Nuno Fontarra, arquitecto responsável pelo projecto da nova Biblioteca Central: “Será um disseminador físico de cultura”

O arquitecto português, do atelier holandês Mecanoo, é o responsável principal pelo projecto da Biblioteca Central, no edifício do antigo Hotel Estoril. Nuno Fontarra fala de um espaço que será multifacetado, com uma função social e de ligação à praça do Tap Siac. Grande parte do edifício será demolido, colocando-se a possibilidade de pavimentar a avenida de Sidónio Pais

 

Ficou surpreendido por vencer este concurso?

Não. Fizemos o projecto de concepção de design em Agosto do ano passado e sempre tivemos boas relações com o Governo de Macau. Eles aceitaram bastante bem o projecto e sabem que uma das nossas mais valias são as bibliotecas, temos várias construídas em todo o mundo. A única coisa que nos surpreendeu é que a concorrência era bastante alta, havia dois escritórios Pritzker, um suíço e um irlandês. Consideramos que fizemos um bom projecto por isso não nos surpreende.

Quando olharam pela primeira vez para o edifício do antigo Hotel Estoril, pensaram de imediato que seria um desafio para o vosso atelier?

Quando nos chegou o pedido do Governo para fazer o edifício, só tínhamos uma fotografia frontal do edifício. Não o tinha visto pessoalmente. Parecia muito interessante trabalhar com ele.

Do ponto de vista histórico também?

Sim, e o edifício tinha um carácter interessante. Mas quando vimos em detalhe percebemos que era completamente impossível [mantê-lo], porque os pés direitos são muito baixos, a estrutura não está em condições. O alçado fica para que a memória do edifício se mantenha, e o grande mural. Decidimos que estaria melhor lá dentro do que no alçado exterior. Lá dentro tem mais condições para se manter mais tempo, para que não se deteriore tão depressa. E também pode ser interessante no átrio, que vai ser bastante alto. Será sempre visível do exterior.

Desde o início deitar fora o mural não era uma opção.

Nunca foi uma hipótese. Podia mudar, mas o mural tinha de ser mantido. A segunda hipótese era ficar no alçado do edifício, mas assim que se demolir o edifício por detrás será quase impossível manter o alçado porque não tem muita qualidade. Como é de betão achamos melhor refazer o alçado com um material parecido, modernizando-o.

Grande parte do edifício será, portanto, demolido.

Exacto. Essa foi uma das decisões que se tomou logo no início. Por exemplo, a parte detrás do edifício é completamente irrecuperável, está num nível que não é compatível com uma biblioteca. Os pés direitos não têm mais do que 2,7 metros, é quase habitação.

A presidente do Instituto Cultural disse que o vosso edifício irá “ultrapassar a imaginação do público em relação às bibliotecas tradicionais”. De que forma é que pretendem marcar a diferença em relação ao conceito de biblioteca como o conhecemos?

Trabalhamos com bibliotecas há cerca de dez anos. Um dos projectos mais famosos é em Delft, onde está o nosso escritório, que é uma biblioteca da universidade. É bastante diferente de uma biblioteca pública. Depois fizemos a biblioteca de Birmingham que está numa condição parecida com esta, numa praça principal. [Tínhamos a ideia de] bibliotecas muito silenciosas, um local que não é dinâmico e que só oferece livros. A ideia é que esta biblioteca se integre com a vida da praça o mais possível e que não tenha apenas livros, mas onde se possa ver um filme ou ir a uma conferência. Se decidir só tomar um café, será um bom café. Chamamos de “live Internet”, em que a pessoa vai ver uma coisa, mas tem outras expostas. E será sobretudo um disseminador físico de cultura. As bibliotecas, sobretudo nos países nórdicos [da Europa] servem também o público.

Macau é um território na Ásia, mas com a presença da cultura portuguesa. Pretendem trazer essa modernidade da Europa, uma nova visão da arquitectura?

Não é tanto a arquitectura que impacta. O que vai impactar é a função da biblioteca. Isso passa-se não apenas nos países nórdicos, mas no Japão, por exemplo. As bibliotecas mudaram um bocado. Quando há problemas sociais, de isolamento, as bibliotecas passaram a ter um comportamento social pró-activo. Havia o bibliotecário atrás da sua secretária, só. Aqui a biblioteca em Delft, devido aos seus funcionários, foi considerada a melhor do mundo durante vários anos. Porque são funcionários muito diversificados, pessoas que vieram da rádio, da televisão. É um grupo muito dinâmico, com muitos voluntários. Esse é um comportamento social e a arquitectura apenas ajuda a fazer isso. A equipa tem de ser treinada e já percebi, pelas pessoas com quem tenho falado para este projecto, que são pessoas jovens e dinâmicas. Se lhe dermos a arquitectura certa podem tirar partido disso.

A praça do Tap Siac, com a calçada portuguesa, também vos inspirou?

Sim. Uma das coisas que nos interessava é que o edifício conferisse coerência a toda a praça, algo que o edifício do Hotel Estoril já fazia. Não queríamos mudar muito isso. Um dos problemas que temos neste momento, e que é difícil de resolver, é que há uma rua que passa entre a biblioteca e a praça [avenida Sidónio Pais] que corta um pouco essa possibilidade de relação com a praça. Seria melhor que se pavimentasse toda a rua, algo que talvez se possa propor nos próximos estudos que vamos fazer.

Além do mural, o vosso projecto também tem outros elementos históricos, como um mosaico.

E com o desenvolvimento do projecto ainda poderemos preservar mais. Queremos que haja um diálogo entre um edifício antigo e moderno. Tem de se contar uma história também, e quantos mais bocadinhos da memória do Hotel Estoril conseguirmos recuperar, melhor.

Este projecto esteve envolvido em várias polémicas, incluindo a retirada de um convite a Siza Vieira, ou as críticas face à pouca participação de arquitectos locais. Quer comentar?

Ainda falta discutir esses detalhes com o Governo, mas a nossa equipa terá arquitectos locais. Trabalhamos sempre com locais fora da Holanda, precisamos do know-how do arquitecto local. Falta também discutir a equipa de engenharia. Está totalmente assegurada a participação dos locais. Alguns arquitectos já têm uma certa idade e não estavam interessados em trabalhar connosco, já estão cansados de fazer este tipo de trabalho. Temos contactos com gente mais jovem.

Falamos do arquitecto Carlos Marreiros, por exemplo, que viu o seu projecto ser anulado pelo Governo?

Não. Temos contacto com ele, mas o arquitecto não está na equipa. Os detalhes da equipa ainda estão sob avaliação do Governo de Macau, mas [a participação de Carlos Marreiros] está fora de hipótese. Só temos contacto a nível pessoal.

O orçamento é de 500 milhões de patacas. Espera que possa ser mantido?

Sim, apesar de nos ter surpreendido o custo da construção em Macau. São valores mais altos do que na Holanda. Estamos a fazer a biblioteca de Nova Iorque e os valores são quase comparáveis, e é talvez o sítio do mundo onde é mais caro construir. Não entendemos bem porque é que isto acontece em Macau. Estamos habituados a trabalhar na China onde os custos de construção não são tão altos. Temos projectos em Shenzhen e os custos não são tão disparatados.

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários