Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasConcerto para peluches número 2 [dropcap]S[/dropcap]abes tocar piano? Comprei um piano. Estou a ver que sim. Não, não sei tocar, mas era o que eu mais queria. Ainda se contam pelos dedos duma mão, as vezes em que o viu. Ao subir as escadas do segundo andar do número dois, pela primeira vez, há um ano, não foi a única surpreendida. Na altura, havia dois sofás na sala. Jantaram à mesa, com a toalha de ursinhos. Não conseguiu alertar antes que ele a servisse e não conseguiu acabar. Foi a primeira vez que partilharam uma manta. Ele fumou, na varanda. Ela sentiu muita vergonha. Volta a elogiar-lhe os brincos. Argolas prateadas mas não de prata. Então, pensavas que nunca mais nos íamos ver? Temos de jantar mais vezes, fazer uma viagem. Gritam o mesmo destino em uníssono, mas nunca se viram noutro lugar. No dia seguinte, volta o medo. Também gostei, mas acho que não é boa ideia repetir. Passam meses sem se verem. Falam pouco, cada vez menos. Chateiam-se muitas vezes. Ela veste o robe do Bugs Bunny, que é dele. Ouve música no telemóvel, na casa de banho. Ele irrita-se. O que se passa? Tu intimidas-me. Tu também me intimidas. Não podemos partilhar antes a manta grande? Quantas vezes vamos fazer isto? Olha, porque é que não trabalhas ou fazes coisas enquanto eu toco? Hoje não tenho nada para fazer, só estar aqui. Ela já lhe disse que não são amigos. Ele vai buscar o vinho. É a segunda vez que ela nota: ele hesita em tocar-lhe no cabelo. Não falam, só riem até roncar, enquanto vêem o Sticks and Stones, do Dave Chappelle. Pode irritar-nos que alguém faça a barba e não nos deixe vê-lo com ela grande. Que nunca o vejamos de cabelo curto. Que não perceba que a barba por fazer há dois dias fica bem com o cabelo curto. Que não pode fazer a barba se deixa o cabelo por cortar já com um mês de atraso. Que lhe faz cara de bebé. Aquela cara que nos dá vontade de morder, da bochecha ao queixo espetado. Pensar tanto em alguém. Falar dele aos amigos começando por aquilo a que sabe que torcerão o nariz, como a inclinação política. Ir percebendo, com o tempo, que cada vez nos importamos menos com isso. Ah, fazer algo resultar apenas na nossa cabeça. Vêem a Guerra dos Tronos. Ela consegue ouvi-lo urinar, como no poema de Bukowski. Ele joga o seu jogo preferido do momento. Ela mostra-lhe a sua canção preferida do novo álbum do Boss. Ela atrasa-se, ele impacienta-se. Ela tem de escolher o vinho. Ela traz doces e ele não gosta, especialmente, de doces, e menos ainda destes. Ele pede salsa e depois diz que afinal tem coentros, que até ficam melhor com isto. Ele parece o Ian Curtis, e pergunta se ela quer uns chinelos de andar por casa. Ele diz que engordou. Ela nem comenta. É melhor falarem do quão suave a pele do outro é. O paraíso é alguém que nos conta histórias e nos traz bolachas à cama. Alguém que se despe e veste sempre demasiado rápido para a nossa falta de jeito, e nos enerva com o seu nervosismo, mas que depois fica à porta do quarto, calado, a olhar para nós com ternura e se aproxima e nos beija a nádega. Não se chega a grandes conclusões, reflectindo sobre estes homens que nos ficam com a chave de casa e vão lá regar as plantas ou dar de comer e brincar com os nossos gatos. O homem que vai ao funeral da nossa mãe ou nos atribui uma escova de dentes em sua casa, mas a quem a palavra namorados causa ataques de pânico…. Ou de burrice, diriam algumas das nossas amigas, versadas em soft boys. Queres jantar? (Lá está ele com as douradas de mar.) Ver o Benfica? Ficar mesmo sem ver o Benfica? Dormir aqui esta noite? Não, não, o quê?! (Então e o teu amigo?), e não. Aquilo são brincos? Sim. Podiam ser pulseiras da (inserir nome da dona dos peluches). Pensa que foi a coisa mais bonita que ele lhe disse. Lembra-se de um texto que leu há muito tempo, que dizia qualquer coisa sobre não ter uma gaveta em casa do nosso amor mas, ao ouvi-lo dizer “a nossa casa”, as malas pesarem como pulseiras. Ele está a treinar para uma maratona. Ou apaixonado por outra. Ou ocupado com o trabalho. Ou a andar de bicicleta. A jogar xadrez ou a fotografar. Nunca tomaram o pequeno almoço juntos. Se calhar é por isso. Mas depois ela vai a colocar a cabeça no colo dele e, antes que possa fazê-lo, ele puxa-lhe o cabelo com cuidado, enfia-lhe uma almofada por baixo e fá-la pousar a cabeça, em menos de um segundo, e não volta a tirar a mão. Despedem-se várias vezes, até ele a expulsar, hoje um pouco mais gentilmente. No entanto, só alguém próximo consegue irritar-nos desta maneira, e ainda manter-nos mais ou menos por perto. Mesmo se nos faz sentir que não somos o suficiente. Termina como começou. Cotovelos nos joelhos, punhos cerrados a suster o queixo, cabeça inclinada, à escuta, e ele ao piano, dizer asneiras. Tira-lhe uma foto, a ele que sempre diz que a quer fotografar mas nunca o fez, ou ainda não. Até pareço um pianista a sério, diz. Talvez vocês não saibam, mas ele nunca se engana quando toca para peluches.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasChegámos até aqui [dropcap]U[/dropcap]ma mulher entra no autocarro. Assim parecem começar tantas das minhas histórias. Já se fez História a partir de histórias de mulheres em autocarros. Não parece, contudo, pelo menos não hoje, o caso desta. Fala ao telefone, declara: “Não me dói nada. Nadinha me dói.” Haja quem. Ela olha-me, o rosto mais enrugado que me lembro de ver nos últimos tempos. Cabelo grisalho muito comprido, contido com ganchos, molas e uma bandolete. Sorriu-me, já, por duas ou três vezes. Entro, finalmente, numa igreja, em hora de missa mas, para meu espanto, agora há missas em modo aula de cycling no ginásio, o que até deve fazer sentido, se considerarmos que igrejas e ginásios são locais que nunca fecham e onde se pode ir sozinho e ficar sozinho mas menos do que se estivesse fechado em casa. Pelo menos em alguns dias. Em vez do ecrã, temos o púlpito vazio e a voz gravada de um padre, que nem sei se é conhecido de alguma destas pessoas, ou se também opera em modo videochamada. Faço a minha parte e saio, muito antes de estar da missa a metade. Ficam os turistas, a minha estranheza e o meu arrependimento. Mas, voltando ao meu lugar preferido, e preferido de tanta gente, o austríaco na Rua Anchieta, a mesma que ao sábado vira feira de livros e torna tudo mais especial. Tenho voltado aqui muitas vezes, ultimamente. Ela dá as mãos, cotovelos na mesa, o olhar mais parecido com o meu, sempre que regresso do escuro da janela. Agora já não sorri, antes se levanta e prepara para partir, conheci-a durante o tempo de um café e isso pode ser conhecer alguém intimamente e para sempre e como ninguém, ou quase, ela levanta-se e parte, não sem antes trocar umas palavras com o pessoal da casa, como fez quando entrou, e dois amigos do empregado que entraram há pouco, prancha de skate debaixo do braço e a juventude nos ombros, no rosto e no resto. Na mesa, o café e meio copo com água. Volta a olhar-me, diz “Adeus, menina!” com a mão, o rosto e o resto. Eu continuo a escrever à mão. Escrevo sobre ela. Tem feito tanto frio que me doem os olhos quando saio do trabalho às seis da manhã. Dói-me este vento. Encontro, sempre que no turno da noite, dois homens na paragem. Digo bom dia e eles respondem. Um deles deixa-me sempre entrar primeiro e, certa vez em que choveu muito, o outro abriu o chapéu e deu-me cobertura enquanto o autocarro não vinha. Em certos dias, quando o autocarro se atrasa (e é uma hora cruel para atrasos), trocamos reparos, sempre em tom suave, não vá o autocarro ouvir e demorar mais. Às vezes penso que devem ser do mesmo país que eu. Outras, percebo que esse país pode ser este. Outras, ainda, penso se estaremos, realmente, no mesmo país, ou como seria se tivéssemos vindo do mesmo, onde as pessoas são tratadas de forma diferente conforme a tez seja mais clara ou mais escura. É como aqui, afinal, apenas ao contrário: quanto mais claro, pior. Tenho tido tonturas deitada, em pé, sentada. A anemia faz-nos isso. Mas que pode a anemia perante a Olívia, a minha nova melhor amiga de infância que, a três meses dos dois anos, me puxa e segura com as suas mãozinhas, me sorri com todos os dentes, que os tem, me encanta com os caracolinhos loiros perfeitos como numa fábula e ri, ri, ri, e me conduz em rodopio infinito pela sala e pela cozinha? É a brincadeira preferida dela, explicam os pais, e já encontrou uma forma mais eficaz de ficar ainda mais tonta. Giramos e giramos e nada nos aflige. Ela deita-se e eu arrasto-a pelo tapete, no sofá, ao longo das minhas pernas. Balanço-a de mim para os pais. Pelo meio faz festas à gata. O que pode qualquer sombra, o que podem os motoristas, os polícias, os políticos, contra uma bebé, que nos puxa e envolve, que leva sempre a melhor sobre nós, enquanto nos recorda do nosso melhor? No trabalho, sentimos que nos pagam pouco para virmos comer pistachios e conversar. O meu colega diz, “Dia 4 de Fevereiro é o aniversário da minha filha.” Pausa. “E o dia das catanas em Angola.” Rimos. “Faço anos a 15 de Maio”, conta uma colega em contexto da marcação de uma viagem. O primeiro responde, “Eu também, oito dias antes.” Rimos novamente, ou não parámos ainda. Corrijo, “É no mesmo dia, com a diferença de oito dias e uns vinte anos.” Ele, que é um português angolano, com passagem por Macau e pela Bélgica, regressou à primeira casa depois de décadas na África do Sul, onde sentiu, desde o primeiro momento, que estava em casa, que encontrara “O” lugar. E ali encontrou beleza imensa, uma mulher e uma família. Ao contar-lhe sobre a missa em formato podcast, reclama nunca ter encontrado uma igreja aqui onde, na comunhão, para além da hóstia, também aos crentes se desse a beber o vinho. Digo-lhe que, aqui, vinho só para padres e acólitos. Continua a retorquir que está mal, e assim vamos fazendo pausas de galhofar para trabalhar. Há dias assim e passam demasiado rápido. A vida passa demasiado rápido. “Já chegámos até aqui”, diz outra mulher para a amiga. Ambas saem do autocarro e, também, deste texto. E nós, seguimos?
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasVida Nova [dropcap]T[/dropcap]anto era tempo de partida que a avó se foi, sem ninguém dar por ela sair da casa habitada durante oitenta e oito anos. Um último Natal e, dois dias depois, uma ida silenciosa e serena, como quem diz: “Vocês cuidaram de mim mas, agora, finalmente, posso levantar-me e ir, vejam, afinal ainda consigo fazer coisas sozinha”. E lá foi, deixando para trás o eco da sua gargalhada inconfundível e todos os bons conselhos que nos deu. Foi sem falar e sem que as máquinas a traíssem. Foi sem que ninguém percebesse. No entanto, ninguém foi mais notado do que ela, entre a outra casa e o hospital. A doença prolongada faz isso. O amor também. E ela espalhou o seu, no mínimo, por mais três gerações. O que será do tempo e do espaço que ela ocupou aos que lhe eram mais próximos? Talvez nem eles saibam ainda. Talvez ainda seja cedo para fazer mais do que contemplar o vazio. Mas desconfio que as crianças ainda vejam a bisa e se riam com ela. Desconfio que as crianças saberão exactamente o que fazer. Que elas, uma e outra vez, ensinarão aos adultos o que é viver. Que é preciso fazê-lo. E que nem as crianças nem a avó terão lido Valéry. É outra vez aquela fase em que toda a gente parece estar com um bebé a caminho ou acabado de chegar. As visitas, os vídeos e as fotos ocupam a agenda e o telemóvel. Dou por mim a pensar em como pôde a vida ser antes destas chegadas que parecem, assim de repente, de quem esteve sempre ali. Poderia ser um grande motivo de preocupação, a ameaça de guerra. Mas um bebé ocupa tanto a barriga da mãe como tudo o resto. Em “Conhecereis a Nossa Velocidade”, uma das personagens de Dave Eggers declara: “Há viagens e há bebés. O resto é trabalheira e morte.” Começa um novo ano e somos obrigados a confrontar-nos com as promessas de falhar à la Pedro Chagas Freitas e a concluir que ele esteve, este tempo todo, a falar das resoluções de ano novo. Em reuniões de trabalho ou no Instagram, as listas são muito semelhantes. Dou por mim a fazer listas para os outros, como todas as pessoas que adoram listas e acham que sabem o que é melhor para alguém. Mas as listas que anunciamos publicamente não são, também elas, para mostrar aos outros? Penso na minha própria lista, evito-a, destruo e refaço-a. Dou por mim a falhar um ou outro aspecto e ainda só passou uma semana da não consensual nova década. O meu último momento vergonhoso de 2019 foi, ao sair de casa no dia 31 para deixar comes e bebes em casa de uma amiga, ter pedido ao motorista da Uber que me esperasse, pois ainda precisaria de ir ao teatro. Ricardo III, de Thomas Ostermeier, no Dona Maria II. A maravilha total. O motorista acedeu. Subi, desci e dirigi-me ao carro cinzento em quatro piscas frente ao prédio. Porta trancada. Bati e nada. Vidro da frente. Bato. O dono desce o vidro e olha-me, muito sério. Peço desculpa, olho para a frente e vejo um carro cinzento em quatro piscas. Entro. Conto o que acabou de acontecer. Rimos até ao teatro. O meu primeiro momento vergonhoso de 2020 foi, continuando com o dramatismo que define quer a minha vida quer a cultura que consumo, ter ido assistir ao querido “Que mal fiz eu a Deus agora?”, ver-me a braços com um menu pipoca mais refrigerante e, tendo chegado cedo ao cinema, em pleno dia 1, pousar a bebida no chão, à falta de suporte, e as pipocas no banco ao lado. Equilíbrio perfeito, até o dito ter tombado, sozinho, para o banco e para o colo da ocupante do banco ao lado, num momento em que, já em modo sala cheia, aquele lugar, ainda para mais no topo, se tornou, de repente, mais cobiçado que o trono mais falado dos últimos anos. Até ao filme começar, tive de desiludir umas cinco pessoas que queriam sentar-se ali. Mas só um senhor conquistou o Popcorn Throne. À saída do filme, pediu desculpa por ter-se sentado nas minha pipocas. Como dizia a alguém de quem gosto muito outro dia, estranhamente, não dei por mim a querer ser menos parva em 2020. Há quem saiba dizer onde se encontra no tempo da sua vida. Eu observei sempre as minhas mãos sem saber ou acreditar que cumpriria o comprimento da linha da vida. Tenho umas linhas bem longas e vincadas. Não sei onde me encontro, se falta muito mais para a frente do que o que esteve para trás. Seria assim, idealmente, não é? No entanto, para tantos e tantas, a dificuldade de viver é tão avassaladora que envelhecer nem é uma hipótese. A mente não chega lá. Quanto a mim, gosto de viver. Apenas nunca me imaginei a envelhecer, como se não fosse lá chegar sem tê-lo imaginado. Como se fosse desenhando a minha existência, ou escrevendo-a, ao longo da própria vida. Independentemente das mãos e de tudo o resto. Penso no que dizer a todos estes bebés. Mas é tão mais bonito e importante o que eles me dizem quando me olham, quando dormem, quando fazem birras e quando sorriem. É maravilhoso e tolo o tempo que podemos passar a olhar para eles. No fundo, precisamos tanto deles como o contrário, ou mais até.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasO lugar das estacas [dropcap]V[/dropcap]oltei ao lugar das estacas, expressão popularizada pela apresentadora Cristina Ferreira em 2016 quando declarou, emocionada: “Mesmo que eu um dia tenha de voltar à feira, ainda sei o lugar das estacas”. Considero este um dos grandes momentos da televisão portuguesa, com laivos de Scarlett O’Hara na sua saudosa Tara, declarando a Deus que jamais voltará a passar fome. Ao contrário de Cristina, que muitos consideram a figura deste ano que encerra, eu nunca vendi na feira, mas recordo-me bem de uma entrevista em que ela dizia só ter andado de avião pela primeira vez aos trinta. Há anos que não visitava a Feira do Relógio, a qual tenho descoberto ser ainda um mistério para alguns residentes lisboetas. Também eu me tenho esquivado, por preguiça e por ter vivido três anos na rua contígua à Ladra, a voltar à mãe de todas as feiras. Tolice. Nada faz passar a melancolia dominical como uma ida ao Relógio. Cresci em Alverca do Ribatejo, uma das muitas cidades onde há uma feira, no mínimo, todos os sábados. O ritual de sair para passear, normalmente em família, reencontrar toda a gente, ver coelhos e pintainhos à venda, voltar para casa com saias a dois euros e farturas no bucho em qualquer altura do ano, é parte da qualidade de vida que perdi quando me mudei. Que me perdoem os farmer’s markets, mas esta é uma liga superior: dos lugares mais mágicos, surreais e divertidos, em estímulo exagerado e contínuo de todos os nossos sentidos. Nada se faz pela metade a não ser, talvez, o preço. Há alguns domingos, depois de uma primeira desistência por causa da chuva na semana anterior, lá me dispus a percorrer novamente a Avenida de Santo Condestável. Abre o olho! Vá lá, vá lá, vá lá! Muito artigo bom e barato. Dois a um euro! Três a um euro. E há a quatro euros, também! Uma mulher usa um megafone e sobe a um pequeno escadote e há quem suba à própria banca onde tem os artigos. Desde que não chovam pedras!, repete alguém. Há quem cante Ciiiiinco euros, em falsete de fazer corar o Prince. Cinco, cinco, cinco é o mantra repetido em tom gutural. “Because I love you”, canta um homem que por mim passa, reclamando entredentes que o saco vai muito pesado para o seu gosto. É tão fácil existir aqui. Por todo o lado, sacos de plástico com desenhos de Pai Natal envolvem cuecas e tomadas eléctricas. Uma banca está protegida por uma toalha que reconheço: um padrão de ursinhos, que me remete de imediato para um primeiro date, há quase um ano. Já acreditávamos, mas isto confirma o seu lugar como a melhor toalha do mundo. Reparo ainda num belo avental, ostentado por uma feirante, com a inscrição “Deus te abençoe e te guie” pintada. Andem mal vestidas, andem. Não gastem o dinheiro, não. Ó jeitosas! Ó jovem! Ó menina, pode mexer à vontade. Um euro cada, se comprar cinco leva seis. Leva um oferecido. Já não é quinze, é a dez! A dez a dez a dez, é para a criança andar bem vestida na rua, na escola, para ir à missa! Cheguem-se para cá! É três por dez! Artigos de loja, artigos de marca! Para homem, para mulher: coisa linda! Leve tudo, leve tudo! É coisa boa, não é Primark, não é lixo. É da Loja das Meias! Pode abrir e ver. Aproveitem, Carolina, Francisca! Venham ver! Vá lá, princesa! Três collants! Olha a mala! Pode levar maiores e mais pequeninas, está bem, querida? Olhem que eu tenho luxo! Ó Teresa, esta menina diz para eu não a provocar. Vocês hoje estão uns chatos do caraças! É de roer! Andem bonitas, mulheres! Parar não é permitido. A feira pulsa, ribomba em sons e línguas diversos, e quem está nela deve acompanhar os seus movimentos. Cães a passeio e carrinhos de bebé são levados com cautela pelo mar de gente em constante desvio, uns dos outros e das estacas de metal que seguram as tendas com fios grossos e coloridos. Por aqui, há quem ande de patins em linha, quem branda pijamas-escalpe do Pikachu, quem fale com abacates, quem declare que é o próprio homem, o próprio ser humano quem está a dar cabo disto tudo. Delicio-me com um pastel de vento, clássico brasileiro de massa tenra com recheio de carne e queijo, que mal cabe no prato. Bifanas, garrafões de vinho, ervas aromáticas frescas e secas. Águas de colónia, bolas de futebol, a genialidade da expressão “jogo de cama”. Buzinas, serras, flores falsas e verdadeiras. Encanto-me com giló, malagueta em forma de rosa, pitaya de polpa roxa. Há pássaros, plantas, ovos em caixas intermináveis e bem organizadas. Com sorte até cassetes e disquetes. Soldados de brincar, porquinhos-mealheiro, mantas multiusos, um pinguim verde de louça que me acena, facas, bálsamo chinês, cola e escovas de dentes convivem num caos irónico que me tranquiliza. Posso comprar um sofá, um pente fluorescente, uma toalha de praia com golfinhos, um relógio do SLB, um baralho de UNO, pensos rápidos, brincos, uma Nossa Senhora que brilha no escuro ou pães chamados bebés. Não há limites. São ou não são os melhores, estes domingos de manhã na cápsula do tempo, no museu vivo de todas as coisas tuga?
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasDiários Turcos (II) [dropcap]S[/dropcap]e já te estavas a dar bem com uma pessoa, imagina quando ela te mostra uma foto sua num tractor, precisamente o que falta à tua colecção. A Lígia escreve um poema sobre um gato que conheceu numa livraria. Quem deu colo a quem não é certo. Em verdade vos digo, num sítio onde é preciso passar por vários detectores ao longo do dia, tenho sorte que os ganchos de cabelo não os façam apitar. Há pessoas que tentam acalmar-se a si mesmas. Eu digo isso ao meu cabelo. Esta noite: — Olha, vem aí a minha sobremesa preferida! — Portanto vamos comer a sobremesa dos mortos novamente. No carro, a Lígia olha para a minha mala. — Bem, cabe aí tudo. — Muitos anos a jogar Tetris. Passei os primeiros três ou quatro dias de cabelo apanhado num carrapito composto. Agora que o soltei, passo os dias a tentar que ele caiba fotos e não tape ninguém. No dia seguinte, bantu knots. Na última escola, em Gaziantep, uma miúda diz-me: — O teu cabelo é muito bonito. — Obrigada. Fiz isto a mim mesma. Estamos a jantar no sítio mais pomposo de sempre quando reparo que cravos ornam a mesa. Explico o 25 de Abril. Brincamos com Oxalá e Insha’Allah. Mistura-se turco, húngaro, inglês, português e árabe. Alguém escreve “Saramigo é o maior da Europa.” Já de Pessoa diz-se, pelo tradutor no telemóvel, “Eu leio o livro inquieto.” Doze pessoas no carro. Perguntam-me, “Museu da cidade ou café?” Café, respondo após uma ligeira pausa. Suspiram todos de alívio e alguém agradece. Explico que é só porque não quero que estejam tristes, porque eu adoro museus e, verdade seja dita, estamos SEMPRE a beber café e chá e café e chá de novo. Eles, OS ONZE, fumam fumam e eu morro morro, mas pronto. Reúno uma colecção de maços de tabaco turcos, com imagens super suaves e diferentes das dos maços portugueses. Atento também no lindo cinzeiro com cravos e no facto de, depois de termos acabado o café, perguntarem se queremos chá. What else? Este é o ciclo da vida. Chá, café, chá, café. Uma vez por outra água e iogurte. Novos diálogos de Gaziantep: Eu — Então diga-me, há quanto tempo diria que é inspirado por plástico de bolhas? Ele — Diria que há uns cinco, seis anos. No carro, discutimos a relação entre poesia e bolhas, sabão e plástico. Em mais um aeroporto, o rapaz das uvas oferece-me cigarros pela segunda vez. Muito engraçado. “Se alguma vez precisares de cigarros ou de plástico de bolhas, conta comigo.” Rio-me. De manhã, — Cá estamos nós a passar outra vez a Lx Factory cá do sítio. Hora de almoço, — Isto é tão feio. Parece Odivelas. Tarde, — Esta zona é mais Mem Martins. Só faltam as marquises. — Aqui, Azeitão. — Olha, afinal até há marquises. Como as primeiras castanhas do ano numa banca de rua, mas a iluminação led de Santa Apolónia ainda não chegou aqui. De regresso a casa, bem mais roliça, sonharei três vezes que regresso a este país, e em cada uma delas trago mais pessoas comigo. O que ficou por dizer é porque não se sentiu. Ou foi dito por todas as pessoas que nos leram, a nós, estrangeiros, durante aqueles dias em escolas, igrejas, cafés e universidades. Porque há coisas que se sentem em conjunto. Às vezes mando fotos da Ponte 25 de Abril e quase engano os meus amigos turcos. Outro dia, na Áustria, comentava com alguém que Istambul e Lisboa são muito parecidas. Essa pessoa disse, muito chocada, que Istambul lhe lembrava mais Nova Iorque. Na volta ambas temos razão. Lembra-nos um lugar de sonho, onde nos sentimos em casa. E o que é que jantámos na nossa última noite em Istambul? Jardineira, pois claro. Very, very typical. “Merhaba! Merhaba! Merhaba”, já dizia a Amália.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasDiários Turcos (I) [dropcap]O[/dropcap] que é que jantámos na nossa primeira noite em Istambul? Pizza. Very typical. Na recepção, um senhor chama-me umas seis vezes pelos nomes do meio, como se fossem um só e ele não conseguisse ler nem o meu primeiro nem o meu último nome. Chego, sento-me no sofá contemplando a hora de jantar. — Então, Gisela, que fazes? — Estou apenas… — Estás a rir sozinha? Estava a olhar para o telemóvel. Éramos cinco à mesa. Alguém me chamou. Levantei o rosto e duas pessoas queriam oferecer-me uvas. Uma tinha duas, roubadas à que tinha umas dez num cachito. Sem saber o que fazer, perante aqueles olhares ansiosos e braços estáticos, aceitei tudo. Um outro interveniente disse, de quem tinha mais, “Ele só queria oferecer-te uma.” Rimos. La Fontaine revisitado. Nos lavabos públicos, rapazes adolescentes e homens descalçam-se e lavam os pés, recolhendo os casacos pendurados à saída. Em sua casa, Zafer dispensa-nos de descalçar os sapatos, por cortesia. Chove e faz frio, mas nem isso impede os gatos de frequentarem a universidade à noite. Somos revistados à entrada dos museus e dos centro comerciais. Fotografo a Lígia no meio de oito chineses, cinco de um lado e três do outro, todos sentados e ela no meio. Quase todos me olham ao mesmo tempo sem combinar e sem desviar a atenção, como se nos conhecêssemos. Fotografo a Lígia a descalçar-se cinco vezes por entre túmulos e mesquitas; por vezes há um extintor ou uma roseira a compor o quadro. Dizem-nos “Quero saber a vossa religião. São cristãs? Porque eu sou muçulmano mas não sou um terrorista.” Mais tarde, numa escola, perguntar-me-ão se sou muçulmana. Mais tarde, numa igreja e numa escola, alguém levará a mão ao peito em vez de no-la apertar, deixando-nos penduradas e perplexas. Zafer disse-me, ontem: “Ainda não te sentiste estrangeira aqui.” À hora de almoço: — Isto é tão bom, lembra-me algo. — É leite condensado cozido. — Pois é. — Comemos quando alguém morre. — Então… Quem morreu? Finalmente cedo e digo, numa sessão escolar e em turco, que İsmet Özel (cuja obra desconheço) é o maior poeta turco. A multidão vibra. Yaya diz-me, através de notas num bloco que ainda tenho, que Rıdvan lhe confessou que quer casar comigo, porque o fiz feliz ao dizer esta frase que me vinha repetindo há dias. Há uma foto do momento preciso em que leio essa frase e rio: é uma das melhores fotos desta viagem. No aeroporto: — Eventualmente todos os turcos vão embora. — Excepto tu. No palácio: — É pá, a bandeira e todas estas luas lembram a Sailor Moon, não achas? — Pois é. Ao fim de um tempo teríamos de ceder às casas de banho à la Bairro Alto. Nem sei como demorámos cinco dias a atingir este marco. Domingo a Turquia fez anos. Segunda, fiz eu. Já me perguntaram algumas vezes se estou aborrecida. Normalmente é quando me calo. Ou há pouco, porque estava em pé lá na rede expressos enquanto fazíamos tempo. Acho que é isso que querem dizer porque fazem a pergunta ao contrário, perguntam, “Estás a aborrecer-nos?”. Espero que não. Respondo que nunca me aborreço e que dentro da minha cabeça estou sempre bastante entretida. A Esra, a nossa intérprete, anui com a cabeça e sorri, acho que começa a conhecer-me. No autocarro para Gaziantep, agora somos nove, (comento com a Lígia que isto é a Sete Rios cá do sítio) sentados à espera que parta, e estou a tagarelar fluentemente, como sempre. Dizem-me, “Esta avó…” e eu penso, deve querer que eu me cale, afinal só se ouve a minha voz, “…Diz que te ama.” Gargalhada geral, e a senhora vai repetindo os seus afectos instantâneos em turco. Vão ser umas lindas seis horas de viagem. Novos diálogos de Konya: — Este catering só no Alfa. — Wifi no expresso para Melgaço. A Lígia bate-me ao de leve no ombro. Passa-me um phone. Notorious B.I.G, “Big Poppa”. Gosto desta miúda. Estamos um pouco lost in translation, tempo e espaço. Já não sabemos bem que dia da semana é nem que horas são em Portugal. Ao telefone a minha amiga diz que são quatro da tarde. Aqui, sete. Não há horário de Inverno, só o Inverno em si. No meio de nenhures, paramos rapidamente pela segunda vez. Desta vez saímos. O rapaz das uvas não fala inglês. Oferece-me o maço. Eu não fumo, digo (pensava que já teriam reparado por esta altura, considerando que sou realmente a única que não fuma). Porquê?! Pergunta um outro. Ouvem-se tambores. Dizem-me que é uma celebração, uma despedida, um rapaz vai para o exército, como é costume aqui quando aos vinte ainda não se foi para a universidade. WC Bayan é casa de banho das senhoras. Dão-me uma moeda para a mão. A sério? Olá, Santa Apolónia nos anos 90, com porteiro e guichet nos lavabos. Por algum motivo agora só me apetece ouvir Beatles: “Here, there and everywhere.” Seguimos caminho.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasRapariga com tatuagem de Pégaso [dropcap]E[/dropcap]ra sexta-feira. Ela tinha o rosto coberto e, depois de o destapar e lhe dar um beijo, voltou a cobri-lo. As tias e outras pessoas formaram um círculo e, de mãos dadas, começaram a cantar. Eu não percebia bem o que elas diziam, porém a música era tão bela e triste, o ar tão pesado que, minutos depois, me fez romper num pranto desesperado. Não era a única. Quando quis despedir-me, aproximei-me do caixão e destapei-lhe o rosto. Parecia uma versão um pouco acinzentada de si mesma. A maquilhagem utilizada para disfarçar as marcas da violência que sofrera não era suficiente. O piercing no nariz ainda lá estava e o pescoço coberto, mas eu só soube a razão um mês depois. Pedi-lhe desculpa por tudo aquilo mas também pela pena que involuntariamente sentia de mim mesma agora, uma semana antes do meu aniversário, aquele que eu nunca esqueceria. Disse-lhe adeus, baixinho, e encostei os lábios à testa dela para dar um beijo à rapariga com a tatuagem de Pégaso. Fui invadida pelo gelo que é já não termos o coração a bater. Ela estava da temperatura mais baixa que eu alguma vez tinha sentido. E foi como se me abandonasse o espírito, e repente pensei que ia desmaiar, tal era a forma desvairada (tão diferente da minha voz de sempre) como eu gritava, chorava e dizia o quão fria ela estava. Como se mais ninguém soubesse. Eu nunca tinha tocado numa pessoa que não estivesse viva. Nos filmes e na televisão nunca vemos alguém estranhar essa temperatura oposta à nossa. Era a segunda pessoa morta que eu via, mas a primeira em quem eu tinha tocado. Já não sei quem me segurou; estava histérica e não percebia como é que a rapariga de antes fora capaz de fazê-lo com tanta serenidade. Consegui controlar-me algum tempo depois, apenas o suficiente para voltar para junto dela e dar-lhe o beijo de despedida que interrompera. Sábado. Mais um funeral em dia solarengo e quente. Comecei a achar que fazia sempre sol nos funerais, mas claro que isso não fazia sentido. Nem parecia que estávamos em Outubro. Foi tudo muito difícil, desde o percurso da igreja para o cemitério ao baixar do caixão e atirar dos primeiros bocados de terra (ouviram-se choros e lamentos reforçados, nesse momento), até ao olhar em volta, para aquela massa enorme de gente, e pensar “Será que ele está aqui?” Ele, o autor de tudo aquilo, sobre quem cedo pensei que precisaria de perdão. No dia seguinte, domingo, como habitualmente passei as duas últimas horas de trabalho sozinha e, entre a falta de chamadas e a visão da sua cadeira vazia, tão perto da minha e mais vazia do que as outras, dei por mim a vaguear pela sala, até encontrar um saco cinzento, dos que usávamos para guardar os headsets e, dentro dele, entre várias outras coisas, o seu caderno actual. Foi uma descoberta assombrosa. Um caderno A5, azul, pautado, com argolas brancas, perfeitamente comum, que eu guardaria durante muitos anos, como se pudesse trazê-la de volta. Todos os tínhamos; eram uma das nossas ferramentas de trabalho mais importantes, onde registávamos o nome da pessoa com quem estávamos a falar, fosse cliente, colega de loja ou motorista, o número da loja e o número do processo em questão, um procedimento que parece obsoleto, volvidos doze anos. O caderno começava a nove de Setembro e terminava a vinte e três de Outubro de dois mil e sete. Começava com uma Fátima e acabava com uma Ana. E entre uma e outra houvera Rosas, Danielas, Verónicas, Josés, Mafaldas, Paulas, Carlos, Pedros, Sandras, Cristinas, Jorges, Tiagos, Margaridas, Salomés, Brigites, Marcos, Ruis, Olgas, Cátias, Ricardos, Elsas, Joanas, Adílias, Martas, Dulces e tantos outros nomes, de inúmeros sítios do país. Havia um post-it amarelo com o nome e o número de telemóvel do nosso chefe. As datas apareciam a vermelho e marcador amarelo fluorescente. Tudo o resto fora escrito a azul e, antes de cada nome, alternadamente, um traço ou uma bolinha, a vermelho. Metade do caderno estava preenchida, a outra metade em branco. Alguns rabiscos, uma ou duas notas não relacionadas com o trabalho, o seu nome e alcunha escritos em vários sítios, com uma daquelas canetas de bico fino, verde escuro. Um bloco de apenas três post-its, com o rebordo pintado a verde, na folha do dia 23 de Outubro – sem nada escrito. Nada mais seria escrito. Eis o caderno da Vânia, que sabia dançar, que fumava, que devorava Pringles e adorava Skittles embora afirmasse, com toda a certeza, que os de Inglaterra sabiam muito, muito melhor. Compreendo. Afinal, a vida também sabia melhor quando ela estava por perto. A filha herdou dela a beleza e, com um pouco de sorte, a todos nós terá calhado alguma da sua força. Ouço “Visions” de Stevie Wonder repetidas vezes. Olho as fotos cúmplices que já conheço de cor. De algum modo, sinto que são as mais belas. Passou metade da pena de prisão. Passou muita coisa, excepto a memória de alguém que conheci apenas durante meio ano. Bolas, que belo meio ano.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasVelhos conhecidos [dropcap]E[/dropcap]la (que gosta muito de estalar os dedos encostando as mãos em mim e fazendo pressão de um lado e do outro até se ouvir aquele crac-crac-crac e eu reclamar), bateu com a cabeça pouco antes de eu apanhar o comboio para ir ao seu encontro. Mandou-me uma fotografia de um galo gigante, com um pequeno furo que em breve começaria a jorrar sangue (esta parte não vi, foi ela quem mo contou, e eu acreditei). Logo se encaminhou para o hospital e, trocando-me pelo namorado que foi lá ter, deixou-me entregue a mim mesma e à missão do dia: comprar óculos pela primeira vez em anos. Eu bem insisti que poderia acompanhá-la, mas há dias em que o que nos aguarda o faz sabendo que não lhe vamos escapar. Na óptica, deambulei de um lado para o outro, experimentando todo o tipo de armações, cores e preços, fazendo caretas, tirando fotos e enviando-as às amigas pacientes para que me dessem a sua opinião. Na mercearia, fico a saber da morte de Tiago, o gato amarelo que vi pela primeira vez de lombo solarengo estendido num banco da paragem do 729 da Carris, num qualquer domingo a descer a Calçada da Ajuda, antes mesmo de vir viver para o bairro. A chinesa Lili, dona do estabelecimento, diz-me que foi atropelado esta manhã. Ela própria, tentando conter as lágrimas, fala de quão triste está o marido, que se levantava sempre mais cedo para ir procurar este agora falecido vizinho e dar-lhe comida. Outra cliente, com a qual a conversa começou, na verdade, lamenta a perda e as saudades que a Doutora (não fixei o nome) da farmácia, terá. Eu mesma já vira Tiago à porta da farmácia algumas vezes, sossegado, observador, pertencente a todos e a si mesmo sobretudo. Falta um mês para o meu aniversário. Finalmente mudei a minha morada no banco, mas não me tenho sentido em casa senão quando estou fora. Comecei mais uma vez a carta que não consigo escrever e sempre acaba no lixo. Fiz um bolo de limão e saí sem saber bem se para ir comprar açúcar em pó ou para resolver a minha vida. Deixei dois rolos a revelar, ao fim de onze meses. Quando estiverem prontos talvez eu também esteja. Comprei açúcar e farinha. Liguei ao meu irmão. Ontem soube que a mãe dele faleceu. E fiquei muito triste, apesar de não saber quase nada sobre ela. Então finalmente liguei à minha própria mãe. E recebi uma mensagem do destinatário da carta que não escrevi. Aprendi outro dia que sonhos, para os brasileiros, são cuecas viradas e que aquilo que para nós são bolas de berlim é que eles chamam de sonhos. Tudo isto me parece da maior importância. Como o post-it amarelo que deixei a marcar a página trinta e dois de “The Genius and the Goddess”, de Huxley. Um livro que ainda não li, na verdade, mas que marquei com uma lista de que constam: duas alfaces, duas latas de atum, duas couves lombardas, dois frangos para assar, quatro cenouras, tomate para salada, salsichas frescas, um pimento, dois litros de leite magro e dois quilos de carne picada. Não sei quanto tempo tem a lista ou o porquê da obsessão com o número dois. De volta à mercearia: uma velhota dispara, ao entrar e sem dizer bom dia, “Mãos nos bolsos dão mau aspecto”, para o dono, sorridente atrás do balcão. Minutos mais tarde ouço-a refilar outra vez “A culpa é das mulheres. Onde estão as mulheres?!”. Foi no corredor do pão. «“The trouble with fiction,” said John Rivers, “is that it makes too much sense. Reality never makes sense.” “Never?” I questioned. “Maybe from God’s point of view,” he conceded.». Faltam duas semanas para o meu aniversário. Há um bolo de laranja que, por este andar, ninguém vai comer porque, embora o tenha feito muitas vezes, as últimas foram sempre na minha cozinha mental. Páro muitas vezes o que estou a escrever para olhar as nuvens sobre o rio, nesta casa abençoada a que vim parar quando a anterior foi vendida. Voltei a ter vista de rio, como há três casas atrás. Hoje estão particularmente interessantes, as nuvens, ou então este assunto é-me particularmente difícil. Escreveu Daniel Faria “Socorre-me / Devolve-me a leveza / da tão primeira nuvem que avistares”. A pessoa tenta. Hoje ia dormir uma sesta feliz, a cabeça naquele lugar estratégico onde bate mais o sol, mas as horas passaram, estou lenta, sonolenta e a luz mudou entretanto. É que precisei, primeiro, de voltar a um outro lugar, de luz branca forte e cruel. Precisei de voltar à óptica, há muitos meses atrás, a ver o meu meio-irmão pela segunda vez na vida, ele a escolher óculos como eu, ele a bater-me ao de leve no ombro, ele a abraçar-me. Como vizinhos ou velhos conhecidos.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasBeleza Feia [dropcap]H[/dropcap]á um ano, numa visita a Sintra para visitar a vernissage de uma amiga pintora, a que estava comigo perguntou, enquanto eu tentava fotografá-la e lhe dava dicas para se embrenhar mais no meio de umas flores brancas que encontrámos pelo caminho: “Gisela, o que fazes com as tuas estrias?” Respondi: “Aceito-as. Digo bom dia e boa noite.” Recentemente, uma das minhas amigas, que é professora de yoga e, claro, super fit, posou para uma marca e acho que ainda não lhe disse o quanto gostei do facto de em nada ter coberto as cicatrizes de uma operação para lhe salvar a vida, ainda bebé. O instagram pulula de posts de Kim Kardashian (conhecida por mil coisas mas a mais divertida, sem dúvida, a sua cara feia de choro) a promover produtos e serviços de marca própria, familiar ou alheia. Mais recentemente porém, Kim tem divulgado a sua maquilhagem de corpo, que usa para cobrir a psoríase, mas da qual vemos também um vídeo atenuando as veias azuladas e a pele rugosa de sua avó. A modelo Salem Mitchell é dona de um dos memes mais engraçados de sempre: segurando um cacho de bananas pintalgadas junto do seu rosto pejado de sardas. Do pesado gozo da comunidade online surgiu uma carreira de sucesso em tenra idade. Outra modelo negra, Winnie Harlow, que aliás colaborou recentemente com Kim numa linha de maquilhagem de rosto, é conhecida por ter vitiligo, e tem vindo a desafiar positivamente todas as ideias de beleza convencionais de que pelo menos alguns de nós já se cansaram. Uma das minhas fotos preferidas do instagram, de sempre, foi postada no dia dezoito de Agosto deste ano, pela famosa modelo plus-size Ashley Graham. Um foto nua, de lado, mão de manicure vermelha impecável e aliança a tapar o mamilo. Vemos dobras, peito, estrias e marcas de quem está sentada de lado, perna encostada à barriga. Uma foto de quem está, também grávida, antes de a barriga arredondar e ganhar espaço, ou seja, antes de Graham ficar ainda mais bonita. A foto soma até agora mais de um milhão e setecentos mil gostos, inclusive o meu, que já a revisitei inúmeras vezes até me decidir tirar e postar uma igual, de um lado e de outro. Ashley é uma das mais conhecidas modelos plus-size, e tem agraciado as capas e passarelas de revistas e marcas notórias em todo o mundo, inclusive a da edição de fatos de banho da Sports Illustrated ou da Vogue. Ashley é uma daquelas raparigas que deve, ao longo da vida, ter ouvido comentários sobre como tinha tanto estilo e um rosto tão lindo… para uma rapariga gorda, isto é. Deve, até, ter ouvido que, se emagrecesse, poderia ser modelo. Eu sou só uma rapariga comum que uma vez engordou 60kg e depois aprendeu muitas lições, sobretudo sobre si mesma. Um dia somos adolescentes e perguntam-nos se nunca pensámos ser modelos. Outro dia estamos na lista de espera para uma cirurgia bariátrica. Anos depois, alguém nos pergunta se não queremos posar para uma marca de bikinis sustentáveis e depois de muito hesitarmos e nos torturarmos, aceitamos. A pessoa que eu mais quero influenciar ainda sou eu própria e este mês, um ano depois de ter parado, voltei ao ginásio. No entanto, é irónico como certa vez convenci uns seis colegas de trabalho a inscreverem-se e que todos tenham continuado até agora. Lutas. Outra celebridade que tem ganhado fãs em todo o lado é a já mítica Lizzo. Num dos seus singles do último álbum colabora com uma Missy Elliot visivelmente mais magra, olhos amendoados sobressaindo, sempre fiel às roupas desportivas, sempre dançante, sempre uma rapper maravilhosa. A Supa Dupa Fly tem lutado com o peso ao longo dos anos, e pergunto-me o que pensará sobre esta fase em que as coisas parecem estar, lentamente, a mudar. O meu instagram reflecte alguma aceitação e celebração, no entanto as partilhas são pouco as de cada uma e das mulheres reais da sua vida e mais de estranhas e famosas. Ou seja, aceitamos apenas quem já foi aceite e validado pela internet? Porque é que não celebramos a mãe, amiga, irmã, vizinha, colega de trabalho mesmo ali ao lado? Porque podemos cruzar-nos connosco num espelho perto delas? A aceitação é para quem, afinal? Desde a estreia de Euphoria, a série do momento sobre adolescentes, Barbie Ferreira é a porta-estandarte da geração mais jovem, sendo, a par de Lizzo, talvez a mais cool desta onda, não houvesse uma cena, na série, em que a sua personagem dança sensualmente em modo twerk ao som de, precisamente, “Tempo” e do verso Slow songs ain’t for skinny hoes. Thelonius Monk talvez concordasse. Finalmente, volto aos meus primeiros amores plus-size: Nadia Aboulhosn e Gaby Fresh, divas e amigas: bloggers, modelos, designers, entusiastas do exercício. Porque, sim, todas estas moças plus-size passam, aparentemente, tantas horas no ginásio como a própria Kim Kardashian que, como Hemingway fazia, se pesa todos os dias. A diferença estará, talvez, na alimentação. A semelhança maior? No amor. Algumas raparigas são maiores que outras, diziam os Smiths. Não vejo mal nenhum nisso.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasEu sou ela “and he said: you pretty full of yourself ain’t chu so she replied: show me someone not full of herself and i’ll show you a hungry person” Nikki Giovanni [dropcap]A[/dropcap]s redes sociais mundiais estão obcecadas com Greta Thunberg e coube às redes sociais portuguesas duas obsessões extra: o último video do rapper Valete e a gaguez de Joacine Katar Moreira. Não sei quase nada sobre Valete, a sua carreira, as suas origens, o seu percurso pessoal e profissional. Ouvi muitas vezes uma canção de há uns anos, em que colabora com Capicua, rapper, feminista e activista extraordinaire. Essa canção, Medusa, é precisamente sobre abusos, igualdade de género, é o denunciar de situações criminosas e misóginas que vemos, ainda, repetirem-se demasiadas vezes. Na semana em que o Theatro Circo de Braga se encontra de luto profundo por um elemento fundamental da sua equipa, Gabriela Monteiro, ter falecido, vítima de violência doméstica, a reflexão e a acção tornam-se mais urgentes ainda. Não entendo o que aconteceu nos últimos anos para que a mensagem de Valete tenha, aparentemente, mudado. Sei que enquanto rappers, feministas, plantas e animais de estimação debatem no twitter e no Youtube, essas mulheres continuam a precisar, elas sim, de atenção, que tem ido para tudo e todos excepto as mesmas. Passamos tristemente do oitenta ao menos oito, quando as argumentações e defesas revisitam os esqueletos no armário de cada um dos envolvidos, abordando situações totalmente alheias a esta. Mediatismo à parte, não é diferente ver o video de Valete (que não aprecio, nem à letra, nem à defesa que dele faz) ou ver videos virais, brasileiros, verdadeiros, de mulheres que maltratam outras mulheres violentamente, em situações de adultério, com armas e cortes de cabelo, exactamente ao nível do que os gangues fazem. E se recordarmos a carreira musical de Rihanna, talvez fiquemos um pouco confusos com Love the way you lie ou Bitch better have my money e a mensagem que passam, depois da sua famigerada relação com Chris Brown, resultante em violência. Apenas me pergunto se não deveríamos, como diz Capicua, colocar a minha ira, a nossa ira, a ira…ao serviço de cada vítima acusada / e transformada em monstro. No cartaz de um evento está a minha foto e a de mais três mulheres, uma delas negra. Por engano, escrevem o meu nome duas vezes: por baixo da minha e da foto de uma delas, a escritora Yara Monteiro, que se apercebe do erro e pede a correcção. Concordamos, rindo, que é um elogio mútuo, erros à parte. Seria porque ambas temos uma mega cabeleira solta e volumosa, fácil de confundir? Estas coisas acontecem com alguma frequência, seja com nomes, fotos ou até descrições. Por vezes até através do tempo e do espaço, como descreve a Djaimilia Pereira de Almeida em Esse Cabelo, quando se reconhece na mítica foto de Elizabeth Eckford, tirada em 1957. Eu mesma tiro uma foto de rosto encostado à capa deste romance, ao melhor jeito “podia ser eu”. É que podia mesmo. Dias mais tarde, ao jantar numa associação, um jovem dirige-se-nos. Sim, estou agora com essa amiga, já fora do cartaz e com muito menos cabelo do que na foto. O jovem apresenta-se e, quando dou por mim, está a segurar-me as mãos, embevecido. Pede-me um autocolante, respondo que só tenho um, a minha amiga também, mas cede o seu. Ele continua, embevecido, a segurar-me a mãos e a dizer coisas que não percebo, mas a minha amiga sim, e clarifica: “Ela não é a do autocolante.” É então que eu e o jovem ficamos perplexos, ele por perceber que eu não sou eu ou, pelo menos, aquela que ele julgava que eu era, e eu por perceber finalmente de onde vinha tudo aquilo. Mais um dia na minha vida. A minha amiga continua “Ela está lá fora.” Sei um bocadinho mais sobre ela do que sobre o Valete. Ela, neste caso, também conhecida por aquela com quem eu fui confundida, era Joacine Katar Moreira, a outra mulher do momento. Sim, aquela que gagueja e depois fecha os olhos e faz sons estranhos e tudo isso. Ocorre-me um trocadilho entre o romance de Yara e a gaguez de Joacine, em vez de Essa dama bate bué, poderia ser Essa dama gagueja bué. Continuaria a ser uma história sobre mulheres e luta. Tento negociar com esta minha nova função de sósia, que representa uma grande vantagem para ela, a da ubiquidade. Mas onde é que ela não está? Outro dia vi tantos dos seus cartazes espalhados, a maioria intactos, um ou outro vandalizados, como todo o bom cartaz, no bairro com maior diversidade cultural de Lisboa. Recordei as suas palavras numa entrevista recente: “Eu sou uma mulher negra para poupar o esforço a muita gente.” Tenho de lhe perguntar, a ela e a todas as mulheres, vítimas ou não de alguma coisa, certamente sobreviventes de muitas mais, se conhecem a poesia de Nikki Giovanni (em cuja foto de cerca de 1980 me espelho, cheia de saudades de ter o cabelo maior) e aqueles seus versos: “I cannot be comprehended / except by my permission.” Urgem a permissão, a compreensão, o respeito e a paz.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasOlá mãe! [dropcap]T[/dropcap]alvez esteja quase a entrar no chamado inferno astral, como todos os bons aniversariantes, cerca de um mês antes da dita efeméride, talvez seja deste tempo que no mesmo dia muda várias vezes do azul para o cinzento, talvez seja do adiantado da hora e de Setembro. O ano termina daqui a três meses, Junho despediu-se sem que mal o tenhamos vislumbrado (num ano em que voltámos a ter frio nos Santos Populares) e não estou certa de que Maio, até agora o meu mês preferido, tenha chegado a terminar. Os dias 25 parecem, em geral, bons para a independência. Tendo vivido algum tempo com duas pessoas cuja formação de base é da área da psicologia, habituei-me a ouvir as suas histórias caricatas dos tempos lá passados, mas sobretudo a usar a expressão “Fazer as malas e bazar para Moçambique”, usada por uma dessas amigas para descrever a sua hilariante fuga para longe de uma relação. É a primeira vez que volto a um país onde não faço parte da minoria, um sentimento indescritível a não ser pelo meu sorriso. Nunca aqui estive mas, como denota um amigo, sinto-me em casa tão imediatamente que nem consigo tirar fotografias. As primeiras, envio à minha irmã, precisamente por saber que ela vai reconhecer a descrição que faço, não se parecessem estes bairros com os da cidade em que crescemos. Quando aqui chego, e durante os próximos dias, observo sempre, em algum momento, borboletas à minha volta. Não me transformo nelas, nem são amarelas, mas alegram-me. Tudo faz sentido neste sortido de cores vibrantes e escritos curiosos, desde os avisos para não fazer xixi (o equivalente aos não escarrar para o chão de Macau) ao conselho Moçambicanos, não troquem o pão por doces, ao meu novo mantra, encontrado no Mafalala: Caiu mas vai levantar. É a primeira vez que me chamam mãe, embora não a primeira em que me confundem com a de alguém. É, também, o dia da mãe. No segundo dia, saio do hotel assim que o cansaço da viagem permite, e deambulo durante cinco horas pelas ruas de Maputo. Os moçambicanos são conversadores, simpáticos, práticos, curiosos, prestáveis. São campeões de vendas: de manhã à noite, estão em constante negociação. Caju, amendoim, brincos, estátuas, flores. Muitas flores, porque são um povo absolutamente romântico. Enquanto espero para almoçar, aparece mais um. Tem um produto verdadeiramente único, em madeira, quase do seu tamanho, para me apresentar: África. A vida dispensa metáforas. Na Avenida Marginal, faço amizade com dois polícias, homem e mulher. Um desportista alerta-me de que nem todos os que por ali caminham são bem-intencionados. Por falar em desportistas, quase me junto a uma aula ao ar livre. O sol nasce e põe-se tão cedo aqui que pelas dez já me sinto como se fosse uma da tarde. O ninho do tecelão parece um coração invertido. Não muito longe de onde o Carlos apanha um para me mostrar, numa loja, na praia, assistimos a um concerto de tear, tocado por um rapaz que mal o larga para nos vender inconfundíveis sacos coloridos. Ao regressar pela reserva, os animais que não se manifestaram durante a vinda proporcionam-nos o melhor momento do dia: macacos, gazelas, girafas. É outra vez sábado. Só estou aqui há uma semana? Ficaram-me a Vanessa, a Ana Mafalda, a Estela, o Mbate, o Ondjaki, o Valter, a Carmen, o Patraquim, o Mendonça, o Pignatelli, o Carlos, a Énia e tantos outros resilientes. Ficou-me a Teresa vestida de branco, naquela última manhã de domingo. A foto da Luna de que só se lhe vê o cabelo luminoso, no banco de trás do carro, no dia em que fomos dar um mergulho à Ponta do Ouro. Uma outra, da Jade, deitada ao comprido no sofá, descalça, pé direito enroscado no esquerdo, livro na mão como tantas vezes esta família parece andar. Jade com a gata ao colo, Jade a comer queijo deliciada, Jade a explicar-nos o mundo e a ralhar ao pai à mesa, em conversas divertidíssimas. Ficou-me o Cabrita à janela, em modo despedida, talvez ainda a lamentar as flores vermelhas das acácias que não coincidiram o seu tempo com o meu, enquanto a Sónia vem de casa da irmã, do outro lado da rua, e me dá mais um livro e uns quantos abraços. Ficou-me a doce Hirondina, que conheci em Macau e a Keysha, essa miúda maravilhosa, tão jovem, mãe de uma menina que fez um ano daí a dias. Volto para Portugal mais pesada, e não é só dos livros, ou não tivéssemos comido e bebido à fartazana. Volto com mais um sonho realizado. Volto com um verso do Craveirinha, “O que há a fazer sou eu que tenho de o consumar.” Ficou-me o clássico “africano a tentar convencer outro a transportar-lhe qualquer coisa numa viagem intercontinental”, neste caso duas mulheres que se me dirigem, uma delas passageira e a outra embaladora de malas com película aderente no aeroporto. Ficou-me o comerciante que ameaçou atirar-me à água quando fotografei a sua loja sem reparar que ele estava lá dentro, as fotos desfocadas de estranhos nos my love ao pôr-do-sol e essa saudação tão bonita que se ouve em todo o lado. Olá amiga, olá mãe.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasSem título [dropcap]O[/dropcap]ntem não houve nada que não me acontecesse”, afirma uma mulher. Desço do autocarro sem saber do seu passado recente, que poderia bem descrever a minha vida, em todos os seus tempos. Passo pelo Profeta do Cais, que continua a apregoar não a sua opinião, mas a palavra de Cristo. Repete, incessantemente, que vem em nome de Jesus, em poder e autoridade gentilmente cedidos por Ele. “Para que ninguém nos engane”. Desperta curiosidade e gáudio, este jovem moreno, magro, de barba e cabelo desgrenhados, munido de Evangelho e mochila. Quer saiba ou não, irá certamente parar a uma qualquer rede social, como meme ou vídeo viral. Eu penso em Bashô. no lugar sagrado as pessoas não param de se empurrar No trabalho, um colega partilhou estes dias a sua alegria por ter descoberto uma igreja onde a missa é em inglês, útil para a sua família sul-africana em que nem todos falam português. Quanto ao jovem, o seu pregão não parece ter fim, nem a sua fé, o trânsito, a multidão, o barulho ou a música. Pergunto-me o que faz quando não está ali, do mesmo modo que me pergunto o que fazem os vendedores de castanhas quando acaba o Outono, se bem que actualmente, como o clima anda, já ninguém estranhe que se vendam castanhas e gelados, harmoniosa e simultaneamente. Espero que caminhe na luz em que se vê. ninguém diz como molhou as mangas nesta retrete Caminho umas poucas centenas de metros até onde me esperam. No primeiro dia, sentei-me com eles à espera uns bons dez minutos, até fazer a pergunta certa. Saber quem gosta de grão, quem prefere uma certa sopa ou não come sopa, de todo, tem miúdos ou é intolerante à lactose. Prestar atenção a rostos, números, caixas, datas. Voltar a usar avental. Enganar-me a registar coisas. Saber quem vem hoje e quem quase nunca vem e que, por isso, precisa de um pouco mais. Saber quem vem todos os dias e, ainda assim, parece acreditar que o pão nosso de cada dia não é suficiente. Sei bem como é, o medo e o não confiar que existe essa abundância em tudo. Ironicamente, é em parte devido a essa abundância, esse excesso, até ao nível do desperdício, que aqui estamos. o meu amigo trouxe arroz e a lua Saber quem tem luz, água, casa. Cometer mais erros. Recordar quem se queixou com uma careta, na semana passada, de que não gostava de beterraba, e que parece vir quando lhe apetece ou melhor, age sempre como se não fosse aparecer. É preciso lavar as mãos e limpar a bancada muitas vezes. Não misturar utensílios. Usar uma touca na qual o meu cabelo claramente não quer caber. Dar conta da loiça que se acumula tão rapidamente. O pão mais requisitado é o de fibra, com sementes e passas, logo o que há em menor quantidade. Adoro esse pão, mas ainda não consigo associar os nomes aos rostos ou ambos aos números. Rejo-me por listas e perguntas, por apresentações. Sinto que estou numa cozinha mas não cozinhei, num restaurante mas não existem mesas, só cadeiras e fila e uma sala de espera, que estou numa padaria mas ninguém pede a conta, num supermercado em que toda a gente traz o seu saco, leva e devolve recipientes de cada vez, sem IVA, factura ou cartões de desconto. enrola bolos de arroz só com uma mão com a outra afasta o cabelo Um homem, cuja comida vou ajudando a colocar dentro do saco (entre carne, arroz, bolos, iogurtes, salada de frutas) pergunta-me se sou de Cabo Verde. Um sinal? Não que precisasse de um para saber que estou precisamente onde devo estar. Rio-me, respondo que é a pergunta que mais me fazem, talvez mais do que como é que me chamo. Estende-me a mão, cumprimentamo-nos. Digo-lhe de onde vim. Ele é angolano mas, pelos vistos, é frequentemente confundido com um cigano. “Então se estiver de preto e com um chapéu… os próprios ciganos já nem perguntam, assumem que sou um deles.” Somos todos tudo, nenhum lugar é garantido e todos podem ser invertidos, mas duvido que este homem precisasse da invenção das hashtags para saber de algo tão básico. 1686 ANO NOVO Comendo o que me dão e o que mendigo, sobreviverei sem fome até ao fim do ano. talvez eu seja uma dessas pessoas felizes que vão chegar ao fim do ano Servem-me café num conjunto antigo de chávena e pires delicados, com arabescos florais, do qual me esqueço, como vem acontecendo muitas vezes. Tomo-o já frio, não me demoro porque, afinal, duas horas passam demasiado depressa, mesmo se bem passadas. Oferecem-me um saco carregado de fragrantes maçãs colhidas no fim de semana, de quem tinha toneladas e toneladas de excedentes para doar, desde que alguém fosse buscá-las. Garantimos que toda a gente leva alguma. Há, ainda, pêras. Sinto sempre que poderia, facilmente, ficar mais tempo, como os meus colegas voluntários. Tempo para os outros, quando não nos são nada de instituído social ou biologicamente, tempo para nos fazemos úteis a alguém é tempo para recuperarmos algum silêncio, alguma humanidade. Para a semana, para mim, há mais, espero que por muito tempo, agora que voltei a isto. Para outros, todos os dias são dias assim, vulgo a sua vida. Espero que não para sempre.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasUm lugar à mesa [dropcap]S[/dropcap]ão muitos, para todos os gostos, viciantes, uma pequena escola de culinária. Vão criando versões e reinventando-se uns aos outros. Contam-nos episódios ilustrados ao pormenor por fotografias em que os humanos são secundários e as refeições, o que importa. Fazem-nos companhia. Inspiram-nos. Vêem nascer amizades. A Ana Luísa Amaral tem muitos poemas que são, na verdade, receitas, e os seus poemas estão para a realidade como os blogs gastronómicos estão, bem, para o resto. Já desconfiava da doença, porém nunca poderia adivinhar o resto. O que sabemos, realmente, senão o que as pessoas demonstram? Nas redes, pelo menos. A inevitabilidade de um ocasional revirar de olhos e uma crítica silenciosa quando surgem os moralismos que no fundo só são bons para os outros, sob a forma de posts partilhados. Share it until you make it, talvez. Partilhar para acreditar. Somos da velha escola, do blogspot e do livejournal, mas os flagelos que nos acometem são muito, muito mais antigos ainda e não parecem querer ir a lado algum. Há cinco anos que este blog incontornável não era actualizado. Era como alguém cujo regresso desejamos secretamente mas não acreditamos que aconteça. Alguém com uma presença, um legado tão vincado que é impossível não nos entretermos mesmo na sua aparente ausência. Contar quantas vezes me alimentei e aos meus amigos com as suas receitas revelar-se-ia tarefa impossível. “Deixa-a lá dentro, cortada, na cozinha, e traz-me só café. Pousa a bandeja ali, e depois vai. Não quero o seu olhar: Recorda-me a prisão que ele habitou (sem ser por mim) e a outra em que eu morei, e onde fiquei, Lembrando o seu olhar.” Estava no supermercado, outro dia, a planear o que iria cozinhar esta semana, não fosse eu viciada em meal prep, mas algo me faltava. Algo que, tantas vezes, encontro no Ponto Espadana, na Smitten Kitchen, no Para Cozinhar, no The Kitchn, no Two Fat Ladies (saudades das originais) onde nem uma receita de caldo mancarra falta, na lista memorável de saladas do Mark Bittman no New York Times. Não desta vez. Abri um blog antigo, fiável, cujos links de receitas partilhei infindáveis vezes, e que, repito, não via posts novos há anos. Mas a verdade é que a última actualização aconteceu há precisamente um ano. “E agora mostras a toda a gente o cesto, e não há sombra.” A minha busca por inspiração foi abruptamente colocada em pausa. Fiquei ali, parada no corredor, a estorvar a multidão que se abastecia de mantimentos como se o fim de semana fosse uma catástrofe e o supermercado o bunker. Li um testemunho sincero, vulnerável, revelador: “assunto delicado e importante.” “Tão brilhante e tão quente. Como sabe a vermelho este café – ” Uma despedida muito após o desaparecimento, com explicações para nós, os leitores. “Deixo um bilhete à porta, junto ao Hades, na esperança de que o cão o não destrua – ” Acontece que me habituara há muito a googlar o nome do ingrediente principal e o do blog, abrindo directamente as páginas que me interessavam, certa de que encontraria ali inúmeras receitas, dicas, dicionários de termos portugueses e brasileiros, curiosidades e histórias de familiares e amigos desta mulher que viveu em França, em Timor, na Terceira. Depois, espreitava as sugestões no fim de cada post. A Elvira (mãe dos blogs portugueses de culinária) lembrava-me a Filipa Vacondeus e o Chefe Silva (mãe e pai da tv e das revistas) por ter-se tornado um clássico. Por ensinar-nos os clássicos. Por ter sempre um nome carinhoso, de alguém que amava, para dar a uma receita em vez do original. “Deve ser isso o que a mantém, A faz vestir-se todos os dias, tomar o cesto das compras, Escolher legumes naquela mercearia: Os minúsculos gestos de que a vida é feita Quando a guerra é ausente” Um mês após esse último post, ela deixou-nos. Semanas passaram, no entanto, entre a minha primeira descoberta e a segunda, que me horrorizou ainda mais, quando procurei o seu nome no Google e surgiu o verbo morrer como sugestão complementar de busca. Agora, um ano após a sua partida, queria poder inventar uma receita que a honrasse, confortasse, fizesse dançar e cantar durante a preparação, ver o fuminho a sair delicado e seguro do que quer que estivesse no prato, talvez não um prato mas um tabuleiro de grão-de-bico com chouriço e ovos. Ou uma carne espiritual. Ou a delicadíssima lista que forneceu durante uma entrevista quando lhe perguntaram qual seria a sua última refeição. Não sei se a teve. Não sei se foi exactamente como ela queria. Não sei porque é que nunca lhe escrevi. Não sei se a Ana Luísa Amaral e a Elvira do Elvira’s Bistrot sabiam uma da outra, mas imagino-as a discutir receitas na cozinha e na vida, como nesta conversa imaginada. Não sei porque é que os cancros e as violências domésticas andam de mãos dadas. Mas sei que tudo aquilo foi real. Tudo: a sua dedicação e a nossa admiração. “Vou apagar a luz. Sair da mesa. Ela aguarda. E eu vou – ” Sinto-me como se tivesse chegado tarde, demasiado tarde, a casa. Mas sei que a Elvira terá sempre um lugar à mesa.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasNada de especial [dropcap]U[/dropcap]m homem dorme sossegado no muro da mesquita. Tem meias pretas mas não lhe encontro os sapatos. O corpo curvado parece não ter espinha, só flexibilidade. As pessoas que saíram agora do trabalho passam para cima e para baixo. Passam-lhe ao lado. O miúdo sentado no passeio segura um helicóptero amarelo. Em pé, a mãe vê um avião passar. No IKEA, encostada a uma mesa alta, como um de dois cachorros quentes. Não aprecio a versão vegetariana por aí além. “Deviam ter muito mais cadeiras, é uma vergonha”, diz este homem de cabelos brancos, enquanto ajeita o pesado banco que acarretou durante uns metros para me ceder. Vai-se embora com a esposa silenciosa. Espantada e agradada com o gesto, quando acabo de comer tento fazer o mesmo por outra pessoa, mas ninguém parece prestar-me atenção, ou perceber o que quero, e acabo por desistir. Na paragem de autocarro passa um homem com um miúdo de uns três anos, segurando um boneco. Sorrimos um ao outro. Alguns minutos depois, o miúdo já não vem de queixo colado ao ombro do pai e sim pendurado, todo desengonçado, de lado. Páram ao começo de nova birra. “Fica aí então, eu vou-me embora”. O miúdo chora, lágrimas bem gordas que realçam os olhos verdes contra a pele negra. É muito belo, como aliás o pai. A mãe, que não fica atrás em beleza nem em caminho, aparece não sei de onde com duas amigas e convence-o a erguer-se das cócoras, a tirar os punhos das bochechas e a dar-lhe a mão, embora não abdicando da birra. Ele é tão pequenino, e toda a gente se vira para vê-lo melhor. Deixei de dar os parabéns às pessoas nos seus aniversários por tempo indeterminado. A Sara trouxe-me um boneco representativo da ópera chinesa. De cada vez que se lhe inclina o chapéu, o boneco muda de cara. Somos todos boneco. O David perguntou-me como foi o resto daquele sábado. Digo que correu bem. “Fui-me embora quando começaste a falar”, admite. É o que todos queremos ouvir, respondo. Gosto demasiado de dizer aos outros como poderiam viver uma vida mais plena, mas a verdade é que ando há meses com a haste dos óculos torta, como se isso fosse mudar a minha perspectiva das coisas. Quero usar o cabelo apanhado e não posso, porque a afro ajuda a equilibrar a minha visão. Concluo, portanto, que não sou a melhor life coach do mundo. Mas também não devo ser a pior amiga, afinal recebo mensagens do Brasil a perguntar como era mesmo a receita das chips de couve kale (galega para os amigos) que servi certa noite ao jantar, e pedidos de uma certa menina de olhos azuis em relação à roupa que vai usar em cada uma das suas inúmeras reuniões de trabalho. Agora que está desempregada sinto que eu também estou, de certo modo. Vivo alheada da maioria das notícias e isso contribui muito para a minha tranquilidade. Decido ver toda a primeira temporada de Euphoria de uma assentada, abandonando The Wire. Rue, a personagem principal, interpretada por Zendaya, ameaça outra, no último episódio, citando nomes que reconheço como sendo de personagens de The Wire. Apanhada pela vida a fazer batota pela segunda vez, esta semana. Entro no regional. Aprecio o quão vazio vai e o ar condicionado, tão menos exagerado que nos autocarros. Penso que gosto da expressão “Eu cá…”, como quem diz, eu cá gosto da Ana Cássia Rebelo, que tantas gargalhadas me tem arrancado. Mentira, dou-lhas de bom grado. Mas entretanto sinto comichão no nariz porque vai uma família de cinco ingleses com um português e acabaram de pôr, os ingleses, um perfume qualquer que, não sendo mau, também não é bom, e que multiplicado assim se torna difícil de suportar. Agora estão a falar de queijos. Eu coço o nariz com o marcador que veio com o livro. Tem a foto da Patti Smith em jovem e protege-me do cheiro real a perfume, do cheiro virtual dos queijos e da risada que continua aqui, à espera que um deles me olhe para sair. No supermercado: mulher ao telefone declara a alguém que ele é seu e só seu, e que é bom que fulana o saiba. Outra conta à filha como a avó lhe deu a comer atum até enjoar. “Só voltei a comer atum quando conheci o teu pai”, revela. Tive uma conversa assim com o meu ex-namorado sobre queijo da ilha, mas deixei de comer quando terminámos. “Queriam levar o meu marido para o Monsanto, para a má vida”. Ou fico mais sã ou passo a aborrecer-me de morte, quando abdicar dos transportes públicos. Na biblioteca, folheio tudo excepto livros da autora que procuro. Nada como a morte. Num romance, encontro uma carta dobrada em três. “Cara professora Sara, gostaria de lhe pedir para deixar a Ariel trazer o livro de Estudo do Meio para casa, este fim de semana. Obrigada. A mãe – Inês, 4 de Outubro de 2018”. A mãe é daquelas pessoas cujo apelido é o mesmo que o do cônjuge, pelo que se repete. Se há algo de que não posso abdicar, é da minha solidão. Quando deixei de descurá-la, passei a nutrir-me. Entretanto, demorei tanto a escrever este texto que a haste dos meus óculos já foi arranjada. Pondero lentes, apesar de ter avançado três casas no tabuleiro de leitura.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasFlores de Paris [dropcap]N[/dropcap]unca peço este bolo. Há uma amiga que o escolhe sempre mas hoje, como ela não está aqui…” Completo-lhe a frase enquanto serve o seu chá. Pequenos, delicados, estranhos rituais estes, que passamos a ter na ausência de alguém para trazê-lo/a mais para perto de nós. Conversamos sobre as idas à piscina, o desamor, o negócio dos livros, doenças e solidão. Mais tarde falaremos sobre o cansaço das viagens e tudo o que pode correr mal em festivais literários. Dir-me-á para não pensar tanto em coisas que, assegura, fiz bem em deixar. Passaram alguns anos desde que me enviou essa foto que nunca esqueci: flores de Paris, de entre as quais sobressaem verónicas, dálias e hortênsias. Noutra altura, uma tarte de maçã ladeada de hortelã e manjericão a emoldurar a singeleza. Não costumo ir muitas vezes à Versailles, o que é pena, porque a sopa de cebola, o pastel de bacalhau, os bolos, e até mesmo a formalidade, são bastante prazerosos. Não fazer muitas vezes algo que nos dá gosto ajuda a preservá-lo como deveríamos. Há uma mini Versailles no hospital onde fui operada a primeira vez e há uma Versailles umas ruas abaixo de onde vivo agora. Mas na original sentei-me com a minha amiga Ana a falar da sua mãe e de bandas desenhadas. De como o pai queria aprender a cozinhar para a mulher, que era professora e cantava fado. Eu não chegaria a conhecê-la, mas naquela tarde senti que sim. Foi ali que estreitámos laços, comovidas que estávamos. Por isso, não sei como poderia ter-me encontrado com mais esta amiga noutro sítio, independentemente do jeito que desse. Há algumas coisas que notamos sempre na primeira vez: quando nos chamam pelo diminutivo, quando alguém de quem gostamos nos diz que somos bonitas (mesmo se agora já o sabemos), quando uma amiga se nos refere como tal, em voz alta, a outra pessoa. «Como é que eu podia explicar à mamã que o problema não era ela, mas a deformação que o tempo sofria na casa dela? Eu entrava na casa da mamã e o tempo tornava-se um mecanismo tosco, como se alguém o esculpisse em fisga, eu à mercê dessa fisga, eu munição contra mim mesma, a ser puxada para trás no tempo e depois atirada, desprotegida contra o presente, onde via todos os meus erros e fracassos. A casa da mamã guardava tudo o que eu não quis ser, e que ironicamente acabei por ser.» Troco mensagens com uma amiga que me diz: “Cliffhanger maravilhoso na Eliete”. Rio-me. Pergunto, citando o livro: “Não vais apagar agora, pois não, Carlota?” Responde com um “Somos todos Eliete”. Somos, mas só a Dulce pode ser a Dulce. Daí a uns dias, vamos a uma conversa na Tigre de Papel e rimos como umas perdidas enquanto trocamos bilhetinhos secretos, ela com uma carraspana de meter dó, anunciando uma morte para breve antes de abandonar a sala mais cedo. «Vou ter de comprar um medidor de tensão arterial destes, e o coração ficou esquecido nos rascunhos.» A capa do livro funde-se com o meu velho edredão laranja. É bom saber que há mais de onde vieram estes livros, estas mulheres. Há muito de Portugal, daquela coisa mesmo deliciosa e terrivelmente portuguesinha em Eliete. Na Dulce há uma gentileza que me encanta sempre. Nunca usei tanto a expressão temos de parar de encontrar-nos desta forma com alguém como com ela. Porque a encontrei quase sempre por acaso, em transportes públicos ou restaurantes de fast food. Não é todos os dias que temos um ataque de riso com alguém que nos faz sentir tanto com a sua escrita. A primeira vez que a vi, ainda não a conhecia, foi num evento com laivos de chique, trazia um vestido preto e havaianas. Sempre a rir, sem querer saber. Há uns anos, a um sábado de manhã, quando entrou e se sentou à minha frente no metro, mochila e casaco floridos, pareceu-me que era ela, a cabeleira loira inconfundível, mas achei que devia controlar-me. Os meus auscultadores só estavam a funcionar de um lado. Sorte a minha. Ele – Lembras-te do Professor Pardal? Também andava sempre com uma lâmpada. Ela – Lembro. Mas ele era magrinho. Terias de fazer uma dieta. (Risos) Eu – Riso silencioso, a tentar ser discreta, mas sem conseguir, à medida que ela se ia metendo mais e mais com ele, um beicinho a nascer-lhe. Ele – A música deve estar boa. (Para mim) Ela – Ahaha Eu – Peço desculpa. (Sem conseguir conter o riso mas a tentar, a limpar as lágrimas e a encolher os ombros) Ele – Deve ser um podcast. (Já a corar) Ela – Eu também tenho disso (Para mim, ambas a rir sem parar). Podia ser a tua imagem de marca, podias ir a todo o lado com uma lâmpada. (Para ele) Como explicar uma amizade que começa antes de que se possa saber o mínimo não-tão-indispensável sobre alguém? Ou será assim que surgem algumas das amizades mais ternas? Não saber quase nada sobre alguém, nem precisar, é o derradeiro guilty pleasure das relações modernas. Ou melhor, saber só o que importa. Levar o seu tempo, e fazê-lo olhos nos olhos. Coisas para as quais não há pressa, flores que continuam a crescer ininterruptamente, para lá dos seus vasos fotografados, num país onde nunca estive.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasGisela Casimiro – Onde os sonhos vão para morrer (III) In ‘life,’ I don’t want to be reduced to my work. In ‘work,’ I don’t want to be reduced to my life. My work is too austere. My life is a brutal anecdote. — Susan Sontag (3/15/73) [dropcap]N[/dropcap]o quadro leio END OF LIFE, e desato a rir, tão secretamente e sem ter de dar explicações quanto possível. Não são vocês, sou eu. Acabei de rever Mad Men, o que significa que deixei Nova Iorque e estou a conhecer Baltimore em The Wire. Numa das muitas cenas num bairro social, as personagens conversam, desta feita não no icónico sofá laranja no relvado e sim a uma mesa. Dois jovens jogam damas, supostamente, mas com peças de xadrez pois, como adivinha o terceiro, não sabem jogar xadrez nem têm damas, na verdade. Recorrendo a analogias sobre o tráfico de droga e os gangs, assistimos a uma lição. E eu pergunto-me: o que é que estou a fazer aqui, onde não pertenço? A jogar às damas com peças de xadrez, claramente. Aborrecida, arrastando-me de casa para o trabalho todas as manhãs, tornando-me o meme da moça vestida, pronta, sentada na cama, que diz “Eu esperando a hora de me atrasar.” Dizem que para termos algo que nunca tivemos temos de estar dispostos a fazer algo que nunca fizemos. Reencontro, no Facebook, um testemunho de há uns anos, proveniente de um dos melhores projectos de sempre, Humans of New York: “Parece que quanto mais tentava que ela fosse sobre arte, mais o dinheiro controlava a minha vida: coleccionava prestações de desemprego, lidava com a humilhação de pedir dinheiro emprestado a amigos e familiares, dava voltas na cama à noite tentando perceber como pagar a renda. Para sobreviver tive de trabalhar em dois sítios, e depois de findos os turnos sentia-me demasiado stressado para pintar. É muito difícil criar nestas circunstâncias. A criatividade é um processo delicado. Muitas vezes pergunto-me se deveria ter seguido uma carreira durante a primeira metade da minha vida, obtido algum tipo de segurança financeira, e só então feito a transição para a arte.” Jung explica, os Wu Tang Clan também. Alguém comentara dizendo ter conhecido um talentoso retratista, quando ambos trabalhavam como zeladores. Ao perguntar-lhe o que fazia ali, o outro teria dito: “Por vezes temos de fazer o que temos de fazer, ou seja, fazer o que não queremos fazer, durante oito horas do dia, para podermos fazer o que queremos nas demais dezasseis.” Nas últimas quatro semanas estive em duas empresas, três escritórios, conheci muita gente, aprendi e cansei-me muito. Tive uma esmagadora sensação de déjà vù na primeira, sentindo que voltara atrás no tempo três anos, novamente naquela empresa, novamente com uma hérnia inguinal (na altura noutra função e cidade, na altura ainda sem saber que a tinha ou o que raio era uma hérnia inguinal). Decidir que algo é temporário ajuda-nos a suportá-lo. Como daquela vez em que me despedi e, passados dois meses, engoli o orgulho e voltei para o antigo empregador. Agora, permiti-me tirar uma teima, prevenir-me para não ficar de mãos a abanar, pelo meio fazer tempo para o que me parecia ser a única escolha sensata desta fase, da qual me fartei faz tempo. Deixar de procurar, continuar a receber propostas, agora até exactamente para a função de há três anos, mas não ser preciso. Sentir alívio mas, principalmente, não me sentir asfixiada. Segunda-feira. As semanas chegam e passam. Pouco ou nada fiz a não ser ir trabalhar. É disso que tenho medo? De como o trabalho faz o tempo passar nos primeiros tempos, sobretudo depois do desemprego, tão depressa que nem me vejo? Alguém nos oferece uma maçã e abraça. Alguém traz um bolo de banana caseiro, delicioso, húmido, bonito, com brilhantes na cobertura. Alguém grita e é admoestado. Alguém é despedido. Alguém tem um ataque de pânico e é confortado. Alguém volta para a sua terra. Alguém nos faz rir e elogia e nós a eles. Mais alguém é despedido. Alguém se esquece de desligar um temporizador que apita como uma bomba. Alguém tagarela incessantemente. Alguém tenta ler. Mais alguém também escreve. Alguém joga ping pong, cria um lugar à mesa, vai buscar pela segunda vez uma cadeira para nós. Alguém é ameaçado de despedimento. Alguém nos fala dos seus sonhos, família, datas importantes na sua cultura. Alguém já nos impressiona, intimida, enerva ou surpreende. Alguém é do Brasil, Holanda, Filipinas, Itália, Inglaterra, Moçambique, Índia, Angola, África do Sul, Reino Unido, Paquistão, Alemanha e de mais de dois ou três sítios ao mesmo tempo. Alguém chora, é como nós e nada como nós. Sexta-feira: alguém se despede com um beijo na testa, o que não estranhamos, talvez por já nos tratar pela alcunha quase desde o primeiro dia. Por enquanto parece que o instinto e a espera terão valido a pena. Pelo menos assim me dizem os meus próprios emails, quando deixo de ignorá-los e encontro tantas coisas boas de que fazer parte. Não são os trabalhos-para-pagar-as contas, sou eu. E o #$%&@* do Martin Luther King, Jr. É que os sonhos, na verdade, só morrem connosco, e às vezes nem assim.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasÀ deriva e sem motor [dropcap]À[/dropcap] deriva e sem motor” é como, nas notícias, descrevem o barco resgatado pela polícia marítima portuguesa ao largo de Lesbos (Grécia) estes dias. De cinquenta migrantes, metade são crianças. Pergunto-me se ainda se recordam de quando eram apenas pessoas. A maioria das mulheres são afegãs. Não raras vezes, os maridos ficam para trás e enviam esposas e crianças primeiro. Os milhares de euros necessários para esta viagem deveriam garantir coletes salva-vidas e barcos de qualidade. Porém, os migrantes são apenas fontes de rendimento para facilitadores que recebem o seu quinhão sempre, independentemente de quem chega ou não vivo, ou onde. Normalmente, é escolhido um homem ao acaso para comandar cada barco. São-lhes dadas instruções e luzes que devem seguir. Cabem sempre mais do que deveriam, nos barcos, no mar, no campo. Entre noites frias e dias quentes, lutas entre afegãos, iranianos e africanos, nem o campo pode ser considerado seguro. O racismo existe também aqui. E o suicídio. A esperança de sair do campo e chegar à última fase, a do país longínquo com o qual se sonha, no qual pensam poder tornar-se cidadãos, é o que mantém estas pessoas vivas. No entanto, nenhum voluntário se atreve a dizer-lhes que, muitas vezes, nesses países, ninguém quer recebê-los. De outro modo, o que lhes restaria? Não nos vemos há muito tempo. Diz-me que se despediu no dia anterior. Dou-lhe os parabéns. Poderia dizer que me surpreende ouvir falar do seu próximo destino, mas não realmente. Fala-me da formação que teve recentemente na Estónia e sobre o que vai fazer durante seis meses no Uganda. Sentirão todos os alemães esta culpa, esta necessidade de compensar pelo passado do seu país? Qual é realmente a diferença entre campos de concentração e campos de refugiados? Conversamos sobre as duas semanas a colaborar com uma ONG que providencia uma refeição quente, banhos, roupa interior limpa a mulheres e crianças refugiadas. Rapazes até aos dez anos, também. Fazem-se tantas viagens quanto possível logisticamente, em carrinhas de nove lugares, do campo para o edifício da organização. Por vezes há risos e dança. A expressão inglesa mais popular, a forma de tratamento predilecta é Ma friend. Trocam-se histórias e costumes. Muitas destas esposas casaram aos quinze anos. Avaliam-se maridos pelo número de filhos. Espanta-as que algumas das voluntárias, tendo passado os trinta e cinco, não tenham nem uma coisa nem outra. A minha amiga é loira de olhos azuis, fisicamente bem diferente de Carola Rakete. E o que importa isso? Há activistas mais focados na cor de pele de quem, reconhecendo o quão boa a sua vida é, decide abdicar de parte dela para ajudar os outros. Quem é salvo/ajudado, não quer saber de cores. Essas questões ficam para quem tem tempo a perder. O turismo em Lesbos escasseia mas é ainda desesperadamente necessário, numa altura em que consciência cívica e lazer parecem dois pólos opostos. A praia ainda é paradisíaca. Nela, podemos fazer o mesmo que em quase qualquer outra. Lesbos só não se terá tornado uma Chernobyl, provavelmente, porque os campos de refugiados ficam longe da praia, de outro modo não teríamos já influencers de smartphone em riste, tirando selfies sobre um fundo de burcas e olhares tristes? Não duvido que esse dia chegue, em que lugares destes, já desabitados, se tornarão cenários de campanhas de moda, de anúncios, de vlogs. E como fica quem nasceu e cresceu em Lesbos? Ainda se lembrarão de quando a ilha era conhecida por Sapho? “Durante três anos confiei no mar para me levar à segurança. Porém o mar traiu-me”, desabafa um residente do campo Moria, considerado o pior do mundo, à BBC, de lágrimas nos olhos. A seu lado, a menina de olhar impávido tem agora a cabeça na mesa e as mãos juntas. Estar no campo não significa ter paz mas sim alopecia, envelhecimento precoce, doenças de pele e respiratórias. Uma das mulheres entrevistadas declara que ela e as suas crianças estão sempre preparadas para fugir a qualquer momento. Ficamos a saber que é preciso ir para a fila do pequeno-almoço às 3 da manhã, e à hora a que regressam à sua tenda, já é hora de almoço. Duas horas é quanto estas pessoas têm, na sede da Shower Power, para trocar por um momento a sua vida actual por higiene, privacidade, água limpa, champô, roupas lavadas e cheirosas, enquanto alguém lhes toma conta das crianças e brinca com elas, faz tricô, lhes pinta as unhas ou entrança o cabelo. Duas horas para poder voltar a ser só uma pessoa, quem sabe das que cantam no chuveiro. Entretanto, mais dois barcos sofreram um naufrágio na costa da Líbia: 70 mortos e 100 desaparecidos, no mínimo. Nem países nem ilhas nem campos parecem poder conter tantas vidas quantas as que os mares vão engolindo e velando. A ONU considera esta a pior tragédia até então. Mas quantas vidas mais se perderam, se perderão entretanto, nas notícias que nunca conseguiremos actualizar? As pessoas continuam a ser a derradeira fronteira umas das outras. Enviado da minha vida privilegiada e segura.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasOnde os sonhos vão para morrer (II) «You’ve heard of people calling in sick. You may have called in sick a few times yourself. But have you ever thought about calling in well? It’d go like this: You’d get the boss on the line and say, “Listen, I’ve been sick ever since I started working here, but today I’m well and I won’t be in anymore.” Call in well.» ― Tom Robbins [dropcap]D[/dropcap]urante muito tempo, a pior pergunta que me podiam fazer era “O que é tu fazes?” É a nossa necessidade de classificar as pessoas, arrumá-las por categorias no nosso catálogo social. O modo como as pessoas se me dirigiam, quando me perguntavam se era cantora ou assumiam: “És escritora, não és? Fotógrafa, talvez? Actriz? Pensava que eras actriz”, não ajudava. Por vezes apresentavam-me assim, e eu sentia o rosto escaldar, como quando uma amiga, sabendo-me infeliz no trabalho, me enviava anúncios para os quais eu não me achava suficientemente qualificada. Dizem os estudos que os homens se candidatam a empregos desde que possuam 65% dos requisitos listados, enquanto as mulheres só o fazem nos 80%. É verdade que muitos artistas têm várias profissões: arquitectos que são escritores ou autores de banda desenhada, engenheiras informáticas que querem ser roadies e estão a tirar cursos de songwriting, têm lições de canto, piano, bateria; escritores que são professores/tradutores/editores, fotógrafas de concertos que são engenheiras. Argumentistas, modelos e actores que trabalham a servir às mesas ou como hosts em restaurantes. A verdade é que os call centers são, apesar do modo como empresa e cliente muitas vezes tratam as pessoas, um fértil campo de profissões variadas, desde advogados a jornalistas, onde se pode encontrar o maior número de pessoas qualificadas e igualmente subaproveitadas por metro quadrado. Há quem precise desse contraste oferecido por um escritório com horário definido para criar nos intervalos de tempo que sobram. Eugénio de Andrade foi funcionário público. Kafka trabalhou em seguros. Agatha Christie foi assistente de farmácia. Há quem tenha mantido o seu day job mesmo depois de atingida a fama. Há quem nunca tenha conseguido ter um trabalho dito normal e, ao largá-lo, tenha sentido um alívio incomparável. Atlas Lisboa, que já o tinha sido em 2012 e foi também Atlas Nantes, Berlim, Gasteiz, ao longo dos anos, é uma criação de Ana Borralho e João Galante. Participei na versão de 2018, no teatro municipal São Luiz, naquilo que considero ser uma reflexão comunitária. Em palco temos verdadeira diversidade de cidadãos, numa panóplia de profissões, origens, etnias e idades. Há lugar para alguém em cadeira de rodas, alguém de muletas. E muitas vozes, uma delas de um índio brasileiro. O que me marcou em ser parte do Atlas, inserido n’Os dias do público, para além de ser a minha primeira vez naquele palco e uma honra, foi fazer-me reflectir e dizer em voz alta o que fazia no momento. Responder à tal questão difícil. Na altura, tinha dois trabalhos, um no público e outro no privado, zero folgas. Durante os ensaios e demais preparação dos textos de cada um, foi possível reflectir sobre quanta da nossa identidade está relacionada com o trabalho que fazemos no mínimo durante quarenta horas por semana, sobre o que é a estabilidade, a felicidade. Uma popular TED TALK baseia-se na premissa BIG – books, individuals, goals como chave para o sucesso. Diz o autor que devemos ler de tudo e ler muito, que a diferença entre sonhos e objectivos são os prazos, e devemos ainda ter em atenção que somos um reflexo das cinco pessoas com as quais passamos mais tempo. O ideal seria rodearmo-nos de pessoas que chegaram mais longe que nós, até porque é preciso alguém que tenha a coragem e a visão, a insolência e mesmo a ambição de chegar onde quer, ou pelo menos tentar, para entender-nos. De fazer as coisas para além do medo. Os chamados riscos calculados. Num hilariante meme, que mostra dois homens à conversa, um diz que renunciou ao seu emprego para perseguir o seu sonho. “Que sonho?”, pergunta o amigo. “Renunciar ao meu emprego”, responde o primeiro. Mais seriamente, vem-me à memória a famosa frase de Doris Lessing: “Whatever you are meant to do, do it now. The conditions are always impossible.” Nunca é a altura certa, nunca estamos preparados para ter um bebé ou deixar um contrato com seguro médico e perseguir os sonhos, ser freelancer, aceitar outro tipo de sacrifícios, liberdade, desafios, benefícios. O que vale é que tudo é aprendizagem. Pode não ser perfeito, mas talvez seja mais verdadeiro. Ou, como diz a personagem de Mad Men, Megan Draper, frequentemente descrita pelo resto das personagens como o tipo de pessoa que faz tudo bem, em vésperas de despedir-se: “Senti-me melhor a falhar em algo que quero verdadeiramente fazer do que a ser bem-sucedida em algo que não é a minha vocação.” Talvez devêssemos, por uma vez na vida, experimentar essa sensação, a de fazermos só o que nos deixa felizes, só para não morrermos estúpidos. Ah, esperem, vamos todos morrer de qualquer modo. Que valha a pena.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasOnde os sonhos vão para morrer [dropcap]I[/dropcap]sto da escrita, é uma carreira ou um hobby? A pergunta de um milhão de euros antes dos impostos. Aqui estamos, há quase duas horas, trocando histórias sobre uma coincidente ida a Moçambique em Maio: o entrevistador de férias, eu em trabalho: um festival literário. Tenho de listar características minhas, positivas e menos positivas. Falar do que gosto e do que não gosto. Declamar o meu percurso profissional não desde o início, que os currículos não devem ter tantas páginas, mas da última década; manter o contacto visual, sorrir muito. Tenho de concordar com os turnos e a frequência com que são alterados, mas parece que não estou a fazer um trabalho muito bom a convencê-lo e ele faz-mo saber. Esta empresa, sita na mesma rua que o meu antigo empregador, está à procura de colaboradores, e eu de emprego. Estou desempregada, pelos padrões normais, sem subsídio e, pelos vistos, sã da cabeça. Saio de lá sem ser seleccionada. Reencontro o anúncio vários dias depois. Começa sempre da mesma maneira: perguntamos a toda a gente se sabem de alguma coisa. Ponderamos trabalho remoto e, dos trabalhos anteriores, a quais poderíamos voltar sem grande sacrifício. Repetimos baixinho: já estive aqui antes, vai correr tudo bem. Mas também dizemos a nós mesmos que o melhor é não escolher tanto porque podemos acabar sem nada. O tempo está a passar. Aceita, resigna-te, afinal essa é a norma. Essas vozes destrutivas por vezes soam mais alto do que deveriam. Descobrimos novos sites. Olhamos para o LinkedIn e prometemos que é desta que vamos criar um perfil. Passamos horas a actualizar o currículo e procrastinamos quando se trata da versão inglesa. Onde está o Herbert Richers quando precisamos dele? ― Faz tanta coisa ― pergunta ela ― como é que vai ter tempo de trabalhar connosco? Respondo que sou muito organizada. Ri-se. Mas não deveria esta ser uma pergunta retórica? A maioria das pessoas trabalha porque precisa. Trabalha para pagar as contas. E depois morre. Quando entro numa outra sala e tenho quatro rostos a avaliarem-me, e me perguntam onde me vejo daqui a cinco anos, não é só o facto de ainda se fazerem estas perguntas ou as dinâmicas de grupo e os testes online e os testes de lógica que me faz abanar a cabeça internamente. É a violência de ter de me comprometer a ficar para sempre ali, de prometer que nunca vou querer tornar um sonho em mais do que um hobby, que sou igual a quem me entrevista; que acordo, vou trabalhar, volto para casa, vejo televisão e repito tudo nos dias seguintes. Que a sexta-feira é o momento mais desejado da semana, que no fim-de-semana é que é, que odeio segundas. Por cada cinquenta respostas a anúncios, dez entram em contacto. Mas há assim tantos anúncios, ou estamos a ver anúncios iguais repetidos até à exaustão? Por vezes, quando finalmente ligam, já nem nos lembramos de nos termos candidatado, quanto mais de qual era a vaga. O ordenado mínimo foi feito para jovens que vivem em casa dos pais sem terem de contribuir para as despesas e, no entanto, nas entrevistas de grupo, essa bela invenção, as pessoas assinam primeiro e pensam depois, se é que o fazem. Eu já estive assim tão desesperada, provavelmente até mais. Facilmente se colocam filtros no que nos causa ansiedade, aumentos/perdas de peso, doença, stress, infelicidade. O glitter eventualmente sai, até da memória, e ficam só o alcatrão e as escoriações. Valem as amizades. Há aquelas empresas de que nunca obtemos resposta, outras mandam um email automático de rejeição. Há aquelas cujos critérios ninguém entende, quando pessoas com percursos profissionais distintos se candidatam para a mesma oferta e nenhuma é sequer chamada para uma entrevista. Serão anúncios só porque sim, e os candidatos escolhidos antes interna e secretamente? Acontece sermos seleccionados, informarem que a formação foi adiada, passar uma semana e não termos um mail, telefonema, pombo correio. Acontece ficarmos especados três dias à espera de uma entrevista por vídeo chamada (nós que odiamos vídeo chamada) e haver uma boa samaritana que salva a coisa à última hora. Coisas que jamais seriam permitidas aos candidatos são praticadas abusivamente pelas empresas. Horas nocturnas já “incluídas” no vencimento base, ou seja, inexistentes, e subsídios de turno iguais para todos, quer trabalhem de dia ou de noite. Não basta sorrir: é preciso entrar, sentar, ouvir, calar, não fazer muitas perguntas, aliás apenas duas: onde é que eu assino e quando é que começamos? Não podemos pensar e muito menos alto, Deus não permita perceberem que somos seres pensantes e que os detalhes são importantes porque tudo faz diferença. É a nossa vida, afinal. Lembro-me de, em conversa com o Miguel Somsen, ele comentar que a arte é a nova gravidez. O que os recrutadores acham interessante é o que os assusta. Aos candidatos, assustam a restauração e os horários repartidos. As lojas de roupa e as folgas a cada sete dias. As vendas porta a porta. O call center ou, como lhe chamo, o lugar onde os sonhos vão para morrer.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasNetflix and Think (III) [dropcap]D[/dropcap]evo estar a passar demasiado tempo em frente à televisão, digo a mim mesma. Mas a verdade é que consumo séries e filmes em doses contidas e planeadas, guardo-os para ver de impulso em momento de stress, de tristeza. Nunca por aborrecimento ou cansaço. Por vezes, se for um guilty pleasure, repito a série só porque sim, como fiz com Neon Genesis Evangelion, agora disponível na Netflix e que, tal como a Sailor Moon ou Death Note, já assisti inúmeras vezes, até em línguas que não falo (saudades, parabólica). Sim, é esta a minha santíssima trindade do anime. O mesmo se passará com Six Feet Under, Breaking Bad ou The Sopranos, que decidi rever, mas a um ritmo bem mais lento. Nunca compreendo onde é que as pessoas encontram tempo para consumir fiel e vorazmente cinco séries ou mais todas as semanas, com episódios entre os trinta e os sessenta minutos, mas depois não têm tempo para mais nada, para as coisas fora da relação “ecrã e eu”. Talvez as pessoas também não entendam onde é que eu arranjo tempo para fazer as coisas que as fazem acusar frequentemente: Tu não páras! Claro que páro. Houve aquelas semanas em 2016 a que sobrevivi melhor assistindo a todos os filmes do Studio Ghibli. Contudo, nunca me deliciei a ver Friends ou achei piada a Big Bang Theory. Sou uma miúda da era Simpsons, Alf, Family Ties, Fresh Prince, Felicity, Alias, Twilight Zone, Seinfeld, X Files, Sex and the City, Darkangel (a Eleven de Stranger Things é a reencarnação de Max), Buffy, The OC, Gossip Girl, True Blood, Criminal Minds, Heroes e até Lost, antes da salgalhada em que se tornou. Terei muitas saudades de Game of Thrones, cujos livros não li, e já nem me lembro de há quantas temporadas desisti de Walking Dead, mas preferia (spoiler alert) que o Carl tivesse morrido mais cedo. Aguardo sempre com entusiasmo o regresso de Issa Rae e Insecure; vibrei com Narcos, gostei de The Bridge e Strike Back, mas só vi a primeira temporada de True Detective, que considerei perfeita. Tenho The Handmaid’s Tale na lista de leitura, porque gosto tanto de Margaret Atwood que não me atreveria a ver a série, por melhor que possa ser, sem antes passar pelo livro. Confesso ainda ter curiosidade por Big Little Lies e ter ficado impressionada com Chernobyl, ambas da HBO. É fácil trespassar o fio que divide livros, séries e realidade, quando tudo se imita e replica. Não obstante, numa altura em que parece que já vimos tudo, e sobretudo que já vimos o melhor que nos pode ser oferecido, que fazemos bem é em repetir os clássicos confortáveis que nunca nos decepcionam, seria mais prudente dar o benefício da dúvida a quem não desiste de contar histórias e, sobretudo, de fazer História. Voltando a When they see us e a Michael K. Williams, vemo-lo saltar graciosa, confiantemente esse fio, e mesmo esticá-lo, não tivesse sido também ele parte do elenco principal da série de culto The Wire, considerada por muitos como a melhor de sempre, longe contudo do mediatismo que a mini-série da Netflix tem tido. The Wire não teve grande audiência e ganhou poucos prémios para as nomeações que recebeu, mas era uma série rara na televisão americana, por ser composta por um elenco maioritariamente negro. Na era das redes sociais, pejadas de opinion makers, tudo é exposto a luzes mais fortes e a audiências maiores e esperançosamente mais críticas, mas talvez por menos tempo ou com menor impacto posterior, devido ao fluxo de informação e ao défice de atenção. Outro aspecto importante em When They see us é ser dirigido por uma mulher, negra, com uma equipa de trabalho negra (imagine-se, até, com maquilhadores negros), a contar a história clássica de um nós versus um eles. Uma história que, por mais que pareça cansar, obviamente, quem vive uma vida privilegiada, por mais formas que tome no modo como é contada, ainda está longe de estar esgotada, porque ainda não estão resolvidas as questões ali retratadas. Porque é preciso falar sobre as coisas para resolvê-las. Enfrentá-las, revisitá-las sem deixar-se cegar, ultrapassá-las. O título da série quer dizer isso mesmo: olhem bem para nós, aqui estamos, não somos todos iguais, a cor não determina o carácter, isto é o que nos foi feito e isto é o que nós fizemos com isso, somos heróis, vimos de uma linhagem ancestral de contadores de histórias, e podemos finalmente contar as nossas, da nossa perspectiva, com as nossas pessoas, não só para elas mas para todos. Sim, vi televisão durante muitos anos, mas poucas vezes me senti representada. Contam-se pelos dedos das mãos os actores negros na maioria das séries que refiro. Felizmente as coisas têm estado a mudar. Não basta ser negra ou latina para sentir empatia com When they see us, ou melhor, não é preciso sê-lo. Mas as comunidades de emigrantes, a discriminação e a violência policial estão demasiado na ordem do dia em muitos países, inclusive em Portugal, para não prestar atenção. Agora que a temos, finalmente, podemos começar a dialogar.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasNetflix and think (II) [dropcap]E[/dropcap]ste ano voltei a mudar de casa e a ter uma televisão. Em criança, era uma das minhas actividades preferidas: via tudo, desde desenhos animados a notícias, enquanto sonhava fazer companhia a Pedro Pinto na CNN ou transformar-me num Thundercat. Ditava as legendas para a minha irmã quando ela ainda não aprendera a ler, e tinha de ver e descrever as cenas assustadoras quando na verdade queria tanto fechar os olhos quanto ela. Depois, deixei de ter tv durante muitos anos, fazendo zapping distraidamente quando ia a casa de alguém com a caixinha mágica, numa época em que o YouTube ocupou essa função. Subscrevi a Netflix uma ou duas vezes, há muito tempo, cancelei, e agora tenho-a na tv (ambas vinham com a casa). Normalmente percorro a oferta sem grande entusiasmo, apenas pela promessa de uma breve distracção, de não pensar para quem é viciada nesta actividade. Diz Stephen King, o autor com mais obras adaptadas a cinema e a televisão, em On Writing, que a televisão faz mal à imaginação do escritor, que deve deitá-la fora e ler em vez disso. Não é um mau conselho, e parece resultar para King, que está na televisão em vez de assistir a ela. A propósito, terminei finalmente “A sangue frio”, de Truman Capote: «É certo ― replicara ele. ― Também não penso noutra coisa. E pode ser que, enquanto falo disto, descubra algo em que ainda não tivesse pensado. Um novo aspecto. (…) Que julgas tu que seria a minha vida se acaso este crime ficasse no ficheiro dos insolúveis? Daqui a muitos anos ainda eu andava a correr atrás de indícios e, de todas as vezes que surgisse na região um assassínio, lá ia eu ver se encontrava nele alguma semelhança com este. Mas não é só isto. O caso é que acabei por ter a impressão de que conheço agora melhor o Herb e a família do que eles talvez se conhecessem a si próprios. Estou obcecado com eles. E acho que isto não me passa até descobrir o que aconteceu.» Por falar em crime, a par de Life overtakes me, uma das produções recentes na Netflix que considero mais marcantes é When they see us (Aos olhos da justiça). A série de Ava Duvernay, complementada por uma entrevista de Oprah Winfrey aos agora denominados “Exonerados 5”, conta a história verídica de cinco rapazes adolescentes acusados injustamente da brutal agressão e violação de uma desportista, Trisha Meili, em Central Park, no final dos anos oitenta. Um caso tão mediático que nem Donald Trump quis faltar à discussão, investindo em publicidade à pena de morte e prestando as declarações boçais do costume, as quais recusou alterar, mesmo após o sucesso da série e o mediatismo que este caso voltou a ter. À entrevista faltam a vítima do crime e a promotora (ambas autoras de best-sellers do New York Times), mas já não falta toda a justiça. Não posso deixar de referir a brilhante actuação de Felicity Huffman, ao retratar alguém tão odioso como parece ser Linda Farstein de forma acutilante. Assistir a esta série, por uma vez não focada na vítima (“branca”) do crime e sim nas vítimas (“de cor”) do sistema, e consequentemente de crimes sintomáticos das suas confissões forçadas, deveria incomodar e fazer-se questionar qualquer pessoa, não apenas negras ou latinas. Servindo de bodes expiatórios de uma série de crimes semelhantes sem solução, aqueles jovens viram a sua liberdade, privacidade e integridade tiradas à força, num processo em que famílias, reputações e vidas foram severamente expostas e lesadas. O quarto episódio será talvez o mais impressionante, quando vislumbramos como foram os tempos de reclusão: as provações, as alucinações. O que é difícil de ver torna difícil não chorar, não ter uma revolta a crescer profusamente. Porque não há filtros em When they see us, e isso é perceptível durante a entrevista a Yusef, Kevin, Raymon, Antron e Korey. Uma série que é quase um documentário, se escutarmos a confissão do actor Michael K. Williams, no papel de Bobby McCray, que era ele próprio um jovem na altura dos factos, e foi também ele vítima da agressão que lhe marcaria o rosto para sempre, numa cicatriz longa e profunda, agressão essa feita por um grupo de jovens wilding, tal como estavam os reais protagonistas no momento em que a desportista foi atacada. Wilding é calão para actividades em grupo, normalmente de jovens, em que os mesmos criam confusão, agridem e assaltam pessoas que se cruzam no seu caminho, sem razão. Há vários níveis para wildling, que pode começar como um inocente convívio, com as tropelias típicas da idade, ou escalar para algo que roça o distúrbio e a criminalidade. Williams descreve como quase perdeu a vida nesse encontro e confessa que, à luz deste caso, alterou até a maneira de vestir, para não ser conotado com este tipo de instigadores delinquentes. Esta era uma Nova Iorque mais perigosa, mais discriminatória, berço de conflitos entre minorias e polícia. Era uma Nova Iorque coberta pelo véu da ignorância a todo o custo, um véu agora menos espesso, um pouco mais levantado, mas que ainda curva o rosto e os ombros a muitos.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasNetflix and think (I) [dropcap]L[/dropcap]ife overtakes me (Quando a vida nos atraiçoa), é um documentário na Netflix sobre famílias de refugiados na Suécia, cujas crianças são afectadas pela Síndrome de Resignação, também apelidada de Síndrome de Desistência. Após passarem por uma situação traumática, as crianças começam por entrar num estado depressivo que se vai aprofundando até ser atingida a catatonia. Vão gradualmente perdendo o interesse em quaisquer actividades, deixando de abrir os olhos, comer, falar, mover-se, responder a estímulos. Passam a usar fraldas e a ser alimentadas por via intravenosa pelos pais, que se tornam ainda mais cuidadores, muitas vezes auxiliados por voluntários. Não é incomum que, ao assistir ao estado de deterioração de um dos irmãos/irmãs, outra ou outras crianças da família sucumbam eventualmente à síndrome. Este sono profundo, comatoso, pode durar seis meses ou mais de dois anos, sendo por vezes reversível, não sem que antes decorra um período de tempo considerável entre o resolver da situação instável e o convencerem-se, ou melhor, serem convencidos pelo que parece ser transmitido pelos pais: o sentimento, a certeza de que tudo está bem. Os pais parecem ter substituído o príncipe nas histórias de encantar. A deportação é o monstro/bruxa e o passaporte ou autorização de residência o beijo que quebra o feitiço. Há uma série de crianças e jovens adormecidos, esperando a salvação do asilo, a sua transformação de refugiados em cidadãos. Na sua obra-prima, A sangue frio (D. Quixote, tradução de Maria Isabel Braga, 2006), Truman Capote descreve como a tragédia que dilacerou a mais bem-amada família de Holcomb afectou gravemente quem teve o mínimo contacto quer com a família Clutter, quer com os despojos do seu brutal desaparecimento: “A mulher de Dewey passou pelo sono mas acordou ao senti-lo saltar da cama para atender mais uma vez o telefone. Ouviu também, no quarto onde dormiam os filhos, os soluços de um dos rapazinhos que chorava. «Seria o Paul?» Ele não era rabugento nem chorão, nunca! (…) Porém, nesse dia ao almoço desatara em soluços. A mãe não precisara de lhe perguntar a razão; sabia que, muito embora ele compreendesse vagamente o motivo de toda aquela confusão à sua volta, sentia-se inseguro ante as enervantes chamadas telefónicas, os estranhos que entravam em casa, os olhos fatigados e cheios de preocupação do pai.” Situações de racismo na escola (falamos de famílias arménias ou yazidi, por exemplo), criminalidade testemunhada (agressões e homicídios, as causas da fuga dos pais) parecem ser as causas traumáticas que iniciam este processo de fuga à realidade em crianças anteriormente activas e aparentemente saudáveis. Testes de reacção à dor e ao frio são executados regularmente, sem grande novidade. Ainda há muito para descobrir e confirmar relativamente a esta condição. Como em tudo, há quem questione se se trata de uma doença verdadeira, se os pais não estarão a envenenar os filhos, se não será uma estratégia para conseguir protecção e segurança, ou apenas mais uma distracção dos verdadeiros problemas quer dos suecos quer dos refugiados que acolhem. Ainda considerada uma condição rara e quase exclusiva à Suécia, sem razão aparente, certo é que existem relatos de algo semelhante nos campos de concentração Nazi. Detidos, migrantes, refugiados: esta condição começa a verificar-se também em crianças na Austrália. Quão contagiosos são a tristeza, o medo, o desespero, a falta de esperança? Quão sensíveis são estas crianças à verdade, de tal forma que já não basta ver ou ouvi-la, é fundamental senti-la? Entre a tristeza dilacerante e o pós-terror, é comovente e duro assistir ao definhar de qualquer forma de vida, sobretudo a que é mais promissora, mais cheia de energia, normalmente mais adaptável a mudanças. A perda das funções motoras e biológicas acompanha a perda da inocência. Recordemos o quadro Sleeping, de Paula Rego (1986), exemplo dessa quase imperceptível diferença entre perigo e paz. Crianças dormem junto a um arado, vigiadas por um pelicano (símbolo cristão do sacrifício de Cristo, da sua ressurreição e da de Lázaro). Duas crianças estão acordadas, uma enfrentando a ave e a outra virando costas às que dormem, encostada a uma árvore. Observamos ainda uma tartaruga, símbolo de imortalidade, de concentração, de regresso ao estado primordial. Até onde vamos para sobreviver? Além-fronteiras, fisicamente. Ao mais fundo de nós, mentalmente. Até onde tivermos de ir. Até onde nos levarem. Até não podermos mais. Somos, verdadeiramente, onde os nossos limites podem chegar. Na cama ou acompanhando a família em passeios e refeições, em cadeiras de rodas, a estes jovens são-lhes lidas histórias, cantados os parabéns, exercitados os músculos, escovados os dentes, afagados os cabelos. Só faltava aparecer Thom Yorke declarando I’ll take a quiet life, pedindo No alarms and no surprises, please. Bem que mereciam.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasRelicário de sonhos III [dropcap]S[/dropcap]onhei que toda a gente me perguntava constantemente pelos sapatos verdes de andar para trás. E eu ficava ofendida e magoada. Sei que a dada altura queria provar que não eram assim, que não eram verdes e que não os usava com esse propósito, e procurava por eles num grupo de caixas, em frente a algumas dessas pessoas, para depois encontrar, no meio de tantos, que pertenciam aos outros, um par de sapatos verdes intactos, que eram do meu número mas que eu sabia nunca ter calçado. Estava triste, e alguém me dizia que ia falar com o Rufus Wainwright, e ligava-lhe, na verdade eu estava chateada com o namorado dele, que não me consigo lembrar quem era, mas acho que também era conhecido, e ia procurar um poema que sabia ter escrito sobre isso. Quando o achei rasguei a folha em duas sem querer. Na altura já estava noutra sala e queria fazer as pazes, visto que eram ambos meus amigos. Não estava com eles mas conseguia vê-los de onde estavam. Para além disso, antes sonhei que o Lou Reed ia lá a casa para conhecer as minhas irmãs, que eram as Jenner mais novas, e tínhamos de provar que elas faziam bodyboard porque era o desporto preferido dele, e elas tinham de fingir que não sabiam que ele vinha. Mas o Lou só queria dormir, e até tive de o aconchegar. Quando se levantou finalmente e mesmo antes da apresentação, decidiu voltar para a cama, e as miúdas ficaram muito desapontadas, sentadas na beira da banheira com os seus fatos de bodyboard e as pranchas que mal cabiam no wc. Havia um buraco na porta que estávamos todos preocupados em ocultar, embora não perceba porquê. Sonhei que fazia parte da família Kardashian e que estava com eles num hotel, e passava uma manhã inteira a nadar sem me cansar, toda a gente na piscina, Kim e Kanye inclusive, conversando, não me recordo sobre o quê, e eu tinha acabado de sair do hospital. A dada altura subia para escolher o quarto, havia muitos dentro da nossa suite, de seu nome Bairro Alto. Antes disso, andava pelas ruas com outras personagens, mas personagens mesmo, que fugiam, e talvez eu também, de alguém, e se disfarçavam, a dada altura, de apanhadores de lixo. Após passar o perigo eu tirava fotos, com as mãos, do edifício em frente, e o que fixei foi que iam sempre aparecendo cães diferentes em cada janela, que às vezes ocupavam a janela inteira, cães gigantes. O prédio estava quase em ruínas, mas viviam lá pessoas que ocasionalmente surgiam ao lado dos cães. Ao lado havia um café muito bonito, onde vivia uma senhora que, diziam, também não era bem o que parecia. Eventualmente alguém ia lá obter informações, mas não me recordo de mais nada. Sonhei que ia a uma livraria com a minha irmã, e ela dizia que eu tinha mesmo, mesmo de ler o “…Valsa Lenta” (ela nunca dizia o título todo, evitava De Profundis), e que não bastava ler o livro, tinha de ouvir a música, mas quando o folheava havia uma dedicatória para uma Joana e imagens de livro de receitas na contracapa. Havia mais dois livros que eu estava a ver, de capa preta, do mesmo autor, e um tinha capítulos minúsculos, mas do que li e agora não recordo, parecia ser muito bom; supostamente havia uma ordem correcta de leitura do conjunto de três. O dono da livraria estava ao nosso lado a aconselhar-nos, no entanto havia um casal a causar distúrbios mais à frente e então ele foi lá. Quando olhei para o lado direito (o senhor tinha estado do lado esquerdo), havia uma criança a treinar uma espécie de vira, para gáudio da avó. A mãe também aparecia, estava a arranjar a maquilhagem, e tinha um colar em forma de casa gigante e colorida que por algum motivo me lembrava os Pauliteiros de Miranda. Sei que tanto a mãe como a filha olhavam para os livros como se estivessem a ver-se ao espelho, e que antes de chegar à livraria tivemos de passar por muitos outros espaços e ficámos sempre paradas a falar com alguém. O resto ficou lá, mas fica sempre, não é? Outro dia sonhei que ia a uma faculdade que ficava numa espécie de castelo, e que se podia adicionar/fazer amigos sem ter de estar com eles, e havia um rapaz que eu ia adicionar por recomendação de um amigo, no entanto hesitei e ele acabou por aparecer e impôr-se. Entretanto, aparecia um ex-amor, amigo desse rapaz, que me dizia que já sabia que eu ali estava mas tinha esperado pelo momento certo e fazia um belo discurso que, por algum motivo eu ficava muito feliz por ouvir. Em seguida eu atravessava um campo de futebol durante um jogo e defendia-me da bola com as mãos, acabando por pedir desculpa a todos, embora não fizesse parte de nenhuma das equipas. Depois, encontrava uma foto a preto e branco do futuro vencedor, lavado em lágrimas, de um prémio que vinha numa garrafa de cerveja. No cimo da torre estavam o Jorge Gabriel e uma apresentadora que não conheço a anunciar o dito. O chão coberto de tampas de abertura fácil de cerveja, gigantes e cinzentas, mas não havia ninguém na rua. Sonhei que estava na faculdade e ia ao wc apenas para ser encurralada por três miúdas faladoras que pediam a minha opinião sobre um trabalho que iriam apresentar nesse mesmo dia, acerca da Barbie. Para além de o trabalho ser uma apresentação feita em quadro branco de sala de aula que elas transportavam para todo o lado, estava muito mal feito e parecia-me plágio de um trabalho que a minha irmã tinha apresentado. Como se não bastasse, a palavra Barbie estava mal escrita, “Barby”, e eu disse-lhes isto, mas elas não alteraram, e foram embora mas não sem antes me olharem com aquele desdém de quem sabe melhor do que eu como se escreve o nome da boneca mais famosa do mundo porque até há bem pouco tempo ainda brincavam com ela. Fui ter com a minha irmã e pelos vistos ela já estava em paz com o facto de toda a gente andar a copiar o trabalho dela, mas eu continuava preocupada com a palavra Barbie, receosa de estar errada, e não descansei enquanto não vi o logo algures e acabei o sonho dizendo, aliviada, “Eu sabia que era com ie no fim!” 2014 Sonhei que entrava no autocarro errado (ia para Sintra, vindo de muito longe), e assim que me apercebia pedia ao motorista para parar e deixar-me sair, contudo ele recusava, dizendo que se eu pagasse mais um euro ou lá o que era podia desviar-se até à cidade que me interessava. Eu ia à frente e o lugar do motorista era a meio, virado de lado, e conduzia com umas manivelas estranhas. O autocarro só tinha cinco bancos, todos eles ocupados, embora fosse de tamanho normal. Eu estava em constante assombro porque todas as pessoas estavam calmamente no meio da estrada e ninguém se desviava senão no último segundo. Era de noite e eu tinha muita pressa para ir pagar o condomínio de uma casa onde já não vivia há tanto tempo que tinha dificuldade em recordar-me da cidade e da rua onde vivera, e a única pessoa que poderia ajudar, e de quem eu só recordava o nome e o rosto, não atendia (tinha algumas pistas num papel que tentava ler, em vão, porque aparecia tudo em branco).
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasRelicário de sonhos II [dropcap]C[/dropcap]hove. A cover que Cat Power fez do tema “Dream”, de Johnny Mercer, vem-me à cabeça com a sua beleza simples. Talvez eu esteja a sentir-me blue, nesta manhã de chuva miúda. Não acordei de sonhos intranquilos, não vou ouvir o charmoso Otto e o seu álbum maravilhoso com título kafkiano; poderia, afinal faço-o com frequência. Mas hoje é a Chan Marshall quem dá o mote ao texto. Acordei de mais um sonho bonito. Bonito mas proibido. Como diria Ricardo Araújo Pereira (a fazer de Marcelo Rebelo de Sousa naquele mítico sketch de Gato Fedorento), é proibido, mas pode-se fazer. Mas é proibido. Mas pode-se fazer. Substituir fazer por sonhar, que ainda ninguém mos confisca. Ainda sou do tempo em que se dizia que não devemos contar os sonhos se queremos que eles se realizem. Os motivational coaches dirão o mesmo de outros tipos de sonhos, e pergunto-me se algum deles alguma vez comeu os de cenoura ou abóbora, but I digress. Os sonhos ocuparão cerca de 25 por cento do sono, um duodécimo da existência da maior parte das pessoas. Ao fim de uma vida, teremos vivido pelo menos duas horas por noite em modo de simbologia onírica. Dizia Freud que A interpretação dos sonhos é a via real para atingir o conhecimento da alma. Ainda segundo o “Dicionário de Símbolos” de Chevalier e Gheerbrant, no antigo Egipto acreditava-se no poder premonitório dos sonhos como instrumentos divinos, mensagens de deus, janelas para ver um futuro que de outro modo estaria vedado à Humanidade. Existem os sonhos proféticos, os sonhos que nos avisam sobre algo ou alguém, como um pressentimento, os sonhos que reflectem as nossas preocupações quotidianas, os sonhos telepáticos, os sonhos que contribuem para o equilíbrio da nossa flora biológica e emocional, na tentativa de resolvermos enfim nesse mundo o que não conseguimos fazer acordados, por incapacidade própria ou falta de cooperação alheia. Quem nunca tentou acordar de um sonho ou continuar um sonho? Quanto não seria resolvido se nos conseguíssemos recordar de todos eles e interpretá-los. Sonhar é tão importante como dormir, respirar ou comer. Se o estado em que a nossa casa se encontra diz muito sobre o momento da vida em que estamos e reflecte as nossas emoções, o bem ou mal que com elas lidamos, os sonhos não são menos relevantes e reveladores enquanto instrumento de avaliação e percepção desse mesmo estado do Eu. Jung alertava que Não devemos esquecer que se sonha em primeiro lugar, e quase exclusivamente, consigo mesmo e através de si mesmo. A internet está repleta de interpretações de sonhos sobre dinheiro, morte, amor. Temos de nos lembrar de quem morria e como, quem encontrava o dinheiro, se notas ou moedas, se roubado ou perdido, se era com o/a ex, ou um novo amor. Cada detalhe com implicações diferentes na nossa vida futura e significações distintas na vida actual. Há interpretações para todos os gostos, dos mais práticos aos mais místicos. Deixo aqui mais alguns dos meus. Freud que explique, se conseguir. Eu vou rever a belíssima série “Dreams of Flying”, do fotógrafo Jan Von Helleben, que é o melhor que faço. Sonhei que tinha casado com alguém que não conheço lá muito bem, um casamento recomendado, e ele ia fazer anos em breve e eu nem sabia o dia. Queria fazer-lhe um bolo. Mas até nos dávamos bem. A nossa casa era péssima. Eu recebia a visita de uma amiga finlandesa… Não me recordo do resto. Sonhei que eu e um conhecido éramos colegas de trabalho mas nunca tinhamos falado. Um dia íamos beber café, só que o dele tinha muita frescura, tinha de ser preparado quase como um ritual. E não era café, era um cappuccino qualquer, cheio de coisas e coisinhas. Enquanto esperávamos que nos servissem, eu era chamada pelo meu ex marido na ficção e na vida real, Reinaldo Giannechinni, porque tínhamos voltado a viver na mesma casa, e ele estava super aborrecido porque os meus livros estavam todos trocados por dentro. O conhecido acabava por ir falar com ele para o acalmar, mas depois nunca mais voltava. Sonhei com uns gatinhos, mas não eram meus, eu apenas brincava com eles. Estava em casa de alguém, uma casa muito marcada pelo tempo, mas que não tinha paredes e sim varandas; era uma casa ao ar livre, e havia uma espécie de cama gigante. Um dos gatos era às riscas pretas e laranja… Era como o Hobbes Sonhei com ginastas vestidas de cor-de-rosa, a fazer formações em pirâmide na praia. Sonhei que estava numa mansão no meio da floresta, da Lana del Rey, e trabalhava na minha escola primária, que não estava no sítio original. Um dia a Lana decidiu fazer uma creche lá em casa, ocupando os quartos vazios com tudo do bom e do melhor, e chamando as educadoras de infância e os miúdos para a inauguração. À medida que andava de quarto em quarto a ver aquela obra fantástica (ela esmerou-se), só fiz um reparo: Lana, acho que temos de mudar a música ambiente. É que só se ouvia a música dela em todas as divisões da casa.