Quando morre um grande escritor

[dropcap]N[/dropcap]a passada quinta-feira, morreu um grande escritor brasileiro, oriundo de Jaguarão, Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai. Aldyr Garcia Schlee morreu em sua casa, na cidade de Pelotas, a uma semana de completar 84 anos de idade e poucos dias depois de lançar o seu mais recente romance O Outro Lado, na Feira do Livro de Porto Alegre. Era considerado um dos grandes contistas brasileiros, embora estivesse sendo a ser lembrado pelo facto de aos 19 anos, em 1953, ter sido o autor da equipamento da selecção brasileira, a canarinha. A camisola verde-amarela desenhada por Schlee foi eleita num concurso organizado pelo jornal Correio da Manhã, após a derrota na final da Copa de 1950, para o Uruguai.

Aldyr Garcia Schlee teve grande reconhecimento como contista nos anos 80 do século passado, com os livros Contos de Sempre (1983) e Uma Terra Só (1984), mas depois foi aos poucos desaparecendo do mapa brasileiro, ficando cada vez mais restrito à sua terra natal, Jaguarão, e à sua terra de adopção Pelotas. Será já no início deste século que o artista plástico Alfredo Aquino inaugura uma editora em Porto Alegre, a ardotempo, e passa a editar novos livros de Schlee e a reeditar os antigos, fazendo reavivar a chama do escritor. Neste período escreve dois livros absolutamente memoráveis: Limites do Impossível – Contos Gardelianos (2009) e o romance sinfónico Don Frutos (2010).

Este meu texto, que é simultaneamente um elogio fúnebre e um encómio, deriva de ter privado com o escritor e de ter pelos seus livros, principalmente o seu Don Frutos – e também Limites do Impossível – uma admiração sem medida. Tentarei aqui reviver o escritor através do seu Don Frutos, de uma leitura desta obra magna.

A obra de Aldyr Garcia Schlee tende para o mundo todo. Traz a ambição humana de tocar o mundo todo e nessa ambição nos mostra esse humano, o humano universal, ontológico, enraizado numa terra de fronteira, como se por metáfora do que é a nossa vida, fronteira entre nada e coisa nenhuma, e ponte entre o mistério e o desconhecido. E uma das questões de fundo, primordiais de todo o projecto literário de Aldyr Garcia Schlee poderá ser expresso do seguinte modo: só irá permanecer aquilo que ficar escrito; só a palavra escrita se salva e, com sua salvação, a salvação das coisas (ou transformação delas). Veja-se o que está escrito à página 66: “(…) pois o que não estava escrito… não era! (…) Só fica o que está escrito no papel (era como se tivesse pensado; e pudesse dizer: o que está escrito acaba sendo a única verdade, mesmo que seja mentira; porque a memória não pode desmentir a verdade que tenha sido falsificada e que fica no papel; (…))” Aqui está o que leva o escritor em causa a escrever. Ele não escreve ficção, ele recria a realidade. Em verdade, ele cria a realidade, cria aquilo que aconteceu, ainda que nunca tenha acontecido. Só uma coisa interessa a Aldyr Garcia Schlee: reescrever os acontecimentos, isto é, remendar a história. Melhor: corrigir a história. O que aconteceu não importa, o que importa é o que deveria ou poderia ter acontecido. Escrever é criar o mundo.

Segundo Aristóteles, a diferença entre a história e a poesia é que a primeira debruça-se sobre o que aconteceu e a última sobre o que poderia ter acontecido. Assim, desde esse tempo Grego, a literatura trata do que poderia ter sido e não do que foi. Aqui, na obra de Schlee, não se trata de querer transformar a poesia em história, mas antes de mostrar que o carácter da história é, ele mesmo, poesia. Tudo o que é humano é palavra, e tudo o que é da palavra tende a ser poesia. Veja-se o que o autor escreve à página 302: “(…) este é um romance, sempre mais preocupado e comprometido com aquilo que terá talvez sido do que com aquilo que realmente foi (…)” Aldyr Garcia Schlee mostra-nos claramente, ao longo do livro, como meta-narrativa, a sua própria reflexão acerca do romance que escreve e, muito provavelmente, acerca do romance em geral.

O conceito de história é aqui, neste livro, permanentemente colocado em causa. Não no sentido de perguntar se existe ou não existe uma ciência da história, como se usa falar, mas no sentido em que essa mesma ciência da história é virada do avesso, como que para ver as linhas com que ela se cose. Que quer isto dizer? Quer dizer as fontes que se perdem ou se fizeram perder, a memória apagada, que se força a apagar, como por exemplo no caso do assunto Revolução Farroupilha em Jaguarão: “(…) seja aonde for, seja como for, aqui em Jaguarão ninguém fala às claras sobre a Revolução Farroupilha. É como se nada tivesse acontecido (…) O silêncio é quase total. Até mesmo os documentos oficiais se perderam; ninguém sabe nada, ninguém se recorda de nada (…)” E quantas Jaguarão e Revoluções Farroupilhas não existem nos tempos do mundo?!

Quantos buracos no tecido da ciência da história não existem, talvez até ao ponto de serem mais buracos que tecido?! Para não falar acerca daqueles que destroem documentos em prol do que querem que fique registado pela ciência da história; ou, a mais das vezes, apenas em seu próprio benefício, como, e uma vez mais, no caso de Jagurão, aqui referido: “Consta que por puro medo, Manuel [Manuel Gonçalves da Silva, irmão de Bento Gonçalves] levou para fora os livros e atas da Câmara, extraviando-os ou destruindo-os, perdendo-se com isso toda a história da vila, desde sua elevação, em 1833 a 1836 e até 1845, quando a luta acabou.” Também aqui, nesta violência para com os factos registados, encontramos o mundo repleto de exemplos. Jaguarão, aqui, representa uma vez mais o mundo e a violência cometida contra as obras dos homens.

No fundo, o que aqui está em causa é o seguinte: o instrumento da história é o mesmo instrumento da literatura, isto é, a palavra. A palavra é aquilo através da qual se faz história. Com a palavra se regista documentos, se relatam factos, se contam episódios passados. A mesma palavra que forja documentos, inventa factos, fabula episódios passados. Esta é a verdadeira questão que Aldyr Garcia Schlee quer que tenhamos bem presente, quando caminhamos pelas páginas do seu Don Frutos. Este lugar por onde caminhamos com nossos olhos e nossa consciência é feito de palavras. Quais as da História e quais as de Literatura? E quais as que dentro da História não são já elas Literatura? É isto que antes de mais temos de saber que Schlee nos mostra.

Mas a questão histórica só pode se tornar aqui uma questão literária, se existir consciência em relação a tudo isto. E esta consciência é-nos mostrada ao longo do livro em diversas passagens, como a que se citou anteriormente, acerca da Revolução Farroupilha, ou a que iremos ver de seguida: “Sabe-se, é verdade, que houve o capitão Fructuoso Rivera, filho de Rivera com Eusebia Pedernera, pai do comandante Fructuoso Rivera e avô do bisneto do General, o Coronel Fructuoso Rivera, que chegou perto dos nossos dias. Mas isso são cousas que a história registra e não precisam ser repetidas aqui.” Veja-se como a última frase sublinha a existência das várias camadas de história a que o livro nos remete.

É evidente que a questão mais pertinente, literária e epistemológica, diz respeito à confluência entre história e narrativa. Amiúde, a narrativa põe a noção de história a céu aberto. Veja-se as páginas acerca do coronel José Artigas: “Falo para que se veja que ainda existe um ancião oriental que pode dar testemunho de todo o ocorrido, que pode desmentir todas as inverdades, falsa ou maliciosamente propaladas contra Artigas.” O que aqui está em causa, e embora seja um problema que apareça ao longo de todo o livro, aqui neste capítulo XXIII ele atinge a sua pertinência máxima, a saber, o que é que a história vai registar. O que é que a história vai deixar como documento, acerca de um homem ou de um episódio, tendo ele vários lados. Já não estamos mais nos interrogando ou mostrando aquilo que é, também, de extrema importância para Schlee, a existência do que fica escrito em detrimento do que não fica, mas sim um passo adiante, isto é, o que é que leva alguém a escrever, por exemplo, que José Artigas foi El Protector de los Pueblos Libres, ao invés de um facínora ou traidor, como aparece descrito também neste capítulo? A questão assume uma pertinência ímpar, precisamente através da narrativa. A narrativa do romance, ao nos colocar de uma vez por todas no tempo em questão, sem distanciação, e nos mostrando as diversas falas, “em tempo real”, “ao vivo”, daqueles que viveram e sentiram na pele os actos de José Artiga, mostra-nos claramente que somos nós, leitores, que temos de optar pela escolha do que queremos que José Artiga seja, pois todos os argumentos apresentados são válidos e convincentes, quer seja pelo testemunho in loco, quer seja pelo conhecimento privilegiado, de bastidores, da politica da época. Assim, a narrativa, o modo como o romance é construído, é uma flecha na carne da ciência da história. Para a ciência da história, o que fica é o que serve os interesses de quem está no poder no momento em que esses “documentos” são escritos ou apresentados. Isto é de uma claridade assustadora, porque presente quase a cada instante, neste romance de Aldyr Garcia Schlee. É precisamente aqui que o autor mostra claramente qual é a sua guerra. A guerra dele não é à história, a ciência da história, mas ao poder que, a cada momento, a instaura como sendo “A” história. Neste sentido, o romance, ele todo, é uma guerra sem tréguas e sem quartel, levada a cabo pela poesia contra o poder injustificado da História. E entenda-se por poesia a literatura, a escrita que causa fascínio, que fascina, que encanta, que está do lado do que poderia ter acontecido.

Em momento algum podemos afirmar que há um ataque gratuito à história, à chamada ciência da história, até por que o próprio autor usa essa mesma história na edificação do seu assombroso livro. O problema da chamada ciência da história, no romance, concerne às fontes e não ao estudo. A saber, concerne à edificação dos documentos e não à busca dos mesmos e suas fontes. Veja-se, por exemplo a passagem à página 330, em que o ministro Lamas, ministro do império do Brasil, responde a Fructuoso Rivera, aquando do seu segundo desterro no Rio de Janeiro: “Devo assinalar-lhe minhas veementes suspeitas de que os documentos de prova que me há enviado estão adulterados.” Não importa aqui saber de qual documento se trata, nem das suas pretensas veracidade ou falsidade. Importa apenas mostrar que se trata, a mais das vezes, de uma decisão individual e de interesses políticos. E é isto que passará a ser considerado documento histórico. Temos também ao nível do privado (que quando se trata de figuras públicas e de interesse para a história de um país, não pode deixar de ser de interesse público) a divergência de acontecimentos relatados pelas cartas trocadas entre Rivera e Manuel Herrera y Obes. Diz assim, Rivera: “hei de mirrar os fatos, hei de provar com documentos; publicarei toda a correspondência oficial do governo do país e a correspondência oficial de todos os homens influentes da república, dos que vivem e dos que hão morrido (…)” Veja-se então agora a resposta, quatro dias depois, de Herrera y Obes, na resposta à citação que aqui se leu de Rivera: “(…) esses fatos que V. há inventado tão audaz como incrivelmente (…)” A história, ficamos cientes disso, é buscar, escavar no tempo, nos dados, nos documentos, e, na sua tese mais dura, numa possibilidade documental. A história é um discurso vivo que, tal como a literatura, dialoga consigo mesma e com seus intervenientes, seus estudiosos, pesquisadores, escritores. A história é de quem a lê e não de quem a faz.

Quem escreve a história, quem cataloga os documentos não faz parte da história, mas daquilo que antecede a história. Escrever é sempre um trazer à existência. Por seu lado, história enquanto ciência será sempre estudar, aprender o que alguém fez existir. Esta é distinção que Aldyr Garcia Schlee deixa bem claro em Don Frutos. Uma coisa é escrever, outra é aceitar o que foi escrito e se quis ver como autoridade. Autoridade, é sabido, é do autor. Neste sentido, seria fundamental, se não um estudo aprofundado ao tema, pelo menos um breve passagem, pela obra do português Fernão Mendes Pinto. Peregrinação é um livro do século XVI, que se pretende simultaneamente um livro de viagens e um livro de história, no sentido em que se trata de um documento dos lugares, das pessoas e do modo como os portugueses olhavam e agiam em relação aos povos e países do oriente longínquo. Há na obra de Fernão Mendes Pinto uma questão que é seguramente querida ao autor de Don Frutos: a credibilidade do que o autor português escreveu. Durante séculos, as atrocidades declaradas no livro foram consideradas invenções, mentiras do seu autor. Assim, e por causa disto, não é somente a credibilidade que é posta em causa, mas também o seu género literário. Caucionado pela ciência da história o livro passa a ser um documento histórico, sem essa caução passa a ser um romance. É esta distinção que arrepia Schlee, principalmente neste seu assombroso romance. Na sua génese, toda a ciência da história tem algo de romance e todo o romance tem na sua leitura algo de ciência da história. A palavra, que é a medida exacta do humano, não permite ciência exacta. Haja palavra, que deixa de haver ciência. A ciência, medida exacta do universo, da natureza, expressa-se em números e linhas. Onde há palavra, existe só e somente comunicação (dia a dia) e romance. Tudo o resto, por mais que se tente jogar números e linhas sobre a palavra, não passa de um romance em forma de teoria.

E assim não faz sentido nenhum falar de romance histórico quando se fala desta magna obra Don Frutos. Seria antes, se teimarmos em usar essa imagem, um romance anti-histórico. Sem dúvida, não podemos deixar de pensar o conceito de história em Don Frutos. Seria o mesmo que não pensar no conceito de fenomenologia em À La Recherces du Temps Perdu [Em Busca do Tempo Perdido], de Proust, ou no conceito de futuro em Das Schloss [O Castelo], de Kafka. História, o seu conceito, são as areias movediças onde o romance de Schlee avança e se afunda. Não porque seja um romance histórico, repito, mas porque rasga o sentido de história a cada capítulo, o sentido que temos por dado, por tacitamente aceite do que seja história. Não é um romance histórico, mas anti-histórico. Termino com uma citação da página 223, que nos soa agora como uma tremenda provocação por parte do autor: “Pena que este seja um romance e não seja um livro de História.”

Quando morre um grande escritor, morre um pouco a nossa língua e com ela o mundo. Cabe-nos a nós, leitores, ler e reler as páginas de Aldyr Garcia Schlee para que a perda não se faça sentir de modo insuportável.

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