A senhora – 5

Volta-se a esta ideia como se volta sempre aos mesmos pensamentos, quando se apresentam, mesmo não querendo, como becos de cidade, por mais que conhecida. Sob as vistas de muitas janelas e ponto de encontro de portas fechadas ou não, mas que para o viajante não oferecem estalagem, antes o lembrando de que somente pode retornar sobre os passos levados até ali.
E os pensamentos do homem velho, depois do dia em que passou a sê-lo, eram circulares e obsessivos. Como se uma teimosia que não dominava o retivesse em passos circunscritos a um percurso de hábito, caminhando sobre os mesmos passos e dúvidas, encerrados uns e outros e sem outra possibilidade mais válida do que o abandono completo. Como cinzas a espalhar sobre o delta do rio sem elogio fúnebre, ou pasto para um sopro inesperado que delas fizesse elevar a vitoriosa fénix. Mas durante muito tempo, somente os passarinhos verdes aprisionados amorosamente em gaiolas bonitas como crânios repletos de sentidos, se ofereciam como metáforas.
E, se confiasse diariamente estes pensamentos que mesmo a si próprio já saturavam, nos seus vícios e estagnação próprios daquilo que não cresce mas degenera, ver-se-ia assim, pelos olhos dos amigos do muro do xadrez e dos passarinhos e cujos pensamentos também não adivinhava, com uma intolerância insuportável e imaginada maior que a sua, a este desfilar impotente e repetitivo de fantasmas.
Porque na sua mente, as mesmas ideias de todos os dias.
Quando foi que imperceptivelmente notou que nada o unia a este território, mesmo depois da estranheza inicial? Como nada o prendera ao cenário novo do outro país nos fulgores histriónicos da revolução. Quando se desviou do caminho de tempestuosas chuvadas de luz, cor e ruído. Tilintar de moedas e brilhos dourados. Quando pensou de novo, que afinal o sinal enorme que lhe marcava meio rosto, era sinal de separação. Sinal de mudança, de disjunção, sinal de esperança de intempérie de esforço de persistência de segregação de desistência. Afinal. Sinal em que a genética, ou mais superficialmente um sinal ao espelho, tempera para a vida induzindo sentidos, sem que tivesse que o ser. Tudo o separava de tudo como o seu rosto se separava em dois, como o teatro de luz e ausência de luz, a que dedicara a vida. E por detrás do qual se escondia o seu silêncio feroz. Poderia pensar que começara no dia do bilhetinho amarrotado a dizer que não viriam mais.
Mas fora bem antes, quando ainda lá, observou a impiedosa destruição da esfera privada, corroída por dentro porque também pelas mãos daquela cujas faces de textura de pêssego lhe iluminaram os dias e que entusiasticamente abraçou como suas e como seus, ideias e ideais. Nada podia ser pior do que essa solidão dentro das paredes de casa. Aquele incompreensível entusiasmo pelo pensamento único. Foi aí que se tornou – sem o saber ainda – envolto numa pele de silêncio e numa melancolia irremediável impossível de se ligar a qualquer lugar. Demasiados traços de destruição do passado. E, mais tarde em Macau, demasiados sonhos com um dia no futuro.
Pensava às vezes nisso. Sem querer.
Estranhando como o grau de existência muda, sem que disso se tenha que fazer missão de vida. O que é real a tornar-se uma outra coisa. Como estranhos e invisíveis obreiros, zelam. À espreita de todos os sinais de alarme. Prévios. Previdentes. Aquele olhar de brilho metálico. A segunda menina – depois do filho homem. Que não chegou a ver e que ela dera sem hesitar. Talvez isso. Talvez tenha fugido disso.


A senhora, naquele meio de tarde, afasta-se com a mesma indefinição alheada da zona norte que manterá à chegada às primeiras ruas reconhecidas.


No fim esta era a única figura pela qual zelava carinhosamente como ponto de chegada ou mesmo síntese de todas as histórias contadas e que já nada interessavam. Mas dizendo fim, cabe aqui ao narrador emendar essa expressão saída de um preconceito que não quer validar, mas sim editar. E dizer de outro modo: mais tarde. Só a história não contada desta personagem única e estrangeira. Nem sequer intuída porque é somente uma não história. Sintetizada como numa cristalização apurada, num único momento em que se cruzaram ruas na zona norte, colocando ali no mesmo momento duas pessoas com a mesma relação de estranheza com o território envolvente. Permitindo intuir em dois únicos fotogramas comparados, uma fuga idêntica, mesmo se não sublinhada pela geografia ou pela história. Duas pessoas que desfiaram a certa altura um rol de critérios talvez análogos de pertença ou exclusão de identificação ou alienação. Seres estranhos ao lugar, em busca de uma esfera mais alargada do que a sua bolha sucinta, que se ligasse a este outro lugar. Um, encontrou-se na imagem do outro. Um dia tivera que a criar. Como reflexo de toda a prolongada e densa sensação de que o que vira era o que o definia desde sempre. Lá na terra grande, como ali. Desenraizamento e alienação. Ao espelho.

Ela olha-o com um súbito afecto (como de criatura criada ou criadora de uma visão quase sólida) e vê o homem velho estrangeiro e já não só estrangeiro para si. Mas estrangeiro em si. De um território ou de um mundo em geral. Sem demais pontes de comunicação do que aquelas. Tecidas no silêncio dos fios e com as varas finas.
Arrumou os fios. Ela arrumou-se melhor na teia dos fios. Sorriu de forma lunar, quase para o lado de dentro do rosto. Quase para ninguém, talvez só para si ou para o homem velho que já quase se desprendia dos fios tocando-os. Porque o desenhara com o alarado sinal cinza escuro no rosto quase a extravasar o queixo? Arrumou-os na diligência de que se não embrulhassem e fizessem nós, de vida, de desarrumação a mais. Guardou uma suave impressão do homem muito velho que se fizera pessoa. Arrumou os fios e o cenário. Deixou-o ir. A partir daí.

Ou foi ilusão sua, de personagem que não soube que era.
(continua…)

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