo que fora o mundo não será de fácil reposição (nem os mais simples cadáveres são despedidos sem lágrimas) mas ao criarmos campos de confinamento involuntário ganhámos um tempo precioso para repor alguns equilíbrios. Os elementos continuam intactos na doutrina de Empédocles, e, não viajamos com eles em esquadrão de mortes anunciadas, e também ele, fez tratados contra graves epidemias, foi médico, homem de muito saber, pois que todos eles no tempo em que o foi eram tão unidos como o primeiro mundo esquecido onde deixámos a harmonia. Holderlin, por seu lado, foi todo ele um poeta, e foi por o ter sido, que uniu estas difíceis malhas que só os que mergulham fundo nas suas águas sabem como ficam os olhos dos que renascem. Nenhuma consciência será válida sem esta grande limpidez, nem saciadas as sedes dos ódios alheios, nem do amor terreno, pois que são forças que existem para se manterem perto e sequencialmente separadas. Que não transborde nenhuma que o sacrifício de cada um não possa agora sarar, que neste momento, elas perderam o verdugo das suas eloquências debaixo de um trajeto incerto e improcedente perante o destino das coisas.

Empédocles escreve em verso «Purificações» que seria um intróito do outro grande verso «Sobre a Natureza» parece dizer-nos purificações naturais, ou tão somente uma forma natural de purificar… e há, como era de esperar uma conduta moral a ser talhada, e quando todos os elementos, incluído o Fogo que nos entrou pelas pupilas adentro nestes últimos anos, e as Águas condessadas em forma de grandes gôndolas escorreram para o mar, e a terra em grandes pastagens de gado alimentício feitas paredes sem portas, olhámos para a saída, o Ar penetrou-nos numa síntese grandiosa e invisível reclamando a nossa morte.- Que nós, mortos não estamos, pois que escrevemos ainda estas coisas- mas os que escreveram aquelas outras, estão, e os que nada escreveram, também, e os que virão para o fazer, também não deixarão de nascer e provavelmente ainda de morrer. Por nós, o tempo estreito, por eles, que sejam grandes as suas vidas e recolham aos unidos elementos onde segundo alguns o amor nasceu e a Terra não ainda fora sequer sonhada.

«O Boi Mudo da Sicília» poderia ser agora Empédocles (ambos sicilianos, São Tomás de Aquino) ou o presente colapso mental falando por nós da paga e da repaga desta conspirativa prática de um viver que nos leva ao desastre- que viver- é o belo desastre que nos sobra, enquanto as malhas das periferias de tal estado não se desboroam… Agora mesmo o sol me diz que a sua luz é inflamatória, e toda esta superfície um buraco gigante que não irá melhorar nos dias próximos. Quem vai melhorar são os nascituros, os neófitos, esses que fabricaram órgãos novos, visões maiores, capacidades acrescidas, depois, colocados que serão num tubo de ensaio, far-se-á uma cobertura em volta do eixo da Terra para um novo começar com o filtro necessário para não deixar passar o que agora aqui se encontra: “bem sei, os homens inflamam-se como a erva seca” «Morte de Empédocles».

23 Jun 2020

Na fronteira de nada

[dropcap]A[/dropcap]ndreza Bach é uma jovem escritora (32 anos) do Rio Grande do Sul, mais precisamente de Jaguarão, pequena cidade que faz fronteira com a cidade uruguaia de Rio Branco e berço de um dos maiores escritores brasileiros, recentemente falecido, Aldyr Garcia Schlee. Escritor com o qual a jovem Bach dialoga num dos capítulos deste seu romance «Duas Horas Por Um Corpo», mais precisamente com o monumental «Don Frutos», cuja acção se passa também em Jaguarão. Mas os livros apesar de mostrarem a solidão humana são diametralmente opostos. O romance de Schlee mostra-nos um território em que a fronteira se esbate. O conceito de fronteira perde o seu significado, assim como as diferenças linguísticas, além de que o romance de Schlee nos remete para um período muito anterior ao dos nossos dias. «Duas Horas Por Corpo» é um romance que nos mostra a impossibilidade de esbater fronteiras, diferenças de língua, e centra a narrativa nos dias de hoje.

É preciso fazer aqui uma descrição, ainda que sumária, deste território onde tudo se passa, Jaguarão. É um município brasileiro que faz fronteira com Rio Branco, cidade do Uruguai. Entre estas cidades fronteiriças há uma ponte antiga, de pedra, inaugurada em 1930, à qual por brincadeira muitos chamam ponte romana e que todos atravessam para cá e para lá sem qualquer necessidade de documentos, como se os estrangeiros fossem os melhores vizinhos. Melhores do que os territórios brasileiros mais próximos. Pois é comum os jaguarenses atravessarem a ponte a pé e irem jantar ao Uruguai, ou apenas para fazerem algumas compras, «onde as taxas dos produtos importados não nos arrancam a pele como no lado de cá da ponte», segundo Andreza Bach. Mas o livro da escritora tem como horizonte o indivíduo e não o colectivo. O que subjaz a «Duas Horas Por Um Corpo» é a solidão da jovem mulher Maíra, 30 anos, que trabalha nos correios da cidade e vive sozinha na casa antiga que herdou da avó.

O livro começa assim: «Assim que nos afastamos de Jaguarão, na direcção de Pelotas, o horizonte fecha-se completamento no azul suave do céu e no branco macio das nuvens. Conduzir por essa estrada é o modo de Maíra afastar de si a solidão. Contrariamente aos seus conterrâneos, evita atravessar a ponte para o Uruguai, para Rio Branco. Sente que, tal como ela mesma em relação aos outros, Jaguarão faz fronteira com o nada.

Não que Rio Branco seja desinteressante, pelo menos não é mais do que Jaguarão ou qualquer outra terra do interior, mas porque nada muda dentro dela ao atravessar a ponte. E Maíra pensava «ao atravessar-se uma fronteira, o mínimo que se exige é que nos faça sentir outra.”» Ao longo do romance percebemos que Maíra é uma mulher que aos 19 anos teve um aborto espontâneo, de um homem que já havia desaparecido.

Percebemos o quanto esse momento foi decisivo na vida dela. Nunca mais se entregou a quem quer que fosse. Escreve, Andreza Bach, pelas palavras de Maíra para uma colega de trabalho, enquanto tomam um chopp depois do trabalho: «Se eu fosse outra pessoa e soubesse de mim o que sei, julgas que confiaria em mim?… Não precisas de responder, eu mesma respondo: Claro que não! E olha que eu não me considero uma má pessoa. Não achas que isto é argumento suficiente para não confiar em ninguém?»

Maíra passava grande parte do seu tempo livre a escutar música. E era das inúmeras canções que escutava, que retirava a matéria com que pensava. Das canções e da sua propensão para reflectir sobre o que via e sentia. Desde muito cedo, aprendeu inglês, e passava grande parte do tempo no youtube descobrindo canções nessa língua muito além do português e do espanhol, com que vivia no dia a dia. Havia uma canção em particular de que gostava muito: «To Be With Others», de uma cantora canadiana, de origem russa, Michelle Gurevich. Muitas vezes, sozinha na rua, cantava o refrão: «To be with others / The need to be with others / For just a couple of hours / To be with others / Without destroying ours». Escreve Bach: «Sentia nessa música, e na voz da cantora, um conforto existencial que só encontrava paralelo com os momentos de condução na estrada para Pelotas. Mas ao conduzir tinha tudo: o horizonte azul e branco da estrada e a música dentro de si e dentro do carro. Era feliz. Apesar de ver todos os humanos, cada um como fronteira de nada, apaziguava-se com a necessidade de precisarmos de um outro corpo além do nosso, por duas horas.

A consciência dessa necessidade era uma libertação. Libertava-nos do amor para sempre. Libertava-nos da mentira.»

Andreza Bach conduz-nos ao longo das quase duzentas páginas por um universo singular, «destruindo as ilusões dela, uma a uma, como se fossem um caminho que era preciso apagar, ao mesmo tempo que iluminava as bermas, o que até ali parecia existir apenas para não se ver ou esquecer.» Evidentemente, o caminho que Andreza Bach apaga não é o de Maíra, mas o nosso. Resta-nos a nós esforçarmo-nos por ver a beleza das bermas.

23 Jun 2020

O canto do vale

[dropcap]A[/dropcap]travesso nele um olhar, de passagem por aquele seu estar sem tempo, nem mesmo realmente, lugar. Vindo, simplesmente, e tornando a vir em cada olhar. De vez em quando, preciso de ouvir esse canto do vale. E de cada vez que o poiso no chão, ecoam sinos.

Com a oxidação da distância que já tinha em si, e do tempo que acrescentou. Cada vez mais escuro. Da idade, do metal e do ar. Só das vozes que depois lhe povoam o vazio interior, nada diz. Objecto discreto e sóbrio, apagado como o são os que escondem um segredo. Que se escondem ou atraem um olhar e escolhem. Há um brilho secreto e metálico, escondido nas terrosas oxidações antigas, relações criadas entre elementos e siglas misteriosas na tabela periódica. Como na vida, mas mais definidas em cor e saturação.

Uma luz abafada por uma capa de silêncio. Mas que esconde uma voz. Uma sonoridade estranha no chão da casa onde chegou há muitos anos. O canto do vale, um ecoar de longitude. Como um búzio enorme que se cala. E como a um búzio, objecto-lugar, encosto-lhe o ouvido.

Penso porque anseiam as palavras ir longe. Porque queremos trazer o longe perto, fazer o perto longínquo, o que existe habitar o que não existe e o que não existe alargar paisagem no que existe. Horizonte tão impermanente como tudo e tão relativo como mais nada. O fugidio e adaptável horizonte. Linha que se recompõe em cada passo dado. Que se afasta na mesma proporção em que é perseguida. Ouve-se nos búzios o mar pela recordação. Um resto de mar que ecoa para sempre de uma saudade. Ou seria um ruído cósmico talvez mais abstracto e amplo. O desconhecido muito, que nos cerca.

Um cântaro de Bhaktapur. Ali na penumbra ao virar, num canto da cozinha, olho-o e não acendo a luz para não perturbar as vozes. Objecto aprisionado. De outro tempo, de um lugar distante e de uma praça onde me sentei. Ao dobrar uma outra esquina, a sombra recortada como filigrana enegrecida, da torre de madeira ao sol inclemente. Como o negativo de uma jóia. Ele, de cobre escurecido pelo tempo e beleza soturna. Algumas cicatrizes de solda em metal alheio, marcas de ferimentos de uma vida real. E sempre um pouco baço de pó. Como uma saudade da água.

Essa água e a água sugada a custo de terra ressequida, palmilhados quilómetros em peregrinação, por esses noventa por cento de água, com que saímos do útero materno, mas já não constituem o magro corpo nem do caminhante infantil. Sem filosofia nem escola, em busca da homeostasia. O utópico equilíbrio da água, corporal, total. A água fala mais alto e de mais longe, do corpo. É disso que me fala. Todos os dias ali, a lembrar caminhadas pela água necessária e limpa. Ou, pelo menos, água. E preciosa.

Não que Bhaktapur seja em África. Mas o mundo é um só, em caminhos cruzados. Trouxe abraçado, no avião, este objecto cheio de desconhecido e vozes. De entre cobres rosados e reluzentes que não me chamaram, este, um grito de eternidade. Que instinto estranho leva a retirar da sua vida de coisa, uma coisa? Para ficar, às vezes, prostrada de inacção, tristemente muda e quieta num pódio de admiração ou esquecimento. Como uma imagem. A transportar para o infinito território mental, um lugar passado. Uma distância encurtada à força. Um tempo perdido e nunca reencontrado. Que se passará na alma de um objecto, atirado sem querer para a preguiça eterna, é coisa de fantasiar. Como palavras que se descarnam de uma verdade qualquer para voar, desadequadas à função. Andou aqui, de sítio em sítio sem função. Um dia vi que procurava o seu lugar, talvez eu o meu nele. Mais perto da água, a ansiar servi-la como dantes. E eu, com olhos distraídos da importância de trazê-lo raptado de longe. Do meu longe para o seu longe. Foi isso. Viajar. Tentação de trazer coisas de uma lonjura para outra, a vencer uma, a outra. E a memória.

Chamamos recordações. Às coisas que invocam tempo. De viagens reais. Tão irreais já, desalojadas dele. Como reais as que imaginárias são apetecidas e feitas. Transportamos um lugar que procura voltar a ser lugar. Varanda sobre terra estranha. Cadeira estrangeira. Lugar onde se poisa o corpo, os olhos, o tempo. Outro lugar. Estranhamente presente e familiar, como estranho pode ser o lugar de sempre. Plástico mutante. Como se sempre o mesmo lugar de interrogação e procura de pontos cardeais. Porque nunca estamos muito tempo no mesmo lugar, mesmo em anos sem deixar a casa. Ponto de partida e de chegada.

Devia regar as plantas com o cântaro bojudo, de interior insondável e vozes. Penso para que veio o regador de plástico vermelho, se havia o cântaro de tantos anos. A pedir água como bicho encalorado e sequioso no seu mundo de coisa. A lembrar as gotas a escorrer-lhe no flanco todos os dias refrescado.

E um dia, veio para companhia uma pequena e gigante pedra de sal. Acende como um coração das montanhas. Diz-se dela, que da terra dele. Pedra que chora uma água de sal, nos intervalos de uma luz coralina mas artificial, saída das entranhas rochosas, outrora fundos de mar que se revolveram e elevaram em convulsão. A tocar o céu. Lágrimas de sal gigantescas, guardadas nas rochas e cristalizadas no tempo.

Talvez por isso chorem, longe, em determinadas circunstâncias. Iluminadas por dentro dão uma luz que purifica, dizem, mas bastava ser luz. Como um calor no ombro, uma mão na alma. Do outro objecto também.

Se as coisas têm alma por companhia. Nela as lágrimas da distância. Nele a secura. Um, conteúdo. Cristalino mas lacrimoso. Outro, continente. Do vazio da água. O cântaro e o sal, eternos opostos, como vísceras da mesma terra. Das montanhas e do vale. Cada um o seu canto.

Mas digo-lhes devagarinho: casa é onde poisamos o chapéu, penduramos o casaco, gritamos vozes das entranhas. Onde caem as lágrimas de sal ou secam na garganta. A minha. E a deles, também.

23 Jun 2020

Procurador deixa de ser tesoureiro

[dropcap]O[/dropcap] lugar de Procurador aparecera em 1583 com a criação do Governo Municipal, denominado Senado no ano seguinte, quando o Imperador Wan Li lhe conferiu o grau de Oficial de segundo grau afim de estabelecer a ligação e gerir as relações entre os portugueses, representados pelo Senado, e a Administração Chinesa.

O Procurador da Cidade do Nome de Deus do Porto de Macau na China fazendo parte da vereação do Senado era o seu fiscal e tesoureiro. Como ao exercício municipal “o Senado juntava nada menos que a missão de governar a colónia e administrar a fazenda pública, daqui resultava um aumento proporcional de atribuições para o Procurador, constituindo-o delegado gerente dos dinheiros públicos e executor de todas as medidas administrativas”, Boletim Oficial.

Victor F. S. Sit refere, em 1611 “O governo Ming autorizou que os portugueses tivessem a sua própria alfândega, a fim de cobrar uma taxa adicional até 5% do valor das mercadorias, destinada a cobrir as despesas do Senado, e, ainda, uma outra taxa adicional de 3 a 4% (mais tarde aumentada para 8%) sobre os produtos exportados para o Japão como receita da coroa Portuguesa. Deste modo, o lucrativo comércio tripartido, ao mesmo tempo que beneficiava a coroa portuguesa, enriqueceu a pequena povoação de Macau, fornecendo-lhe uma sólida base para o desenvolvimento urbano e para algumas iniciativas de carácter religioso ou cultural.”

De Capitão militar a Geral

O Senado administrou e governou directamente Macau até 17 de Julho de 1623, quando tomou posse o Governador e Capitão de Guerra D. Francisco de Mascarenhas (1623-26), que consigo trouxe uma força militar de cem homens. António Marques Pereira (AMP) refere, “ocupou os postos e fez vigia na Barra, no forte de S. Francisco e no da Penha de França, já que o exército de Manila ocupava o forte de S. Paulo”, de onde sairia apenas em Novembro de 1623, quando o capitão espanhol Fernando da Silva de Morales, [que de Manila viera com 200 homens em socorro de Macau, atacada pelos holandeses] ao preparar-se para regressar, o fez saber a Mascarenhas para este tomar a inacabada fortaleza do Monte, pertença dos jesuítas.

“Aí se instalou com a tropa, tendo terminado a construção do último baluarte. Passa assim a Fortaleza do Monte a Presídio, como local de aquartelamento de força militar, como guarnição de uma praça de guerra”, segundo Armando Cação.

Sem estar na dependência do Capitão-Mor da Viagem do Japão, ao Governador de Macau cabia apenas a função militar de comando na defesa da cidade e no século seguinte, também a presidência do Senado, mas sem direito a voto, o que aconteceu até 1834. O Senado deixava de ser o único a governar a cidade, mas continuava com o papel fundamental na administração civil, comercial e financeira do território, para além de fazer ligação com as autoridades chinesas.

A 13 de Fevereiro de 1710, o Senado revoltou-se contra o Capitão Geral Pinho Teixeira e o braço de ferro só ficou sanado a 28 de Julho com a troca de governador.

A receita da coroa portuguesa, no início, dos produtos exportados para o Japão e depois, um quinto do rendimento anual da cidade, revertia para o cofre real gerido por o Senado. Em 1714, por ordem do Vice-rei da Índia Vasco de Meneses, “foi destinado ao pagamento dos gastos civis, militares e eclesiásticos, assim como para manter as instituições de caridade. Desde 1730 que os fundos eram mais do que suficientes para tais fins, e o excedente era investido na habitual hipoteca de carga. Em 1738, o Vice-rei D. Pedro de Mascaranhas achou aconselhável reformar a administração financeira de Macau e o Procurador, que até então tinha exercido funções de tesoureiro, foi substituído por outro designado entre os eleitos para o Senado. Aguardando as instruções reais, o Senado desprezou o decreto do vice-rei”, como o fez com as ordens do Vice-rei seguinte, D. Luís de Meneses (1741-42) e nem mesmo o decreto real de 1744 levou o Senado a prestar contas anuais a Goa. Tal só iria acontecer em 1784, quando foram analisadas por o Governador e o Ouvidor.

Difícil relacionamento

A dinastia Qing tinha em 1722 um novo Imperador, Yongzheng (1723-1735), ano em que os mandarins proibiram a construção naval em Macau, pois estava já preenchido o número de vinte e cinco navios portugueses determinado para esta praça. Em 1724 impediram terminantemente o aumento da população e intimaram o Senado a não consentir estrangeiro algum a vir aqui residir, quando mesmo fosse mui temporariamente ou de passagem.

A China estabeleceu em 1732 um outro ho-pu (alfândega chinesa) na Praia Grande, subordinado ao da Praia Pequena criado em 1688 sob tutela da Alfândega de Guangdong. Com residência na península, mas extramuros da cidade cristã, o tso-tang, lugar criado em 1736, coadjuvava na administração de Macau o mandarim de Chinsan [Hiang-shan] que respondia ao Vice-Rei de Cantão. Em 1744 promulgaram leis para os europeus que matassem chineses em Macau.

“Em 1749 obrigaram-nos a um vergonhoso ajuste, ou convenção, em que definitivamente se declarou que não pudéssemos construir em Macau mais casas nem renovar, sem licença do tso-tang, alguma das antigas”, segundo AMP. Montalto de Jesus refere, os regulamentos de 1749 foram vertidos para português e chinês, mas quando uma disputa surgia de uma divergência entre os textos era a versão chinesa a prevalecer. Desde 1746, Macau concedia residência aos estrangeiros e daí a Chapa de 1750, a atribuir aos mandarins a exclusividade nos “alvedrios de permitirem ou negarem a qualquer estrangeiro residência nesta cidade. Reiterava a ordem de 1724”, refere AMP.

Reformas de 1783

As reformas implementadas pelo o Secretário de Estado da Marinha e Ultramar Martinho de Melo e Castro, enviadas de Lisboa a 4 de Abril de 1783 pela Rainha D. Maria I como providências reais para Macau, ampliavam o poder do Governador nos assuntos político-administrativos da Cidade, em detrimento do Senado, a quem acusava de serem . Daqui, a primeira significativa perda de poder do Senado, um rude golpe para os portugueses locais, que deixavam de ter nas suas mãos o governo de Macau.

Com o Governador Bernardo Aleixo de Lemos e Faria chegaram 150 militares para aumentar a sua autoridade, não só perante os chineses, mas também face aos moradores portugueses de Macau. O Senado protestou pois a presença de tropas na cidade iria trazer problemas nas relações com os oficiais chineses, assim como sobrecarregava as finanças.

Se até 1783 houvera governadores a cuidar só dos seus particulares interesses, o mesmo continuou a suceder depois destas reformas e logo com Lemos e Faria.

22 Jun 2020

Um flirt imperialista em Bombaim

[dropcap]A[/dropcap]lguém disse que o maior castigo dado aos portugueses pelo seu extenso rol de maldades foi o de terem ao pé de cada colónia sua uma outra inglesa: Macau e Hong Kong, Moçambique e a África do Sul, Goa e Bombaim, a grande urbe da Índia Britânica. A relação entre Bombaim e Goa acontecia de forma semelhante à relação entre aqueles dois pedaços de China nas mãos dos europeus. Bombay, numa falsa etimologia a “boa baía”, servia como acolhimento dos migrantes goeses que aí mourejavam uma vida melhor.

Muito depois de esta feitoria portuguesa ter sido entregue à Inglaterra como dote do casamento de Catarina de Bragança, poderíamos perguntar pelos textos em português sobre Bombaim. Provavelmente, a grande maioria foi escrita pelos próprios goeses, onde se nota o pasmo do homem da aldeia goesa face à grande metrópole. Católicos, dotados de elegantes nomes portugueses, estes cidadãos de Portugal tantas vezes se chocavam com o tratamento dado pelos britânicos à sua raça – inventora do xadrez, da matemática e da metafísica –, agora forçada a súbdita servil da rainha Vitória, ao passo que os católicos tinham formalmente assegurada a civilidade europeia.

No que toca aos portugueses de hoje, continuam a querer interpretar os sinais de Portugal num território que foi sua pertença, como Luís Filipe Castro Mendes que em Lendas da Índia dedica um poema a Bombaim e à Ilha Elefanta. Foi aí que uma bela tarde batemos a tiro de canhão estátuas de Shiva e da Trimurti pacientemente escavadas na mole de uma montanha. Admiramo-nos agora muito de ver estátuas cair e manchar, como se fosse uma novidade com a qual nada temos a ver.

E antes disso outras referências há curiosas à cidade indiana. A de uma carta de 1912 de Camilo Pessanha, por exemplo, referindo uma visita a caminho de Macau que lhe permitiu desfazer alguns dos estereótipos orientalistas que consigo levava. Aí deparou-se com bailadeiras bêbedas, a abastardada hieródula dos templos hindus, em lugar do misterioso e feminino Oriente: “Nunca me esquecerão as minhas deceções das primeiras viagens, ao ver, por exemplo, em Bombaim, certas supostas bailadeiras traçando mantos de chita estampada na Europa e bebendo como esponjas uma realíssima cerveja Pilsener”.

Já o primo e amigo de Pessanha, o poeta e juiz Alberto Osório de Castro (1868-1946), que viveu largos anos em Goa e Timor, escreveu um poema ao «Beautiful Bombay», do livro A Cinza dos Mirtos (1906). Recontando e treslendo o poema, coisa que em literatura nunca se deve fazer, Osório de Castro pinta um episódio romântico numa cidade a que chama um “delírio do oriente”. É lá que encontra os “loiros perfis de Inglesas”, frios e altivos, junto ao clarão das carruagens que saem da grande mole do Victoria Terminus, hoje Chhatrapati Shivaji, nome do guerreiro marata que tantos trabalhos deu aos portugueses no século XVII, e é lá também que se despede da amiga inglesa: “Era o momento quase de partir./ Todo negro, o comboio fumegava./Viu-me de longe, e alta e loira, a sorrir,/ Veio dizer-me adeus onde a esperava.// Not for ever! murmurou. Sua mão/ Na minha boca a última vez poisou./ E partiu! Todo ferro o train rodou,/ Pesou-me inteiro sobre o coração.”

Mas é claro que a inglesa não é realmente uma mulher, antes uma alegoria feminina do império: a Britannia ou a Lusitania, como os navios que cruzavam nessa altura o Suez. Cesário, que nessa altura ainda não namorava com o polemista Silva Pinto, tinha já forjado para a poesia portuguesa uma imagem baudelairiana para a mulher do norte da Europa: fria e distante como uma alegoria e provavelmente tão pouco mulher como esta.

No poema «Frígida», de Cesário, a mulher é o ferro, o aço e o gelo, não por acaso materiais que serviram a construção dos instrumentos do poderio colonial inglês. Um destes seria o grande feito de engenharia da segunda metade do século, a abertura do Canal do Suez em 1869. Este viria a agilizar a circulação entre a Grã-Bretanha e suas distantes possessões. E é assim que o brilho e o furor da tecnologia estremecem na alvura da pele e nos cabelos da mulher, triunfante no palco colonial.

O poema de Osório de Castro é então uma curiosa encenação das relações inter-coloniais de Portugal e Grã-Bretanha sob a forma de um encontro amoroso, enquanto a cidade – ausente de tudo isto como um mero palco exótico – estremece no Divali, toda ela lume e brilhos. O poeta descreve uma imensa multidão que reza, entontecida de perfumes, enquanto os gongs chamam à oração. A Índia é aqui mero cenário de um flirt imperialista, cenário do qual os sujeitos locais são retirados, tornando-se obs-cenos, mera multidão indistinta. O que lhe importa são os personagens de um drama imperial: a mulher (?) dominadora, natural de um grande Império, e o homem português, amoroso e fragilizado como o seu amesquinhado império.

19 Jun 2020