Quando o futuro concorda

[dropcap]Q[/dropcap]uando Dilma Rousseff venceu as eleições para o seu segundo mandato e alguns dias depois houve uma manifestação na Avenida Paulista, em São Paulo, exigindo uma intervenção militar para derrubar o governo democraticamente eleito, Giovanni, que vivia em São Bernardo do Campo, na região metropolitana da mega cidade brasileira, percebeu que era o início do fim do Brasil. Pelo menos o início do fim do sonho mais recente, de um Brasil democrático, mais igualitário e valorizando a educação. Virou-se para, Alda, a sua mulher, e disse: “Amor, está na hora de fazer as malas. Vamos para Portugal.” Na verdade, desde uma viagem à Europa, cinco anos atrás, que Giovanni ficara a pensar na possibilidade de rumar a Lisboa. Tinha gostado daquela cidade pequena, charmosa, sem trânsito, onde os transportes funcionam, onde não há poluição e, principalmente, violência. Na cabeça de Giovanni, Lisboa era um paraíso. E se ficarmos nas comparações que ele fazia entre São Paulo e a capital portuguesa, não restavam dúvidas acerca disso. Só não tinha concretizado o sonho, porque o Brasil estava em franca melhoria. Via as pessoas mais desfavorecidas a poderem comprar casa, pela primeira vez na vida, a poderem frequentar a universidade e acreditava que finalmente o Brasil estava dando a volta por cima. Mas os acontecimentos mais recentes, fizeram-no ver com clareza o que ainda estava por vir. E o futuro, que a maioria das vezes se ri de nós, não iria desapontar o pessimismo de Giovanni. Na verdade, raramente o futuro desaponta o pessimismo.

O que era apenas um sinal no início do ano, tornou-se uma evidência em Dezembro, com o “impeachment” da Presidenta Dilma. Agora também Alda concordava com Giovanni: “É melhor irmos embora”. E foram. O filho continuou a estudar na USP, mas em breve juntar-se-ia a eles em Lisboa, para um mestrado em comunicação social.

A mulher, que tinha um salão de beleza, ficou um pouco preocupada. Uma coisa era ter gostado de Lisboa, da mordomia das férias, outra bem diferente era começar uma vida nova no país das padarias. Portugal, apesar de ser um país bonito, parecia-lhe um bocado provinciano. Tinha dificuldade em ver-se a viver ali. E depois aquele sotaque impossível, de comedores de vogais, desesperaria ao fim de uma semana. Vendo que Alda estava hesitante, preocupada com esta decisão, de modo a convencê-la Giovanni invocou uma máxima brasileira acerca das portuguesas:

“Lá, não vai ter falta de quem precisa de salão, meu bem, com tanto buço para fazer.” Alda sorriu com a piada, mas continuava apreensiva. O facto do filho já estar na universidade e de ter pensado em continuar a estudar no estrangeiro facilitava a decisão.

Giovanni não estava preocupado com o que iria fazer em Lisboa, venderia o seu bar em Pinheiros, para o qual tinha compradores, e logo pensaria no que poderia ou não fazer na capital de Portugal. Estava convencido de que deixar o país era o melhor, até porque em breve haveria uma debandada geral e Lisboa seria invadida por brasileiros. Os primeiros a chegarem teriam alguma vantagem. Mas Alda resistiu. Foi empurrando a decisão com a barriga.

O que era apenas um sinal no início do ano, tornou-se uma evidência em Dezembro, com o “impeachment” da Presidenta Dilma. Agora também Alda concordava com Giovanni: “É melhor irmos embora”. E foram. O filho continuou a estudar na USP, mas em breve juntar-se-ia a eles em Lisboa, para um mestrado em comunicação social.

Três anos depois, quando Jair Bolsonaro vence as eleições para a presidência no Brasil, com tristeza Giovanni diz para Alda: “Meu bem, olha quem chegou para me dar razão: o futuro. Não tarda, Lisboa vai pipocar de brasileiro.” Alda, que conseguiu abrir o seu salão, em Carcavelos, onde passaram a viver, abraçou o marido demoradamente. Percebia claramente que o futuro do Brasil já era.

Doía muito a Giovanni. À dor de ver uma vez mais o sonho de um Brasil “dar certo” adiado, juntava-se a dor de ter de ouvir os seus conterrâneos, em Lisboa, a defenderem “o Mito”, como passaram a chamar a Bolsonaro. Um dia, ao deslocar-se de “uber”, conduzido por um compatriota seu, ouviu-o dizer: “Você vai ver que Bolsonaro vai dar um jeito no Brasil. Você vai ver! O futuro vai me dar razão.” Giovanni seguiu o resto da viagem em silêncio, pensado que o futuro tem dificuldade em concordar com previsões optimistas. A experiência dizia-lhe que ele não funciona assim.

29 Out 2019

Aulas de teoria da literatura

[dropcap]D[/dropcap]avid, que se lê Dávi, ensinava teoria da literatura na universidade de Araraquara, a mesma onde Jorge de Sena um dia ensinou, e costumava dizer aos seus alunos no início do curso, que literatura era tão importante para vida como respirar, e tal como respirar ninguém repara. Antes que alguém pudesse pedir uma justificação para essa afirmação, mostrava um pequeno vídeo no “youtube” – vinte e poucos segundo – onde se vê Paulo Leminsky numa sala de aulas, de pé, a dizer “O prazer de usar a linguagem é um dos prazeres maiores, junto com o sexo, comida, bebida e drogas. O uso da linguagem dá um barato fundamental ao ser humano.

Não é preciso justificar isso à luz de nada. Isso aí é que é fundamental, as outras coisas é que têm de se justificar.” Depois passava o link do vídeo, para que os alunos pudessem rever o vídeo em casa.

Escusado será dizer que ganhava a sala de aula logo no início. O sentido daquelas aulas era o exercício de aproximação ao barato fundamental do ser humano: a linguagem. Um aluno, daqueles que escrevem antes de ler, como quem fala antes de pensar, pergunta a Dávi se nesse caso a auto-ficção não seria o barato maior, visto o próprio fazer uso da linguagem a partir de si e inventando-se. Se a auto-ficção não é o que toda a literatura almejava alcançar, uma espécie de Meca da literatura. Dávi ficou um pouco em silêncio e depois disse: “Sabe, no Brasil a auto-ficção é um pouco diferente da dos outros países, porque se acentua mais o auto. E você deve saber também que no Brasil, de modo geral, auto é sinonimo de carro e não de ‘mesmo’ ou de ‘próprio’. Quem daqui é que não reparou na oficina da Avenida Portugal, que se chama Auto Reparadora, como se auto fosse de automóvel e não de ‘mesmo’. Nesse sentido, se pensarmos numa ficção automóvel, talvez tenha razão. De preferência cabriolet, com os cabelos ao vento.”

O garoto insistia: “Mas não é a auto-ficção uma literatura válida?” Dávi respondia: “Pode até ser, dependendo do caso. Mas o problema da grande maioria desse ramo da literatura é que faz com que jovens como você acreditem que têm uma vida para contar e que isso basta para ser literatura. A literatura é uma vida para inventar. Literatura não é contar o que lhe aconteceu, aquilo que sente ou julga sentir. O barato, a que Leminsky se referia, não é ser eu, mas ser outros.

A linguagem é uma droga que me permite ser outros. E ninguém começa a ser outro a escrever. É a ler que se começa a ser outro.”

A conversa acabou por ali. No dia seguinte, uma das alunas preferidas de Dávi, que já conhecia de outra disciplina que ensinava na universidade, latim, aproximou-se dele no bar. Há muito que Dávi sabia que Jú começara a ler muito cedo, com Monteiro Lobato, que ainda hoje adorava, depois leu o Proust, o Joyce, o Canetti, o Hemingway, o Guimarães Rosa, o Raduan Nasar, e mais recentemente Aldyr Garcia Schlee e Trevisan, uma lista improvável, para alguém tão jovem, embora fosse verdade, e estava agora a tentar escrever, sem que lhe ocorresse contar a sua vida. estudava ainda latim, ela e apenas mais um aluno. Mas o que ela queria dizer a Dávi é que as palavras de resposta ao seu colega fizeram-na compreender melhor o vídeo do Leminsky, que já conhecia da net e ainda não tinha compreendido bem. “Queria agradecer-lhe por isso, Dávi.”

Tinha já deixado o seu sorriso para trás, afastava-se de Dávi, quando este ousou perguntar, elevando a voz no bar: “O que é que você aprendeu mesmo, Jú?” Ela voltou-se, sorrindo, e respondeu: “Que a vida é sempre menos que a literatura. E que ser-se outros é sempre mais do que ser-se o mesmo. Acabei também por encontrar a justificação que há muito procurava para as minhas tentativas de escrever: é o preço que se tem de pagar por se ler tanto. Ainda que a conta nunca fique paga. Ainda que se escreva só para nós e nunca para um livro. O barato é ler.”

Acenou um adeus e lá seguiu bar afora com a certeza própria da juventude e o conforto de que tudo pode mudar mais a cada página do que a cada esquina.



22 Out 2019

A beleza do Rio

[dropcap]R[/dropcap]ogério tinha 55 anos e era aposentado da companhia área Varig. Sem muitos luxos, mas vivia no bairro do Leblon a duas quadras da praia. Além de um bom papo acerca de samba e bossa nova, Rogério gostava da cidade do Rio e do time Fluminense, com a mesma paixão. Uma noite, um estrangeiro foi descuidado em dizer durante um jantar “Rogério, o Rio é lindo, mas para mim há outras cidades mais bonitas”. No dia seguinte, às 9 da manhã, Rogério estava à porta do hotel do cara, para fazer um tour privado pelo Rio, durante o dia todo.

Não aceitava que alguém pudesse pensar que existisse outra cidade mais bela do que a da sua paixão. O passeio começou pela Vista Chinesa, na floresta da Tijuca, de onde se avista, do cimo, grande parte da cidade: o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, a Baía de Guanabara, as praias de Ipanema e do Leblon, a Lagoa e Niterói. É realmente uma vista de tirar o fôlego. O estrangeiro agradeceu a Rogério e reiterou a sua posição: “A cidade é muito bonita, mas gosto mais de outras cidades”. Pra Rogério aquilo era o fim.

Pegou no cara e desceram até à Lagoa, até ao Leblon, Ipanema, Copacabana. Almoçaram no bar Veloso, onde Vinicius de Moraes escreveu “Garota de Ipanema” para João Gilberto tornar imortal com voz e violão, depois de verem passar a jovem Heloísa a caminho da praia. Rogério não desistia de tentar convencer o estrangeiro acerca da beleza ímpar do Rio e além de mostrar vários lugares emblemáticos e históricos da cidade, acabava-se em histórias sobre a cidade e suas personagens. O seu time acabava de ser campeão carioca, há poucos dias, derrotando na final o Volta Redonda, e ele comportava-se e conversava com os garçons e com os frequentadores do bar como se tivesse sido campeão da Copa dos Libertadores. Mas para Rogério era mais importante ser vencedor carioca do que de qualquer outra copa. E explicava: “Cara, aonde é que tu vai encontrar aqui no Rio um argentino ou um colombiano para tirar sarro dele, depois da vitória? Agora flamenguista, vascaíno, botafoguense é o que não falta!” E quando passava algum torcedor desses times, que ele conhecia, lá tirava ele sarro.

Depois do almoço atravessaram o túnel Zuzu Angel em direcção a São Conrado. No final do túnel, junto à entrada da Rocinha, dois bandidos com pistolas mandam-nos parar e sair do carro.

Com algumas coronhadas e gritos, exigiram que entrassem no porta-malas. Rogério tremia e disse que não entrava, que lhe dessem um tiro, mas que não entrava, tinha a certeza de que se o fizesse acabaria por morrer com falta de ar. Um dos bandidos não hesitou e disparou à queima-roupa no peito de Rogério. O estrangeiro, mais atónito do que com medo, como se estivesse a assistir ao que estava a acontecer e não a participar dos acontecimentos, entrou no porta-malas do carro. Fechado no escuro e na improbabilidade dos acontecimentos, pois de onde vinha isto só podia ser um filme, ouvia Rogério dizer que o Rio era a cidade mais bela do mundo. Pouco depois, escutava tiros, que deviam estar a ser trocados entre os bandidos e a polícia militar. O carro balançava mais que uma pequena embarcação em alto mar e não demorou a capotar. O estrangeiro acabou por desmaiar e só acordou num hospital, com poucos ferimentos, mas em estado de choque. Fizeram-lhe várias perguntas a que não conseguiu responder, não se lembrava do que tinha acontecido, nem como foi ali parar. Perguntou pelo seu amigo brasileiro, que lhe estava a mostrar a beleza da cidade do Rio.

15 Out 2019

A discussão política

[dropcap]A[/dropcap] discussão estava acesa no Gaivota, botequim junto à praia do Campeche. Joel, guitarrista e vocalista de várias bandas na ilha de Florianópolis, teimava que “País Tropical” de Jorge Ben Jor era provavelmente o expoente da música brasileira. Aliás, dizia, toda a obra de Jorge Ben Jor é o Brasil traduzido em música. Nem Cartola, nem Adoniran Barbosa, nem Milton Nascimento, nem João Gilberto chegaram a esse nível, o de serem o Brasil. Virou a “jola”, pegou no violão e começou a tocar a maravilhosa entrada de “Chove Chuva”, continuando depois a cantar os primeiros versos da canção: “Chove Chuva / Chove sem parar” e foi por ali fora até “Por favor chuva ruim não molhe mais meu amor assim”. Fez uma pausa, pediu mais uma “jola” ao Caio e começou a tocar e a cantar “Mais que Nada”. À volta da mesa todos aplaudiram. Carlinhos, outro músico da ilha, que tocava vários instrumentos, teimava que Caetano era o músico mais brasileiro, porque a música do Brasil é feita de todo o estrangeiro, a música brasileira não é só a herança negra. Para ele, o disco “Cores, Nomes” era a pedra preciosa da música brasileira. Não era só a composição, a melodia, as letras, eram também os arranjos, onde o Brasil se encontra com o resto do mundo. “E nas letras, não precisamos de dizer Brasil, tropical, negro, para sermos brasileiros. A primeira música do disco é uma bomba total, mas a segunda – “Ele Me Deu Um Beijo Na Boca” – é um hino!” E pegou no violão do Joel e começou a tocar e a cantar, com a ajuda de todos nas precursões, com o que havia à mão. A meio da música Carlinhos cantava “Política é o fim // E a crítica que não toque na poesia / O Time Magazine quer dizer que os Rolling Stones / Já não cabem no mundo do Time Magazine / Mas eu digo (ele disse) / Que o que já não cabe é o Time Magazine / No mundo dos Rolling Stones / Forever Rockin’ / And Rolling // Por que forjar desprezo pelos vivos / Fomentar desejos reactivos?” Então parou e disse: “Estes versos valem uma literatura, por que forjar desprezo pelos vivos, fomentar desejos reactivos? Isto é política séria. E só por isso, tenho de dizer que a nossa discussão só faz sentido por estarmos a elogiar ambos os músicos, independentemente das nossas preferências. A grande música não tem segundos lugares, só primeiros. Jorge Ben Jor, Caetano, Cartola, Adoniran Barbosa são todos primeiros, independentemente da maior ou menor brasilidade.”

Estavam todos de acordo, evidentemente. Era quase tudo músicos, naquele boteco. Joel, que enrolava um baseado, disse: “Cara tu tocou na ferida, Caetano é muito político, a começar pelo ‘ele me deu um beijo na boca’ e o Jorge Ben Jor é mais religioso, mais total.” Carlinhos não acrescentou nada, partilhou o baseado com Joel e ficaram a ouvir a música de Milton Nascimento, “Maria, Maria”, que Caio pôs a passar, como que a dizer que na música há mais marés que marinheiros. E Milton cantava: “Maria, Maria / É o som, é a cor, é o suor / É a dose mais forte e lenta / De uma gente que ri / Quando deve chorar / E não vive, apenas aguenta”.

No final da música, e do baseado, deram ambos um gole na “Antarctica” e ficaram com aquele ar de quem entende que no Brasil não há música que não seja política, e que as preferências pessoais pelos músicos têm tanto do modo de pensar a cidade e o mundo. Olharam à volta, vendo a galera cantando e dançando com a música do Milton, e perguntaram, quem é que naquele boteco gostava mesmo de bossa nova? Provavelmente ninguém, ainda que pudessem gostar da melodia e respeitar a harmonia. Hoje, Carlinhos continua a ir ao boteco Gaivota e junto com Joel e Caio escutam, entristecidos, Chico Buarque cantar “Cálice”: “Pai, afasta de mim esse cálice / De vinho tinto de sangue”. Esta canção da década de 70 parece tão miseravelmente actual que acaba com a discussão sobre quem é mais brasileiro, se Jorge Ben Jor ou se Caetano Veloso.

8 Out 2019

A vida ao longe

[dropcap]A[/dropcap] vida tem muitas variantes e no Brasil multiplicam-se mais ainda do que em Portugal. Marquinhos vivia numa chácara no meio do mato a mais de quatrocentos quilómetros a oeste de Porto Alegre, com a mulher e duas filhas. Andava mais de meia hora a cavalo para ir até outra chácara, para concertar ou negociar alguma coisa. Vivia de pequenos concertos que fazia em toda a região, para além de cuidar da criação e das hortas, junto com a mulher. Tinham patos, galinhas e inúmeros vegetais. Não criavam animais de maior porte, por ser mais difícil de manter. “Criar porcos é pra gente grande!”, dizia. O cavalo era o animal mais imponente da casa. Tinha três cachorros – antes foram cinco – que vigiavam a casa e o galinheiro, pois além dos gatos bravos também abundavam as aves de rapina. O maior problema, porém, eram as cobras venenosas, que atacavam os animais, tendo já matado dois cachorros que Marquinhos muito estimava. As filhas, uma de 13 anos e outra de 9, andavam mais de meia hora para apanhar um pequeno ônibus que as levava à escola. Quando era preciso fazer compras, Marquinhos atrelava uma pequena carroça ao cavalo e lá ia uma meia hora até ao pequeno mercado, junto a uma povoação com meia dúzia de pessoas e posto dos correios. Embora longe, a uns cinquenta quilómetros, as cidades mais perto eram Rosário do Sul e São Gabriel.

Marquinhos tinha 31 anos, sempre viveu por estas bandas e cresceu como um verdadeiro gaúcho, a cavalo, na pampa, como se diz no interior. Quando criança e jovem adolescente, chegava a ir com o pai em viagem até à Argentina e foi lá que, numa dessas viagens, conheceu Rosário, rapariga um ano mais nova, que se tornou sua mulher, regressando com ele para o interior do Rio Grande do Sul. A chácara aonde vivem é arrendada, não lhes pertence.

Marquinhos não teme ser despejado, mas se um dia tiverem de sair dali, não haverá falta de chácaras para arrendar, “o mundo é muito grande, e a pampa mais ainda”, dizia. “As pessoas não imaginam o que se consegue fazer com o céu azul por cima e um cavalo”.

Invariavelmente começava o dia, bem cedo, partilhando um chimarrão com a mulher, qualquer que fosse a estação do ano. O sabor líquido da erva quente e acre ajudava a reflexão. Por vezes, ficavam somente em silêncio olhando uma para o outro, como se tentassem descortinar quem eram, ou as diferenças em relação ao que foram, outras ficavam em sintonia com a paisagem lá fora, mas de modo geral falavam sobre a vida, sobre as filhas e o que tinham para fazer, partilhando a cuia. Marquinhos falava quase sempre como se fosse velho: “A casa não tem internet nem computador. Essas coisas modernas não nos fazem aqui falta. O que me fazia falta era um burro, para não desgastar o cavalo com a carroça.” Fez apenas a escola básica, mas gostava que as filhas pudessem ir mais longe. “Esta vida ao longe da cidade não é para gente nova.” Tinham um pequeno televisor que transmitia meia dúzia de canais e Marquinhos via que as filhas se entusiasmavam com a vida da cidade grande. “Aqui a vida não tem futuro, é tudo muito atrasado… eu gosto desta vida, e também não conheci outra, mas as meninas assistem a outras vidas pelo televisor e sentem vontade de fazer parte desse mundo.”

Nos seu dia-a-dia pouco havia para não fazer. Descansava ao domingo, sim, mas havia sempre o que fazer. Para Marquinhos viver era fazer alguma coisa. Não conseguia sequer imaginar uma vida parada, sentada a ler, a assistir televisão, a botar conversa fora. Consertava algo na casa, nas cercas, carregava algo de um lugar para outro, ia às compras, cortava lenha, plantava as sementes na terra, levava comida aos animais, ou então estava com a mulher e com as filhas. O tempo que ele considerava para ele, precioso, o seu tempo só, era quando saia a cavalo. Como dizia muitas vezes, com o céu azul por cima e um cavalo, ao longe, como gostava de dizer que era a sua vida.

24 Set 2019

A indiscernibilidade humana

[dropcap]L[/dropcap]eonardo era um “habitué” do bar Academia da Cachaça, na Barra da Tijuca e fazia parte da equipa de roteiristas da Globo. Apesar de ter cursado engenharia mecânica, era apaixonado por filosofia e cachaça, e entre vários assuntos que dominava verbalmente com prazer, costumava discursar acerca da natureza humana. Começava quase sempre por contar a mesma estória de um homem que não distinguia um “doberman” de um “rothweiler”, mas gostava de cães, que não distinguia um acorde menor de um acorde maior, mas gostava de música, que ao comer, ou quando ia ao mercado de peixe, não distinguia um dourado de um namorado, mas gostava de peixe. Por fim, rematava: “Nós não precisamos de saber para gostar. Se para gostar fosse necessário conhecimento, ninguém gostava de ninguém. E o amor só existe porque se sabe muito pouco de nós e do mundo. É uma espécie de compensação. Já que não se sabe, pega-se no gosto.” E pedia mais um chopp e uma “Boazinha”. A cachaça era um dos assuntos preferidos e que dominava, mostrando com orgulho o cartão de “Notório Cachaceiro”, atribuído pela Academia da Cachaça a quem se destacava na apreciação dessa aguardente de cana, a quem conseguia distinguir as diferentes proveniências desse líquido e não a quem mais o bebia. Ao tempo, em 2005, o número do seu cartão era o 241, num universo de apenas 350 já entregues. Ter esse cartão, além de ser uma distinção, dava-lhe direito a um caldinho de feijão e uma cachaça à sua escolha – desde que não fosse a Anísio Santiago – todos os dias, gratuitamente. Acerca do assunto, dizia que havia duas famílias distintas de cachaça: “As que têm entre 38 e 39º de álcool e as de 42º a 45º de álcool. A diferença alcoólica faz com que sejam quase duas bebidas diferentes. Contrariamente ao que as pessoas julgam, as madeiras onde são envelhecidas não tem muita influência nesta diferença, embora de modo geral as cachaças com menos álcool sejam envelhecidas em carvalho, como as de Friburgo (Rio de Janeiro), e as com mais álcool sejam envelhecidas em jaquitebá e em bálsamo, principalmente em Salinas (Minas Gerais).” Ouvi-lo falar e mostrar as diferentes cachaças era um modo delicioso de ouvi-lo contradizer-se. Pois acabava sempre por acrescentar: “Quanto mais se sabe de cachaça, mais se aprecia”. O que levava sempre os seus camaradas de mesa a contrapor que isso era o que acontecia também com a música e com tudo o resto, que quanto mais se conhecia o assunto mais se apreciava. Mas Leonardo tinha resposta para tudo: “É claro que quanto mais se sabe, mais se aprecia, mas não é necessário saber para apreciar. E é isso que contrapõe a natureza humana à ciência. A vida não só não precisa de leis como elas atrapalham uma boa gestão da mesma. Saber de música ou de cachaça é a ciência que se pode ter na vida, é uma imitação de ciência, necessária para nos esquecermos de que não sabemos o que realmente importa: porque estamos aqui, quem somos, o que é esse tal de universo.” O que o atraía na cachaça, para além do sabor, era a natureza humana que encontrava em cada garrafa. Depois de uma pausa e enquanto terminava a “Boazinha”, dizia: “Nada é mais parecido com a incongruência do que uma boa cachaça!”

Leonardo era um bom camarada de mesa, ninguém contestava e todos apreciavam a sua companhia e os seus dislates. Aliás, ele mesmo não discordaria que uma boa mesa precisa mais de dislates do que de ciência. Chegava a uma hora da noite que se despedia, dizendo: “Galera, vão ter de me desculpar, mas agora vou para casa fazer o ódio com a minha mulher.” E lá ia, voltando sempre ao final do dia seguinte, religiosamente, para as suas cachaças e os seus dislates, que dizia darem-lhe mais saúde do que ir para o paredão ou para a academia.

17 Set 2019

Rosely e Julieta

[dropcap]A[/dropcap] realidade encontra sempre várias formas de contrariar teorias e modos de pensar. Depois de Dilma Roussef, naquele que seria o seu segundo mandato, ter vencido Aécio Neves nas eleições para Presidente do Brasil, por uns escassos milhares de votos, parte da população brasileira veio para a rua exigir uma intervenção militar, de modo a depor Dilma e a instalar uma ditadura militar. Rosely, uma mulata alta e esbelta, de cabelo curto, com pouco mais de vinte anos e que trabalhava numa lanchonete na Rua Augusta, estava na Avenida Paulista junto com esse povo, gritando por uma tomada de posição do exército, que se fizesse alguma coisa, pois antes presa num regime militar, que livre numas eleições ganhas pelo PT, a “esquerdalha”, como muitos chamavam, e que se alargava para lá do partido dos trabalhadores.

O povo foi-se juntando na Avenida. E junto a esse povo havia jornalistas e fotógrafos de várias partes do mundo. Julieta, à beira dos trinta anos, era uma dessas fotógrafas, “freelancer”, activista dos direitos LGBT, que tinha vindo de propósito de Lisboa para seguir estes tempos conturbados do Brasil. Quando a câmara de Julieta captou Rosely, no meio daquela confusão de gritos e movimentos, não mais a quis largar. Julieta esqueceu a razão que a levara ali àquela manifestação e passou a fotografar exclusivamente a mulata. Não demorou a que Rosely se sentisse cativa da câmara. Demorou a perceber que era para si que elas olhavam, Julieta e a sua câmara, mas quando finalmente a fotógrafa lhe sorriu, devolveu-lhe o sorriso. Saíram da manifestação e foram para um boteco conversar. Julieta tocou em Rosely e esta descobriu em si sentimentos que desconhecia. Ainda antes da manifestação por uma intervenção militar terminar, já Rosely e Julieta estavam apaixonadas e se beijavam na boca, como que para salvar o Brasil, o mundo, o planeta, o ser humano. Rosely esquecendo os militares, Julieta esquecendo a continuação da presidência de Dilma. Julieta era a primeira mulher que Rosely beijava, o seu primeiro amor feminino. Agora, tinha a certeza de que sempre tinha sido lésbica, ainda que não o soubesse. A ironia de descobrir o amor numa manifestação pela intervenção militar não atrapalhou as contas dela em relação ao que pensava, embora agora a política se desvanecesse no corpo e nos sentimentos de Julieta.

Duas semanas depois, a fotógrafa regressa a Portugal com a promessa de tudo fazer para que Rosely se mudasse para Lisboa. Rosely, apaixonada como nunca tinha estado na vida, pensava o tempo todo na viagem sobre o Atlântico. Finalmente Julieta conseguiu um trabalho para Rosely e esta comprou o bilhete de avião, minutos depois. Por “skype”, a mulata ia dizendo, dia a dia, “faltam vinte dias para chegar à tua boca”, “faltam quinze dias”, etc.. À chegada ao aeroporto, Julieta esperava o seu amor com um enorme ramo de flores silvestres e um beijo demorado. Um beijo que tentava apagar a distância e o tempo que estiveram sem se encontrar.

Os dias em Lisboa foram passando, com ambas a viverem o idílio amoroso em casa da fotógrafa portuguesa. No Brasil, esse lugar tão longe da boca de Julieta, Dilma foi demitida e Temer assumiu o seu lugar. Na cerimónia de posse, um sinistro deputado do Rio de Janeiro, Jair Bolsonaro, evocou a memória do torturador de Dilma Roussef, no tempo da ditadura militar, que o deputado dizia não ter sido de ditadura, mas de heróis que salvaram o país do comunismo. O Brasil cai num dos seus momentos mais tenebrosos. Começara entretanto também a operação Lava-Jato, que desmontava uma enorme teia de corrupção na esfera política e empresarial. A violência aumenta exponencialmente em todas as cidades do país, causando um novo êxodo dos brasileiros em direcção à Europa e aos EUA.

Ao longe, Rosely vai esquecendo a política do Brasil. Ao fim de três anos, o amor não desvanecia, mas começava a ter a competição das saudades de São Paulo, da família, dos amigos, de um determinado modo de se estar o mundo, que é tantas vezes difícil de ultrapassar ou esquecer. Apesar do amor, Rosely entristecia. Julieta sugere que ela tire uma semanas de férias e vá a São Paulo visitar a família.

A visita de Rosely ao Brasil coincide com a campanha eleitoral e com a facada ao candidato à presidência, Jair Bolsonaro, na cidade de Juiz de Fora. Aquando do episódio, que se torna planetário, pelo menos transatlântico, a troca de mensagens entre Julieta e Rosely tornam-se amargas e rapidamente espaçadas. As amantes estavam claramente em lugares opostos da barricada: a brasileira defendia o candidato, a portuguesa atacava-o, apesar de lamentar o sucedido. Julieta começava a temer que Rosely não regressasse a Portugal. A política, a febre de mudança, de que o Brasil vai finalmente dar certo, grassava a sociedade brasileira, transversalmente. E Bolsonaro, apoiado pela bancada evangélica e a extrema direita encarnava o símbolo dessa mudança. Para Julieta, Bolsonaro não defendia valores, atacava valores, sendo o direito à diferença o mais importante. Apesar de inexplicável, Julieta estava certa, o seu receio tinha fundamento. Mas não foi só Rosely que saiu em defesa de Bolsonaro, figuras importantes da defesa dos direitos LGBT também o fizeram, e publicamente. Um dia, Julieta recebe uma mensagem de Rosely, que diz: “Meu amor, meu país precisa mais de mim que tu. Vou ficar.

Tenho de adiar o amor. Até sempre, Rosely”. Não sabemos se ainda continua a acreditar que é com Bolsonaro que o Brasil vai mudar, que vai dar certo, mas podemos imaginar que Julieta pense – ainda que possa não ser verdade – o quanto o seu amor era pequeno. Quando, entre amigas, Julieta tentava explicar a razão pela qual a sua amada a deixara, ninguém entendia. Num mundo como o de hoje, como entender que uma mulher troque o amor por Jair Bolsonaro?

10 Set 2019

Antes asno que me carregue

[dropcap]O[/dropcap] início da vida musical de qualquer músico, que quase sempre se confunde com o início da consciência de si mesmo, é marcado pela tentativa de ser outro que não ele. Todo o jovem músico imita os seus ídolos e, mais do que ser como o seu ídolo, quer ser ele.

Acontece com todos os géneros musicais, sem excepção. Jorginho tinha sido um tremendo guitarrista rock, na sua juventude. Entre os 14 e 18 anos arrasou Curitiba com os seus solos e com as suas bandas “cover”. Desde o início que imitava na perfeição Eddie Van Halen, arrastando legiões de garotos aos seus shows, que estavam sempre cheios. Chegado à idade adulta, Jorginho começou a dedicar-se ao jazz, deixando o rock de lado. Mas cedo percebeu que era muito difícil viver de tocar jazz no Brasil e teve de começar a dar aulas, maioritariamente a garotos que queriam tocar rock. Com vinte e três anos, depois de várias tentativas de viver do jazz, percebeu claramente que no Brasil não podia dedicar-se a esse estilo musical a tempo inteiro. E, em relação ao rock, também só podia continuar profissionalmente se fizesse parte de uma banda “cover” ou “tribute”. O normal é passarmos do outro a nós mesmos, como músicos, deixarmos de imitar aqueles que nos ajudaram na aprendizagem. Mas não foi o que se passou com Jorginho. Depois de um período de juventude em que imitava os outros e de um período do início da idade adulta em que aprendeu a linguagem do jazz e começou a ter a sua própria “voz”, a ser ele mesmo musicalmente, Jorginho voltou atrás e ingressou numa banda que iria fazer com que passasse novamente a imitar os outros: ingressou na “Hot For Teacher – Van Halen Tribute”. O nome dava aos fãs da banda Van Halen um claro aviso de que tocava apenas os temas da primeira fase, com David Lee Roth na vocalização. Quando foi às audições, Jorginho arrasou. Muitos diziam que fechavam os olhos e era como se o próprio Eddie Van Halen estivesse ali a tocar. O problema é que não bastava tocar como Eddie, era preciso parecer-se fisicamente com ele, vestir-se e mover-se em palco como ele. A aparência não era um problema, nem o vestuário, embora implicasse ter de usar cabeleira, assim como todos os outros elementos da banda. O maior problema era os movimentos que tinha de imitar. Jorginho quase não se mexia, contrariamente a Eddie, que saltava, corria e atirava-se para o chão, enquanto tocava, embora nos pequenos palcos onde a Hot For The Teacher ia tocar não houvesse o risco de ter de correr. Jorginho percebeu que o que estava ali em causa não era apenas tocar a música na perfeição, mas ser uma “autêntica” imitação do outro. Passou mais horas a ver Eddie em palco, a estudar os seus movimentos, os gestos, do que a praticar as músicas, que ainda sabia de cor. Os shows foram aparecendo. Não só no estado do Paraná, mas por quase todo o Brasil. A primeiras cidades fora do estado foram Florianópolis e Porto Alegre, mas rapidamente se estenderam a Belo Horizonte e São Paulo. Os Hot For The Teacher corriam o país como se de uma banda de originais se tratasse. Passado um ano, com a divulgação e o sucesso que tiveram logo desde o início, principalmente por causa de Jorginho e do vocalista, que também imitava autenticamente David Lee Roth – e são esses que os fãs que não são músicos ou aprendizes mais reparam – chegavam a ter quatro e cinco shows por semana, o que fazia com que todos eles passassem a viver uma vida que não era a deles. Durante o dia, já nem despiam as roupas que usavam no palco. Viviam como se fossem não a Hot For The Teacher, mas a própria banda Van Halen. Chegaram mesmo aos canais de televisão, onde actuavam e davam entrevistas.

Numa dessas entrevistas, Jorginho dizia que este fenómeno só era possível porque no Brasil se valorizava muito o Rock, que nunca era visto como algo do passado, mas sempre presente. Referia-se evidentemente às cidades grandes do sul e centro do país. No fundo, disse, “o que fazemos não é muito diferente do que fazem os músicos de jazz e de música clássica ao tocarem e gravarem composições passadas; toda a música, seja qual for o estilo, também vive de reinterpretações”.

Na verdade, Jorginho sabia que não se tratava de reinterpretações, mas de cópia. E, para quem não era fã dos Van Halen, estas imitações autênticas eram uma aberração. Se a vida de um rocker de modo geral é uma vida fora da realidade, a vida destas imitações era duas vezes fora da realidade. Não estavam só fora da realidade, cada um deles estava fora de si mesmo. Eles não eram aqueles que eram os outros, mas aqueles que eram a imitação dos outros. Jorginho, que queria ser músico de jazz, sabia bem disso, apesar das entrevistas que dava, dourando a pílula. E quando num dos programas de televisão alguém lhe perguntou porque fazia aquela figura ridícula, a imitar uma outra pessoa – referindo-se ao modo de vestir, à cabeleira e ao comportamento em palco – respondeu em modo de provocação: “é melhor do que ser caixa de supermercado ou ralar num Mcdonald’s”.

E provavelmente estava certíssimo. Talvez seja preferível ter uma doce vida de imitação do que o inferno de uma autêntica. Aqui, qualquer português se vai lembrar da “Farsa de Inês Pereira”, de Gil Vicente: “Antes asno que me carregue do que cavalo que me derrube.” Ao que parece, antes de se tocar tem de se comer.

3 Set 2019

Você tem máquina lava-louça

[dropcap]F[/dropcap]lávia e Yara eram amigas há quase trinta anos, desde os tempos da universidade, e viviam ambas no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro. Apesar do lugar privilegiado e de viverem de rendimentos consideravam-se pessoas de esquerda. No tempo da ditadura militar estavam do lado dos estudantes, do lado do Chico – que era uma espécie de santo – do lado do Caetano e do Gil. No final do ano de 1968, sentiram profundamente a dor desses jovens músicos, que foram presos por mais de dois meses por alegado desrespeito à bandeira e ao hino nacional, num show no Rio, junto com os Mutantes (banda onde cantava Rita Lee). Mais tarde tiveram de partir para Londres para não serem presos novamente. Foi-lhes dado a escolher: ou o exílio ou a prisão. Ficou também claro de uma vez por todas, para elas, que o país tinha sido sequestrado pelos militares, que tinham assaltado o poder em 1964.

E Flávia e Yara, apesar de patricinhas, filhinhas de papai, choraram junto com os jovens estudantes e com os músicos. As patricinhas apesar de privilegiadas, ou talvez mesmo por isso, entendiam que a liberdade acabava ali. O país deixava as suas cores tropicais e passava ao cinzento militar.

Os anos passaram e o Brasil viu um pé rapado virar presidente do país, nas urnas. Flávia e Yara viviam a euforia de uma liberdade, de uma procura de justiça e igualdade apenas sonhada nos tempos de estudantes. Encontravam-se com frequência num boteco do bairro e falavam com alegria. Conheciam tudo de música brasileira, a boa música brasileira, como é apanágio de um bom carioca, e não poucas vezes se punham a cantar este e aquele samba, esta e aquela música do Chico e do Caetano ou alguma bossa nova, que lhes lembrava a infância. Evidentemente, criticavam abertamente o crescimento do funk nas favelas e da violência da cidade maravilhosa.

Mas a música doía-lhes mais. Flávia dizia: “Imagine que deixávamos de aprender música e que só se ouvia no mundo funk e sertanejo!” Yara concordava que o mundo caminhava para a fealdade. O fim da música era o fim do mundo, fim do universo. Era preciso ir às favelas ensinar música às crianças, pagar-lhes para isso, se preciso fosse. O dinheiro deveria ser usado para promover a beleza, o bem-estar, a igualdade. “Aconteceu o mesmo nos Estates com o jazz”, voltava Flávia. “Você lembra do filme de Tim Burton, “Marte Ataca”?”, perguntava Yara e continuava sem esperar resposta, “Então, você lembra que os marcianos morriam todos com a música de Tom Jones? Um dia, os humanos vão morrer todos com a música feia que hoje se faz.”

Entre estas conversas e a recordação de algumas canções, passavam as tardes de Inverno. Depois pediam a conta e ia cada uma para as suas casas. Conversavam pela internet com amigos, viam alguns sites, ouviam música, assistiam a algum filme e iam dormir. Na tarde seguinte, voltavam ao boteco para conversar sobre música, a decadência do mundo e de como o novo presidente era uma lufada de ar fresco em toda esta podridão.

Mas nem só de revoluções e de teorias para uma mudança do mundo viviam aqueles encontros. Muitas vezes as conversas aconteciam pela berma da vida, pelo quotidiano. O preço das coisas no mercado, o custo das empregadas, as novas dietas. Tanto Yara quanto Flávia tinham empregada interna, a tempo inteiro, em casa. Eram elas que faziam tudo, desde preparar o café da manhã (pequeno almoço), o almoço e o jantar, arrumar a casa, lavar a roupa, estender, passar a ferro, levar o cachorro a passear, etc.. Tratavam as empregadas como se fossem da família. Um familiar que faz tudo o que é preciso fazer para que elas nada façam. E este familiar, embora tivesse direito a um dia por semana dormir na sua casa, na favela, nem sempre assim acontecia, pois poderia dar-se o caso de precisamente nessa noite haver um jantar lá em casa e o familiar ficava a trabalhar sem ir ver a família, os filhos. O salário? Era pouco, mas justo. E depois se o familiar precisasse de medicamentos, podia usar os lá de casa. Não faltava nada ao familiar. Afinal de contas, não podemos esquecer que Flávia e Yara eram de esquerda.

Nessa tarde de Inverno, num Agosto chuvoso e 20°, Flávia queixa-se de que a sua máquina lava-louças quebrou e vai ter de gastar uma nota preta noutra. Yara ficou um pouco quieta, incrédula e pergunta: “Você tem máquina lava-loiça?” Agora foi a vez de Flávia ficar surpresa: “Ué, você não?” Yara pede mais uma dose de pão de queijo e responde: “Eu não! Imagina! Então, o que é que a minha empregada depois fazia o dia todo? Assistia novela?”

27 Ago 2019

Uma profissão que não precisa de treinar

[dropcap]V[/dropcap]aldemar era baixista profissional “freelancer”, no Rio de Janeiro, casado e com dois filhos. Trabalhava para vários estúdios e acompanhava cantores em shows. Nos tempos de folga, que eram poucos, no boteco do Ademar, entre um chopp e outro, queixava-se que a mulher não entendia o seu trabalho. Não era por questões estéticas ou técnicas, ela não entendia o que é ser-se instrumentista. Arlinda não entendia a sua profissão. Quando a mulher chegava do trabalho, do seu salão de beleza, e encontrava Wal a ouvir música ou a tocar o seu instrumento, imediatamente se queixava dele estar de bobeira, em vez de ajudar em casa. Para Arlinda, trabalhar era quando Val ia para o estúdio ou para os shows e recebia dinheiro. Em casa ninguém lhe pagava, nem para tocar e muito menos para ouvir música. Apesar de Val dizer continuamente que ouvir música era parte do seu trabalho, assim como tocar em casa, que era fundamental, Arlinda não queria saber desse papo furado. Não entendia que grande parte do trabalho de um músico é feito sem receber dinheiro. Treina-se anos para tocar alguns minutos em cima de um palco, umas horas a gravar num estúdio. Arlinda dizia: “Você pode treinar quando estiver no estúdio ou quando passa o som antes dos shows”. Aquilo era tão absurdo para um músico, que Val ficava sem resposta. Era como se alguém dissesse para um nadador de competição “você pode treinar no aquecimento, antes da prova”. Arlinda trabalhava muito, é verdade, e cada minuto do seu trabalho era pago. O treino que ela teve foi antes de começar a trabalhar. Aí, sim, não recebia dinheiro, treinava. Depois, quando começou a trabalhar, primeiro como empregada e depois como patroa, acabaram-se os treinos. Todo o tempo da sua vida era a sério, a facturar. Arlinda não conseguia entender como é que alguém que era profissional, competente a executar a sua profissão, tinha de continuar a treinar. Pior ainda: como é que ouvir música fazia parte do seu trabalho. “Ouvir música é diversão ou vagabundagem, não venha cá com trabalho, quem quer você enganar?” E não adiantava que outros colegas de profissão atestassem com Arlinda, que era assim com todos. “Músico rala mesmo”, diziam, “trabalha a semana toda e recebe ao sábado”.

Se formos a tentar entender o modo de pensar de Arlinda, ela não estava errada de todo. De facto, os músicos deveriam ser pagos para ouvir música, assim como para treinar, o que aliás acontece com aqueles que fazem parte de orquestras, onde o salário que recebem paga as horas de treino diárias que fazem, que são bastante mais do que as que tocam em palco. No seguimento deste modo de pensar, um amigo de boteco metido a filósofo, o Celso, dizia-lhe: “Não é Arlinda que está errada, nem você, Val, o que está errado é o mundo. O mundo quer beleza, mas não imagina o trabalho que a beleza dá. Quer beleza, mas não quer pagar. E sabe por que isto acontece, Val?

Porque se julga que beleza é como mulher bonita, aparece no mundo por obra e graça do Espírito Santo.” Mas Val não entendia bem o seu amigo. O que o preocupava era o estado em que a sua relação com Arlinda estava, pela incompreensão dela com a sua profissão. O problema dele era fácil de equacionar: como é que vai fazer com que a sua mulher perceba que tocar e ouvir música em casa é parte do seu trabalho?

Depois desta última conversa no botequim, Val saiu em viagem com uma banda e passaram-se meses sem que alguém botasse a vista em cima dele. Como se diz no Brasil, o que engorda o boi é o olho do dono. Meses sem dar as caras em casa, para mais com a relação no estado periclitante em que a tinha deixado, quando regressou a Arlinda tinha outro. Val teve de deixar a casa nessa mesma noite.

Quando regressou ao boteco e contou o que lhe tinha acontecido, o metido a filósofo perguntou se o outro era empresário, se tinha um emprego estável, se era um cara de responsa. Val respondeu: “O cara é ator pornô!” Celso deixa escapar a sua estupefacção: “Pô, ator pornô, Val?”

Este respondeu com a indiferença dos condenados, abanando os ombros: “Ué, é profissão que não precisa de treinar.”

20 Ago 2019

Ao contrário das bruxas

[dropcap]H[/dropcap]á pessoas que, a despeito da pouca idade que têm, revelam um sábio conhecimento da vida, um modo verdadeiramente prático de viver, como se tivessem um ouvido absoluto para a vida. Nos antípodas disto encontramos pessoas com idade avançada que continuam surdos, que continuam a viver como se estivessem afinados, embora a melodia que cantem esteja muito longe disso. Jeito para a vida é um talento com que se nasce ou não. E cada um é p’ró que nasce.

Larissa era uma jovem muito bonita, de 20 anos, que cursava marketing numa faculdade em Floripa e fazia parte de um jovem grupo amador de teatro, com o qual colaborei algum tempo.

Não tinha relações com homens ou mulheres, tinha ficantes. Ficava com quem, quando e onde queria. Estava podendo, como diziam as amigas. Mas o que a levava a viver deste modo devia-se mais à sua convicção acerca do amor do que à beleza que tinha. Dizia que se um dia sentisse aquilo que as outras pessoas chamavam amor, certamente iria mudar. Mas, até lá, vivia com o que tinha e com o que sabia. O que sabia é que as pessoas tendem a complicar a vida e afastava-se dessa possibilidade como o bêbado de um salão de chá.

Larissa entregava-se aos ensaios no teatro com muito empenho e entreajuda, sempre disposta a colaborar em tarefas que lhe pediam, para além da representação. O seu comportamento na faculdade era semelhante. Muito simpática com todos e sempre com um sorriso no rosto. Era a imagem perfeita da felicidade. Naturalmente, ainda que ela não se importasse com isso, a inveja chovia continuamente sobre ela. Ou pela sua beleza, ou pela sua simpatia, ou pelo modo concentrado com que se entregava a todas as tarefas que fazia. Podia não ser a melhor, mas empenhava-se em tudo. Também nunca se ouviu dizer mal de ninguém. Acreditava que dizer mal era subtrair-se à vida: “Quando falo mal de alguém não estou em mim, na minha vida, estou no outro, e para mais num outro que não gosto; é perda de tempo, porque perda de mim ou de algo ou alguém que gosto; dizer mal é prosa de futebol no boteco”. Tinha sempre uma capacidade de simplificar as equações que muito me espantava. Uma amiga, a brincar, dizia que Larissa tinha nascido com um “simplificador” instalado. E não era difícil acreditarmos nisso.

Um dia, Larissa chegou aos ensaios de teatro com um rapaz e apresentou-o como sendo o seu namorado. Ficou todo o mundo alarmado e olhando o rapaz como se ele fosse o Messias. Só faltou tocarem-lhe, abrirem-no por dentro para verem o que fazia dele tão diferente. Perguntas não faltaram, claro, tanto a Larissa quanto ao Messias. Um exagero que nem o inusitado da situação caucionava. O rapaz estava visivelmente embaraçado, enquanto Larissa continuava simpática como sempre. Dizia, sorrindo: “Gente, não assustem o meu homem, que ele vai pensar que eu só conheço louco e logo logo vai fugir de mim”.

Não passou muito tempo, um mês, mês e meio, quando alguém pergunta a Larissa pelo Messias e ela responde que acabaram. Porquê? A única resposta que se obteve foi esta: “Se não é simples é porque é complicado.” À distância, isto é, não sendo nenhum dos elementos envolvidos na relação, consegue-se ver perfeitamente a resolução certa para a equação. Podemos imaginar muita coisa que pode ter levado Larissa a dizer aquelas palavras: privação da sua liberdade, uma tentativa de Messias fazer dela quem ela não é, dificuldade com o horário dele, ou simplesmente querem fazer do tempo livre constantemente coisas diferentes. Mas a melhor resposta deu a Larissa uma semana mais tarde, depois de um ensaio de teatro, quando se falava sobre o amor:

“Olha, gente, não é que eu não acredite, mas é ao contrário do que se diz das bruxas: eu acredito no amor, mas que não o há, não o há.”

13 Ago 2019

A mulher do Primo Basílio

[dropcap]E[/dropcap]stava uma daquelas manhãs perfeitas de Inverno em São Paulo, em que a temperatura ronda os 20° centígrados com um céu completamente limpo. Fui a pé até ao sebo do escritor Evandro Affonso Ferreira, junto à FNAC de Pinheiros – que já não existe mais – para uns dedos de conversa e a tentativa de encontrar uma edição boa e barata das obras de Monteiro Lobato. Depois de uma boa hora de conversa e passar os olhos em algumas possíveis edições da obra que queria – só uma delas não estava incompleta – Evandro pede-me desculpa, mas tinha de tratar de um assunto pelo telefone, antes de sairmos para almoçar, deixando-me a passear sozinho pelo sebo. Àquela hora raramente entravam pessoas. Quis o destino que nesse dia entrasse uma mulher muito branca, magra, com um vestido comprido e os cabelos ruivos apanhados em rabo de cavalo. Tinha à volta dos seus quarenta anos, a mesma idade que eu na altura em que vivia em Sampa. Dirigiu-se a mim e, confundindo-me com o dono do sebo, denunciando ser a sua primeira vez, pergunta-me se tenho uma edição de “O Primo Basílio”, de Eça de Queirós. Respondi-lhe que não trabalhava ali e que o meu amigo já a atendia, assim que deixasse o telefone. Reparando no meu sotaque, deixou saiu um “ah, português!”, que denunciou também não pertencer a este lugar. Evandro demorava e a curiosidade aumentava. Do meu lado por saber o que fazia uma estrangeira em Sampa à procura de “O Primo Basílio”, do lado dela por querer saber quem era este portuga, que tinha um amigo num sebo de Sampa. Chamava-se Simone, era francesa e vivia em Sampa há seis anos. Tinha vindo em 2000 com uma bolsa da PUC para estudos brasileiros e acabou por ficar cá. Agora ensinava na universidade “leitura criativa” e tinha acabado de se mudar para o bairro de Pinheiros. O seu interesse no livro de Eça de Queirós vem de há muito e não era para ler, mas para reler, pois nas mudanças acabou por perder uma das caixas dos livros, aquela onde estava o seu exemplar. E preparava-se para ministrar um curso sobre esse livro, segundo semestre. Há muito que não lia esse livro de Eça e fiquei curioso acerca do interesse de Simone.

Ela sorriu e disse: “venha assistir às minhas aulas”. Perguntei: “E posso?” Podia, claro.
Evandro finalmente largou o telefone, e atendeu Simone. Arranjou-lhe um exemplar da Editora Estadão, da colecção Ler é Aprender. O Evandro fez questão de me apresentar como um escritor português, que estava a viver agora no Brasil. Trocámos os telefones e os emails, ela saiu, o Evandro e eu fomos almoçar com outro nosso amigo – quem há meses me apresentara Evandro – o Guilherme Resstom. O almoço correu bem, como usualmente, e eu regressei a casa. Ao abrir o email, tinha uma mensagem de Simone, que gostava de tomar café comigo um dia destes. Encontrámo-nos no Pirajá – icónica cervejaria de Sampa, que tem o melhor chopp do mundo –, passado uma semana ao fim da tarde.

No primeiro dia não tinha reparado, mas desta vez não me escapou como ela aparentava ser triste. À medida que fomos conversando, fui ficando convencido de se tratar de um evidente caso de tristeza aparente. Simone era triste por fora. Triste para transeunte ver. Em certo momento, disse: “Vivo sem cães, sem gatos, sem filhos, sem homens.” Mais tarde conheci-lhe a casa – quase sem móveis, sem objectos desnecessários – e pude comprovar o quanto era espartana. Os livros eram a sua verdadeira companhia. Os livros e a música, que estava continuamente a tocar num aparelho estéreo. Música clássica, maioritariamente.

Desde esse dia no Pirajá, passamos a ser cúmplices, a trocar mensagens sobre literatura e sobre a experiência de ser-se estrangeiro no Brasil, ainda que estrangeiros diferentes. Como ela mesma costumava dizer, uma mulher é sempre mais estrangeira, para onde quer que imigre.

Por sua causa reli “O Primo Basílio”, assisti ao seu curso e isso de algum modo mudou a minha vida. A intensidade da sua leitura, o seu modo de ver por dentro as personagens, as situações de vida – a existência, no fundo – marcou o modo como leio hoje essa obra de Eça de Queirós.

Esta obra era apenas um dos cursos que dava, maioritariamente o seu ensino era sobre Guimarães Rosa e Stendhal.

Um dia perguntei-lhe porque não regressava a França, ao que me respondeu: “Não se pode querer compreender a literatura de um país, à distância. À distância podemos gostar de todas as literaturas, mas para as compreendermos temos de viver onde elas foram escritas. Não sei muito sobre a literatura portuguesa, como sei sobre a brasileira, nem sequer sobre Eça de Queirós. Como você viu, o meu curso sobre “O Primo Basílio” é um curso impressionista e existencial, de quem gosta e se identifica muito com essa obra. Mas não é como quando ensino Guimarães Rosa ou Stendhal.” Deixei São Paulo, acabámos por deixar de trocar mensagens, mas ainda hoje me lembro do nome que lhe passei a chamar, que a fazia rir: “A mulher do Primo Basílio”.

6 Ago 2019

A primeira vez no deserto

[dropcap]V[/dropcap]anina era uma argentina de Buenos Aires a viver em Floripa há mais de 10 anos, desde os seus vinte e poucos. Tocava baixo numa banda de covers nos bares da cidade e era apaixonada por pegar ondas na praia Mole. Vivia ali perto, sozinha, na Lagoa da Conceição.

Argentinos na ilha não é incomum. Aliás, é um dos lugares de preferência dos portenhos para passarem as suas férias. No verão, a ilha fica cheia deles. Alguns acabam por ficar ou voltar mais tarde para passarem a viver junto às inúmeras praias da ilha.

Conheci Vanina depois de uma actuação da sua banda, através de uma amiga comum, e desde esse dia passámos a conversar com muita regularidade. Apesar de sermos muito diferentes, a começar pelo género e a acabar nos hemisférios onde nascemos e crescemos, havia uma secreta cumplicidade de estrangeiro. Sabíamos que não éramos dali, e toda a gente à volta sabia-o melhor que nós, pois o gosto que tínhamos pela cidade – pelas praias e pela paisagem – iludia-nos amiúde acerca da nossa cidadania. Mas de fora, todos viam claramente que não éramos dali, pelo menos quando começávamos a falar. Tanto ela quanto eu tínhamos sotaque, mesmo falando a língua. Um estrangeiro é sempre um estranho, apesar do gosto que possam ter por ele. É uma afeição exótica que se cultiva, como ter peixes de aquário num apartamento da cidade.

Vanina gostava de me visitar a meio da tarde durante a semana. Dizia que “o tempo é uma vida”. Era muito ligada a disciplinas esotéricas, e explicava que há várias vidas em cada momento e que se não nos entregarmos a eles, rejeitamos a vida. No fundo, era uma interpretação do “carpe diem” de Horácio, na sua versão mais alargada: “carpe diem quam minimum credula postero”, aproveita o dia e acredita o menos possível no amanhã. E, na verdade, Vanina era de uma coerência titânica em relação a esse preceito de vida. Evidentemente, a ajudar a sua filosofia havia uma confortável situação financeira, que lhe permitia trabalhar se e quando quisesse.

Vanina era fascinante, tinha um claro domínio sobre si, os seus impulsos, e ao mesmo tempo deixava-se levar pelo momento. Dizia: “Controlo perfeitamente os meus desejos, as minhas vontades, mas deixo-me levar pelo que a vida me traz. São coisas muito diferentes, Portuga. Por exemplo, conheço um homem e tenho a plena consciência de que gostaria de ter um envolvimento carnal com ele, mas se ele for muito interessante controlo essa minha vontade, esse desejo, embora me entregue ao momento e possa passar horas com ele; sei que se pusesse o corpo entre nós, isso acabaria. Este é o exemplo concreto de controlo do desejo e de deixar-me levar pelo que a vida me traz.” Quando acrescentei que nem sempre o desejo acaba com o interesse, pode até aumentar, respondeu: “Isso pode até ser, quando é amor. Mas este não cresce nas árvores. Homens e mulheres, sim.”

Bebia e fumava muito moderadamente. Aliás, tudo nela era moderado, menos a entrega apaixonada ao momento. Vi-a uma noite sair com um cara e soube mais tarde que passou três dias com ele sem ir a casa. Disse-me depois: “Foi um exemplo claro de aproveitar o que a vida me dava. Sabia claramente que não iria existir nada mais que dois dias, e foram três. Portuga, uma vez segui um mestre hindu, que conheci em Amesterdão, durante meses, por vários países.

Conheci-o numa palestra e segui-o. Um belo dia entendi que já não fazia mais sentido segui-lo e regressei a Buenos Aires.” Perguntei-lhe se isso não era um modo de não ter controlo sobre ela, visto ser desviada do seu trajecto sem ter pensado nisso. Mas não. O trajecto dela era a vida e na vida não há desvios. A vida é como o deserto, sem pontos de referência. Para onde quer que se caminhe é desvio. A não ser que previamente se saiba para onde caminhar, mas na vida isso não existe. A vida é uma primeira vez no deserto.

31 Jul 2019

Canivete suíço para corações

[dropcap]C[/dropcap]onheci Marlene num bar da Vila Madalena, em São Paulo, entre amigos de amigos de amigos. Tinha o cabelo preto – curto como um haiku –, que contrastava claramente com o exagero da sua pele branca. A sua juventude via-se no modo despreocupado com que se entregava ao sorriso, dela e dos outros. Num tom provocador, diz, quase rente à boca de Julie, “o amor não serve para nada”. E riam-se, quase se beijando.

Marly (Marlene) estava interessada em Julie, mas ainda mais interessada em Patty, que estava sentada ao meu lado e mais empenhada em convencer as pessoas acerca do que pensava do que nos corpos disponíveis, que poderia ter se quisesse. Quase todas aquelas jovens mulheres poderiam ser no corpo de outrem, por isso a displicência com que não atentavam nos sinais do desejo. Marly tocava-nos enquanto falava, sorria, olhava-nos nos olhos. Julie estava claramente interessada apenas em Marly e era um erro. Erro que se paga com a vida e tarde de mais se percebe. Patty falava que só há dois tipos de pessoas no mundo: as que fazem a guerra e as que fazem a paz; o resto eram sub-divisões que tentavam ocultar a diferença máxima e que realmente importava para o mundo. Entregar-se à discussão, à maledicência era fazer a guerra, furtar-se ou evitá-las era procurar a paz. Continuava neste tom até alcançar os cumes gelados da religião, onde cristianismo, islamismo e judaísmo faziam parte do mesmo partido da guerra, contrariamente ao budismo, que era claramente uma procura da paz. Marly, que estava nesse momento levantada, dirige-se a Patty por trás, toca-lhe nos longos cabelos loiros, apanha-os com uma das mãos e sussurra-lhe ao ouvido algo que fez a rapariga da paz estremecer, enrubescer e soltar um som rouco, embaraçado. Marly deu-lhe um beijo no lado esquerdo do rosto, junto aos lábios, sentou-se no seu lugar e beijou demoradamente Julie, tendo desta vez toda a atenção do mundo – a paz e a guerra – por parte de Patty.

Esperei um pouco, virei-me para a Patty e disse: “Estava dizendo…” Ela olhou-me como se acabasse de acordar. Ficou tão claro que não basta uma pessoa existir, fazer-se ver a outra, para lhe entrar dentro da pele, é preciso construir um cavalo de Tróia, é preciso um gesto, uma palavra, algo que faça com que a realidade desapareça e que o que é passe a parecer.

Marly era um autêntico canivete suíço nos nossos corações. Agora, não havia naquela mesa, naquele bar, naquela cidade, um só coração que não batesse em uníssono com o coração de Marly. Tudo o que fazia era perfeito e transformava-nos a todos numa criança no primeiro dia em que estremece pela imagem de um outro corpo. Nem ela mesma sabia o que fazia. Tocar-nos os corações não era um conhecimento, era um destino. Ria-se com a alegria de quem vive no paraíso e não numa rua da cidade de São Paulo, no mundo, e repetia de quando em quando como um refrão “o amor não serve para nada”.

A noite foi crescendo, tal como um filho, mais depressa que o esperado. Já à saída do bar, e com o dia a espreguiçar-se, perguntei-lhe: “Marly, que disse ao ouvido da Patty?” Ela riu alto, abraçou-me e rente ao ouvido, disse: “Portuga, se lhe contar, vou ficar com a sua alma para sempre. Quer mesmo que isso aconteça?” Por estranho que pareça, a sua resposta não me surpreendeu. Sorri e disse-lhe: “Não, querida, deixe p’ra lá, assim está de bom tamanho”. Seria estultícia querer desafiar a natureza e o desconhecido.

No céu, começava-se a ver as nuvens rarefeitas, deslizando no céu como se Deus fumasse.

23 Jul 2019

A mulher sem tempo

[dropcap]U[/dropcap]m dos mitos em que eu ainda acreditava quando cheguei ao Brasil era o de que os brasileiros são nossos irmãos, de que gostam de nós. Para além das piadas que contam de nós, que pode não ser medida de coisa nenhuma, e de ainda nos verem como colonizadores, que pode ser apenas sinal de desatenção, nos mundiais de futebol, de modo geral, torcem contra a selecção de Portugal. Um português normal até aguenta que se riam dele, que o julguem erradamente, mas torcerem contra nós pela Espanha, ou pelos EUA é dose que não aguenta. Já com quatro anos de Brasil, em Floripa, depois de duas horas numa “jam session” com um guitarrista de blues, o “cara” vira-se para mim e diz; “tu até que é legal”. Para portuga, faltou dizer, mas estava implícito, e não era brincadeira. Pois nunca se brinca com o silêncio.

Isto vem a propósito dos enganos com que se vive. Alguns não têm importância nenhuma, como o do mito de que os brasileiros gostam de nós, como nós gostávamos deles até nos invadirem a costa, mas outros há que são mais prejudiciais. Clô era professora de inglês e julgava-se cantora. Viveu a sua vida dando aulas como modo de sobrevivência, sem sequer investir muito nisso, sem investir em mais nada, até os seus relacionamentos amorosos e de amizade derivavam de julgar que um dia seria uma grande cantora. Na verdade, ela tinha boa voz e era afinada, mas não conseguia cantar com ninguém, nem com ela mesma, se se acompanhasse ao violão. Só “a capella” conseguia cantar uma música. Como gravava as suas sessões em casa, a solo, percebia que a sua voz era boa e afinada, e resultava daí que culpabilizava todos os músicos de não conseguirem acompanhá-la. Quando a conheci, Clô já tinha mais de quarenta anos e cantava desde a adolescência, numa contínua interrupção de projectos musicais. Evidentemente, à medida que ia envelhecendo, e os possíveis músicos para a acompanharem também, o desfecho dos projectos era mais rápido, nunca passavam do primeiro ensaio, pois a experiência fazia os outros compreenderem imediatamente o que acontecia. Clô não tinha tempo. Só sozinha, por um mistério do universo, conseguia sentir o tempo como parte da música. Acompanhada não tinha tempo nenhum. Dito assim até tem alguma poesia, mas numa sala de estúdio ou num palco a poesia dá lugar a uma enorme frustração.

À altura que a conheci, já havia a possibilidade de gravar em muito boas condições, mesmo sem um grande estúdio. Identificado o problema, mas sem lho dizer, pois isso era impossível – como dizer a alguém que se julga bonita que é feia? – gravei-a a cantar duas músicas sozinha. Mais tarde, no estúdio, gravei as guitarras e o baixo. Depois pedi a um amigo para gravar a bateria.

Tudo muito pouco convencional, mas resultou. Aquilo que fiz como um agrado, por amizade, acabou por se tornar no pior que lhe podia ter feito. Agora, quando se ouvia a voz dela, com a banda toda certa por trás, não havia quem não quisesse tocar com a Clô, acabando por alimentar-lhe o mito de que era uma grande cantora. Se antes não adiantava dizer-lhe que nunca poderia cantar ao vivo, com quer que se fosse – nem em “playback”, pois ela teria outros tempos para além ou aquém do tempo do “playback” –, agora era impossível que não se considerasse a cantora que sempre julgou que era. Sem querer, com a melhor das intenções, acabei por contribuir para que o mito crescesse, apagando de vez a possibilidade da Clô se ver na realidade. Só depois compreendi porque é que os seus amigos nunca lhe tinham feito aquilo que eu fiz, de gravar em estúdio uma banda por cima da voz dela: eles compreendiam que isso não ia ajudar a Clô, pelo contrário.

Hoje a Clô ainda continua a viver como se fosse uma grande cantora e que por uma ou outra razão ninguém consegue ou quer tocar com ela. Irá viver a vida convicta de que o seu mito pessoal de grande cantora é verdade, assim como a maioria dos portugueses acreditando que os brasileiros gostam deles, só por serem portugueses. Infelizmente, uma vida não tem modo de se ver a si mesmo errada. Muitas pessoas neste planeta – as que são privilegiadas, que não pensam apenas em como conseguir água e comida para sobreviver – de um modo ou de outro vivem seus pequenos mitos, que determinam toda a sua vida. Clô continuará a cantar sem tempo, sem ninguém, não fazendo esforços por mais nada, vendo em si mesma aquilo que não é. Ainda que tardiamente, sem querer contribuí para isso. Mas não quero contribuir para o mito da irmandade dos brasileiros com os portugueses.

16 Jul 2019

Como o Natal

[dropcap]H[/dropcap]á pessoas que lembramos por pequenos gestos, por palavras inusitadas ou pelo simples mistério de ficarem agarradas à rocha da memória sem qualquer explicação. A Mad (Madalena) tinha vinte e cinco anos e apareceu para a audição de bateria com um pacote de 6 cervejas geladas, não fosse aquilo demorar. “Vai que demora”, disse ela com um sorriso. A sua relação com a cerveja era tão próxima, que tinha um suporte no jipe, junto ao volante, para pôr a lata enquanto conduzia. “Dirigir e beber não tem mal, se você souber fazer bem as duas”. Este “não tem mal se você souber” era um lema que aplicava constantemente à sua vida. Por conseguinte, também às relações amorosas. “A vida é muito curta para um só homem por vez.” E depois, a rir, acrescentava “não tem mal se você souber fazer bem os dois”. Se era feminista?

Não, particularmente. Mas dizia-me que, no Brasil, ser-se mulher é ser-se vista ou como feminista ou como uma extensão dos desejos machistas. “Não sou feminista, nem sei bem o que isso quer dizer, mas não deixo que homem algum decida a vida por mim. Provavelmente vivo a minha vida como muitos deles gostariam de viver e que se pudessem impediam-me de fazê-lo.”

Hoje lembro muito mais a Mad pelo pacote de 6 cervejas com que apareceu para audição do que pelo modo como vivia ou as coisas que me foi dizendo, até porque encontrei muitas jovens mulheres no Brasil que viviam, falavam e bebiam como a Mad, mas só ela me apareceu à porta do estúdio com um pacote de 6 cervejas para uma audição de bateria. E as cervejas são como as cerejas, trazem sempre outras lembranças.

Semanas depois da audição, quando tocávamos num pub da ilha, a meio do show vejo a Mad deixar de tocar, levantar-se e ir direito a uma guria (rapariga), que estava em frente ao palco, agarrá-la e beijá-la na boca como se o mundo acabasse. Nós continuámos a tocar, tentámos disfarçar, como se pudéssemos disfarçar a ausência de som numa música, e ela saiu do pub com a guria, sem nos dizer nada. Adaptámo-nos à situação. O nosso baixista, sempre muito espirituoso, disse que por motivos de amor urgente ficáramos sem baterista, pelo que íamos continuar sem “batera”. No dia seguinte, a Mad apareceu-me em casa, depois do almoço, ainda sem ter dormido, pedindo desculpa por nos ter deixado na mão, mas que tinha sido mais forte que ela e que não voltaria a acontecer. Não sabia explicar o que aconteceu. Disse-me que nunca sentira nada assim. Já tinha ficado com algumas gurias antes, mas nada de especial. O que gostava mesmo era de homens – interrompi-a dizendo que nada tinha a explicar-me, mas ela nem tomou nota –, e a Alê (Alessandra) – já tinha nome – despertou-lhe um impulso único e intenso. Jurava que era mesmo como se fosse parte dela, simultaneamente um desejo de possuí-la e de ser amparada, de voltar a casa. “Também pode ter sido uma reacção ao excesso de branca com a cerveja.” E riu-se.

Estava visivelmente cansada, mas não preocupada. Perguntei-lhe se queria comer alguma coisa e respondeu-me: “Tem cerveja?” Sorri e disse-lhe que sim. “Então, pode ser.” No terraço, enquanto a Mad comia e bebia, olhava o mar e a ilha do Campeche, pensando em como os humanos são tão diferentes, da impossibilidade de se escrever um manual de instrução. Por fim, volto-me para ela e pergunto: e agora, como fica, vão ficar juntas? “Credo! Não.” Mas não disseste que a guria era como voltares para casa? Ao que me responde: “Portuga, olha bem pra mim, tu me vê muito em casa? Casa é como o Natal, a gente gosta, mas uma vez por ano e olhe lá!” Um dia telefonou a dizer que ia deixar a ilha, que voltava para Porto Alegre. Nunca mais tive notícias dela. Para a Mad, as pessoas são como o Natal. A vida é como o Natal. E não tem mal… se souber fazer bem.

9 Jul 2019

Fazer rir um poeta

[dropcap]E[/dropcap]m Setembro de 2011 conheci em Porto Alegre o poeta Pedro Gonzaga e o grande escritor Aldyr Garcia Schlee – falecido em Novembro passado, com 83 anos – através do editor e amigo Alfredo Aquino. Depois de um jantar, convidaram-me para estar presente num evento em Jaguarão, terra natal de Aldyr, que faz fronteira com o Uruguai. Tratava-se de um encontro de poetas de fronteira. Para além dos brasileiros do Rio Grande do Sul, iriam poetas do Uruguai e da Argentina, para falarem do que os unia e do que os separava.

Os dias passaram, regressei à chácara onde vivia, a 50 km a sudeste de Porto Alegre. Um dia antes do evento, Alfredo passou a buscar-me, juntamente com o Pedro, e partimos na direcção de Jaguarão. A distância não chega a 400 km. Grande parte da paisagem é esmagadora pelo horizonte quase infinito, a lembrar os planos de Dovzhenko no seu filme Terra: à nossa frente, uma fina sapatilha de terra e um céu esmagador. A diferença da paisagem gaúcha para os planos do realizador soviético está na cor: ao invés do preto e branco é o azul e branco. Um azul celeste e branco que nos lembra de imediato as cores do equipamento – uniforme, dizem os brasileiros – da selecção uruguaia. Andamos quilómetros em recta, sempre em direcção ao céu. Percebemos com o corpo, que isolamento está em todo o lado. O mundo está cheio de isolamento. Chegados a Jaguarão, e depois de deixarmos as coisas no hotel, atravessámos a pequena ponte da cidade para jantar em Rio Branco, no Uruguai, onde Aldyr nos esperava sentado à mesa. Contente por nos ver ali, tão longe da cidade grande.

No dia seguinte, Aldyr abriu o evento. Depois dos agradecimentos, do contentamento de ver na sua terra um evento que considerava muito importante e que se sentia também muito honrado por ser o seu patrono, começou a sua intervenção lendo o fragmento 21 de Novalis: “A filosofia é na verdade uma saudade da pátria, um impulso para se estar em toda a parte em casa.” Depois continuou: “A poesia é também uma saudade da pátria, mas não um impulso para se estar em toda a parte em casa. Não direi que a poesia inverte esta posição, mas ela é muito mais a iluminação do sentimento de se estar perdido onde quer que se esteja do que um impulso para se estar em toda a parte em casa. Para o poeta – aquele que habita temporariamente a poesia como o humano habita a Terra – todo o lugar é inóspito e nenhum esforço vai alterar isso, porque fora da linguagem estamos sempre fora de casa. O próprio poema é a expressão desse fora de casa permanente, dessa guerra que o poeta sente entre o mundo e a linguagem. A linguagem não conforta necessariamente, mas é o elemento do poeta, onde ele se sente o mais em casa que consegue, mesmo que nessa casa haja uma família inteira que não o compreenda. A própria linguagem não compreende o poema. A saudade da pátria, no poeta, é a falta que sente do que não há, que provavelmente nunca houve: um caminho de palavras até que tudo faça sentido. E esta saudade talvez seja a mesma de que fala Novalis. A diferença, parece-me, está em que o filósofo esforça-se por fazer sentido, por arranjar esse caminho perdido de palavras, enquanto o poeta sente – sem que o saiba dizer – que não há caminho. Contrariamente aos versos do poeta Antonio Machado: caminhante, não há caminho, desfaz-se caminho ao andar. O poeta escreve, não para saber ou para saber que não sabe, mas porque sente que o que sabe, muito ou pouco que seja, não o leva a lugar nenhum. O poema é um caminho desfeito em palavras. Um poema é umas férias que se acabam, uma vida que deixa de ser, um lembrar-se de não ter sido. No poema não há esforços ou impulsos, há feridas. O próprio poema poderia ser a voz surda do que não tem cura. E o romance, pelo menos eu quero acreditar que sim, é irmão do poema. O romance é um poema que ainda tem a ingenuidade de tentar explicar. Não quer fazer sentido! Isso não. É irmão do poema, sabe bem que a palavra desfaz-se em palavras e não conduz a nada, mas demora-se mais neste desfazer, como quem retarda um prazer.”

Aldyr deve ter dito mais alguma coisa de que não me lembro. Depois do evento, passeando pelas ruas antigas de Jaguarão, confessou-nos – ao Aquino, ao Pedro e a mim – que as palavras não foram o início do mundo. O início do mundo deve ter sido um tremer de frio de que tudo vai acabar. E todos sabemos disso, menos o Novo Testamento. O que disse no evento não tem importância nenhuma, é uma tarefa como sair de manhã para ir trabalhar. O que tem mesmo importância é o tempo que passei comigo a ler e a pensar, até dizer ou escrever o que ali disse. E também o tempo que passo com a minha mulher, com os meus filhos, com alguns amigos e com os meus cães. O que é tem mesmo importância? A poesia? Isso seria de fazer rir um poeta.

2 Jul 2019

O microfone e o mundo

[dropcap]B[/dropcap]elize tinha um desacerto com o mundo desde que nascera. Tinha 26 anos, mas já vivia há mais de dez fora da cidade e do estado onde nasceu, longe da família. Tinha tido algumas dezenas de empregos, uns apenas por um dia, e um igual número de relacionamentos amorosos. Não tinha paz em nenhum lugar nem com ninguém. Quando a conheci, trabalhava no salão de beleza de uma amiga durante o dia e à noite entregava-se à sua paixão: cantar. Crescera a ouvir blues e jazz e era isso que gostava de fazer. Para além dos barzinhos onde cantava, com este e aquele, que a acompanhavam com violão ou com piano, começara a cantar numa banda de músicas originais. Era rara a noite em que não chegava furiosa, a queixar-se disto ou daquilo, mas assim que se punha em frente do microfone, o mundo deixava de existir. Naquele momento era só ela e a banda. E só aí conseguíamos ver Belize sorrir. Talvez com mais precisão: era só ela e a música; os outros eram apenas um veículo para o que mais lhe importava.

Passados uns meses, a banda deu certo. Começaram a tocar em vários locais, chegando mesmo a aparecer em shows na TV. A banda começava a ter reconhecimento mediático e Belize parecia finalmente contente, de bem consigo e o mundo, mesmo longe do microfone. O mundo muda quando fazemos o que gostamos, até nós parecemos melhor do que somos e toleramos mais os outros. É preciso coragem, ou algum distúrbio, para, a despeito das mudanças de circunstâncias, permanecermos com a mesma imagem do mundo quando este nos facilita a vida.

Belize agora não se queixava do mundo e este queria saber dela. Choviam entrevistas, de revistas e jornais, de sites de Internet e de programas de TV. O mundo estava claramente a intrometer-se entre ela e o microfone, mas parecia não lhe causar transtornos. Chegava à sala de ensaios a sorrir, sem nada por que se queixar. Para os seus colegas de banda, apesar de ser mais fácil lidar com ela, estavam preocupados, pois Belize não parecia ser ela. Também eles estavam mais contentes que o usual, mas não mudaram tanto. Alguns continuam pontualmente a queixar-se do mundo, como antes faziam. Belize transformara-se por inteiro. Até o modo como se vestia reflectia essa mudança. Trocou as cores escuras de antes, dos jeans e das t-shirts, por vestidos luminosos. O cabelo também acompanhava a mudança. Quem não visse Belize há alguns meses e estivesse distraído do mundo, se a encontrasse na rua, não a reconhecia. Como reconhecer a tristeza, se vier vestida de alegria?

Com toda esta mudança, cheguei a perguntar-me se o microfone era mesmo o que ela queria da vida ou apenas um instrumento para conseguir o que realmente queria da vida: ser reconhecida e ter uma vida facilitada. Talvez a música, afinal, não fosse a sua paixão, mas tão somente uma aposta legítima e inteligente para ganhar facilidade na vida.

Apareceu um novo problema na sala de ensaios: não apareciam novas letras, que sempre ficaram a cargo de Belize. Os outros continuavam a compor, mas o reportório não avançava por causa da falta de letras e de voz. Belize não parecia interessada em novas músicas, mas em cantar as antigas. Aquilo que a impulsionava a compor era conseguir o que já tinha conseguido e, portanto, agora não fazia sentido continuar a compor. Evidentemente, isto não era vivido assim por ela, nem pensado nem sentido, sou eu agora a pensar retrospectivamente na Belize, embora tudo isto pudesse ser pensado, não fosse o que veio a acontecer em seguida.

Com a pressão de comporem novas canções e o aumento de popularidade da banda, Belize começou a desenvolver um organismo de desculpa lateral: “não consigo compor com toda esta atenção à minha volta”. No fundo, era uma vez mais a velha má disposição em relação ao mundo.

Desta vez não era direccionada às suas más decisões e às circunstâncias que daí advinham, mas em direcção ao exagero do mundo em relação a si. Em menos de nada, refugiou-se no álcool e nas drogas e escondeu aí o seu problema maior: ter de lidar consigo todos os dias.

Provavelmente, Belize nunca gostara de si e encontrara nas contrariedades do mundo uma desculpa em forma de refúgio para esse desencontro consigo mesma.

Seis meses depois, Belize foi internada numa clínica de recuperação, devido ao abuso de álcool e cocaína. Nunca mais foi a mesma. A banda, essa, arranjou outra vocalista e continuou. Anos mais tarde, encontrei Belize a trabalhar numa lanchonete, a dizer mal de tudo e de todos, a não conseguir apaziguar-se com o mundo e a cantar à noite em pequenos bares, onde, por detrás do microfone o mundo desaparecia.

18 Jun 2019

O que a tristeza inventa

[dropcap]R[/dropcap]afa tinha pouco mais de vinte anos e destacava-se na Rua Augusta, em São Paulo, pelo modo requintado e antigo como se vestia. Não parecia ser deste tempo. Conhecia-a no BH – padaria que fica na esquina das ruas Augusta e Luiz Coelho –, no momento em que interrompeu a leitura do seu livro para pedir mais uma cerveja ao empregado e, a mim, que estava na mesa ao lado, fogo. Passei-lhe o isqueiro e, ao dizer “nada”, depois do seu agradecimento, denunciei a minha portugalidade e despertei-lhe de imediato a curiosidade. Falou do pai, que era um português da Madeira, que veio para cá no início dos anos 70 por causa da guerra do ultramar. E perguntou muitas outras coisas, que têm a ver com a ideia que os brasileiros fazem de Portugal. O que mais temos, todos nós, são ideias sobre o que não sabemos, e Rafa apesar de antiga não era diferente.

Perguntei-lhe o que estava a ler. “Um livro de poemas de Paulo Leminsky. Você conhece?” Tinha conhecido recentemente. Falou-me do poeta e de Curitiba, cidade que eu nessa altura ainda não conhecia. Rafa queria ir à capital do Paraná, pois tinha a convicção de que aquela terra tinha de ter algo estranho, como se houvesse uma relação de causa e efeito entre a cidade e Leminsky, entre o que ele fora e o que escrevera. “Sei que a cidade não faz isso a todos, mas acredito que há alguma coisa naquela cidade que toca o íntimo do tornar-se Leminsky. E recitou o final do poema “Buscando o sentido”: “(…) Só buscar o sentido faz, realmente, sentido. / Tirando isso, não tem sentido.”

Não demorou muito mais nessa noite, mas disse-me que gostaria de voltar a falar comigo, que vinha ao BH todas as noites. Raramente dormia, tinha insónias terríveis. Por isso, passava muitas horas naquela padaria, que estava aberta toda a noite e onde podia estar sossegada ou falar com pessoas. “Em casa a insónia é uma insónia, aqui parece outra coisa. Já não é não conseguir dormir é estar a fazer o que não devia. E isso tem muito mais piada.” E saiu com um sorriso.

Dois ou três dias depois voltámos a encontrar-nos. Ao fim de algumas cervejas e conversas várias, perguntou-me se queria ir com ela uma semana para Curitiba, à descoberta do que naquela cidade tinha sido responsável por Leminsky ter sido Leminsky. Sorri-lhe, pensei um pouco e citei o poema “Não discuto”:

não discuto
com destino
o que pintar
eu assino

Ela sorriu também e pedimos mais uminha, a que se seguiu outrinha e outrinha até seguirmos para o seu apartamento. No dia seguinte, partiríamos.

Acabei por adormecer sem que Rafa sentisse sono. Quando acordei, já depois do meio-dia, Rafa estava na sala, vestida no seu modo usual. Sorriu, disse bom djia e perguntou se eu queria tomar o café da manhã. “Só café, por favor.” Esquentou-o, perguntou se punha açúcar, e serviu-me uma xícara. Ficámos um pouco em silêncio, que aproveitou para pôr música num aparelho qualquer.

Um velho samba de Adoniran Barbosa, “Saudosa Maloca”, de que tínhamos falado na noite passada, entre tantos sambas e músicas de jazz. Depois dos primeiros versos, escuta-se, naquele modo único de Adoniran usar a língua portuguesa: “(…) Mas um dia, nem quero me lembrá / Veio os homis c’as ferramentas / O dono mandô derrubá / Peguemos tudo as nossas coisas / E fumos pro meio da rua / Apreciar a demolição / Que tristeza que eu sentia / Cada táuba que caía Doía no coração (…)” Gosto muito deste samba, acabei por dizer. Quando viu que tinha terminado de beber perguntou-me: “vamos para Curitiba?” Respondi-lhe que não podia, que pensei que fosse uma brincadeira, que a noite tinha sido luminosa, mas não podia viajar. Sorriu e disse: “Fica tranquilo! Eu sabia que você não iria a Curitiba.” Antes de sair, disse-me que gostava muito de mim e que sentia muita dor pela minha tristeza. Fiquei um pouco atónito. E Rafa, qual sibila, remata: “A expressão maior da tristeza não é a vida não ser como queríamos, mas nós não sermos como gostaríamos de ser, ainda que não se saiba o que seria ser o que gostaríamos e pensemos que seja semelhante a estar com fome e não ter o que comer ou estar derramado numa cama de hospital com uma doença terminal e querer viver. Talvez tenha de viajar até sua terra para compreender essa tristeza.”

Nunca mais a vi. Hoje, sempre que penso nela, e se tudo aquilo foi mesmo real, vejo-me muitas vezes a pensar que a minha tristeza deve ter que ver com o lugar de onde vim e não de mim. Rafa lembra-me isso e um poema do Leminsky, “Incenso fosse música”:

isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além

O que nos leva além, caro poeta, é a tristeza. E não é preciso pensarmos em algo tão filosófico como um desconhecido “eu”, ou na estafada metáfora de Nietzsche do ir além de nós mesmos.

Pensemos em algo muito mais concreto: o que foi que fez os portugueses inventarem o Brasil? E o que foi que trouxe os imigrantes da Europa longínqua, da Polónia e da Itália, para povoarem este país? A alegria é que não foi, de certeza.

11 Jun 2019

O Lugar Certo

[dropcap]Q[/dropcap]uando me mudei para Florianópolis conheci uma mulher excêntrica, italiana, que vivia ali na ilha há alguns anos e falava muito bem português. Numa das vezes em que jantei em sua casa, tive a oportunidade de lhe perguntar a razão que a levou a deixar o seu país, mudar-se para a ilha e comprar aquela casa. Bianca perguntou-me se alguma vez tinha visto o filme de Frank Capra, Platinum Blonde (1931) [Loura Platinada]. Disse-lhe que não me lembrava de o ter visto, aliás o único filme que me lembrava de Capra era o It’s A Wonderful Life (1946), que em Portugal teve a tradução de Do Céu Cai Uma Estrela e no Brasil A Felicidade Não Se Compra.

Bianca resolveu então contar-me a parte do filme que lhe importava: “O filme conta a história de um jornalista pobre, Mr. Smith, que casa por amor com uma mulher de uma família muito rica e tradicional. Quase no final do filme há um diálogo entre o mordomo da casa e Mr. Smith. Este último pergunta ao outro o que é que ele faz quando não está a servir. Ao que o mordomo responde que passa o tempo. Passa o tempo como? Com as mãos. Faz um gesto e exemplifica: ajeita uma moldura, dá um toque num livro, toca num candeeiro, assopra-lhe, etc. Mr. Smith pergunta ao mordomo se qualquer um pode fazer isso, ao que ele responde peremptoriamente que não. Porquê, pergunta Mr. Smith? E o mordomo diz: há pessoas que passam o tempo naturalmente, mas há pessoas que nunca o vão conseguir fazer. Mr. Smith insiste e pergunta se há pessoas que nunca saberão como passar o tempo? O mordomo responde que sim. Mr. Smith diz que isso é uma tragédia. O mordomo concorda. Quando Mr. Smith pergunta acerca de si mesmo, se o mordomo acha que ele irá conseguir passar o tempo, se conseguir concentrar-se muito e puser toda a sua alma nessa tarefa, o mordomo sorri e responde que não, que Mr. Smith nunca conseguiria fazê-lo. Como Mr. Smith quer compreender a razão que o leva a dizer isso, o mordomo responde que para passar o tempo a mente tem de estar liberta, que uma pessoa com problemas nunca poderá passar o tempo. Por exemplo, diz, um peixe pode passar o tempo na água, mas não na terra, porque estaria fora do lugar. Uma águia pode passar o tempo sobrevoando as montanhas, mas não numa jaula, porque estaria inquieta e infeliz. E termina por dizer, que Mr. Smith é uma águia numa jaula. Nesse momento, percebi como se tudo ficasse claro e a vida fizesse sentido, que fora do nosso ambiente não se consegue passar o tempo. O tempo passa, fazemo-lo passar ou ele passa naturalmente por nós, se não há alteração no nosso dia-a-dia, se não temos problemas adicionais ou se o ambiente à nossa volta nos é familiar. Caso contrário, o tempo estanca. Este estancamento do tempo, este não passar, tem a ver com “sentir-se fora do lugar” ou “estar fora do lugar”. O tempo passa ou não passa quando alguém está no lugar certo ou, pelo menos, não está num lugar errado. Os seres humanos, a despeito da sua enorme capacidade de adaptação, pertencem a ambientes, tal como os animais. Há humanos que não pertencem ao campo, por exemplo, e sentir-se-iam muito mal a viver no campo. Outros, pelo contrário, sentir-se-iam muito mal a viver na cidade. Para estas pessoas, em lugares trocados, o tempo não passa. Este tempo a não passar quer dizer que o tempo se faz sentir pesado, cada minuto custa muito, como quem está numa fila de espera. Mas uma pessoa que pertença à cidade, se viver no campo vai sentir a sua vida como que numa fila de espera. Os seus dias são vividos como se estivesse numa fila de espera sem fim. Pois nunca irão chamar o seu nome ou o seu número, a despeito da longa espera. Só a morte o irá chamar. Quando vi esse filme, em Roma, na televisão em minha casa, percebi de imediato que não podia deixar o lugar onde vou viver a minha vida ao acaso ou ser displicente acerca disso. Fora do lugar onde devemos ser, o tempo não passa. E se o tempo não passa, a nossa pena neste planeta custa muito mais a suportar. Também é verdade, que podemos nunca encontrar o lugar certo, mas se o encontramos devemos lutar para permanecer nele. Já tinha estado em Floripa uma vez antes, e era a memória mais feliz de toda a minha vida. Lembro-me de quando cá estive, nessa altura, dizer para mim mesma que aqui seria feliz. Mas não fiz nada acerca disso, voltei para Roma e continuei fora do lugar. Depois dessa noite do filme, vendi tudo e mudei-me para cá. Não quis que a minha vida fosse a de um peixe fora de água. Talvez você esteja a pensar que o normal seria o meu lugar ser em Roma e não aqui. Mas o nosso lugar, de cada um, é um mistério que temos de resolver. Ou não. Eu tive a sorte de resolver o mistério do lugar onde o meu tempo passa.” Fiquei a olhar para ela, agradecido pela história, e sorri. Quando voltei para casa a pé, pelo campo, com o escuro do céu povoado de milhares de estrelas, junto com o meu cão, olhei bem para ele. Depois de ter esperado por mim várias horas, o Alf estava feliz como se tivesse encontrado o seu lugar certo para viver. Só que o lugar certo dele era eu, que nunca tive lugar certo.

4 Jun 2019

O bacalhau não existe

[dropcap]C[/dropcap]onheci a Camila em Sampa, no bairro dos Jardins, num jantar em casa de uma amiga comum. Começámos a conversar depois de um dos convivas, artista plástico, acabar de dizer que sem se fazer nada não se consegue fazer coisa nenhuma. Aquela estafada ladainha do ócio criativo. Camila disfarçou o sorriso e, ao reparar que me dei conta disso, pediu-me desculpa, sem que pudesse entender a razão. Devo ter ficado com ar de perplexidade, pois sentiu-se na obrigação de me explicar que se desculpara porque é de mau tom rir-se da humanidade próxima, ainda para mais num jantar com tantos amigos. Confesso que não tinha argumentos nem a favor nem contra. Camila era uma mulher nos seus trintas, magra e alta, descendente de libaneses, e disse-me que ganhava a vida a tratar pessoas. Quase a despropósito, acrescentou que, se achava de mau tom rir-se dos outros, a qualidade que mais apreciava num homem era a capacidade de rir de si mesmo. Brindei a isso! A conversa decorreu à volta do que eu estava a achar de São Paulo e do Brasil. Perguntei-lhe se conhecia o Líbano, ao que respondeu que não, mas tinha intenções de o fazer em breve. E continuamos a falar de viagens, passadas e futuras. As estafadas conversa de circunstância, como o ócio criativo.

Quando viu o gosto com que comia o ceviche que tinha sido servido, perguntou-me qual era o prato que melhor representava Portugal. Respondi que talvez fosse injusto destacar um prato, até porque onde a nossa culinária se expressa com mais originalidade é na doçaria. Mas Camila insistiu: “Por exemplo, quando pensamos no Peru pensamos em ceviche; em Espanha, na paella; qual o prato que as pessoas pensam quando pensam em Portugal?” Apesar de ser uma resposta manca, decidi-me pelo bacalhau, pois segundo consta temos mais de cem modos de confeccioná-lo. Camila permaneceu em silêncio. Resolvi improvisar e dizer-lhe que não deixava de ser curioso que o prato nacional fosse algo que não tínhamos no nosso próprio país. Fazer com que o nosso prato principal derivasse de uma espécie de peixe que íamos capturar a milhares de quilómetros de Portugal, dizia muito do povo que somos. Camila riu com gosto, tocou-me com familiaridade no braço e disse: “E você sabe que o bacalhau não existe, não sabe?” Fiquei atordoado e demorei um pouco a vir ao de cima: Como assim, não existe? Sorrindo, Camila explicou: “O bacalhau é um modo de preparar inúmeras espécies de peixes; não há um peixe que se chame bacalhau. Há várias espécies de peixes que se pescam, se preparam de igual modo e chegam à mesa com o nome de bacalhau. Na Amazónia também temos uma espécie com a qual se prepara bacalhau: o pirarucu.”

Poderia ter dito que só algumas dessas espécies são consideradas bacalhau, pelos portugueses, mas seria indiferente. Enquanto enchia de novo os nossos copos, oiço-a propor um brinde: “Aos portugueses, que fizeram do que não existe o seu prato principal!” Brindei com ela e acrescentei: é a nossa especialidade! Entre elas, a invenção de um país que não existia, o Brasil. Ao que Camila anuiu: “Sim, antes dos portugueses aqui chegarem, o que existia eram várias tribos espalhadas por um vasto território. Provavelmente sem os portugueses este vasto território iria tornar-se inúmeros países, como o que aconteceu no resto da América Latina.” Exactamente, Camila.

Quando os outros povos imigraram para cá, já os portugueses tinham inventado o que não existia. No fundo, o Brasil é uma espécie de bacalhau. Agora foi a vez dela rir e de eu fazer um brinde aos bacalhaus que não existem. Entre ela e eu, ficou tudo em águas de bacalhau, como se não existíssemos.

28 Mai 2019

Difícil de compreender

[dropcap]U[/dropcap]ma das coisas mais difíceis de compreender é o talento. Com apenas 13 anos de idade, e sem nunca ter tocado nenhum instrumento ou ter músicos na família – o pai não distinguia o som de uma guitarra do de um órgão –, em apenas um mês de contacto com uma guitarra eléctrica, Gastão (Gas) tocava vários standards da música rock. Ao fim de seis meses tocava numa banda com uma acuidade impressionante. Saltava o muro da casa dele para a minha e passava horas a tocar no estúdio. Em um ano tocava guitarra melhor do que eu hei-de tocar em várias vidas. Atentava em detalhes que escapam à maioria, distinguia sons num disco que poucos conseguiam. O pai não só não punha obstáculos, como ainda estimulava, comprando-lhe o melhor material possível, pois felizmente o dinheiro não era um problema naquela casa. Ao Gas só lhe interessava o rock, mais nada. Por vezes, aparecia-me em casa e tocava um tema de jazz que tinha ouvido na rádio ou visto num vídeo, ou ainda um samba no violão, mas era apenas uma forma de mostrar-me que podia tocar outros estilos musicais, se quisesse. E podia.

Fui vê-lo tocar apenas duas vezes num bar: o seu primeiro show, pois era um marco na sua vida e ele fazia questão que eu fosse assistir; e depois, passados dois anos de ter iniciado a sua relação com a guitarra, quando inaugurava a sua banda de originais. As músicas eram todas compostas em parceria com o vocalista. A melodia da voz e as letras eram do Maurício (o Mau) e os arranjos dele. Tinham ambos 15 anos, estudavam juntos no mesmo liceu e, aliado ao enorme talento que tinham, viam o futuro mais brilhante que a luz de um verão de Floripa. Quando sai de Florianópolis, faltava-lhe um ano para acabar o liceu. No final iria para Boston, estudar guitarra e composição em Berklee, seguindo os passos dos seus ídolos, a banda Dream Theater. E assim foi, soube-o depois. Há um ano vi no youtube um vídeo dele, onde tocava jazz com o guitarrista e compositor Matthew Stevens, que foi durante algum tempo o maestro de Christian Scott e de Esperanza Spalding. Fiquei surpreso, mas não tanto. Já vi muitos guitarristas, ao crescerem, mudarem do rock para o jazz.

Mas se o talento é uma das coisas mais difíceis de compreender, a razão porque acontece a uns e não a outros, e como se desenvolve de forma tão perfeita como uma flor a despontar, outra também muito difícil de compreender é o mau tempo que se abate sobre o humano, em forma de depressão e de más decisões. Na semana passada soube por um amigo comum que o Gas se tinha suicidado, com 24 anos acabados de fazer. Desde que o conheci nunca teve falta de dinheiro, nem de futuro, nem de amor. Provavelmente do que sempre teve falta foi dele mesmo, e a juventude e o rock de algum modo foram escondendo essa falta. O Mau, que continua a cantar, numa banda em Sampa, ao lamentar a morte do amigo publicamente, escreveu no mural do Facebook: Deus dá e Deus tira. Ou isso ou outra coisa qualquer, desde que seja incompreensível, como fazer um filho, escrever um livro, compor uma música… Gas viveu 12 anos, desde o dia em que pôs as mãos nas seis cordas da guitarra até ao dia em que as pôs na corda onde pendurou a vida.

23 Mai 2019

Troco um sonho pela realidade

[dropcap]C[/dropcap]onheci Renato no Rio, no quintal de um amigo comum, numa roda de samba. Renato tinha 23 anos, cursava engenharia informática e estava disposto a dar um ano da sua vida pela oportunidade de fazer parte da bateria da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, a famosa verde e rosa. “Engenharia é realidade, meu sonho é o samba!” E tocar tamborim na Mangueira, um Carnaval que fosse, fazia parte desse sonho. Trancou a matrícula na faculdade. Disse aos pais que carioca não nasceu pra paulista. E a mim, nessa noite, disse-me que “foi assim que Jamelão começou, a tocar tamborim na Mangueira”. Nessa altura, eu ainda não conhecia esse famoso sambista. Nascido e criado no Rio, Renato sabia tudo de samba. Sabia, tocava e cantava. Não havia explicação que me desse que não fosse musical. Eu falava de uma canção e ele imediatamente cantava. Se estivesse sem instrumento, era uma colher e um copo, ou uma caixa de fósforo, que serviam para acompanhar a sua voz. Para ele, o samba não era música, era religião, sentido de vida. “Pode-se viver sem quase tudo, mas não se pode viver sem samba.”

O samba de que me falava e cantava era o samba-canção. Gostava de Carnaval por causa da bateria, mas a paixão era aquele samba fora da estação: o Jamelão, o Cartola, o Nelson Cavaquinho, o Noel Rosa. “Se gosta de Chico, tem de ouvir Noel Rosa, cara! Muito do Chico vem do Noel.” De imediato pediu o violão e tocou “Conversa de Botequim”. Foi ali, naquele quintal, que ouvi pela primeira vez Noel Rosa. E, claro, sorri, não só pela beleza da música, da interpretação, mas porque me lembrei de imediato da música do Chico “Meu Caro amigo”. Uma noite, num botequim em Botafogo, fomos ver um grupo de moças a tocarem chorinho. A namorada do Renato, a Flávia, tocava flauta transversal. A meio do show, chamaram Renato para se juntar a elas. Tal como nos comentários à volta, o cara arrasou no cavaquinho. Tocou um brasileirinho pra nenhum Waldir Azevedo botar defeito. Não sabia que o chorinho era outra das suas paixões. Acabara de chegar no Rio e ainda julgava que samba e chorinho podiam ser parentes afastados. Saímos dali e fomos para a Praia Vermelha, junto ao Círculo Militar, para uma das rodas de samba mais famosas do Rio. Renato puxou-me pra junto dele, apontou para o negão que comandava a roda, e disse-me “aquele ali, com mais anos do que se podem contar, vive na Rocinha e tocou com Cartola”. Não tardou para Renato ser convidado a juntar-se a eles, no meio de todos aqueles veteranos do samba. Durante a noite iam chegando músicos, tocando junto e todo mundo dançando. A mulher do negão que tocou com Cartola, comandava uma venda de cachaça, caipirinhas, cerveja e pastéis. O mundo se acabava naquela praia, entre samba, bebida e o corpo a corpo. Saí mais algumas noites com eles, pela Lapa, Botafogo, Praia Vermelha. As noites eram música, cachaça e cerveja. Aprendi mais sobre samba nessas noites do que no resto da minha vida. Meses depois deixei o Rio. Os anos passaram por mim e as cidades também.

Poucos meses antes de voltar para Portugal, em Curitiba, encontrei Flávia num show de chorinho. Fui falar com ela, animado, emocionado. Não se lembrava de mim, até que falei no Renato. Aí, sim, lembrou-se das nossas noites no Rio. Perguntei por ele, pelo Renato. Disse-me que acabaram a relação logo depois. “O Renato? Soube que foi para os States trabalhar numa multi-nacional.” Eu sorri triste e escapou-se-me da boca a expressão da derrota máxima “tornou-se paulista”.

14 Mai 2019

O surfista

[dropcap]J[/dropcap]orginho, com 26 anos, deixou a sua terra natal, Rio Verde, no interior de Góias, para se instalar em Florianópolis, onde há muito sonhava viver. Nas férias e fins de semana, sempre que podia, viajava para outros estados que tivessem mar, para se entregar à sua verdadeira paixão: o surf. A profissão tinha estabilizado e podia dar-se ao luxo de agora viver onde quisesse, entregando as suas maquetas por email. Em Florianópolis tornou-se uma espécie de monge surfista. Comia com frugalidade, raramente bebia bebidas alcoólicas e deitava-se cedo.

Amigos, só os amigos da prancha, com quem trocava informações acerca dos horários das marés e das melhores ondas, de semana para semana. Vivia junto ao mar. Não raras vezes o via passar com o fato negro de borracha, descalço, com a sua prancha debaixo do braço. Se me via, acenava-me e vocalizava um “Olá, portuga!”, seguindo em passo apressado ou a correr na direcção do mar ou de casa. Vivia para o surf. Um dia perguntei-lhe se ele era bom a surfar, ao que me respondeu “nem bom, nem mau, o suficiente para me divertir”. Fazia surf como quem faz amor com quem ama. Que importa se se é bom ou mau, se ambos gostam? Para ele não era importante ser-se bom a surfar, mas sentir-se bem a fazê-lo.

Um dia, numa festa de surfistas, na praia, conheceu Janine, uma rapariga entusiasta do surf, que tinha vindo de Curitiba e estava ali a passar férias. A rapariga era muito bonita e gostava dele, ou pelo menos julgava que gostava, que para o efeito é o mesmo. E ele parecia corresponder a esse sentimento. Se prestássemos bem atenção, veríamos que os seus rostos se iluminavam quando estavam juntos. Nesse mês, Janine e Jorginho eram como o mar e a prancha. E se não estavam no mar, estavam em casa dele. Quando Janine teve de regressar a Curitiba pediu a Jorginho que fosse com ela, pois podia trabalhar onde quisesse e ficaria em sua casa sem quaisquer problemas.

Jorginho não pensou sequer duas vezes, disse que não. Peremptoriamente. E que nunca mais a queria ver, que nunca mais lhe escrevesse ou lhe telefonasse. A frieza dele espantou não só Janine, mas também os poucos amigos que tinha. Um desses amigos, Hugo, contou-me a razão que Jorginho um dia lhe deu para o seu comportamento: “longe do mar, longe do coração.”

7 Mai 2019