Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasMenina de tese [dropcap]M[/dropcap]arcia Becker publicou um romance em 2007 chamado «Menina de Tese», que traça um retrato simultaneamente irónico e real sobre a sociedade brasileira. Nascida na capital de São Paulo em 1977, Becker estudou filosofia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, no Campus Higienópolis, onde também fez o doutorado em Letras. «Menina de Tese» não foi o seu primeiro romance, mas foi aquele que a colocou no mapa das letras paulistas. O romance é relatado na primeira pessoa, Carol, uma paulista de 27 anos, que vivia com a avó num apartamento na Consolação, junto à Avenida Paulista, e ganhava a vida escrevendo teses de final de curso e de mestrado para quem não tem tempo ou competência para as escrever. O seu anúncio aparecia em várias faculdades e também nas redes sociais como alguém que podia ajudar a «organizar» ou a «dactilografar» a tese se alguém precisasse de uma mãozinha. Na primeira parte do romance, vemos uma Carol cheia de vida, alheada do mundo à sua volta, vivendo para «as suas teses» e para as idas nos barzinhos à noite na Rua Augusta, com amigos e amigas. Cultivava uma espécie de vida alternativa, como muitos dos jovens que vivem nessas baladas. Mas Carol gostava mesmo de escreve as teses. As que mais gostava de fazer era teses de literatura comparada. No fundo, como ela mesmo dizia para si mesma, pois para as amigas e amigos dizia que corrigia textos e dava explicações, era que escrevia continuamente livros que nunca seriam publicados. Era essa a sua profissão. Dos vários emails trocados entre Carol e os seus clientes que o autor nos dá a ler no livro, há um com uma aluna de uma cidade do interior do estado do Paraná, do Curso Superior de Pedagogia, que a tornaria habilitada para ensinar até ao 5º ano do Ensino Fundamental, que não só impressiona como muda a narrativa. Essa aluna envia a tese final já escrita, e pede-lhe que faça a bibliografia. Perante o espanto de Carol, que retorna o email expondo a sua incompreensão, pois o trabalho já está feito, a aluna escreve: «[…] eu não preciso do texto escrito, mas que leia o meu texto e depois faça a bibliografia, que escreva o nome de alguns livros que podem ter a ver com ele. Veja bem, eu trabalho e não tenho tempo de ler livros, o meu texto baseia-se nas aulas e nos manuais e não consigo identificar os livros que deveria ter lido para ter escrito o texto. […]» Depois de mais alguns emails para lá e para cá, a situação absurda era esta: a moça tinha feito um trabalho final sem ler nenhum livro, e precisava de uma lista de livros na bibliografia. Carol teria de ler as suas trinta e poucas páginas e pensar em ou identificar alguns autores e livros que poderiam estar na base do que a moça escrevera. Aquilo que mais causa transtorno não é o facto de a moça não ter lido livros e querer ser professora, mas num outro email responder que muitas pessoas pedem esse tipo de ajuda, que é normal, expondo uma situação triste e absurda que se passa no país. Triste porque, se quem quer ser professor não lê livros, imagine-se a maioria das outras pessoas. Absurdo porque não se entende como é que quem não lê pode estimular alguém a ler. Carol recusa-se a fazer esse trabalho e recebe um email de volta a fazer chantagem: ou faz o trabalho ou é denunciada à polícia, pelo tipo de trabalho que está fazendo. Depois desse email, Carol passa um dia transtornada, pensado no que fazer. Chega à conclusão de que, independentemente de a moça poder ou não fazer cumprir a ameaça, não valia a pena correr o risco. Faria o trabalho, do modo que conseguisse, e ainda receberia em troca e o problema acabava ali. Assim fez, assim recebeu e assim tudo acabou. E o seu negócio continuou como sempre. Mas depois do que lhe aconteceu, em vez de respirar de alívio e continuar a sua vida, Carol não consegue esquecer o assunto e passa a investigar a situação, obsessivamente, descobrindo um Brasil que desconhecia, o do interior. E o Brasil tem muito interior, a despeito de uma longa costa. E mesmo esta, muitas vezes, também tem características de interior. A consciência de tudo isto, deste mundo que desconhecia por completo, leva Carol a investigar cada vez mais acerca do mesmo. Chega a fazer viagens para o interior de São Paulo, para o interior de Minas Gerais, de Pernambuco, do Paraná, seguindo os trilhos deste fenómeno que conheceu através do insólito trabalho que fez sob chantagem. Aquilo que começou com uma chantagem, o que poderia ser um terrível transtorno, acabou por lhe mudar a vida. Estamos a mais de meio do livro. Até aqui, os pensamentos e a vida de Carol era a de quem vivia numa redoma alternativa. Sempre votou PT, não tinha dúvidas de que só a esquerda poderia conduzir o Brasil a futuro melhor, mas independentemente de estar certa ou errada – Becker nunca nos dá essa informação, não toma posição partidária – era uma consciência sem base real, sem base na realidade do país. A partir de agora, daquela encomenda absurda, começou a revolver o país e a sua consciência e depois da sua viagem do Paraná, decide entrar na política, decide que tem de ter uma posição mais activa, tem de ajudar a mudar o país. No momento em que Carol pretende entrar para o PT dá-se o escândalo do «mensalão», que estoura no início de Junho de 2005, quando o deputado Roberto Jefferson diz na Folha de São Paulo que o PT pagou a vários deputados trinta mil reais por mês para votar a legislação que queriam na Câmara dos Deputados. Mas não era só o PT que saia mal na fotografia. Havia deputados de mais dez partidos envolvidos, entre eles o PSDB e o PMDB. O escândalo, que com o tempo parece não ter mudado muito ou nada no Brasil, mudou muito em Carol. Entristeceu, deprimiu, deixou de sair e de investigar, desistiu da política. Passados meses, voltou ao seu trabalho de escrever teses, continuou a acreditar no PT, num projecto de esquerda para o país, mas nunca mais conseguiu ter vontade de ingressar na política. O livro fascina também pelo modo como nos mostra a vida nocturna de São Paulo, a esperança que todos aqueles jovens tinham no Brasil. E mesmo depois de um escândalo continuaram a ter, e a ver o país crescer. A frase final do livro, hoje, impressiona muito: «[Depois de uma noite na Rua Augusta com amigos] Carol regressava a casa cansada mas feliz. Consciente de que o país não precisaria dela para construir o seu futuro.”
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasUm outro planeta [dropcap]R[/dropcap]enato Campos é um jovem escritor brasileiro, do Ceará, apaixonado por Portugal. A sua paixão pelo país em geral e Lisboa em particular, junto com o seu preciosismo narrativo, fê-lo escrever o seu primeiro romance não só a partir da capital portuguesa, mas também numa linguagem mais «aportuguesada», em português europeu, e foi publicado em Fevereiro deste fúnebre 2020, com o título «Um Outro Planeta». Infelizmente, devido a este tempo de peste, o livro anda não foi distribuído. Pela fortuna da amizade chegou-me há dias um exemplar em mãos. O livro tem 167 páginas e conta-nos a história de um homem de sessenta anos, Duarte Marques, advogado de sucesso em São Paulo, que regressa à casa da família em Lisboa para o funeral da mãe. O pai morrera onze anos antes, num trágico acidente. Agora, Duarte e a irmã, mais nova que ele, tinham de tomar decisões em relação à casa. Rita aceitaria a sua decisão, não só pela prática profissional de Duarte, mas porque sempre confiara nele a vida toda, mesmo nas longas ausências de anos e anos sem se verem. Duarte decidiu ficar uma semana em Lisboa, na antiga casa onde nasceu e cresceu, para tomar algumas providências mais urgentes e ver que decisão tomar. No segundo dia, dá-se conta de que os textos que escrevera desde os 12 anos até à ida para a universidade, em Londres, ainda se encontravam nas mesmas gavetas onde os tinha deixado. Nunca mais se lembrara desses textos. À página 24, lê-se: «Desde cedo, em Londres, aprendeu a esquecer tudo. E o que primeiro esqueceu foi ele mesmo. Ao chegar a São Paulo, dois anos depois de terminado o curso em Londres, começou a criar um pequeno império imobiliário com esse crédito inicial de não ser quem era.» A mãe mantivera tudo intacto. Mantivera dentro das gavetas o Duarte que foi esquecido em Londres. Abre uma garrafa de vinho, lembrando de imediato os jantares em casa, com o pai, a mãe e os amigos deles. O livro a partir daqui começa a ter interrupções contínuas da sequência temporal e demoramo-nos em analepses. Nesta primeira, em que Duarte abre a garrafa, regressamos ao que Duarte pensa do vinho que acabara de provar somente ao fim de três páginas e meia. Um dos textos mais antigos que encontra, escrito quando tinha 12 anos, traz-lhe lembranças profundas, que julgava ter esquecido. Tratava-se de um poema que escreveu para «Artur, a minha primeira paixão, que estudava na mesma escola, em outra turma. Um ano mais velho, um ano mais alto e, segundo se dizia e o olhar fazia crer, um infinito de mais experiência.» Entre o vinho e as recordações de Artur, lemos finalmente os primeiros versos do poema que escreveu para o rapaz: «Eu aqui no meu mundo / tu aí no teu. / E eu desejando que o mundo não seja muito diferente do teu / ou, pelo menos, que não seja muito diferente. / Uma diferença de que tenho medo / como o pequeno pássaro que trazias na mão com o teu sorriso branco, desconhecido.» O discurso volta para o narrador, que escreve: «Lembrava agora aquela tarde longínqua, junto ao chafariz do liceu, em que lhe leu o poema. O sorriso de Artur, a mão dele sobre o seu rosto, o beijo na fronteira entre os lábios e a face, como se por indecisão e não por cálculo de incêndio, fê-lo arder no mundo pela primeira vez. Nunca mais o desconhecido o fez tremer assim. A lembrança desse momento há muito esquecido ou apenas adormecido, embora talvez ecoando em cada gesto e decisão da sua vida, fazia tremer o vinho, que nunca lhe soubera tão bem.» Na manhã seguinte, Duarte decide vender a casa. A sua localização, em frente ao jardim do Príncipe Real, a crescente expansão do turismo sobrevalorizando os imóveis e desconfiar de que o dinheiro pudesse talvez fazer falta à irmã, levara-o à decisão. Passa o dia fora, passeando pelas ruas de Lisboa, almoça numa esplanada junto ao Tejo, vê a beleza dos corpos ao sol do fim de Verão, lembra de novo Artur. Lê-se à página 100: «Nunca mais soube dele. Teria casado? Teria envelhecido de modo insuportável, de modo a ser punido pelo espelho, de cada vez que se aproximasse de si mesmo? Ou, ainda que envelhecida, marcada pelos anos, por desgostos da vida, mantinha de algum modo a sua beleza quase intacta?» À noite volta às gavetas. Lê um outro texto que escrevera aos 16 anos: «Ontem, quase a adormecer, cansado de tanto ter bebido, não escrevi uns versos que salvavam o mundo, deixando para o fazer hoje, quando escrevo que ontem não fui capaz de me levantar para escrever uns versos que salvavam o mundo.» E, nesse preciso momento, compreende – não como se compreende uma equação matemática, uma lei da geometria ou mais prosaicamente que já passámos a saída da auto-estrada onde devíamos ter saído, mas como quando descobrimos que acabámos de envelhecer –, que aquela casa é um outro planeta. E mais distante que Marte. A sua vida, desde que foi para a universidade, passou a ser outra. Escreve Campos, através do narrador, perto do final do livro, à página 147: «Dos anos da infância até ao mundo é outro planeta. E como foi possível não se ter lembrado disso até agora? Como foi possível ter esquecido Artur, aquele tremer original, igualando o desejo ao medo durante um abalo de terra?» Não posso contar o final do livro, não posso falar-vos do narrador, mas posso dizer que o primeiro romance de Renato Campos é um livro belo, escrito com uma sensibilidade que nos mostra o interior humano como uma pintura e sempre com um uso preciso das metáforas. Preciso no sentido em que, não só nos faz ver por dentro, mas nos faz acreditar que a palavra salva, mesmo sabendo que nada nos salva. Nem a habilidade de esquecermo-nos de nós próprios.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasDemis Roussos em livro [dropcap]A[/dropcap]dam Aagaard foi um escritor dinamarquês que morreu no ano passado com 77 anos. Nasceu e viveu quase toda a vida em Copenhaga. Escreveu fundamentalmente peças de teatro e apenas um romance, ainda sem tradução em Portugal, cujo título é Aldrig Verden (1991), que podemos traduzir por «Nunca O Mundo». Este romance que na altura foi muito criticado na Dinamarca e na Alemanha tem uma passagem que podemos considerar como a que melhor descreve o jovem protagonista e celibatário, que é também o narrador: «Depois de ter lido os romances de Thomas Bernhard deixei de conseguir ler os de outros autores, por me parecerem todos uma espécie de Demis Roussos em livro.» A acção passa-se na Copenhaga de finais dos anos 80, poucos anos depois da edição de Extinção de Bernhard, e o narrador vive sozinho num pequeno apartamento, de onde quase nunca sai, evitando ao máximo o contacto com as pessoas – «Os outros não são o Inferno, mas lembram-nos que ele existe» – tentando escrever uma tese de doutoramento sobre o filme de Carl Theodor Dreyer, A Palavra. Curiosamente, ou talvez não, porque a vida é profícua em grandes desajustes, Aagaard era protestante, assim como o seu protagonista. «Nunca O Mundo» é o título da tese do jovem Erik. Todos viram o filme de Dreyer, não precisamos de lembrar aqui, apenas dizer que o jovem vê o filme do seu compatriota como uma tentativa de fazer reset ao mundo. Escreve: «Só a vivência da fé no seu limite pode salvar o mundo.» E este salvar o mundo era evidentemente uma espécie de começar de novo, como se até aqui estivéssemos errados, o mundo estivesse errado. «Nunca O Mundo», então, encontra um evidente eco nas palavras de Jesus no Evangelho de São João «O meu reino não é deste mundo». A esta altura, já nos perguntamos como é que Bernhard faz sentido, não só no livro, mas nesta personagem. Leia, então, esta passagem que nos elucida o modo como Erik conecta o que nos parece inconectável: «Temos de conseguir odiar o mundo como nos romances de Bernhard. Só assim será possível dar o passo seguinte, em que nos libertaremos desta vida sem sentido.» Estamos perante um romance de trincheira. Um romance que tem como objectivo, não o entretenimento, não o conhecimento ou a reflexão, mas um projecto político, uma Weltanchauung, uma visão do mundo. No fundo, embora em pele de romance, o livro era um manifesto. A páginas tantas, lê-se: «Deve-se escrever apenas para destruir ou para construir o mundo. O resto é conversa de café, e lá deveria ficar.» À medida que o romance vai avançando, e com ele a tese de Erik, vamos entendendo melhor como ela se liga aos romances de Bernhard e estes ao filme de Dreyer. Ao longo de todo o romance, como um fantasma, vai surgindo a figura de Kieerkegaard, outro dos heróis do jovem protagonista-narrador. Semanalmente, Erik escreve uma carta a Kierkegaard, contando o desastre em que vai o mundo, que não melhorou nada desde a morte do amigo, pelo contrário vai muito pior. Leia-se um excerto de uma das cartas: «Meu querido amigo, como encontrar palavras para descrever este mundo em que vivemos? Desistimos de escrever. O que hoje se faz passar por escrita é pior que os jornais que você lia há mais de cem anos nesta cidade. A fé, essa, é um negócio. Maior ainda do que acontecia no catolicismo ao tempo das bulas papais. […] A filosofia está entregue aos números, às estatísticas, às análises de linguagem. Alegra-me tanto saber que você não está a ver isto! […]» Não posso contar aqui o final do livro, pois é muito surpreendente, mas devo dizer que até ao final o leitor vai sendo sempre surpreendido, ao ponto de tanto nos identificarmos com Erik como de termos vontade de abandonar o livro, do mesmo modo que ele abandonou o mundo. Como escreveu a também escritora dinamarquesa Karen Madsen a propósito deste romance: «Um livro quase sempre incompreendido, muitas vezes treslido, e raramente confrontado com os seus verdadeiros fantasmas: o de uma sociedade dinamarquesa enclausurada entre a fé e o esquecimento, entre os seus heróis radicais e um povo que os esquece.» De brinde, julgo eu, temos ainda análises certeiras ao sentido do romance em Thomas Bernhard. Deixo aqui apenas um excerto: «A escrita de Bernhard é profundamente ética. Nos nossos dias, entre o colapso da fé e multiplicação da corrupção é um dever odiar o mundo.» A verdade é que, ainda que não sejamos dinamarqueses, ainda que não sejamos crentes, sentimos a angústia e o desespero de Erik como nossos. Para nós aqui e agora, mais do que «nunca o mundo», mas que não difere do ponto de vista de Erik durante o romance, é «para quando o mundo?”
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA vida tem destas coisas [dropcap]«A[/dropcap] vida tem destas coisas» é a frase com que a turca Ülker Uçum começa o seu romance «A Queda de Istambul». Esta indeterminação com que a vida é acusada, logo na primeira frase, rapidamente se desvanece para dar lugar à realidade política da perda de direitos por parte dos cidadãos em geral e das mulheres em particular. À segunda página do livro aquela frase dá lugar ao discurso do presidente da Turquia, Erdoğan, dirigindo-se a uma multidão: «Uma mulher pode ter muito sucesso no seu trabalho, mas se não for mãe não realiza a sua essência.» A vida tem destas coisas é, no fundo, o futuro a abrir clareiras que nunca pensámos existir, clareiras que são prisões, mutilações. A vida pode voltar para trás, podemos perder direitos que tínhamos conseguido, a vida tem destas coisas. E o mundo hoje em dia, um pouco por todo o lado, tem destas coisas. Infelizmente, Istambul é mais do que uma cidade e a Turquia mais do que um país, são metáforas do mundo que está a voltar para trás. A vida tem destas coisas. Estamos diante de um romance político, evidentemente, que nos mostra a decisão de Lale, em deixar a Turquia, depois desse discurso do Presidente. Lale é cardiologista no Hospital Americano, em Istambul, e decide mudar-se para o Canadá, pela vida da sua filha, Esra, que acabara de fazer 13 anos. Não queria que ela crescesse num país onde a mulher não tinha direitos iguais. No romance torna-se claro, que esse discurso do Presidente foi a gota de água que levou à decisão. Ao longo de muitas páginas – o romance tem 324 –, damo-nos conta da mudança da cidade de Istambul, e com ela o país, em constantes e eficazes analepses. Num dos diálogos com a amiga Perizad, outra das personagens fortes do livro, Lale diz: «Se quando for mulher, a minha filha não puder vestir-se ou agir como quiser, nunca será livre. Poderia arriscar a minha vida, Peri, mas não posso arriscar a da minha filha.» Esta amiga de Lale, Perizad, que não abandona o país, apesar de estar contra tudo o que se passa, vai entristecendo ao longo do livro. Se Lale luta para salvar a sua filha das garras de um fundamentalismo religioso que se vai instalando na Turquia, a sua amiga luta para não morrer de tristeza, para não perder a esperança de que a Turquia volte um dia a ser uma república. A tristeza de Perizad não é apenas individual, é a tristeza de um país a acabar. Não tem filhos nem marido e filma documentários sobre as pessoas de Istambul. Tenta preservar em imagens uma Istambul republicana, a Turquia de Ataturk. São memoráveis as páginas em que descreve um encontro de velhos poetas numa taberna de Beyoğlu, comendo mezês e bebendo Raki, como símbolo de uma Turquia que Perizad tenta preservar e que hoje se está a perder para a religião com a mesma velocidade com que Lisboa se perde para um cosmopolitismo para o qual a cidade não tem tamanho. Perizad lembra-nos Xerazade e leva-nos a «As Mil e Uma Noites». O paralelismo é estabelecido. Os seus pequenos documentários de «A Queda de Istambul» é uma espécie de adiamento da morte da cidade, tal como as estórias da primeira Perizad da história da literatura. Há uma passagem do livro que se tornou macabro, pela premonição do que aconteceria à própria escritora, Ülker Uçum, depois do romance ser editado. Lale, de mão dada com a filha, Esra, quando esta ainda tem 6 anos, vê a polícia prender uma mulher na rua, perante gritos e tentativas de impedimento por parte de algumas pessoas, e começa a chorar. A filha pergunta por que está a mãe a chorar e abraça-a com força, dizendo que não deixa que ninguém a leve. A polícia acabava de prender uma escritora, por causa de um artigo escrito contra o regime, no Cumhurriet. Aconteceria o mesmo com Ülker Uçum, que ainda se encontra detida por subversão, assim como vários outros escritores e jornalistas. Talvez «A Queda de Istambul» não tenha a dimensão reflexiva do grande romance de Ülker Uçum, «A Vida de Orhan Veli» (1999), que partindo da biografia do grande poeta turco (1914-1950) – que morre aos 35 anos, ao cair bêbado num buraco, no regressa a casa depois de uma longa noite de Raki – traça uma reflexão acerca da arte em geral e da poesia em particular, mas é um livro que nos mostra com muita clareza situação política da nova Turquia, através de uma escrita que recupera a diversidade de Istambul antes do regime de Erdoğan. Numa entrevista dada ao Cumhurriet, ainda antes da publicação de «A Queda de Istambul», Uçum dizia que não seria possível escrever «A Vida de Orhan Veli» hoje. A Turquia exige acção e não reflexão, mesmo na escrita, e isso é visível neste romance. Mesmo quem nunca tenha vivido em Istambul percebe a diferença entre a cidade antes e a cidade depois das medidas de Erdoğan. Ao ler-se o romance, em Portugal, é-se tentado a comparar com a diferença entre a Lisboa – ou do Porto – de antes e de agora, mas o turismo não é um regime religioso, não nos impõe comportamentos, não destrói por decreto os sonhos de metade dos cidadãos. O romance não se limita, contudo, ao tom político e à clave de melancolia. À página 146, Perizad diz à amiga: «Pudéssemos ser novamente o queríamos ser e não perderia o tempo que perdi. Nunca se sabe quando vamos deixar de poder ver ou ler o que queremos. Estamos presas num país enorme e lindo.» Podemos estender este «nunca se sabe» para além dos condicionalismos políticos. Nunca se sabe nada. Caminhamos às apalpadelas por entre o nevoeiro, tentando não nos acidentarmos. Como uma pequena embarcação em alto mar, a existência está sempre em tempo de naufragar. Aquelas mulheres, tornaram-se prisioneiras no próprio país aos 40 anos, sentindo com isso que também estavam presas na própria vida, com dificuldade em começar de novo e impotentes para corrigir o que se tornou errado no mundo. Em verdade, não é preciso um regime político autoritário para que uma mulher ou um homem se sintam assim aos 40 anos, seja em que parte do mundo for, mas por imposição política talvez seja pior, pois a existência acontece em todo o lado e, felizmente, regimes autoritários ainda não despontam em todo o lado. Para mal daquelas mulheres, a vida tem destas coisas.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e Ideias“Antes da Morte e depois da Vida” [dropcap]A[/dropcap] pequena peça de teatro em um acto, «Antes da Morte e Depois da Vida», tem uma história trágica para além do próprio tema tratado. Meses depois de publicada, a sua autora, Klasina Bakker suicidava-se em sua casa aos 37 anos. Na altura, 2002, o assunto veio para os jornais interligando-se com a sua peça, que retratava precisamente a história de um homem, Jan Meijer, que ia ao médico para que este o ajudasse a morrer. Mas há uma contextualização que é necessário fazer. Em meados de 2002, a Holanda legalizava a eutanásia e descriminalizava o suicídio assistido. Havia, contudo, uma série de condições: era preciso que a doença diagnosticada fosse incurável e que o paciente estivesse a sofrer de uma dor insustentável, sem perspectiva de melhoras. O paciente devia fazer o seu pedido de auxílio para morrer estando totalmente consciente e manter a vontade ao longo de um tempo determinado. Dias depois do lançamento do livro, Bakker disse numa entrevista que foi isso que a levou a escrever o livro. Aliás, era por demais evidente. Já não era tão evidente Jan Meijer ser uma espécie de alter-ego dela. Jan Meijer na sua consulta diz ao médico: «Gostava que me ajudasse a morrer em paz. Sei que há comprimidos que se podem tomar e acabar de vez com isto, sem dor, como se nos deitássemos para dormir.» Ao médico não lhe escapa a expressão «acabar de vez com isto», ao que Jan esclarece que o «isto» é a vida. O médico fica atónito com a resposta e o comportamento de Jan. Há uma pequena passagem logo no início que é preciso ler: «DOUTOR: Diga-me uma coisa. Desde quando começou a ter esta ideia de… JAN: Querer morrer? DOUTOR: Sim. Desde quando essa ideia o persegue? JAN: Bem, tanto quanto me lembro, há bastante tempo. Mas, assim, com um carácter mais decisivo, mais planificado, desde há dois anos a esta parte. Mais ou menos. Quando as dores começaram a tornar-se insuportáveis. DOUTOR: Nunca lhe ocorreu fazê-lo por sua própria iniciativa? Sei lá, tomar comprimidos, um tiro na cabeça, cortar os pulsos, atirar-se de um prédio abaixo? JAN: Claro que não, doutor. E é precisamente por isso que estou aqui. É que não me quero matar. Quero morrer apenas, não me quero matar. Quero morrer, porque a minha doença não me deixa viver dignamente. Por isso é que pretendo o tal comprimido. Soube que já o utilizam nos hospitais. DOUTOR: Sim, é certo. Mas só é utilizado em doentes terminais e quando se torna evidente qualquer impossibilidade de inverter a situação. Ninguém dá comprimidos apenas porque alguém decide que não gosta da vida. JAN: Peço desculpa, doutor. Não gostar da vida não foi decisão minha. A decisão que me cabe é apenas pôr-lhe fim. Nada mais do que isso. Não gostar da vida é algo que tenho. É uma doença. E que muito me faz sofrer, garanto-lhe. (o doutor levanta-se e dirige-se a uma das prateleiras) DOUTOR: O que é que o leva a crer que seja uma doença? JAN: Porque, pelo que me é dado a ver, não é natural. De modo geral, as pessoas gostam de viver ou, se não gostam, tentam pelo menos não pensar nisso e vivem como podem. Com maior ou menor gosto pela vida. Não é assim, doutor?» Surgem aqui dois pontos importantes ao longo de toda a peça: a diferença entre morrer e matar-se, e a consciência clara de que não gostar de viver é uma doença (não é uma decisão). Jan quer morrer devido à doença terminal «não gostar de viver», mas não se quer matar. Depois de várias perguntas acerca do seu histórico clínico, se tinha tido doenças mentais, etc., o médico adianta que está nas mãos de Jan provar que realmente tem uma doença terminal e que as dores são insustentáveis. Grande parte da peça desenvolve-se nesta tensão contínua entre o cepticismo do médico e a argumentação quase angustiante de Ian. Mas há um momento em que tudo muda. Quando o médico julga estar diante de um caso único, um caso de estudo e poder tirar partido disso. «DOUTOR: «O único problema filosófico é o suicídio. (…)». Conhece o autor? IAN: E o que é que isso tem a ver para a nossa conversa, doutor? Já lhe disse que não me quero suicidar. DOUTOR: Precisamente por isso! Você não quer viver, mas também não se quer matar. É um problema novo, homem. Compreende o que lhe quero dizer? IAN: Não estou bem certo disso. Mas também é coisa que não me interessa. Já lhe tinha dito anteriormente que não me interesso por filosofias.» Independentemente da qualidade da peça, que hoje me parece bastante datada, teve a qualidade de trazer para o debate público a relatividade da vida. O valor da vida não é absoluto e Klasina Bakker mostrou-nos isso com o seu suicídio. A sua morte é indissociável da peça de teatro que escreveu. Não é por acaso que Jan tem precisamente a idade dela. A vida pode ser insuportável, por que então vivê-la? Se tudo é relativo, se não há verdade absoluta, porque teimamos em fazer da vida o último bastião da verdade, o último bastião do absoluto. Continuar a viver não tem maior valor do que decidir morrer. No passado 12 de Março fez 17 anos que Klasina Bakker se suicidou. No próximo ano a sua morte atinge a maioridade.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e Ideias"Antes da Morte e depois da Vida" [dropcap]A[/dropcap] pequena peça de teatro em um acto, «Antes da Morte e Depois da Vida», tem uma história trágica para além do próprio tema tratado. Meses depois de publicada, a sua autora, Klasina Bakker suicidava-se em sua casa aos 37 anos. Na altura, 2002, o assunto veio para os jornais interligando-se com a sua peça, que retratava precisamente a história de um homem, Jan Meijer, que ia ao médico para que este o ajudasse a morrer. Mas há uma contextualização que é necessário fazer. Em meados de 2002, a Holanda legalizava a eutanásia e descriminalizava o suicídio assistido. Havia, contudo, uma série de condições: era preciso que a doença diagnosticada fosse incurável e que o paciente estivesse a sofrer de uma dor insustentável, sem perspectiva de melhoras. O paciente devia fazer o seu pedido de auxílio para morrer estando totalmente consciente e manter a vontade ao longo de um tempo determinado. Dias depois do lançamento do livro, Bakker disse numa entrevista que foi isso que a levou a escrever o livro. Aliás, era por demais evidente. Já não era tão evidente Jan Meijer ser uma espécie de alter-ego dela. Jan Meijer na sua consulta diz ao médico: «Gostava que me ajudasse a morrer em paz. Sei que há comprimidos que se podem tomar e acabar de vez com isto, sem dor, como se nos deitássemos para dormir.» Ao médico não lhe escapa a expressão «acabar de vez com isto», ao que Jan esclarece que o «isto» é a vida. O médico fica atónito com a resposta e o comportamento de Jan. Há uma pequena passagem logo no início que é preciso ler: «DOUTOR: Diga-me uma coisa. Desde quando começou a ter esta ideia de… JAN: Querer morrer? DOUTOR: Sim. Desde quando essa ideia o persegue? JAN: Bem, tanto quanto me lembro, há bastante tempo. Mas, assim, com um carácter mais decisivo, mais planificado, desde há dois anos a esta parte. Mais ou menos. Quando as dores começaram a tornar-se insuportáveis. DOUTOR: Nunca lhe ocorreu fazê-lo por sua própria iniciativa? Sei lá, tomar comprimidos, um tiro na cabeça, cortar os pulsos, atirar-se de um prédio abaixo? JAN: Claro que não, doutor. E é precisamente por isso que estou aqui. É que não me quero matar. Quero morrer apenas, não me quero matar. Quero morrer, porque a minha doença não me deixa viver dignamente. Por isso é que pretendo o tal comprimido. Soube que já o utilizam nos hospitais. DOUTOR: Sim, é certo. Mas só é utilizado em doentes terminais e quando se torna evidente qualquer impossibilidade de inverter a situação. Ninguém dá comprimidos apenas porque alguém decide que não gosta da vida. JAN: Peço desculpa, doutor. Não gostar da vida não foi decisão minha. A decisão que me cabe é apenas pôr-lhe fim. Nada mais do que isso. Não gostar da vida é algo que tenho. É uma doença. E que muito me faz sofrer, garanto-lhe. (o doutor levanta-se e dirige-se a uma das prateleiras) DOUTOR: O que é que o leva a crer que seja uma doença? JAN: Porque, pelo que me é dado a ver, não é natural. De modo geral, as pessoas gostam de viver ou, se não gostam, tentam pelo menos não pensar nisso e vivem como podem. Com maior ou menor gosto pela vida. Não é assim, doutor?» Surgem aqui dois pontos importantes ao longo de toda a peça: a diferença entre morrer e matar-se, e a consciência clara de que não gostar de viver é uma doença (não é uma decisão). Jan quer morrer devido à doença terminal «não gostar de viver», mas não se quer matar. Depois de várias perguntas acerca do seu histórico clínico, se tinha tido doenças mentais, etc., o médico adianta que está nas mãos de Jan provar que realmente tem uma doença terminal e que as dores são insustentáveis. Grande parte da peça desenvolve-se nesta tensão contínua entre o cepticismo do médico e a argumentação quase angustiante de Ian. Mas há um momento em que tudo muda. Quando o médico julga estar diante de um caso único, um caso de estudo e poder tirar partido disso. «DOUTOR: «O único problema filosófico é o suicídio. (…)». Conhece o autor? IAN: E o que é que isso tem a ver para a nossa conversa, doutor? Já lhe disse que não me quero suicidar. DOUTOR: Precisamente por isso! Você não quer viver, mas também não se quer matar. É um problema novo, homem. Compreende o que lhe quero dizer? IAN: Não estou bem certo disso. Mas também é coisa que não me interessa. Já lhe tinha dito anteriormente que não me interesso por filosofias.» Independentemente da qualidade da peça, que hoje me parece bastante datada, teve a qualidade de trazer para o debate público a relatividade da vida. O valor da vida não é absoluto e Klasina Bakker mostrou-nos isso com o seu suicídio. A sua morte é indissociável da peça de teatro que escreveu. Não é por acaso que Jan tem precisamente a idade dela. A vida pode ser insuportável, por que então vivê-la? Se tudo é relativo, se não há verdade absoluta, porque teimamos em fazer da vida o último bastião da verdade, o último bastião do absoluto. Continuar a viver não tem maior valor do que decidir morrer. No passado 12 de Março fez 17 anos que Klasina Bakker se suicidou. No próximo ano a sua morte atinge a maioridade.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e Ideias"Antes da Morte e depois da Vida" [dropcap]A[/dropcap] pequena peça de teatro em um acto, «Antes da Morte e Depois da Vida», tem uma história trágica para além do próprio tema tratado. Meses depois de publicada, a sua autora, Klasina Bakker suicidava-se em sua casa aos 37 anos. Na altura, 2002, o assunto veio para os jornais interligando-se com a sua peça, que retratava precisamente a história de um homem, Jan Meijer, que ia ao médico para que este o ajudasse a morrer. Mas há uma contextualização que é necessário fazer. Em meados de 2002, a Holanda legalizava a eutanásia e descriminalizava o suicídio assistido. Havia, contudo, uma série de condições: era preciso que a doença diagnosticada fosse incurável e que o paciente estivesse a sofrer de uma dor insustentável, sem perspectiva de melhoras. O paciente devia fazer o seu pedido de auxílio para morrer estando totalmente consciente e manter a vontade ao longo de um tempo determinado. Dias depois do lançamento do livro, Bakker disse numa entrevista que foi isso que a levou a escrever o livro. Aliás, era por demais evidente. Já não era tão evidente Jan Meijer ser uma espécie de alter-ego dela. Jan Meijer na sua consulta diz ao médico: «Gostava que me ajudasse a morrer em paz. Sei que há comprimidos que se podem tomar e acabar de vez com isto, sem dor, como se nos deitássemos para dormir.» Ao médico não lhe escapa a expressão «acabar de vez com isto», ao que Jan esclarece que o «isto» é a vida. O médico fica atónito com a resposta e o comportamento de Jan. Há uma pequena passagem logo no início que é preciso ler: «DOUTOR: Diga-me uma coisa. Desde quando começou a ter esta ideia de… JAN: Querer morrer? DOUTOR: Sim. Desde quando essa ideia o persegue? JAN: Bem, tanto quanto me lembro, há bastante tempo. Mas, assim, com um carácter mais decisivo, mais planificado, desde há dois anos a esta parte. Mais ou menos. Quando as dores começaram a tornar-se insuportáveis. DOUTOR: Nunca lhe ocorreu fazê-lo por sua própria iniciativa? Sei lá, tomar comprimidos, um tiro na cabeça, cortar os pulsos, atirar-se de um prédio abaixo? JAN: Claro que não, doutor. E é precisamente por isso que estou aqui. É que não me quero matar. Quero morrer apenas, não me quero matar. Quero morrer, porque a minha doença não me deixa viver dignamente. Por isso é que pretendo o tal comprimido. Soube que já o utilizam nos hospitais. DOUTOR: Sim, é certo. Mas só é utilizado em doentes terminais e quando se torna evidente qualquer impossibilidade de inverter a situação. Ninguém dá comprimidos apenas porque alguém decide que não gosta da vida. JAN: Peço desculpa, doutor. Não gostar da vida não foi decisão minha. A decisão que me cabe é apenas pôr-lhe fim. Nada mais do que isso. Não gostar da vida é algo que tenho. É uma doença. E que muito me faz sofrer, garanto-lhe. (o doutor levanta-se e dirige-se a uma das prateleiras) DOUTOR: O que é que o leva a crer que seja uma doença? JAN: Porque, pelo que me é dado a ver, não é natural. De modo geral, as pessoas gostam de viver ou, se não gostam, tentam pelo menos não pensar nisso e vivem como podem. Com maior ou menor gosto pela vida. Não é assim, doutor?» Surgem aqui dois pontos importantes ao longo de toda a peça: a diferença entre morrer e matar-se, e a consciência clara de que não gostar de viver é uma doença (não é uma decisão). Jan quer morrer devido à doença terminal «não gostar de viver», mas não se quer matar. Depois de várias perguntas acerca do seu histórico clínico, se tinha tido doenças mentais, etc., o médico adianta que está nas mãos de Jan provar que realmente tem uma doença terminal e que as dores são insustentáveis. Grande parte da peça desenvolve-se nesta tensão contínua entre o cepticismo do médico e a argumentação quase angustiante de Ian. Mas há um momento em que tudo muda. Quando o médico julga estar diante de um caso único, um caso de estudo e poder tirar partido disso. «DOUTOR: «O único problema filosófico é o suicídio. (…)». Conhece o autor? IAN: E o que é que isso tem a ver para a nossa conversa, doutor? Já lhe disse que não me quero suicidar. DOUTOR: Precisamente por isso! Você não quer viver, mas também não se quer matar. É um problema novo, homem. Compreende o que lhe quero dizer? IAN: Não estou bem certo disso. Mas também é coisa que não me interessa. Já lhe tinha dito anteriormente que não me interesso por filosofias.» Independentemente da qualidade da peça, que hoje me parece bastante datada, teve a qualidade de trazer para o debate público a relatividade da vida. O valor da vida não é absoluto e Klasina Bakker mostrou-nos isso com o seu suicídio. A sua morte é indissociável da peça de teatro que escreveu. Não é por acaso que Jan tem precisamente a idade dela. A vida pode ser insuportável, por que então vivê-la? Se tudo é relativo, se não há verdade absoluta, porque teimamos em fazer da vida o último bastião da verdade, o último bastião do absoluto. Continuar a viver não tem maior valor do que decidir morrer. No passado 12 de Março fez 17 anos que Klasina Bakker se suicidou. No próximo ano a sua morte atinge a maioridade.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasPaisagem com vedação [dropcap]O[/dropcap] romance da alemã Christine Steinbrenner, «A Narradora» (1977), que tem a acção algures na Baviera de finais do século XIX, na casa de uma abastada família de agricultores, começa assim: «Quando os antepassados de Ulrike circunscreveram os seus terrenos com vedações, o medo da diferença assolava os campos.» É o início da história de Ulrike Rohm, uma menina que no início do romance tem 10 anos e que personifica a história do crescimento do nazismo na Alemanha. Steinbrenner leva-nos a ver o nacional-socialismo não apenas como uma consequência social e política, mas principalmente familiar. E família, aqui, é sempre visto como um ajustar os filhos às nossas convicções, às convicções dos educadores. Escreve, através da narradora – e a esta voltaremos mais tarde –, o que se passava na cabeça da mãe: «Ulrike era um prolongamento da família, por isso era necessário estar sempre a ajustar os seus comportamentos, como os vestidos à medida que ela crescia.» O nacional-socialismo é uma paisagem que se torna visível página a página, logo desde o início em que a narradora conta: «Esta família era como muitas famílias na Baviera, onde aparecia um novo modo de pensar o mundo, uma nova Alemanha, sobre os antigos alicerces dos preconceitos.» O pai de Ulrike, Heinrich, que parece estar em todo o lado sem nunca aparecer corporeamente, é uma espécie de sombra, de crença: «O seu pai não vai gostar nada de ver o seu cabelo desarranjado, Ulrike!» Ou quando a filha irrompe pela sala da casa a queixar-se que o pai tinha sido mau para ela, e a mãe lhe responde: «Não fique triste, filha, seu pai ralhou-lhe por amor. Ele não gosta de a ver a brincar com o filho do caseiro. A menina tem de aprender que as pessoas não são todas iguais. Lembra-se de quando caiu do cavalo e o pai lhe disse que tinha de voltar a montar, para não ter medo, e a menina julgou que ele estava a ser mau? Aqui é o mesmo, filha! Seu pai está apenas a ensinar-lhe como é a vida.» Aquilo que o leitor vai sentindo é que poderíamos fazer de nós outras pessoas, podíamos educar-nos para a aceitação da diferença e não para a negação da mesma. E talvez o momento mais caricato seja o do diálogo entre a mãe de Ulrike e a sua irmã, em que esta diz, a propósito do noivado de uma amiga comum com um judeu abastado de Berlim: «Qualquer dia já não há diferenças!» Outro dos pontos interessantes do livro é o modo como se vai desenvolvendo o papel do narrador ou da narradora. Até ao final do livro não sabemos quem está a narrar a história que estamos a ler. Vamos tendo suspeitas, que também vão mudando à medida que os acontecimentos vão sendo relatados. Quem é o narrador ou a narradora do livro, que nos conduz com maestria ao longo das 220 páginas, é a pergunta que o leitor vai fazendo a si mesmo como a que Ulrike fará à mãe, muito preocupada, a propósito da nova escola para onde irá: «Mas eu não vou saber quem é quem.» Mais do que o medo ao desconhecido é o medo a ficar desajustado em relação não só às regras, mas ao que é considerado certo pelo grupo a que pertencem. E o leitor também se sente desajustado em relação ao que lhe é habitual: saber quem o conduz pelo tempo de leitura. Ao longo do livro, o querer saber quem narra torna-se tão importante como saber o que está a ser narrado. Em alemão, o género fica indeterminado no título. «Erzähler» tanto pode ser «narrador» quanto «narradora». Em português, a tradução não teve como não desvendar parte do mistério, se bem que num universo predominantemente feminino dificilmente estivéssemos perante um narrador. Além das personagens de que já aqui se falou, há ainda a avó paterna de Ulrike, a amiga de infância da mãe, Ellen Heizmann, que a visita algumas vezes, e uma prima afastada do pai de Ulrike, que de cada vez que vai a casa dos Rohm causa desconforto no lar, devido ao seu comportamento excêntrico e beato. Esta prima, Johanna Drummer vivia reclusa em sua casa, nunca tendo casado, e devota de Santa Tecla de Icônio, a grande companheira de pregação de São Paulo. O primo, que se esforçava por educar a filha no protestante valor do trabalho, via esse seu ascetismo como um péssimo exemplo para Ulrike, arranjando contínuas desculpas para não a receber ou, não podendo evitar, que as suas visitas não pecassem pela demora. Trata-se de um romance duro, em que Steinebrenner nos leva por descrições, frases, pensamentos que nos incomodam, que tendem a nos fazer parar muitas vezes, como no primeiro exemplo, logo à página 14, em que Ulrike diz à mãe que matar pardais lhe dá muita paz e esta afaga os cabelos da filha com um sorriso terno e diz: «Não vá para longe.» É um livro difícil, não pela linguagem ou pelas reflexões, mas pelo quanto nos transtorna os nervos. Quase tudo nos melindra, como se a vida à nossa volta – e nós mesmos – o estado de coisas não fosse semelhante ao que nos é relatado, mais até do que na altura em Steinebrenner publicou o livro. Continuamos a ter dificuldade em aceitar a diferença e a educar-nos em grupos mais ou menos fechados. Escreve Steinbrenner, à página 147: «Aos 12 anos, Ulrike tinha já feito todas as amigas que seria preciso para atravessar a vida. A mãe sabia-o e isso dava-lhe tranquilidade.» Não apenas a família e o seu território, mas o humano visto como uma paisagem com vedação.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasComo encontrei o amor em 10 dias [dropcap]N[/dropcap]o seu mais recente romance, Andrew Neill leva a sua técnica preferida, a ironia, à perfeição, a começar logo pelo título: «Como Encontrei o Amor em 10 Dias». O leitor mais distraído será levado a pensar tratar-se de um livro de auto-ajuda, que pretende ajudar-nos a encontrar eficazmente o amor, e num curto espaço de tempo. Mas o Amor é um Golden Retriever que fugiu do narrador do livro, John Walmsley, durante uma viagem que fizeram juntos numa carrinha a Pasadena, Califórnia, desde Denver, no Colorado. Numa das paragens que John faz numa Estação de Serviço, perde o Amor. O narrador conta-nos essa história de um modo simultaneamente divertido e reflexivo. «Tivemos sempre problemas em público, Amor e eu. Sempre que o chamava, com um tom mais severo – Amor, vem cá; ou Amor, senta –, caiam sobre mim olhares reprovativos, e nesse dia em que o perdi não foi diferente. Estava a pagar, dentro da Estação de Serviço, quando vejo o Amor sair a correr atrás de algum animal que viu. Deixei de imediato a carteira sobre o balcão, e virei-me a gritar “Amor, volta; Amor, volta”, para espanto das pessoas que estavam na fila, não se coibindo de fazerem comentários.» As reacções dos outros, não à relação entre John e Amor, mas entre John e quem eles julgam que possa ser, é uma constante no livro e sublinha o nosso ponto de vista usual na condenação pronta que fazemos aos outros ou, como Neill escreve: «Antes de tentar compreender, estamos já a condenar. Falar é sempre mais rápido do que reflectir, e muito mais distrativo também. Falar não custa nada e distrai-nos de nós mesmos. Há algum remédio mais eficaz para não pensarmos na merda de vida que temos do que falar mal de alguém ou de alguma coisa?» Evidentemente, Amor é um cão e não é um cão. É, porque se trata do Golden Retriever de John, e não é, porque ao longo do livro é sempre descrito como metáfora do próprio amor que todos nós perdemos na vida. Não só pessoalmente, cada um de nós a perder outro, mas a humanidade, ao entregar-se à fala, a um contínuo e imparável falatório, que tem como motor o mal. Em «Como Encontrei o Amor em 10 Dias», o mal é a fala e esta representa a distração, a falta de reflexão, no fundo, a falta de amor, pois este quer atenção, como a leitura ou a aprendizagem. Assim, o livro pode também ser lido como forma de aprendermos ou reaprendermos o amor, de como voltarmos à atenção perdida, como abandonarmos o mundo do falatório e começarmos a trilhar o caminho do amor. E, neste sentido é também um livro de auto-ajuda, ainda que num sentido mais alargado e talvez menos eficaz do ponto de vista comercial. De qualquer modo, o escritor consegue manter uma tensão contínua ao longo do livro entre realidade e simulacro, no tocante ao género Andrew Neill é conhecido pelas posições polémicas e assuntos delicados que trata nos livros que escreve e este romance não é diferente. Se estais lembrados, já em o «Não Conheço Esse Senhor», que provocou uma enorme celeuma nos EUA, Neill contava de modo irónico a história de um político desde a sua terra Natal, Gillette, pequena cidade em Wyoming, até Washington DC. Ian Bolden, o político, vai subindo na carreira através de situações e pessoas obscuras, e sempre que era confrontado pelos jornalistas acerca dessas ligações respondia «Não conheço esse senhor», apesar de haver fotos que o desmentiam. Ian Bolden mentia sem pudor, compulsivamente, adiantando as mais bizarras desculpas. A sua táctica mais arrojada, que era usada apenas quando já nada mais restava fazer para acreditarem nele, era a de que estavam a tentar destruí-lo. Diz num programa de televisão a uma jornalista que o entrevista, com um semblante entristecido: «Ellen, eu sei que parece que estou a mentir, que tenho culpa de tudo o que me acusam. Sei muito bem disso. Mas sabe porquê, Ellen, sabe porque todos pensam isso? Porque a teia de intriga que montaram foi muito bem feita. Aqueles que me querem destruir são muito poderosos. E eles sabem bem que eu sou uma pedra nos seus sapatos. Sabem que sou um obstáculo aos seus planos de subjugar o nosso país aos interesses das multi-nacionais.» Neste livro, o aproveitamento dos bens públicos para benefício próprio está tão ligado à prática comum da política, que não deixa de ser incómodo para toda a sociedade, para todo o eleitor, como quando Neill escreve, através de um cartaz que aparece nas mãos de Sherry Smith: «Votar é escolher aquele que te rouba». Em «Como Encontrei o Amor em 10 Dias» o tom é igualmente reflexivo, se bem que mais divertido. A ironia é levada ao extremo do seu rigor, da sua duplicidade. Para não estragar o fim àqueles que ainda não leram o livro, não poderei adiantar muito mais. Termino apenas por dizer que essa viagem de 10 dias no Oeste dos EUA em busca do Amor – e a do dia em que o perdeu – é uma viagem ao nosso quotidiano, ao nosso modo de vida mais próximo. Talvez mais do que «como encontrei o amor em 10 dias», o livro mostre «como acabei de me dar conta de que perdi o amor, em 10 dias». Seja como for, é um livro a ser lido, do melhor de Andrew Neill.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA paródia religiosa [dropcap]A[/dropcap]inda que tenha deixado o seu último romance inacabado, Angel Jesus Tornado pintou uma das maiores reflexões acerca de São Paulo no seu “Ninguém em Damasco”. Foi sempre visível ao longo da sua obra a obsessão pelas figuras marcantes da história e por um tom reflexivo na sua escrita. Apenas como exemplo, lembremos estes três livros: “Um Homem É Uma Ilha”, centrada na figura de Napoleão; “Existência”, cuja narrativa percorre o ano em que Kierkegaard rompe o seu noivado com Regine Olsen; e “Queimar o Mundo”, onde Jesus Tornado explora as tentações de ódio que assaltam o humano na sua relação com o mundo através da figura de Nero. Mas em “Ninguém em Damasco”, Jesus Tornado transfigura-se e transfigura a sua própria ideia de prosa. Talvez a proximidade da morte seja a responsável pelo tom mais metafísico do livro ou, então, seja o próprio tema, a conversão, que assim o exija. Pois toda a conversão é metafísica. “Ninguém se torna outro sem um pé no além”, escreve Juan Mantero, historiador que é o narrador do livro. O salto para o desconhecido implica necessariamente fé, seja ela religiosa ou de outra dimensão. Em “Existência”, Jesus Tornado já havia tocado na questão do salto, imagem tão querida a Kierkegaard, mas o tom do livro mantinha-se junto às sebes, rente ao muro, sem pé no além. No decorrer do romance, Mantero descobre uma pequena passagem de São Paulo, apócrifa, que talvez nos coloque na pista certa: “A morte não é ninguém; quem um dia foi não pode deixar de ser. Morrer é apenas deixar o corpo, pois a morte não passa de tudo o que nunca foi.” Esta descrição de poder morrer e nunca atingir a morte, deixa profundas marcas no narrador do livro, ao ponto de se converter ao cristianismo. Até aí, o seu interesse por São Paulo e pela religião era estritamente “científico”. Mas no romance ficamos a saber que, mais do que o teor da passagem, a responsabilidade da conversão de Mantero se deve à sorte de ter encontrado esses pergaminhos, a que ele chama “Confissões de São Paulo”. Essa descoberta pareceu-lhe um sinal divino, como se São Paulo lhe falasse directamente, como se o tivesse escolhido. Através deste episódio de Mantero, Jesus Tornado tece longas reflexões acerca da necessidade de transformarmos coincidências em sinais, de conferir sentido ao que não tem. “O contrário da morte é Deus e morrer é encontrá-Lo.” Muitos têm visto em Juan Mantero um alter-ego de Angel Jesus Tornado, intuindo assim uma conversão tardia por parte do autor. Talvez fosse isso mesmo que ele pretendeu que nós disséssemos. Talvez tenha entrado na morte nos enganando, ou tentando nos enganar a todos, fazendo-nos confundi-lo com Juan Mantero. Mas não acredito que contrariamente a Saulo e Mantero que se convertem ao cristianismo, Tornado tenha convertido o seu coração ao além. Mais do que ler “Ninguém em Damasco” como se um romance autobiográfico se tratasse, devemos lê-lo como uma acusação, como uma paródia religiosa. Juan Mantero é já ele mesmo uma paródia de São Paulo, e os pergaminhos encontrados, “Confissões de São Paulo”, uma paródia das Epístolas. No fundo, talvez todo o livro seja, não apenas uma paródia à religião, mas uma paródia à humanidade, na sua contínua busca de pergaminhos, de textos antigos, de palavras que nos iluminem a vida. Mas ainda assim, seria sempre uma paródia à religião. Pois a procura de sentido para a vida nas palavras é um acto religioso por excelência. Angel Jesus Tornado deixa o seu livro inacabado com a seguinte frase, escrita por Mantero: “No aeroporto de Roma, percebi que a minha vida ganhava finalmente sentido. Só quem alcança este estádio percebe que nunca esteve realmente vivo.” Tornado depois morre, não Mantero. O tom metafísico da prosa deste seu último livro revela-se então, ele mesmo, uma paródia. O tom metafísico é a formalidade perfeita desta paródia. Sem esse tom, poderíamos ser levados a ver o livro como uma crítica, como uma reflexão séria e condenatória à religião. Assim, não. Angel Jesus Tornado entrou na morte a rir-se dela e de nós, fazendo-nos acreditar numa pseudo-conversão. Não procurou imortalizar a alma, mas imortalizou a sua gargalhada.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasEus [dropcap]L[/dropcap]uigi Pirandello disse numa entrevista que dividia os escritores em dois grupos: aqueles que se encantavam com o que viam, com o que acontecia fora deles e passavam a descrevê-lo a quem chamava escritores naturalistas; e aqueles que se surpreendiam com o que se passava dentro deles mesmos, com a incongruência entre o que sabiam e faziam, o desconhecido enorme que os habitava, a quem chamava escritores filosóficos. Termina por dizer: “Infelizmente faço parte do segundo grupo.” O seu conterrâneo Marcello Crocetta, nascido em 1975 em Agrigento, pode ser também considerado um escritor desse segundo grupo. Os seus livros são todos de textos curtos, alguns de duas páginas, e desde o início que dividiram a crítica italiana, considerando-os entre pequenos contos e crónicas. Recentemente, quando esteve em Portugal, numa entrevista concedida à poeta e jornalista Inês Fonseca Santos, para o programa de TV “Todas as Palavras”, Crocetta disse acerca desse assunto: “Aquilo que escrevo é conto. A matriz é sempre a ficção. Se algo acontece comigo, ou penso acerca de um acontecimento ou comportamento social, a tendência natural da minha escrita é criar uma personagem ou personagens e pulverizar o eu, de que a crónica tanto vive. Se acontece, por vezes, o texto desenvolver-se na primeira pessoa, não sou eu que falo, mas uma ficção. Eu não tenho opiniões, e seguramente menos conhecimento ainda para dissertar acerca de um assunto, embora me julgue capaz de criar “eus” fictícios que se movem em determinados cenários que talvez não sejam mentira. Aliás, todos sabemos que o eu é uma ficção não assumida enquanto tal. A minha escrita leva apenas essa premissa à conclusão ficcional. Se eu não sei quem sou, se me ponho a discorrer acerca de um assunto, como este aqui e agora, é evidente que é uma ficção.” Quando Fonseca Santos lhe pergunta: “Então, qual a diferença entre o que acaba de dizer e um conto que escreve?” responde: “Não sei. Mas suspeito que seja a apresentação do corpo. Estas palavras colam-se a mim, parecem ser expressões minhas – ou pelo menos é desse modo que tendemos a ver –, as que escrevo separam-se naturalmente de mim.” Esta sua resposta faz-nos lembrar de imediato o conto “Amanhã Serei Bonita”, do seu livro “Apresentar Argumentos à Beira do Suicídio”, de 2003, em que a narradora ao passar a lista do que tem para fazer nesse dia, durante o seu pequeno-almoço – três horas de exercício no ginásio, meditação, yoga, passar na loja de produtos naturais –, pensa “Fui eu mesma que pensei isto? Isto sou eu mesma? É isto que eu quero fazer?” Crocetta mostra-nos que nem aquilo que parece termos escolhido fazer pode ser expressão de um “eu”, mas uma ficção. Neste caso, uma ficção colectiva, mais ou menos abrangente. A pulverização do eu a que Marcello Crocetta se referia na entrevista acima citada não tem a ver com uma teoria, mas com uma vivência do autor, que não distingue entre o que consideramos não saber de facto e aquilo que nos é imposto pelo grupo social a que pertencemos. Nós não somos nós apenas por desconhecermos o futuro ou não termos todos os dados para tomar uma decisão acerca da nossa vida, nós não somos nós por isso e por também assumirmos comportamentos que têm a ver com o nosso “habitat”. Comida saudável, horas de ginásio, meditação, yoga não fariam parte da vida de Pamela – a narradora de “Amanhã Serei Bonita” – se tivesse nascido há 50 anos. Ao tomar o pequeno-almoço, no seu bonito apartamento de Roma, dá-se conta de que talvez as suas decisões, o que julga serem as suas decisões, não passem de decisões de outros por ela. No seguimento dessa reflexão, Pamela pensa ainda: “Mas se eu agora decidisse deixar de ir ao ginásio, de fazer meditação e yoga, seria eu a decidir?” É este pensar exaustivo de Pamela acerca da possibilidade de não existência de um eu dentro de si que agonia o leitor, não só neste conto, mas em quase todos os contos de Marcello Crocetta. A partir daquele momento Pamela passa a viver na vertigem da não existência do eu ou, melhor seria dizer, na vertigem da confirmação da não existência do eu. De cada vez que pensa algo, pensa que não há um ela mesma a pensá-lo, mas que alguém pensa por ela, o que acaba por levá-la ao suicídio. Suicídio que acaba por se tornar assassínio, pois alguém dentro dela a levou a esse gesto final. Dias antes de se matar, de alguém a matar, envia uma mensagem pelo telemóvel à sua amiga Manuela, dizendo: “Alguém em mim me está a matar”. Este “alguém em mim” é o motor da escrita de Marcello Crocetta, que segundo ele é incompatível com a crónica. Esta exige um “eu” que se assuma como se existisse, e Crocetta escreve através de “eus” que ganham existência através de uma escrita que é atravessada pela crença de que nada em nós nos pertence, nem o desconhecido. Apesar disto, termina por dizer na entrevista a Inês Fonseca Santos: “Mas não tenho nada contra a crónica. Só que ela não me assenta bem.” No fundo, a escrita de Marcello Crocetta não anda longe das reflexões que moviam a do seu conterrâneo Luigi Pirandello.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA solidão doméstica [dropcap]M[/dropcap]arianne Harrison, canadiana de nascimento, passou a viver nos EUA com os pais desde os 9 anos. Aí cresceu e estudou. Em meados dos anos 70 do século passado, dava a lume o seu belo e claustrofóbico “A Solidão Doméstica”. O livro retratava a vida de Mary desde os dias em que conhecera Roger Coleman no liceu, em finais dos anos 50. Sem ter ido para universidade, Mary Coleman casa com Roger e passa a ser uma mulher dedicada à família. Durante os vinte anos seguintes, a sua vida é literalmente de casa para o mercado, para as escolas dos filhos e de volta para casa. Há momentos em que ela se lembra da rapariga que tinha sido, dos sonhos, do que pensava que poderia ter sido a vida. Pensava até no que nunca poderia saber ou ter pensado, mas que se fazia sentir como um desconhecido fabuloso, “a sensação de que é à frente que vamos ser felizes”. Aos 42 anos, vê-se completamente sozinha em casa, sem nenhum interesse, vagando pelo triângulo cozinha, televisor, leito de dormir. Os filhos já não estão e o marido passa o tempo entre o trabalho, num escritório de advocacia, e os campos de golf. Descrito assim, parece tratar-se de mais um pouco estimulante livro de realismo doméstico ou realismo de subúrbios. Mas o modo como Marianne nos conduz ao interior de Mary muda tudo. Passamos a ver, a sentir e a falar através da protagonista. Tornamo-nos nela. Queria ter sido alguém, queria ter feito algo mais do que ter sido mãe. Pensa, e nós com ela, “que pena não ter nascido homem”, enquanto coloca a loiça na máquina que o marido tinha comprado e fazia a inveja das mulheres dos amigos do marido, quando iam jantar a casa. Nada lhe faltava. Não se podia queixar. Não tinha sequer a quem se queixar. “Quem me pode entender? Nada me falta, nada me dói… nem eu mesma sei o que é isto em que estou a pensar. Porque me atormentam estas ideias, meu Deus?” Muitas são as frases que Mary diz e pensa, que nos tocam profundamente. A minha preferida, e que é também o êxtase do romance, surge quase no final, quando aos 62 anos, aceitando a derrota para o cancro cerebral, numa cama de uma clínica, e segurando a mão de Roger, Mary lhe diz “Se ao menos a vida tivesse valido a pena…”. Nesse momento somos nós que sentimos a nossa própria vida perdida. Por instantes, tornamo-nos essa vida perdida. Aquilo não só nos dói, como – assim que nos recuperamos –, nos pomos a rever a nossa própria vida, a ver se vale a pena, perguntamos: se estivéssemos agora a morrer, também diríamos com Mary “Se ao menos a vida tivesse valido a pena…”. Além da importância literária de “A Solidão Doméstica”, hoje, tem também uma importância histórica. Há não tanto tempo atrás, havia mulheres que entristeciam por não terem nascido homens, porque só sendo homens a sociedade lhes dava a possibilidade de fazerem o que lhes era de direito fazer. Este livro de Marianne, que na época em que saiu foi completamente esquecido, é recuperado em finais dos anos 90, precisamente por este lado histórico, menos literário, embora não menos importante. De qualquer modo, e sem menosprezar o seu lado histórico, que é necessário nunca esquecer – porque a mulher poder ser o que quiser pode voltar a perder-se – a grandiosidade do livro passa pelo seu carácter existencial, ontológico. “A Solidão Doméstica” mostra-nos, ao detalhe, ao pormenor sempre angustiante, que a cada instante podemos tomar uma decisão que nos irá fazer arrepender de ter vivido. Errar na vida pode não ter conserto, apesar de também não se saber o que seria não errar. O que Marianne nos mostra através das mais de 500 páginas de “A Solidão Doméstica” é que, apesar de todos os cuidados nas decisões, apesar de toda a diversão que possamos usar para esquecer uma vida mal decidida, no final saberemos o que fizemos a nós mesmos. Valeu a pena ter vivido? Acompanhar aquela mulher ao longo das páginas, perceber que não foi quem poderia ter sido por imposição social, por expectativas familiares, por convenção, por regras que ela não criou, nem votou, vê-la a sofrer horrores aos sessenta anos, e depois ainda ouvi-la dizer ao marido “se ao menos a vida tivesse valido a pena”, talvez nos ensine tanto como a leitura de Beauvoir, Sartre e Heidegger juntos. Marianne, ela mesma, teve uma vida semelhante à de Mary, e só escreveu “A Solidão Doméstica” no fim. Foi o seu único livro, provavelmente autobiográfico, apesar de ter estudado Literatura Inglesa. Morreu de problemas no coração um ano depois da publicação do livro, com 71 anos. É ler, meus amigos, ou, se for caso disso, reler.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA arte ou a cidade [dropcap]A[/dropcap] escritora eslovena Masha Pregarç escreveu um livro em finais dos anos 90 acerca das relações entre arte e cidade ou, mais concretamente, na tentativa de apurar acerca dos benefícios ou malefícios da arte na cidade. No primeiro capítulo faz a pergunta pela arte: “O que é a arte? Qual o seu efeito num coração humano em crescimento, que efeito tem na esperança, que faz ela com o nosso futuro?” Mas não é aqui neste capítulo que encontramos o melhor e mais pertinente do pensamento de Pregarç. É nos capítulos subsequentes, quando coloca a questão da arte em relação com a política. Que deve a política fazer em relação à arte, isto é, que deve a cidade, a Europa, fazer em relação à arte, em relação àqueles que aqui e agora crescem e que, no futuro, hão-de crescer? Porque tomamos por certo que a arte é uma coisa boa? Porque põem os artistas quase tudo em questão menos a própria arte? Porque não pergunta o artista se a arte prejudica a cidade? Porque toma ele por certo que é um bem? É necessário expor aqui uma longa passagem do livro: “A arte no seu sentido ocidental é a expressão das linguagens musicais, plásticas e literárias, isto é, a expressão do ser humano isento das necessidades de sobrevivência, de protecção e de expansão das suas materialidades. A arte é a expressão da possibilidade de o humano não ser humano; a expressão do desejo do humano de superação ou esquecimento da sua condição. No fundo, a arte é querer não precisar de alimentos, de água, de protecção; a arte é não querer ser mortal. Por isso, o Ocidente viu, e muito bem, que todas as outras artes que não tenham isto como fundamento não são verdadeiras artes, mas falsas artes, artes de imitação da arte ou, como Hermann Broch descreveu, são o kitsch, isto é, imitações da morte, de variações da morte, que é a arte no seu confronto com a condição humana. Obviamente, fica claro que a arte está em oposição à moda, a qualquer tipo de moda. A arte não serve para nada, senão para despertar o desejo de o humano não ser humano. A arte serve para acreditarmos que podemos ultrapassar as coisas, que podemos ultrapassar a nossa condição de precisar de coisas.” A partir daqui, Pregarç irá mostrar-nos que educar o ser humano com o pressuposto de que a arte é um bem, é educá-lo não para a vida mas para um além da vida; educá-lo para um além das necessidades que a vida comporta. Conscientemente, qual o pai que será capaz de educar um filho para isso? De educar um filho para ultrapassar ou esquecer a vida? A resposta é fácil: nenhum, obviamente. Um pai, um educador pode não saber exactamente o que é a arte, por estas palavras, mas sabe que a arte não é para todos, isto é, ele sabe que são poucos os que podem fazer arte. “É esta estatística que afasta os humanos de empurrar os filhos para a arte. Pois um filho educado para fazer arte não vai conseguir fazer mais nada. Um filho educado para a arte traz um coração faminto, faminto de ser melhor do que os outros ou tão bom quanto os melhores dos melhores.” Porque, está bem de ver, para Pregarç, aquele que faz arte, ou ambiciona fazê-la, quer ser único, quer ser diferente do artista do lado e do artista da frente. Pois só sendo diferente ele pode sobreviver na arte, no para além da vida. O problema que se coloca à cidade não é o de saber se ela suporta a unicidade destes fazedores de arte, mas se ela consegue suportar o excesso de frustração que nasce naqueles “únicos” que nunca vão ser senão aquilo que são: desgraçadamente humanos. Desgraçadamente, porque foram educados para não ficar confinados à vida e acabam por se ver apenas com a vida, de um lado para o outro. Escreve Pregarç: “Alguma vez se fez a estatística destes desgraçadamente humanos? Importa fazê-la ou não? Julgo que se, numa cidade, a alegria for mais importante do que a tristeza, importa fazer este levantamento, importa pensar acerca deste assunto com seriedade. Não será preferível, a uma cidade, educar os seus jovens na aprendizagem do amor, da tolerância, da capacidade de se emocionar com o seu vizinho do lado ou com o seu vizinho da frente, ao invés da educação na arte? Não é preferível educar os jovens na aprendizagem de criar riqueza e de saber distribuí-la, ao invés da educação da arte?” Este discurso algo alarmante visa a defesa de uma educação em modos específicos de entender a ética e a política. A defesa de uma educação na consciência da cidade, na consciência do outro, e não na alienação, mudará inevitavelmente a política, mudará radicalmente a consciência que temos de cidadania. Porque para a autora, a arte não é educadora, não traz em si nenhum bem para a cidade porque, escreve, “Não pensem que se pode educar os jovens apenas para aprender a apreciar, a admirar a arte. Pode-se educar alguém a aprender a admirar, a apreciar a arte e aqueles que a fazem, sem inculcar em seus corações um desejo de querer ser como eles? Pode-se educar um jovem a admirar o futebol e os futebolistas, sem inculcar nos seus corações o desejo de querer ser um deles?” Termina o livro por dizer que o nosso futuro pode depender do modo como vamos responder a estas perguntas, mas sem as colocarmos seriamente ou tentarmos responder-lhes, estamos seguramente a não querer importar-nos com o futuro das nossas cidades. Precisamos de respostas políticas à arte, para o futuro, e precisamos delas hoje. À parte algum tom reacionário que o texto parece apresentar, não deixa de ser interessante seguir o percurso das reflexões de Pregarç e tentar nós mesmos contrariá-las, visto serem tão contrárias ao que usualmente pensamos. É, acima de tudo, um livro provocador.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasO drama de ler [dropcap]R[/dropcap]oger Gult escreveu um livro no início dos anos 80 onde mais do que a descrição do acto de ler é um elogio do mesmo. Depois de uma enigmática e provocadora frase, “infelizmente, todos nós temos de viver fora dos livros”, começa por fazer um paralelismo entre o mito de Dionísio e o acto de ler. Dionísio era filho de Zeus e da princesa tebana Sémele. Os ciúmes de Hera, esposa de Zeus, levaram a princesa à morte ainda antes do nascimento de seu filho. Mas Zeus resgatou-o do ventre de Sémele e colocou-o na sua coxa, até que se completasse a sua gestação. Nascido o filho, Zeus confiou-o aos cuidados das Ninfas e dos Sátiros do monte Nisa. Como escreve Gult: “É através do mito do nascimento do deus Dionísio que melhor podemos entender o acto de ler. A acção de ler não é similar ao nascimento de Dionísio ou sequer a ele mesmo enquanto inventor do culto da embriaguez. A acção de ler, esse drama, é a acção de resgate que Zeus faz no ventre morto de Sémele, de modo a fazer com que o seu filho continue a sua gestação, agora na sua própria coxa. A acção de ler, seja que texto literário ou filosófico for, é um gesto de deus pai a resgatar seu filho à beira da morte, na possibilidade eminente da morte. Evitar a morte de um texto é arrancá-lo do ventre inerte da história e trazê-lo até si, para aí viver até que seja capaz de respirar pelos seus próprios pulmões.” Para Gult, não há dois modos de ler. Ler é sempre resgatar um filho ao ventre inerte da mãe e impor-lhe o período gestativo no nosso corpo, até ele ter tempo suficiente para ir à sua própria vida. Ler é isto. Não há ler assim e ler assado. Ler é fazer de Zeus na salvação de um filho seu e de uma mortal. No fim da acção de ler, no fim da gestação, é tempo de esse filho nascer e enfrentar o mundo. Aqui, sim, aqui os filhos distinguem-se uns dos outros. Há filhos e filhos. “Nem todos os filhos que saem de nosso corpo de Zeus são Dionísios! A leitura pode até nem ver a luz do mundo, a leitura pode nascer morta.” Ler não é escolher caminhos, como faz Hermes, esse deus das moradas que se movem, mas retirar um filho quase morto e abrigá-lo na nossa carne até o devolvermos ao mundo. “Ler não é interpretar, mas ressuscitar, dar vida ao que estava condenado a ser morte.” O drama de ler é igual ao drama da possibilidade iminente da morte de um filho. Ao ler ressuscita-se um filho – pois aquele que para viver ou continuar a viver contraria as leis da natureza, ressuscita – e antecipa-se a própria morte, fica-se deposto no sujeito da morte de cada um que lê. Escreve Gult: “Neste drama de ler, que é o acto de todo aquele que se debruça sobre um livro, transformamo-nos no objecto da nossa morte, passamos a experienciar-nos como morte; o sujeito da minha morte sou eu transformado num objecto perdido de mim mesmo. Isto é aquilo a que chamo o drama de ler: a condição antagónica do esforço de Zeus; a consciência ganha por Zeus de que tudo pode, excepto repetir o seu prazer já vivido ou o momento inaugural de uma descoberta, embora salve um filho.” Neste esforço, neste cuidado, nesta nossa condição de deuses vislumbramos também a nossa própria morte e confirmamos a nossa impotência. Infelizmente não se pode viver dentro de um livro, como diz Gult logo no início, ou dentro de todos os livros, apenas fazer com que, através deles, tenhamos em nós os nossos filhos, as nossas leituras. Se vivêssemos dentro de livros não haveria drama. O drama é também a condição do leitor, preso entre a sua leitura à distância intransponível do livro. O seu filho, colocado na sua coxa durante a leitura, deixará também de lhe pertencer. Ao longo das 150 páginas, Gult conduz-nos por este drama com vários exemplos e reflexões, deixando em suspenso uma pergunta à qual responde no fim, colocando também ele mesmo a pergunta: “Todo o acto de ler é um acto heróico, um acto de Zeus, zeusino? Todo o acto de ler é uma imitação de Zeus, que pode ser bem ou mal sucedida, porque ler é criar. Lembrando uma canção tão popular hoje em dia, Heroes, de David Bowie, que diz que nós podemos ser heróis apenas por um dia, nós somos Zeus no tempo de leitura.” É um livro que vale sempre a pena revisitar.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasPequena história do fundamental [dropcap]N[/dropcap]o seu livro “Pequena História do Fundamental”, Ruth Cohen escreve que só podemos vir a saber algo que nós mesmos tornemos fundamental. E a história humana é a história do que fomos tornando fundamental ao longo do tempo. No centro desta sua reflexão estão as religiões, que sempre mantiveram para os seus crentes o carácter de fundamental. No fundo, as religiões são edifícios que sustentam o fundamental ao longo dos séculos. Mas quando se põe a analisar as diversas religiões, Ruth Cohen repara que a maioria delas está a perder esse seu carácter de fundamental. Mostra-nos que o catolicismo hoje está bastante longe daquilo que foi em séculos mais distantes ou mesmo nos séculos anteriores a este, que o judaísmo também de algum modo está a perder o seu carácter de fundamental, assim como algumas religiões orientais já o tinham perdido. De todas as religiões, segundo a autora, só o islamismo parece manter o seu carácter de fundamental; todas as outras são sombras do que foram, maiores ou menores, mais ou menos escuras. Num capítulo acerca das “novas religiões”, a que chama “A Aurora Escura das Seitas Evangélicas”, onde se vê um crescendo em algumas partes do globo, escreve que não podemos considerar isso religiões; são máquinas de fazer dinheiro e alienação. Assim, nesta análise acerca da perda do fundamental nas religiões, destaca a grande e única excepção: o islamismo. A perda do fundamental nas religiões do Ocidente, deve-se, segundo a autora, à transferência da pulsão religiosa para o culto da imagem. E nós não podemos deixar de pensar que talvez haja uma estreita ligação entre a permanência do fundamental e do desprezo pela imagem, na religião muçulmana. Será a imagem, o culto dela, realmente um obstáculo ao que é fundamental, ao culto do fundamental? Será que este culto da imagem é realmente responsável pela perda daquilo que nos é fundamental, nas religiões e nas sociedades? Ruth Cohen escreve: “A transferência da pulsão religiosa para o culto da imagem, está intimamente ligado a um culto novo e profano: o culto da visibilidade. Ser-se visível, ou estar constantemente visível para todos pode identificar-se com ser famoso, embora este último não esgote o primeiro. Ser uma imagem nas televisões, nas revistas e nas redes sociais é um fenómeno recente, tem apenas algumas décadas. O culto da imagem é acima de tudo um culto de alienação. Talvez por isso mesmo, o mais difícil para o ocidente entender acerca do islamismo, seja a sua recusa total e absoluta do culto da imagem, que começa logo pela imagem da mulher socialmente.” Esta identificação entre o culto da imagem e a perda do fundamental, que inicialmente pode parece querer colocar a religião muçulmana num patamar acima na história do fundamental, revelar-se-á o seu contrário. Há, contudo, uma passagem que devemos ler: “A imagem é cada vez mais um desperdício de tempo, um desperdício da vida. Ainda que os muçulmanos hoje possam estar errados em relação ao método e à hermenêutica da sua própria religião, a verdade é que eles tocam o fundamental, contrariamente ao ocidente, e esse fundamental enraíza sem dúvida numa descrença na imagem, num desprezo até pela afirmação de alguém através da imagem.” Apesar de tudo, e ainda que posteriormente Ruth Cohen ataque o islamismo, não deixa de transparecer alguma admiração pela recusa do culto da imagem no islamismo. “Ainda não tocámos o fundamental, estamos apenas na ilusão do mesmo. O desprezo pelo culto da imagem permite ao islamismo manter a sua relação com o fundamental do culto religioso, o fundamental da sua crença, mas afasta o islamismo de uma evolução, isto é, de uma transformação do fundamental, uma ruptura com um antigo modo de ver o fundamental, que é a igualdade.” Para Ruth Cohen, a igualdade é o novo paradigma do fundamental na história. Sublinha que é fundamental não aceitar o véu ou o niqab nas mulheres muçulmanas. Não pela ausência de imagem, mas pelo que representa esse “roubo de imagem”. Roubo de imagem é como Cohen chama à imposição do niqab e da burka no islamismo. Mas, e é aqui que se dá a passagem para a igualdade, esse roubo de imagem não tem como finalidade o impedimento do culto da imagem, mas antes o exercício de um poder do homem sobre a mulher. Que começa com o roubo da imagem e continua no impedimento de aprenderem e de exercerem um trabalho que as dignifique, que lhes possa dar liberdade, serem auto-suficientes. A submissão choca muito mais do que uns trapos a taparem o rosto ou o corpo. Os trapos prendem a mulher à lei da religião, mas a impossibilidade de aprendizagem, ou de trabalho, por parte da mulher, prende a mulher ao homem. Esta pequena história do fundamental, para além de uma análise ao que foi sendo considerado fundamental na sociedade ocidental, é uma viagem pelas crenças e pelos jogos de poder que se escondem por detrás da imposição das mesmas. E uma análise pertinente ao culto da imagem através dos tempos. Poder-se-ia dizer um livro que vai da crença à igualdade.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasUma asa do além [dropcap]O[/dropcap] filósofo espanhol Miguel de Unamuno viveu obcecado pela figura de Tomás de Taranto durante um período da sua vida, chegando a escrever vários pequenos textos que nunca chegou a publicar por razões misteriosas e que estiveram para vir a lume em dois volumes com o título “Uma Asa no Além – Volumes I e II”. Tomás de Taranto nasceu em Tavira em 1243, quatro anos depois de D. Paio Peres Correia ter conquistado o Castelo de Tavira e expulsado os mouros dessa cidade, e talvez seja por isso que ainda hoje se conheça muito pouco da sua vida e do seu pensamento filosófico e místico, que parece ainda muito dever aos árabes, e que nos anos da sua vida e subsequentes à sua morte deveriam parecer muito desviantes dos dogmas cristãos. De facto, os seus escritos, apesar de religiosos e cristãos eram considerados heréticos e este misto deve ter despertado a atenção de Unamuno, que sempre roçou uma asa pelo além. Mas Taranto não era descendente de árabes, mas de um comerciante do sul de Itália, que se casou com uma fidalga de Tavira e por aí ficou. O seu fascínio pela cultura árabe, segundo Unamuno, deve ter vindo da descoberta da tradução dos textos gregos antigos, especialmente dos estoicos. Livros que o pai lhe terá trazido numa das suas viagens marítimas e comerciais pelo sul de Espanha e norte de África. Independentemente do indiscutível interesse desses textos, para mim este interesse de Miguel de Unamuno por Tomás de Taranto traz os seus melhores frutos se nos detivermos numa tentativa de compreender o que leva alguém a querer entender outro com mais profundidade do que propriamente o sumo que se retira de entender essa figura herética. No fundo, trata-se da reflexão – que percorre muitos desses textos – acerca do que é que nos leva até ao outro, mesmo que seja, não a milhares de quilómetros de distância, mas a um infinito de distância, que é séculos passados. Unamuno, contudo, fascinado pela figura desse medieval português, salienta algumas passagens de Taranto acerca da diferença entre uma pessoa ética e uma pessoa boa, que reproduzo aqui: “Uma pessoa pode ser ética sem ser boa em sentido de afável; é o caso daquela pessoa que não tira de si para dar aos outros, mas jamais tiraria dos outros para dar a si. E uma pessoa boa (em sentido de afável) pode não ser ética; é o caso daquela pessoa que dá muitas vezes de si aos outros, mas nem sempre se comporta de modo correcto.” A pertinência da citação desta passagem, prende-se com o facto de nos mostrar que Taranto entendia o comportamento ético muito mais em sentido de não prejudicar o outro do que em fazer-lhe bem. Uma pessoa ética pode até nem dirigir a palavra a ninguém, ou em muito poucas ocasiões, ser aquilo a que usualmente se chama “pessoa fechada” ou antipática. Em outra passagem, lê-se: “Há muito mais ética no recolhimento do que na festa, no silêncio do que no canto.” E, quer se queira quer não, escutamos ecos do estoicismo. A ética, se não é dependente do recolhimento, é pelo menos sua vizinha próxima. Isso não basta, evidentemente, mas parece ser fundamental. Mas não seria por aqui que o interesse de Unamuno despertaria para as páginas deste português de Tavira, seguramente. Miguel de Unamuno refere acima de tudo o fascínio que a luz causava em Taranto, e são também estes os textos que mais me agradam. São muitas as páginas em que ele discorre acerca da luz de Tavira, do céu, das nuvens, como se de algum modo essa paisagem fosse a antecâmara de Deus ou, expressão feliz que usa num dos seus fragmentos: “uma asa do além”. O céu, que em português tanto pode ser metáfora do paraíso como o limite do planeta Terra – contrariamente à língua inglesa que distingue sky e heaven –, era para Taranto a unificação da natureza e de Deus, a síntese possível e visível da perfeição de Deus e da sua criação. O céu, para além do deslumbramento que causa, escreve Taranto, “lança a alma num desejo de mais que não encontra eco no mundo”. Unamuno, que algumas vezes se refere a Taranto como “o português do céu”, sublinha que essa relação entre céu e terra, sagrado e profano, que ele considera privilegiada, foi comum às povoações costeiras do sul durante séculos, mas que encontra a sua expressão máxima na cidade de Tavira, com Tomás de Taranto.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasO sambista e a vaidade [dropcap]D[/dropcap]iniz, mulato à volta dos quarenta anos vivia na zona norte do Rio de Janeiro, em Vila Isabel, e ganhava a vida numa auto-mecânica do bairro, como pintor. Vida tranquila, mas que já tinha visto muita miséria. Perdeu pai e mãe em criança e teve de se virar muito cedo na vida. Chegou a Vila Isabel de carona, vindo da cidade vizinha, Duque de Caxias, e conseguiu se virar por causa do samba. Desde moleque que levava jeito para fazer samba. Para ele, samba era vida. E, no caso dele, o samba literalmente salvou-lhe a vida. Quase não pegou escola. Fez o básico, para saber ler jornal e enturmar as contas. Costumava dizer que os sambas que escrevia não vinham do estudo. “É a rua que dá samba.” Na verdade, para Diniz, quase tudo dava samba. Numa conversa, não raro se escutava Diniz dizer “isso dá samba”. E dava. Muito cedo, o caso de Diniz chamou a atenção de alguns jornalistas. Um deles tentou convencê-lo a escrever umas estórias, botar isso em livro. “Vai que dá certo”, dizia para o sambista-mecânico. Mas Diniz rejeitou esse primeira investida, desconfiado. Pensou para si mesmo “posso não ter estudo, mas sei o suficiente para saber que não se faz aquilo que não se sabe; se eu nunca li livro, vou agora escrever um? Aonde é que isso faz sentido?” E assim continuou, de samba no pé e na mão, longe dos livros. Mas jornalista quando encasqueta com uma coisa é como cupim na madeira, não descansa enquanto não corrói tudo por dentro. E um ano depois voltou a atazanar o sambista, que voltou a recusar. As investidas não cessaram e Diniz começou a ficar muito incomodado com aquilo. “Se você não sabe, porque não experimenta? Vai que dá certo”, insistia o jornalista. Mas Diniz não queria nem experimentar, nem que desse certo. Queria que o deixassem em paz com o trabalho na auto-mecânica e com o samba. No fundo, o que o jornalista queria, ainda que não confessasse, era oferecer-lhe os seus serviços como ghost-writer, quando Diniz percebesse que não conseguia escrever. O jornalista tinha entendido que Diniz tinha muitas estórias para contar, que poderiam virar livros e não só sambas. E queria fazer parte disso. Para o jornalista, o Diniz-escritor tinha sido uma descoberta dele, que não largava. Para que isso desse certo era preciso criar a necessidade em Diniz, fazer com que ele quisesse escrever, ou melhor dizendo, que ele quisesse aparecer como sendo escritor. Mas daquele mato não saía coelho. De modo a forçar, e a adiantar trabalho, o jornalista inventou uma matéria a ser publicada no jornal acerca do sambista-mecânico, com autorização deste, mas onde acabou por acrescentar falas que nunca aconteceram, que Diniz nunca disse e nem sequer pensou. Nessa matéria do jornal, Diniz dizia que tinha alguma dificuldade em escrever porque acreditava que na origem da escrita de ficção estava o facto da vida se acabar mais cedo do que se imaginava. O problema não era que a vida acabava, mas que acabava muito antes do que se imaginava. Evidentemente, o termo “imaginava” não era usado por acaso. Era usado como provocação. Para Diniz, continuava o jornalista, só se sabe o que é a vida na primeira pessoa e a morte era imaginada através das mortes dos outros, que nos pareciam sempre cedo de mais. No fundo, o que ele acabava por dizer que Diniz dizia, ao fim de uma longa digressão a que aqui vos poupo, era que o medo de a vida poder não ter o tempo que se pensava ter, acabava por nos pôr a imaginar outras vidas. E era por isso que Diniz não escrevia. Acrescentava que para o sambista-mecânico escrever é ter medo da vida. No samba não há medo. Quem faz samba não se preocupa com a morte. É a morte que se preocupa com o samba. E tudo isto com detalhes do quotidiano de Diniz e duas boas fotos dele, uma na auto-mecânica e outra na roda de samba, além de mais duas do bairro, do barzinho do Juca e da mercearia do Leandro. Quando leu a matéria, Diniz, ao invés de ficar chocado com as palavras que não tinha dito, ficou vaidoso. Nem aquilo fazia muito sentido e nem ele entendia bem. Mas se há algo que as pessoas estão dispostas a aplaudir é o que não entendem bem. As pessoas do bairro parabenizavam-no quando se cruzavam com ele, tinham gostado, do que Diniz dissera, do acompanhamento da vida do bairro e das fotos. “Que bem que ele fala. Poderia ser escritor de papel passado.” E foi assim que Diniz aceitou fazer aquilo que nunca fez e passar-se por quem não era. A vaidade, essa, deu samba.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasOs animais e os outros [dropcap]A[/dropcap] noite estava quente como usual nos verões de Floripa e as conversas corriam soltas à volta das várias fogueiras, na praia do Campeche. Havia violões, batuques, cerveja e alegria. Numa das fogueiras, uma rapariga defendia ferozmente os direitos dos animais e a proibição de venda de carne, no que era apoiada pela grande maioria, todos vegetarianos ou vegan. A única voz discordante era a de um garoto argentino – apesar do sotaque falava muito bem português –, que ousava dizer que devíamos ser livres de escolher aquilo que queremos e não queremos comer. Apesar de ser uma postura aberrante para a maioria dos participantes à volta da fogueira, maioritariamente garotas, deixavam-no falar e até se riam. Muitas queriam contrariá-lo, queriam convertê-lo, queriam ser aquela que iria mudar um pouco o mundo ao mudar um homem. Tivesse o garoto as pernas tortas, os dentes fora do lugar e o corpo se parecesse com um eucalipto, há muito que a conversa tinha acabado. Mas o rosto e o corpo do garoto derretia corações, permitindo que o seu liberalismo fosse aceitável. “Argentino e comer carne, não podia ser mais cliché e sem graça”, dizia uma delas, fazendo rir todas as outras. Mas neste caso, no caso do Juan, era até engraçado. Para mais, tocava sax tenor maravilhosamente. Para aquelas garotas – de várias idades – a música e a beleza desculpavam Juan estar no lado errado do mundo. Entre umas melodias e uns sorrisos, dizia que as pessoas deviam ser mais tolerantes umas com as outras. “Imagina que vocês estão certa e eu estou errado! Apesar disso não deveriam ser tolerantes comigo?” Elas sorriam. Era um grupo grande, obviamente havia várias garotas com garotas, a quem a beleza de Juan não influenciava o juízo, mas só Andrea, a namorada de Yara, ousou responder a sério a Juan: “Você acha certo ser tolerante com terrorista?” Juan ficou perplexo e disse que não tinha nada a ver. Mas para Andrea tinha. Para Andrea e para as amigas, que momentaneamente tinham deixado de pensar por causa de um palmo de rosto, de um corpo malhado. “Os animais são seres vivos que merecem viver e serem respeitados como nós. O modo como os criamos e os matamos é mais do que bárbaro, é um ato terrorista. E você quer que eu seja tolerante com terrorista.” Juan continuava a não entender a comparação, continuava a não entender o que movia aquelas pessoas e disse: “Para você até parece que eu mereço menos viver do que um boi.” Ouve um silêncio, que fez curto-circuito na beleza. Juan acrescentou: “Parece que para você o mundo se divide entre os animais e os outros. Qualquer dia os animais também votam.” O ambiente ficou tenso e foi Yara quem veio salvar o momento, abraçando e beijando Andrea. Yara compreendia o fosso enorme que separava Juan de todas elas, e que não era possível nem desejável continuar a conversa. O mundo de quem não come carne por razões éticas é completamente diferente do mundo de quem come carne e não considera a alimentação um acto ético. Noutras fogueiras os risos e os cantos propagavam-se. À volta desta, uma das garotas começou a tocar e a cantar a canção estrangeira que mais conhecida na ilha, “No Woman No Cry”, de Bob Marley, fazendo com que todos cantassem junto e Juan acompanhasse com o saxofone. No final da música, com a conversa já esquecida, a cerveja mais bebida, a beleza do argentino voltaria a fazer efeito e a noite podia ainda salvar-se. Ninguém veio ali para fazer política. Não é por acaso que se chama a Floriopa a ilha da magia.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasValdisney [dropcap]V[/dropcap]aldisney, cujo nome se deve a Walt Disney, mas cuja pronuncia do W se leu V, tem 28 anos e traz todos os dias a sua vida atrelada a uma carroça até ao mercado, por mais de dez quilómetros, carregada de frutas e legumes. Não há dinheiro para comprar um animal que faça o lugar dele. Quando leva para casa 50 reais de vendas é uma alegria, para ele e para a mulher, que fica a cuidar do Sítio e dos filhos, quatro, entre os nove anos – o mais velho – até aos 4 anos. Não chegou sequer a terminar o ensino fundamental, começou a trabalhar na roça com 13 anos. Conheceu a sua mulher, Thalita, aos 16, quando ela tinha ainda 14, e um ano depois casaram-se. Frequentam uma pequena igreja evangélica. Tirando os ensinamentos para o cultivo, na bíblia está tudo o que se precisa de saber. O seu sonho era que os filhos estudassem, desde que não se afastem dos ensinamentos da bíblia. Gostava de conseguir dinheiro para pô-los a estudar numa das muitas escolas particulares que há no Paraná, onde se ensina o criacionismo. Estava convicto de que por muito que se saiba, se não seguirmos a palavra de Deus nada se sabe. Todo o conhecimento é vão se não servir a Deus. Tinham um televisor, evidentemente só com os canais abertos, e mesmo assim não se via a maioria dos programas por serem considerados uma ofensa à palavra de Deus. Deitavam-se cedo. Raramente se via luz artificial no casebre da família. Deitavam-se e acordavam com a luz do sol, ou quase. O frio do Inverno convidava a isso mesmo, mas durante o Verão ficavam no alpendre da casa a olhar as estrelas, a complexidade, o mistério de Deus, que tinha criado o escuro da noite e o pintalgado de pequenas luzinhas, para nos maravilhar, pensado naqueles que vivem sozinhos, arrastando um fardo maior do que uma carroça cheia de frutas e legumes. Valdisney não bebia álcool, pelo que não frequentava o único barzinho do Lucas, único das redondezas. O seu tempo era para o trabalho, para a família e para Deus. Vivia no interior do estado do Paraná como se noutro século. Mas o que é um século ou dez para Deus? Para o homem dez anos é muito tempo, para Deus é menos que um sopro. Valdisney era aquilo a que se chama um homem bom, um homem responsável por si e pela família, e não queria pactuar com um mundo sem Deus. Tudo o que fazia era por convicção, excepto carregar a carroça, que era por falta de dinheiro para comprar um animal que o fizesse por ele. Mas não se queixava desse infortúnio. Queixava-se da falta de Deus na vida das pessoas, quando testemunhava no mercado com alguns comportamentos. Um dia, ouviu alguém comentar que a tecnologia está a evoluir de tal maneira, a cada dia, que já nasceu a pessoa que não irá morrer. Riu-se e pensou para consigo, se Deus quisesse que não morrêssemos não havia morte. Os disparates que as pessoas inventam! Os disparates em que as pessoas acreditam! Parece até que Deus não pôs juízo em todos os homens… Riu-se e lá voltou para casa, puxando a carroça, com as frutas e os legumes que não conseguiu vender.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasPalestra na universidade [dropcap]O[/dropcap] homem tinha à volta dos cinquenta anos e era um destacado poeta do Rio Grande do Sul, embora não fosse conhecido no eixo Rio – São Paulo. A dimensão geográfica do Brasil tem destas coisas, que se agrava com a natural tendência dos humanos em se agarrarem aos grandes centros e ao que é mais conhecido. O homem tinha chegado à cidade de Curitiba para falar de poesia, num evento criado por um dos jornais literários da cidade em conjunção com a universidade, onde decorria o evento. Começou por dizer: “Há poesia que nasce, não de uma relação profunda com a linguagem, mas de uma atenção profunda à melancolia da existência. É o caso dos poetas da dinastia Tang, na China.” Situou o período em que essa poesia ocorreu, citou alguns nomes de poetas e por fim disse que iria ler dois curtos poemas de Li Bai, que ele mesmo traduzira, “Entretendo-me” e “Sozinho Olhando a Montanha”: “É impossível não olhar o vinho, a noite cai sem que me dê conta. As folhas, descem do céu e cobrem-me as vestes. Ergo-me bêbado e vou até à lua, no riacho. Ao longe pássaros, sem que se avistem pessoas.” Depois de ler o primeiro poema e de uma curta pausa, parecendo emocionado com a leitura, leu o segundo: “Pássaros levam suas asas para longe, Deixando uma nuvem no céu, que se afastará. Ficamos sós, montanha e eu, Olhando-nos frente a frente, sem fim.” Fez uma pausa, escutaram-se os aplausos e ele disse: “É impressionante como um poema tão antigo” – estamos no século oito da nossa era – “e de uma civilização tão estranha a nós, mexe tanto connosco. Em ambos os poemas não há um verso que se destaque, não há gota de lirismo incendiário.” E riu-se, antes de continuar. “Mas no final de ambos os poemas não conseguimos evitar a melancolia. E é o nosso reconhecimento da solidão, que é descrita nos poemas, que espoleta essa melancolia. Em ambos, o poeta – o ‘eu poético’, como é de bom tom dizer – está profundamente só. No segundo poema perdido entre a montanha e o céu; no primeiro entre vinho e a lua, que é reflexo no lago. E se ligarmos os dois finais, amplificamos a solidão: ‘Montanha e eu, olhando-nos frente a frente, sem fim’ / ‘Ao longe pássaros, sem que se avistem pessoas.’ A melancolia espoleta, porque a solidão do poeta faz-se sentir em nós. A solidão que é o que nos resta, quando restar apenas uma nuvem no céu, que também se afastará. A solidão do poeta transforma-se na solidão do mundo, da existência, uma solidão que começa em nós, pelo sentimento dos poemas, e se expande muito para alem de nós. Até um não se sabe bem o que é, mas que dói. Estes poemas, sem versos marcadamente líricos, são máquinas perfeitas de fazer doer, de criar ou desenterrar dores, que nos eram estranhas ou estavam apenas adormecidas.” Aquilo que o homem queria mostrar aos estudantes que ali estavam para o ouvir, resumia-se nesta frase, com que – meia hora depois – acabou a sua intervenção: “Num grande poema, a poesia nem sempre se encontra na mecânica dos versos.” Escutou os aplausos, agradeceu, respondeu a algumas questões e lá foi embora, de volta para casa, perto da fronteira com a Argentina, para junto dos seus animais e da solidão verdejante que o rodeava, convicto de duas coisas: que se sabe tão pouco de poesia quanto de si mesmo ou do mundo; e que temos o dever de partilhar todo o desconhecimento que sejamos capazes de anotar.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasViver nos funerais [dropcap]D[/dropcap]enilson vivia nos funerais. Todos os dias lia os obituários dos jornais da cidade e dirigia-se aos lugares de culto, últimas homenagens ao morto, entregando frases de efeito em pequenos papéis, que ele mesmo escrevia. Eram frases como aquelas que vemos hoje nas redes sociais, com o objectivo de trazer conforto aos sobreviventes. Depois, no final, passava de novo com um boné, recolhendo algumas moedas que as pessoas lhe davam. Algumas delas, tão emocionadas com a frase que lhe tinha calhado, e por entre lágrimas e reconhecimento, acrescentavam ao gesto uma nota mais gorda, deixando escapar a Denilson um agradecimento mais efusivo. Invariavelmente, ao fim do dia sentava-se nas cadeiras de plástico da roulotte da Samira, no bairro onde vivia, pedia dois pastel e uma cerveja com camisinha, e ali ficava deitando conversa fora com a dona da negócio. Quando Samira lhe perguntou se não batia uma tristeza, estar sempre em contacto com o desespero dos vivos à beira dos mortos, Denilson respondeu que não. “E depois tem desespero e desespero, nê! Um funeral de criança tem sempre mais comoção.” Mas ainda assim, Denilson tirava de letra, estava imune à tristeza. Na verdade, contou a Samira que “Sempre tive uma alegria estranha nos funerais, que não sei bem explicar. Desde criança. Nunca soube explicar, mas acho que é de saber que eu vou continuar aqui. De não ser eu que morro, entende? Nunca pensei muito nisso. Mas funeral me dá muita satisfação.” Samira largou um “eu, hem!” de desagrado e incompreensão e Denilson continuou bebendo a sua cerveja. Apareceu mais um cliente de pastel rápido e “refri”, que Samira atendeu, sem conseguir afastar da cabeça as palavras do amigo. Parecia macabro. Morte é coisa sagrada. E Denilson parecia brincar com isso, não tinha esse direito. Não estava certo ganhar a vida com a tristeza dos outros e ainda se alegrar com isso. Mas para Denilson, importante era encontrar um modo de pagar a vida. E, no caso dele, pagava a vida e ainda ganhava de brinde satisfação. E ele tinha culpa, se tinha prazer de sobreviver aos que morriam? Não pensava muito mais nisso, e embrenhava-se em mais frases de efeito que escrevia para comover os sobreviventes, de modo a darem-lhe uns trocos com que pudesse comer. Ninguém sabe por que aqui anda, nem para onde vai quando morre, por conseguinte temos de ter proveito do tempo em que cá estamos. Viver nos funerais era, para Denilson, o que é para a maioria das pessoas uma vitória pessoal. Todos os dias se levantava para sentir esse frémito de sobreviver àqueles que jaziam no caixão entre as lágrimas dos outros. Não fazia mal a ninguém e havia modos muito piores de se ganhar a vida.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasO homem de Deus [dropcap]N[/dropcap]inguém é ninguém. Só Deus é.” Gritava um homem com um megafone numa rua do centro do Rio de Janeiro, enfiado dentro de um cartaz que ostentava em letras garrafais, à frente e atrás, “Deus é, mais ninguém”. Todas as manhãs e todas as tardes, se não chovesse, ali estava aquela criatura na Rua dos Inválidos, que liga a Rua Frei Caneca à rua Riachuelo, junto à Lapa e à Praça da República. “Quem segue a si mesmo, segue o diabo”, continuava gritando pela rua. Muitas vezes, era com lágrimas nos olhos que gritava a salvação do homem. “Sem Deus, o homem caminha como um cego sem bengala, condenado a cair no abismo.” Dia após dia, durante anos, aquele homem vinha para a rua dos Inválidos caminhando e gritando para salvar o homem. Nada o demovia. Nem mesmo quando chegou a ser maltratado por moleques. Quanto a ser maltratado pelos olhares e piadas diariamente, já nem dava importância. A todos reagia com a benevolência e a compreensão que só existe no Novo Testamento. Não se sabe bem qual é o seu nome, pois tal como Saulo que virou Paulo, também se dizia dele que antes de ver a Deus, era um outro homem, com outro nome e uma família, que deixou para trás, para pregar a palavra de Jesus. Levou a sério as palavras do Novo Testamento, no Evangelho de São Lucas, acerca da dificuldade de ser discípulo de Jesus, que para segui-Lo teria de deixar todos os laços humanos de filiação. Se não podemos saber o seu nome ao certo – embora se apresentasse como sendo Lucas –, aqui e agora, neste momento em que o vemos caminhar pela rua dos Inválidos, estamos diante de um homem com mais de sessenta anos, branco e magro, com cabelos grisalhos encaracolados, que desperta a ternura em quem consegue reparar nele para além das palavras, para além da sua compulsão pela salvação dos homens. Há neste homem uma fragilidade maior do que naqueles que passam por ele sem reparar ou olhando-o com escárnio. A segurança com que se move, derivada da crença inabalável em Deus, a fúria com que tenta salvar os homens, tem como fundo uma tristeza por este mundo onde se sente preso. É neste nosso mundo, sem grades que não sejam a gravidade e a esfericidade, que este homem cumpre a sua pena. E, enquanto a cumpre, tenta salvar os outros prisioneiros, abrir-lhes os olhos, mostrar-lhes que há vida para além do mundo. Um dia, a vida fez com que aparecesse na mesma rua dos Inválidos um jovem, também dentro de um cartaz, como ele, embora sem megafone e sem usar a voz, passeando para trás e para frente a evidência do mundo, a retórica mais palpável da prisão em que Lucas diz que vivemos: “Mente Aberta SexShop / Os corpos também sonham”. Este rapaz, contrariamente ao cavaleiro da fé, não tinha nem segurança nem fragilidade, fazia de cartaz com pernas por um mísero salário, que a loja lhe pagava ao fim do dia. O seu andar não revelava a segurança da fé em Deus, mas a insegurança de um salário que não dava para viver condignamente. Quando se cruzaram pela primeira vez na rua, o rapaz olhou Lucas com o espanto do prisioneiro que escuta alguém a falar da liberdade. O homem de Deus, por seu lado, engasgou-se, as palavras embrulharam-se e os olhos ficaram húmidos, como os campos de inverno no sul, cobertos de tristeza pela manhã. A vida vinha agora pôr a fé daquele homem à prova. Ao invés de lhe mostrar alguém a aproximar-se de Deus, a juntar-se a ele e a multiplicar a voz de Deus, a vida mostra-lhe alguém a promover o sexo, alguém a convidar os homens a descerem até à escuridão da carne. Por um instante, que ainda não se sabe quanto tempo foi, o homem de Deus parou, calou-se, tentou entrever o céu por entre os prédios, como se escutasse uma palavra ou pudesse ver um raio fritar o céu. Suportou anos a fio a indiferença com que o trataram, os maus tratos, os impropérios e as gargalhadas atiradas pelos ignorantes, mas como suportar a fé ao contrário? Como suportar esta traição de Deus? Como não nos condoermos por aquele homem, ali, sozinho, triste, dentro de um cartaz de Deus, com as pernas magras paradas, o megafone sem som e lágrimas nos olhos, espelhando a tristeza que há no mundo? Talvez tenha sido aquele dia, o mais vulnerável da vida de Lucas; talvez num outro dia qualquer a propaganda da Sexshop, imitando o seu método, passeando dentro de um cartaz, não lhe causasse tanta afectação, mas a verdade é que depois desse dia nunca mais se viu o cavaleiro da fé na rua dos Inválidos ou em qualquer outra nas imediações. A evidência do corpo destruiu a inabalável crença em Deus. Lucas entendeu que a cegueira não tem cura e recolheu a fé para si mesmo, aceitando a injustiça da pena que cumpre no mundo como uma tarefa que tem de cumprir a sós. E quem se ria dele, sente-lhe agora a falta.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasO espelho retroactivo [dropcap]N[/dropcap]uma bela tarde de início de Primavera, junto a um bosque nos arredores de Curitiba, Jefferson e Tales conversavam no jardim da casa deste último, depois de um longo almoço. Conversavam sobre a vida e a morte, sobre amores perdidos e o que lhes faltava ainda fazer no tempo que esperavam ter de vida, rente que estavam dos cinquenta anos. Tanto o dono da casa como o seu amigo ganhavam a vida como publicitários numa empresa multi-nacional, acabando por passar muito tempo juntos no trabalho e, de quando em quando, também fora dele, embora cada vez menos, desde que Jefferson deixara de beber. Durante o almoço, Jefferson bebeu coca-cola e Tales abundantemente cerveja. Terminado o repasto, o dono da casa abriu uma garrafa de cachaça, uma “Boazinha”, de Minas, que Jefferson identificou por dentro e por fora, e continuou a conversa. Bebeu uma, bebeu duas, bebeu três e quando se preparava para servir a terceira, o amigo disse-lhe que era melhor dar um tempo com a cachaça, levando Tales a perguntar-lhe: “mas agora tens alguma coisa contra o álcool, deste em pastor?” Com “coisa” e “pastor” pretendia atingir o amigo com uma pretensa falsa moralidade da parte dele. Mas Jefferson respondeu-lhe: “Não tenho nada contra o álcool, Tales, como bem sabes. Ou por outra, tenho muito contra o álcool, mas é pessoal e não transmissível. Estou apenas a tentar que a cachaça não me roube o amigo. Em breve não serás tu que vais estar aqui à minha frente, mas um outro completamente diferente, que irá preferir a cachaça à minha amizade ou a mim mesmo.” Jefferson sabia por experiência de muitos anos que a partir de um dado momento, fica-se refém do álcool. Aquele que não pára de beber, tudo fará para continuar a beber, a despeito da amizade ou de quem estiver com ele. Aliás, a partir de um determinado momento, ele vai preferir qualquer um que continue a beber com ele, a um amigo que não beba, porque na verdade a partir desse momento o que ele quer acima de tudo é beber e mais nada. O seu horizonte é não parar de beber até que não consiga beber mais… ou que outra qualquer razão o consiga levar para casa, para o chão da rua ou, neste caso, para a cama. Jefferson tentava evitar que esse momento acontecesse. Ele não tinha medo que isso viesse a acontecer, ele sabia que ia acontecer, mais cedo ou mais tarde. Sabia também que a sua conversa não iria fazer com que Tales parasse de beber, embora tivesse esperança que fizesse abrandar o ritmo com que bebia. Mas, infelizmente, Tales ultrapassara já aquele ponto em que não é mais possível ter mão nele. Tecnicamente não estava ainda bêbado, mas descontrolado, eufórico e erradamente ciente de estar certo de tudo quanto dizia, mesmo que o que dissesse fosse afirmar que não sabia. Um “não sei” que soava como se Sócrates saísse de um dos diálogos de Platão. Tales acabou por acender um cigarro e ficar a olhar atentamente um bem-te-vi junto à churrasqueira, com uma enorme minhoca no bico, que ainda se debatia perante a proximidade do fim da vida. Parecia que o próprio pássaro fitava Tales, como se tentasse compreender a vida dele, ou apenas o que levara a estar agora ali à sua frente. Jefferson deu-se conta da reflexão do amigo e não o interrompeu, deixou-o estar, na esperança de que a destemida troca de olhares entre homem e animal produzisse algum efeito benéfico em Tales, até porque a observação dos pássaros era uma das paixões do amigo, partilhada por ele. Levantou-se e foi lá dentro, à cozinha, fazer café. Quando regressou à mesa, com o café, já Tales tinha voltado a encher o copo com cachaça, e mais do que uma vez, pelo que faltava de líquido na garrafa. Jefferson sentou-se à frente de Tales e serviu café aos dois. Acendeu um cigarro, ouviu o som da cachaça a cair de novo no copo e Tales começando a dizer coisas sem sentido, repetidamente. Jefferson percebeu que acabara de perder o amigo. Mas ao levantar-se da mesa ainda lhe perguntou, como quem espera um milagre na resposta, “Queres ir dar uma volta no bosque? Já viste algum pica-pau do campo, este ano? Já devem ter chegado…” Em resposta, ouviu num entaramelado “Quero que os pica-paus se fodam!” Jefferson levantou-se e foi-se embora, sabia que nada mais havia a fazer. Ficar seria apenas ver-se como ele mesmo fora antes de deixar de beber. Quando deixou de beber, não passou a incomodá-lo nada estar sentado com alguém que bebesse. Mas era estar sentado com alguém que ficasse bêbado era-lhe insuportável. Essa pessoa tornava-se numa espécie de espelho retroactivo para uma imagem que ele mesmo nunca tinha tido de si mesmo e que agora vislumbrava como deveria ter sido. Este “deveria ter sido” não lhe fazia nenhum bem. “Eu era aquele”, dizia para si mesmo. E “aquele” não era ninguém, não era sequer o amigo à sua frente. “Aquele” era um bêbado, um estranho a eles mesmos. O que lhe doía ver no bêbado era ver-se a ele mesmo antes, que até ao momento de deixar de beber nunca soube. Um “antes dele” que se corporizava pela primeira vez agora, ao assistir no outro aquilo que ele mesmo deveria ter sido. Uma coisa é saber que se é bêbado, outra muito diferente é ver-se a si mesmo no outro bêbado. Todo o bêbado era para ele o seu passado. E como não era um passado que queria esquecer, mas um passado que não lembrava, abria-se assim inúmeras possibilidades que preferia não vir a saber. Possibilidades que eram instrumentos de tortura. Perdeu-se na observação dos diversos pássaros do bosque durante algum tempo. E, no regresso, avistou e escutou um casal de pica-paus, como se aquele batimento na madeira da árvore fosse um despertador a lembrar-lhe que ainda tinha pela frente a tristeza de ter perdido o amigo.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasO rei do catete [dropcap]H[/dropcap]á pessoas que vivem como se fossem animais com sorte, como se fossem animais habitando um lugar onde não falta nem comida, nem fêmeas, e onde não há predadores, transformando-as assim em pessoas felizes. Aparecem no mundo, inexplicavelmente não pedindo nada, tendo muito pouco e sendo servidos generosamente pela vida. Na verdade, e para sermos rigorosos com o mistério, deve haver tanto de natural quanto de sabedoria. No Rio encontrei algumas destas pessoas. Airton era um mulato vistoso, de 37 anos, com um quarto nos fundos de uma casa no bairro do Catete por onde passava muita garota, “o matadouro”, como dizia aos amigos. Passava algumas noites da semana no barzinho do Garibau, jogando sinuca. E entre uma e outra tacada bebia uma geladinha e botava discurso. Todo o mundo gostava do Airton. Papo fácil, generoso na atenção, pagava cerveja ou pinga a amigos, moderadamente, que não era trouxa, e arrasava as coxas das mulheres. Desde muito cedo que as mulheres gostavam de se deitar com ele, e assim foi levando a vida como Deus mandou, e Martinho da Vila cantou num samba. Se medíssemos a sua vida pelo que tinha, era quase um miserável. Mas se a medíssemos pela sua alegria, era um rei. Tinha feito mais estudos, à noite, que a maioria das pessoas da sua condição, e ostentava isso com algum orgulho. Virou-se para mim e disse: “E boto estórias num caderninho feito Machado de Assis, que vivia bem perto daqui, portuga.” Ia levando a vida, entre a oficina de bate-chapas, um ou outro livro que lia, as estórias que escrevia e as mulatas, que eram a sua perdição, e ele também a perdição delas. Vivia esperando fim de semana e Carnaval. “Como papai noel vive para a dia 25 de Dezembro, aqui o Airton vive para Carnaval.” E, no Rio, este festival tem muito mais dias que noutros lugares. Nessa altura, quase não dormia. Valia tudo para não fraquejar. Todo o tipo de estimulantes estavam valendo. “Cara, você me pergunta o que é o Carnaval para mim? Carnaval é o melhor da vida, quando o melhor do paraíso se junta com o melhor do inferno: vida sem trabalhar, calor, cerveja e muita sacanagem. Tem coisa melhor?” Um amigo dele tinha vivido uns tempos em Portugal e veio de lá muito decepcionado com o país. “Aquilo é frio que só pinguim aguenta, mulher é tudo fresca e nenhuma samba. Que adianta que não tem violência. Nem violência nem alegria. Não há cidade como o Rio! É a cidade maravilhosa. Bandido tem em todo o lado. Agora mulata assim, bundona, gostosa, sambando feito diabo em feriado de Deus, não tem em mais lado nenhum.” Esta convicção de Airton justificava a vida no Rio e desculpava o despautério de violência que grassava a cidade. “Me diga onde não tem violência! O próprio nascimento dá-se com a agressão do filho à sua mãe, cara. A verdade é que nossa vida está presa por um fio invisível. Nascimento e morte é um mistério. Minha mãe morreu bem jovem, de cancro, sem alegria, sem marido, só comigo do seu lado, que nada podia fazer. Pobre ou rica, morreria na mesma. Enquanto cá esteve é que tinha de fazer com que a sua vida tivesse valido a pena! Adianta viver com medo? Enquanto cá andamos temos o dever de procurar alegria. E se não há alegria, temos de inventar. Portuga, há lugar mais alegre que bunda de mulata sambando?” Encaçapava a bola 8, sorria e pedia mais uma geladinha ao Garibau. “Esta noite ainda vou escrever estória.” Juntava as bolas na mesa de bilhar, ia junto à mesa encher o copo e percebia-se que a vida não tinha mistério. Airton não era o rei da selva, era o rei do Catete.