Lai Chi Vun | Os capítulos de uma complexa história de preservação

Há muito tempo que se fala no risco de desaparecimento progressivo daquilo que resta da povoação de Lai Chi Vun, em Coloane, um retrato vivo da antiga indústria naval no território. Agora que o Governo se prepara para abrir os estaleiros renovados ao público no próximo trimestre, recordamos os episódios de um projecto cheio de avanços e recuos

 

Não é fácil chegar a Lai Chi Vun. Quando se chega a Coloane, a poucos metros do centro da vila, uma pequena estrada de terra batida subitamente leva a um sítio à espera de ser descoberto pela voraz indústria do turismo. Nessa povoação restam estaleiros onde outrora se construíram juncos de madeira e uma pequena comunidade de moradores que trabalharam nessa indústria já desaparecida, um pequeno café e um ou outro estabelecimento de comidas ali bem junto ao rio que já deu trabalho a tanta gente.

Há vários anos que a degradação progressiva dos estaleiros de Lai Chi Vun é tema de debate público. O Instituto Cultural (IC) promete que, no próximo trimestre, deverá abrir ao público, um projecto turístico e cultural, no valor de 42 milhões de patacas, com alguns dos antigos estaleiros renovados a fim de atrair visitantes para um lugar esquecido. O assunto voltou a ser abordado na última reunião do Conselho do Património Cultural, decorrida no passado dia 8 de Fevereiro.

Com a chegada daquele que parece ser o capítulo final de uma história que esteve para ser infeliz, o HM recorda os principais episódios de uma saga rumo à classificação e preservação de um sítio histórico que, no entanto, não entrava nas linhas protegidas pela UNESCO e que corria o risco de pura e simplesmente deixar de existir.

Depois de vários alertas e estudos públicos que ficaram pelo caminho, o IC recebeu, a 22 de Março de 2017, um pedido para iniciar o procedimento de classificação dos estaleiros como património digno de protecção, tendo em conta a entrada em vigor, em 2013, da lei de salvaguarda do património cultural. De frisar o plano de desenvolvimento para Lai Chi Vun apresentado em 2012 pelo então Conselho Consultivo para o Reordenamento dos Bairros Antigos, já extinto.

Só no Verão de 2018 o IC avançou com um projecto delineado para a classificação dos estaleiros, dividindo o local em cinco zonas de protecção. Um dos detalhes do projecto visava a preservação completa de três antigos estaleiros e da fábrica de Calafete, onde se vedavam as juntas dos navios. O objectivo do IC era preservar a fisionomia do lugar e garantir a protecção de uma colina que ali existe. Desta forma, ficou assegurado que os edifícios a construir não podem ir além dos 8.9 metros de altura.

No entanto, a preservação dos estaleiros de Lai Chi Vun demorou a atingir consenso no Conselho do Património Cultural, pois em Junho de 2018, 14 dos seus 17 membros chegaram a estar contra, argumentando com os elevados custos de preservação daquelas estruturas.

Entre Janeiro e Março desse ano, o Governo avançou com uma consulta pública sobre a preservação do local, em que 82 por cento dos participantes, ligados à população, se mostravam a favor da reabilitação. Foi então que os membros do Conselho mudaram de opinião, apoiando o plano do Executivo.

Complexidades costeiras

Muito antes do pedido de classificação e do projecto delineado pelo Executivo, já os moradores temiam o pior a cada tufão que assolava Macau. O Governo ia reconstruindo os estaleiros aos poucos, mas era claro que o risco de desaparecimento total era iminente.

Em 2017, num ano em que dois estaleiros foram demolidos pelas autoridades por apresentarem grande risco para a segurança de quem ali vive, David Marques, porta-voz da Associação dos Moradores da Povoação de Lai Chi Vun, dava entrevistas a vários meios de comunicação social a exigir uma actuação rápida para a preservação da história do local. Em Lai Chi Vun sempre foi complexa a propriedade dos estaleiros, conforme contou ao HM nesse ano. No total, a zona alberga 16 estaleiros, mas o Governo apenas intervém directamente em três.

“Em primeiro lugar, não há documentos. O Governo disse que poderia recuperar três estaleiros a partir dos proprietários e, segundo os contratos, estão apenas como gestores dos estaleiros e esse contrato está assinado com apenas uma pessoa que tem o direito de usar o terreno com aquela finalidade. Mas com a transferência de soberania essa pessoa decidiu vender o terreno a outra para receber dinheiro. O dono vendeu ao cliente A. Esse cliente acreditou que o terreno lhe pertencia e vendeu ao cliente B, que depois vendeu ao cliente C. O cliente C ainda está vivo. Este vai ao Governo porque quer reabilitar a zona, mas o Governo pergunta: ‘quem é o senhor’?’”

Projectos que caíram

No meio de um longo processo cheio de complexidades e burocracias, houve projectos privados de requalificação do local que ficaram pelo caminho. Vários estudantes de arquitectura desenharam esboços sobre a zona, e que contemplavam infra-estruturas como edifícios multiusos, ligações à zona do Cotai, a criação de museus ou de um parque temático ligado à indústria naval. Os projectos, que contaram com a participação dos macaenses Carlos Marreiros, arquitecto, e José Luís Sales Marques, presidente do Instituto de Estudos Europeus de Macau, foram propostos às autoridades, mas nunca saíram da gaveta. Alguns foram mesmo recusados.

Destaque para a iniciativa do residente Henrique Silva, mais conhecido entre a comunidade portuguesa como Bibito, designer e apaixonado por barcos, que se juntou a uma empresa dedicada à construção de empreendimentos navais virados para o turismo. A proposta chegou a ser apresentada ao Executivo em 2016, mas nunca avançou.

Ao HM, Henrique Silva explicou, na altura, que o projecto “contemplava a existência de oficinas, que é uma coisa que não existe em Macau para quem precisa de manutenção de barcos, um museu e um clube para iates. E ainda uma escola de vela”. Junto à marina existiriam algumas moradias térreas e criava-se “uma zona privilegiada” para um turista que iria chegar no seu barco e que, assim, teria acesso privilegiado ao Cotai.

Desde os anos 50

As expectativas são agora elevadas num espaço que quer preservar mostrar a história e cultura tão próprios de um lugar. David Marques foi novamente contactado pelo HM para prestar declarações, tendo-se revelado muito satisfeito com o facto de o Governo avançar com uma data de abertura do projecto ao público. No entanto, e numa altura em que a associação local se prepara para ir a eleições, não quis prestar, para já, declarações, mas enviou-nos fotografias recentes do projecto de requalificação.

Do lado dos operadores turísticos existem ainda algumas reservas sobre a verdadeira eficácia, em termos de atracção de turistas, de Lai Chi Vun. É o caso de Bruno Simões, ligado à empresa SmallWorldExperience e presidente da associação Macau Meetings, Incentives and Special Events (MISE).

“Sou um operador na área do MICE [exposições, convenções e conferências] e para esse tipo de eventos interessa-nos poder usar esse espaço para eventos privados, porque aí Macau pode ter uma oferta diferenciada para os tais eventos relacionados com negócios. Se esse projecto não tiver essas características, para a minha área não tem muito interesse. Vou aguardar pela chegada do projecto e ver as possibilidades que tem na área do turismo de negócios.”

Os estaleiros começaram a ser construídos em Lai Chi Vun a partir de 1950, constituindo hoje um dos maiores legados da indústria naval do sul da China. Segundo informações disponibilizadas pelo IC, os estaleiros de Coloane “apresentam técnicas e métodos relacionados com a construção naval no final do século XX, revelando igualmente a organização e o modo de vida da comunidade da Vila de Lai Chi Vun e as influências que tiveram do sector da indústria naval”.

A envolvente paisagística é também tida em conta, pois os estaleiros sempre tiveram uma forte ligação com a água, ali tão perto, e com a colina existente na povoação.

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