Ana Paula Laborinho, directora em Portugal da OEI e ex-presidente do Instituto Camões: “Não fomos a reboque da China”

Com um largo currículo na área da língua portuguesa que passa por Macau, onde deu aulas, fez assessoria política e presidiu ao Instituto Português do Oriente, Ana Paula Laborinho é hoje directora da Organização de Estados Ibero-americanos, que trabalha em prol de uma maior união das línguas portuguesa e espanhola. A ex-presidente do Instituto Camões lamenta não ter feito mais no desenvolvimento da rede externa do organismo e afirma que Portugal é dos países que mais tem uma política para a língua

[dropcap]N[/dropcap]o último colóquio da Universidade Católica Portuguesa falou do projecto académico “Escrever Macau”. Em que consiste esta iniciativa?
Durante a minha estadia em Macau, em 1988 e 1989, iniciou-se um movimento para estudar a literatura de Macau, que tem de começar por interrogar o que é essa literatura. Não é uma questão fácil. Na altura era uma questão debatida com uma visão relativamente restrita, a de pensar que a literatura de Macau era aquela apenas feita por macaenses, os filhos da terra, mas rapidamente se percebeu que teríamos de ter uma visão muito mais alargada. Nesse sentido, sobretudo depois de ter regressado de Macau, em 2002, começamos um projecto na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) onde concluímos que escrever Macau nos alarga o horizonte, porque aqueles que escrevem sobre Macau são de Macau, mas fazem-no em várias línguas.

Ou seja, não há apenas um caminho.
Temos aqui uma visão mais alargada. Fizeram-se algumas reuniões académicas e publicamos, em 2010, um livro intitulado “Macau na Escrita, Escritas de Macau”. Há um interesse muito grande (sobre a literatura de Macau) que se tem estendido para fora de Portugal. Vou agora a Paris, à Universidade de Nanterre, participar num encontro em que “Escrever Macau” é um tema central. O projecto “Escrever Macau” deveria ser mais divulgado em Macau, mas muitas vezes estes projectos não têm os recursos suficientes para fazer essa promoção. Mas há muito trabalho que tem vindo a ser feito, com jovens investigadores que se têm debruçado sobre estas áreas. Vamos prosseguir nesta senda de definir o que é esta escrita de Macau, as suas várias fases, concluindo que hoje em dia nessa escrita convergem várias línguas, autores de várias proveniências, mas que continuam a ter Macau como objecto de escrita.

Houve uma maior mudança depois de 1999 no campo da produção literária?
O que me parece é que depois da transferência de soberania de Macau podemos ter uma outra visão do que é escrever Macau, porque até aí havia muito essa ideia (restrita) do que era a literatura macaense e da figura do macaense. Mas depois da transferência de soberania constata-se que essa figura é hoje muito mais alargada. O que é um macaense? É todo aquele que nasceu em Macau e escolheu Macau para viver e para morrer. O mais importante é essa identidade múltipla. Hoje temos de entender Macau de uma forma múltipla, muito transversal e é essa a sua riqueza. Tudo isso faz parte de um cadilho criativo que nós vemos que tem expressão na literatura, mas também noutros domínios. É essa criatividade que se gera por esse confronto de pessoas, por este diálogo entre culturas. Isso é Macau. E por isso escrever Macau é também tudo isso.

ANA PAULA LABORINHO

Surpreende-a que haja mais autores nascidos em Portugal a escrever sobre Macau?
Não temos ainda um levantamento de todos aqueles que escrevem sobre Macau noutras línguas, nomeadamente em chinês. Tanto quanto sei, começam a aparecer jovens escritores, temos o Yao Jingming, um grande poeta que escreve em português e em chinês e que integra grupos de escritores de Macau e tem uma visão que é bastante mais lata do que aquela que nós temos, e o que é muito interessante. Aliás, pensou-se em fazer uma colecção de autores que escrevem sobre Macau nas várias línguas, e também havia autores de língua chinesa, pois algumas questões sobre identidade são muito semelhantes. Os autores de língua portuguesa ou chinesa interrogam-se sobre isso, porque há muitas vezes ali uma identidade volátil. Essa volátil identidade, mas que é também uma escolha e uma vontade, está muito presente na literatura, quer se escreva numa língua, ou outra ou até em inglês.

É directora da Organização de Estados Ibero-americanos (OEI) em Portugal. Falou ainda de um estudo focado numa união entre o português e o espanhol. O que está a ser feito nesse sentido?
O interesse de Portugal nesta organização, que tem a sua representação no país há menos de dois anos, tem a ver com três grandes eixos. Um é estreitar os laços de participação, partilha de experiências e projectos conjuntos com os países ibero-americanos. Mas tem também uma outra, que é relevante, que é o podermos trabalhar com a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). A OEI foi a primeira organização internacional a ser aceite como observadora da CPLP e fazemos esse trabalho de ligação entre os países ibero-americanos e a CPLP. Depois, a terceira linha de trabalho tem a ver com a língua portuguesa, apesar da OEI sempre ter sido essencialmente uma organização de língua espanhola. O seu secretário-geral, Mariano Jabonero, propôs o primeiro programa ibero-americano para a difusão da língua portuguesa. A verdade é que neste momento estamos a trabalhar e a perceber que o português também ganha muito em se aliar, o que não significa perder a sua identidade. Ganhamos em trabalhar em conjunto duas línguas que são próximas e que tem origens comuns.

Como é que isso será feito?
Uma dessas áreas tem a ver com a produção científica em conjunto. Há estudos que nos mostram que as duas línguas em conjunto já constituem a terceira língua de ciência do mundo. Outra área é o digital, onde temos de apostar mais. É neste sentido que o Instituto Camões (IC) e Instituto Cervantes estão a produzir um estudo, no seguimento de outro que foi feito sobre o potencial económico da língua portuguesa que saiu em 2011, sobre o potencial das duas línguas em conjunto. O português tem 260 milhões de falantes, o espanhol tem 540 milhões, então temos uma comunidade de 800 milhões que se entende e que têm laços comuns. Isto é um valor e potencial que podemos explorar. O continente onde se vai falar mais português é África, e isso revela que vai haver um crescimento demográfico nos países de língua portuguesa assinalável. Isto faz com que a América Latina não seja o continente onde se fala mais português. Nas minhas novas funções o meu papel não é apenas o trabalho na área das línguas, mas na partilha de projectos de educação. Estamos a trabalhar nas competências para o século XXI com esses países e a CPLP. O projecto sobre indicadores de ciência está bastante avançado na América Latina, mas também podemos partilhar práticas com outros países. É toda esta dimensão que nos parece que vai ser essencial para projectarmos a nossa língua, o português.

O que gostava de ter feito mais na presidência do IC?
Passei por uma fase difícil, porque num primeiro momento recebemos a rede do ensino do português no estrangeiro, do nível inicial até ao ensino secundário, que estava no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Essa rede era muito maior do que a dimensão do IC que, até 2010, só tinha o ensino do português no ensino superior. Foi necessário reorganizar a instituição em função dessa rede, criar novos desafios e qualificar esse ensino que se destinava essencialmente às comunidades portuguesas, mas também qualificá-lo para que ele se tornasse um ensino de matriz internacional. Esse foi o grande desafio. Em 2012 tive outro, que foi a fusão com a Agência para o Desenvolvimento e Coesão, e por isso passámos a ter uma grande dimensão que naturalmente foi preciso estruturar. Nesse sentido, há muita coisa que fica por fazer. Julgo que aquilo que gostaria de ter feito e talvez não tenha feito tanto foi reestruturar a rede externa.

Em que sentido?
O IC não tem as escolas portuguesas, mas tem uma rede muito grande de professores e centros culturais de língua portuguesa e tem-se aumentado o número de presenças em países. Estávamos em 84 países em termos de acção mas é preciso reestruturar e consolidar essa rede. Depois de consolidar a estrutura interna, poderia ter também dedicado mais tempo à estrutura da rede externa, que é fundamental. Também tive a sorte de apanhar um momento em que a concepção do desenvolvimento estava em mudança com a Agenda 2030.

O que é que isso trouxe de diferente?
Algumas dimensões que não eram consideradas passaram a ser, como, por exemplo, a cultura como elemento fundamental para o desenvolvimento. O que tenho de concluir é que aprendi muito, foi uma experiência que me marcou bastante. O IC é uma instituição que tem um trabalho extraordinário. Fico muito contente por ele ser prosseguido pelo meu sucessor e por continuar nesta aposta de levar mais português e participar mais em projectos de desenvolvimento e em parcerias estratégicas, como aquelas que temos com a União Europeia na área do desenvolvimento.

Agrada-lhe a actual estratégia governamental de internacionalização da língua portuguesa?
Claro, essa foi a estratégia que orienta a casa em termos gerais. Há uma grande aposta do actual Governo nessa área, quer na internacionalização quer numa oferta qualificada para as comunidades portuguesas, para que tenham a noção de que a sua língua é internacional. Tem sido feito muito trabalho e há um investimento muito grande do actual Governo nesta área, no sentido de ser uma política que está no topo das preocupações e com grande apoio a todos os níveis, desde o primeiro-ministro ao ministro dos Negócios Estrangeiros, mas também outras áreas do Governo como a educação, cultura ou economia. Neste domínio da economia é relevante a questão da internacionalização da língua como bem percebemos pelo inglês. Daí que haja uma perspectiva que este tema é transversal.

Não acha que a vontade da China de expandir o português não levou a uma maior estratégia por parte de Portugal na internacionalização da língua? Foi o motor de arranque?
Não me parece. Acho que Portugal é dos países que mais tem uma política para a língua, ao contrário do que muitas vezes se diz, e tem-na de uma forma consistente. O Brasil não tem nenhuma instituição para a promoção da língua, diz-se que vai ser criado agora um instituto para esse fim. Desse ponto de vista, Portugal tem uma longa tradição e o IC é um dos grandes institutos europeus, ao lado do Goethe, Cervantes, entre outros. Não tenho nada a ideia de que tenhamos ido a reboque da China. Esta complementaridade é muito útil, relevante e reforça a nossa posição de divulgação da língua, torna-se muito mais atractiva, mas tenho a dizer que as autoridades portuguesas fazem muito pela língua. Quer o projecto da Escola Portuguesa de Macau e escolas portuguesas no mundo, ou o IPOR em Macau, são esforços para um país que tem 10 milhões de habitantes. Temos de ter noção da nossa dimensão e ver que, fazemos muitíssimo pela língua. Há um aspecto que ajuda muito que é a estratégia e o valor que se tem desenvolvido com a presença de portugueses em altos lugares de organizações internacionais. Essa é uma estratégia de Portugal mas claro que tem muito a ver com o valor das pessoas, tal como ter António Guterres na ONU.

O IPOR celebrou 30 anos de existência recentemente. Está contente com o trabalho realizado?
Muito contente. Houve momentos, no período da transição de Macau, em que não se sabia se valia a pena, mas ainda bem que se continua a apostar. Penso que o IPOR tem feito um trabalho muito importante e é uma referência importante em Macau. Só tenho de saudar todos os que estiveram na origem da ideia e todos os que contribuíram para a construir.

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