Rui Araújo, ex-PM de Timor, defende que país deveria ter comprado vacinas contra a covid-19

Entrevista de António Sampaio, da agência Lusa

 

O antigo primeiro-ministro timorense Rui Araújo defendeu que Timor-Leste devia ter optado por comprar as vacinas da covid-19 sem esperar por apoio internacional, para estar já a vacinar a população. Uma opção que devia ter sido contemplada no orçamento para este ano e que permitiria ao país atingir mais rapidamente a imunidade de grupo e, assim, regressar à normalidade e implementar as demais políticas de retoma e recuperação económica, considerou, em entrevista à Lusa.

O também médico disse que o desenho do Orçamento Geral do Estado (OGE) para este ano devia ter previsto a opção de Timor-Leste começar a vacinar já. “O Orçamento foi aprovado numa fase em que a ciência e a tecnologia e o mundo estava já mais confortável com uma vacina. Timor-Leste podia dar um salto qualitativo em ter acesso a essas vacinas imediatamente em janeiro e vacinar logo as pessoas e isso facilitaria muito a nossa recuperação económica”, afirmou.

“Temos dinheiro para isso, podemos negociar com os fornecedores. Do ponto de vista financeiro, não é um grande obstáculo. Devíamos ter tentado aproveitar essa janela de oportunidade”, sublinhou o antigo ministro da Saúde.

Essa opção, considerou, permitia ao país criar condições para um mais rápido retorno à normalidade, a reabertura das fronteiras, mudanças em restrições e, assim, proporcionar avenidas para a tão necessária recuperação económica. Como exemplo, referiu o caso de Israel, que em três semanas já vacinou quase metade da população. “Assim, vamos ter que esperar até junho ou julho. Podíamos ser mais pró-activos”, frisou.

Em vez de ir ao mercado comprar directamente as vacinas, as autoridades timorenses preferiram subscrever o recurso ao fundo Covax, de apoio à vacinação em países mais pobres, iniciativa que vive com grandes carências de financiamento e atrasos na distribuição.

Para Araújo, “é preciso continuar a conter a pandemia dentro das quarentenas, mas também reforçar a capacidade do SNS para poder responder aos problemas da covid e a outros”. “Vacinar é importante. Vacinar até atingir essa imunidade. Assim talvez só consigamos atingir essa imunidade num ano. E sem isso será muito difícil fazer o resto”, afirmou.

Mesmo neste modelo de obtenção das vacinas, no caso timorense será a AstraZeneca (com problemas de fornecimento a alguns países), Rui Araújo defendeu que o Ministério da Saúde tem a capacidade mínima para a vacinação, mas que é preciso “unir esforços” e combater, também aqui, a partidarização dos serviços públicos.

“Sucessos” no combate à covid-19

Apesar dos constrangimentos que o país viveu, instabilidade política, chumbo do Orçamento Geral do Estado (OGE) de 2020 e os efeitos da pandemia em si, Rui Araújo considerou que em “jeito de balanço geral” o Estado timorense “teve sucessos” na forma como tem estado a enfrentar a pandemia da covid-19.

“De uma maneira geral, do ponto de vista de saúde política, Timor-Leste foi um sucesso na resposta às ameaças da pandemia da covid-19 ao país”, afirmou Araújo, antigo ministro da Saúde que também integrou o Centro Integrado de Gestão de Crise criado pelo Governo para responder inicialmente à pandemia.

“O maior sucesso foi ter-se conseguido que não houvesse transmissão na comunidade. Também graças aos primeiros passos tomados nos primeiros meses, nos primeiros estados de emergência em que realmente se tomaram medidas drásticas para poder controlar”, frisou.

Já do ponto de vista da recuperação económica, o antigo primeiro-ministro disse que “se podia fazer muito melhor”, aproveitando especialmente que os casos detectados serem todos importados. “A componente da atividade social e económica devia ser melhor dinamizada no país, mas infelizmente isso não aconteceu. Com sucessivos estados de emergência dificultou um pouco isso”, explicou.

“Do ponto de vista jurídico há essa justificação que sem a declaração do estado de emergência não se pode obrigar as pessoas a ir para quarentena e isolamento. Não sendo jurista penso que se poderia ver formas alternativas de se ver isto”, disse.

Igualmente por cumprir tem ficado o objetivo do Governo de permitir o reforço do sistema nacional de saúde, uma das justificações dos sucessivos estados de emergência. “Eu acho que não se conseguiu os objectivos traçados há um ano. Continua a ver-se uma grande lacuna e deficiência no SNS para poder responder a possíveis aumentos de casos do país, e para responder a situações normais”, disse.

Problema, notou, agravado pela imposição de restrições nas fronteiras com o ‘stock’ de medicamentos e bens consumíveis nos hospitais, centros e clínicas do país “a cair bastante”.

Uma vez que a última vez que entrou carga pela fronteira terrestre foi há mais de um mês, em 23 de dezembro, Rui Araújo diz que isso “está a afetar bastante a capacidade do sistema”, não apenas do público, mas também do privado, “que tem dificuldade em poder providenciar serviços mínimos”.

Administração “partidarizada”

Rui Araújo considerou, na mesma entrevista, que a administração pública timorense está partidarizada, afectada pela descontinuidade no processo de governação, e sofre de paralisia burocrática com medo dos órgãos fiscalizadores.

Uma situação agravada pela dispendiosa ‘subsidiodependência’ do funcionalismo público, pela falta de mérito no recrutamento e, no atual quadro político de um Governo multipartidário, por alguma ‘balcanização’ dos Ministérios, disse, em entrevista à Lusa. “Há sempre uma incapacidade da administração pública de poder implementar as boas políticas definidas pelo Governo, não apenas por falta de mérito técnico profissional, mas por afinidades políticas”, explicou Rui Araújo.

O também antigo ministro da Saúde apontou o “grave problema” da “partidarização dos cargos de direcção e chefia e até certo ponto dos funcionários públicos”.

Um problema antigo, mas que se tem vindo a consolidar, com ministros a nomearem “pessoas para cargos de direção e chefia tendo como critério principal se é da mesma cor do partido ou não, independentemente do mérito técnico e profissional que têm”.

Mesmo nos processos de recrutamento alegadamente feitos por mérito, Araújo considerou que “na prática há impressão geral de que as coisas são abençoadas do ponto de vista político”. “Há processos de recrutamento que aparentemente seguem tramites legais, mas depois há muita coisa por trás nos bastidores que resulta na colocação de pessoas sem mérito técnico e profissional nas funções que vão exercer”, disse.

Cenários em que há alegados “boicotes” entre diretores gerais que são de cores políticas diferentes do ministro, ou de ministros que tentam fazer “um ‘bypass’” a esses diretores de outros partidos para que outros façam o trabalho.

“Claro que isto é muito difícil de gerir. E até certo ponto no Ministério da Saúde se nota essa complicação da partidarização da administração pública que tem vindo a acontecer há muito tempo”, sustentou, referindo ainda a tendência para fazer “tabula rasa” aquando da troca de Governos, não permitindo continuidade na implementação da ação governativa.

Para Rui Araújo, esta situação cria uma “grande dor de cabeça” a todos e “só se resolve com vontade política nacional, de todos os partidos, reconhecerem que este é um problema” que afeta todos e o país.

“Têm que reconhecer que isto é um problema, independentemente de qual partido venha a vencer as eleições seguintes. Se esse problema não for resolvido coletivamente no âmbito de um consenso nacional”, sustentou.

“Todos os partidos políticos têm que respeitar a administração publica, para ser isenta da interferência político-partidária e poder ter a capacidade de implementar as políticas definidas pelos partidos políticos no Governo”, sublinhou.

Excessivo uso de subsídios

Outro aspeto a corrigir, reconheceu, é a excessiva utilização de subsídios, ‘per diems’ [montante diário] e outras medidas que criam um quase canal paralelo ao dos salários dos funcionários, um sorvedouro de dinheiros públicos que inflacciona o custo de todas as medidas.

“Não é sustentável. O país vai abaixo com tudo isto. Isto é que está a contribuir significativamente para delapidar o Fundo Petrolífero. Gasta-se 1.8 mil milhões [de dólares], mas depois vê-se que fatias significativas dessas despesas são extraviadas para esse tipo de gastos”, disse. “Há uns anos falava-se de cortar despesas supérfluas e ver eficiência das despesas, mas as coisas não melhoraram nos últimos três anos”, frisou.

Para o antigo responsável este é um problema “com implicações profundas na sustentabilidade da existência de Timor-Leste como pais soberano”. “Isto é sério”, reiterou.

O medo de órgãos fiscalizadores como a Câmara de Contas (CC) e a Comissão Anti-corrupção (CAC) e das suas interpretações das leis tem criado outro problema, com responsáveis políticos e da administração, paralisados com medo de assinar documentos.

“Há uma espécie de paralisia burocrática, por causa deste medo, particularmente porque a CC e CAC vêm a público com relatórios e as pessoas ficam com medo. E dizem: ‘eu não quero assinar’. E isso é paralisante para tudo”, referiu.

“Não há entendimento uniforme e objetivo na interpretação das leis, particularmente no que diz respeito à execução das despesas públicas. Nem sempre o que os órgãos e as instituições de fiscalização, entendem as dificuldades do ponto de vista operacional, quando se está do outro lado a tentar implementar as políticas no grande esforço de concretizar a prestação de serviços públicos a população”, sublinhou.

Como exemplo, citou o recurso extraordinário a ajustes diretos que “são quase considerados como violação das regras de aprovisionamento no país”, ainda que previstos na lei, com os fiscalizadores a verem-no como “uma forma de má gestão e de querer ultrapassar os mecanismos administrativos para benefício próprio”.

“Pode haver casos desses, mas não acontece sempre. O facto de os órgãos de fiscalização chegarem a essa conclusão paralisa as pessoas que ficam com medo de tomar decisões e assinar documentos”, disse.

Há falta de coesão

Rui Araújo considerou ainda existirem “sinais de falta de coesão no Governo”, formado pelo próprio partido, a Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente (Fretilin), pelo Partido Libertação Popular (PLP) e pelo Kmanek Haburas Unidade Nacional Timor Oan (KHUNTO).

“Uma ‘balcanização’ dos Ministérios. Na prestação dos cuidados há problemas. Nos Ministérios onde existem tutelares da pasta do mesmo partido as coisas são mais fáceis. Mas também se nota o problema de ministros e vice-ministros que são do mesmo partido e não têm o mesmo peso político e as coisas também não funcionam como se quer”, adiantou.

“A falta de coesão é menor em Ministérios onde o ministro e o vice são de partidos diferentes. Há disputa e abre margem de oportunidade para o pessoal da administração pública fazer também os seus jogos políticos”, frisou.

Neste cenário, considerou, é importante haver “comunicação intensiva” entre os membros do Governo e que o primeiro-ministro tenha “mais intensidade na gestão da relação entre Ministérios”. “Porque é complicado ter vários partidos com diferentes interesses não só partidários, mas pessoais. É preciso gerir isso bem”, afirmou.

Disponível para liderar Fretilin

Rui Araújo disse que está disponível para se candidatar à liderança da Fretilin, maior partido do país, quando o processo de eleições internas ocorrer. “Estou a pensar nisso, com outros camaradas. É um movimento. Estamos a trabalhar”, disse em declarações à Lusa, explicando que apesar de estar actualmente afastado de cargos políticos continua “activo na política”.

“Temos eleições para a liderança do partido pela frente. Dependente das decisões do Comité Central e da vontade dos militantes”, frisou.

A possível candidatura de Rui Araújo – que foi primeiro-ministro no VI Governo e ocupou ainda a pasta de ministro da Saúde – ao cargo de secretário-geral da Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente (Fretilin) tem vindo a ser alvo de debates políticos em Timor-Leste há um longo período.

Vários nomes têm sido associados a esta eventual candidatura num processo eleitoral com data ainda por marcar, que a concretizar-se seria a mais recente tentativa de desafio à liderança do atual secretário-geral, Mari Alkatiri.

Até ao momento, porém, esses diálogos têm sido relativamente circunscritos com poucas declarações públicas sobre o assunto e sem que tenha havido uma declaração de candidatura.

Rui Araújo considera que há actualmente apoio no partido para a mudança de líder e que há condições para que esse processo ocorra. “Sim. As pessoas pensam que é tempo de haver alternativas e tempo de apresentar projetos de melhor sustentabilidade para o país. Creio que dentro do partido há condições para se fazer isso”, considerou. “Mas depende dos mecanismos eleitorais do partido”, disse.

Questionado sobre que Fretilin gostaria de liderar, Araújo disse que o partido é “uma frente ampla que “acomoda todas as tendências ideológicas e políticas no país”. A Fretilin, disse, “já provou ser um partido que consegue unir as pessoas, que consegue estar à testa da luta em momentos muito difíceis do país, e deve ser essa Fretilin a continuar a projetar e exercer esse papel no futuro”.

Rui Araújo, que diz estar a fazer hoje mais trabalho técnico apesar de continuar “ativo na política”, escusa-se a avaliar a atual liderança, considerando que essas avaliações são subjectivas e que respeita o princípio de que “a maioria prevalece”.

“Penso que a actual liderança do partido tomou decisões em momentos concretos da conjuntura política. São responsáveis pelo que fizeram. Quem sou eu para julgar se foi bom ou não”, disse.

Como também prefere “deixar para que a história julgue” o impacto que as decisões tomadas nos últimos anos pelo Presidente da República, Francisco Guterres Lú-Olo – que continua a ser presidente da Fretilin – possam ter tido no partido.

“Prejudicar não. Mas projectou uma imagem, uma certa perceção na sociedade timorense, sobre alguma parcialidade, mas isso, como disse, são percepções das pessoas e a história dirá”, afirmou.

Há, no entanto, uma questão em que diverge da decisão da liderança do partido, a de viabilizar desde meados do ano passado o VIII Governo, que formalmente nasceu em 2018 assente numa coligação pré-eleitoral onde estava o Congresso Nacional da Reconstrução Timorense (CNRT), de Xanana Gusmão, que posteriormente saiu do executivo.

“Sempre defendi que a forma mais adequada para a Fretilin participar era formar um Nono Governo, liderado ou facilitado pela Fretilin. O entendimento seria diferente”, disse, admitindo que isso foi parte do que o levou a não aceitar um convite para integrar este executivo.

“Não só isso, mas penso que não há condições políticas para trabalhar a sério em áreas muito técnicas como a saúde, porque há muita balcanização e politização. É melhor deixar para outros e eu dar a minha contribuição em termos técnicos”, frisou.

Agora, disse, caberá aos eleitores em 2023, data prevista para as próximas legislativas, avaliar a atuação de todas as forças políticas. “O resultado vai refletir a forma como o eleitorado penaliza ou aplica sanções políticas às pessoas que exerceram o poder nestes últimos anos”, disse. “E não foram, infelizmente, bons anos para Timor. Há esperança de que a situação melhore”, considerou.

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