Andreia Sofia Silva PolíticaEleições | Habitação é prioridade no programa de Melinda Chan Melinda Chan, líder da lista Aliança Pr’a Mudança, apresentou ontem o seu programa político para as eleições legislativas e garante que a habitação é a sua prioridade, defendendo casas só para os residentes que querem adquirir o seu primeiro apartamento [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ão seis pontos, que abrangem várias áreas, mais a mais importante é mesmo a habitação. Um dia depois de a associação a que dá apoio, a Sin Meng, ter divulgado um inquérito que fala das dificuldades de habitação dos mais jovens, Melinda Chan apresentou o seu programa político com a equipa que compõe a Aliança Pr’a Mudança. Deputada à Assembleia Legislativa há oito anos, Melinda Chan concorre novamente tendo a habitação como prioridade. A deputada quer que os novos aterros tenham pedaços de terra destinados a casas que só podem ser compradas por residentes que estão a investir pela primeira vez. “Vamos ter mais terrenos, graças aos novos aterros, e temos de pressionar o Governo a construir mais casas, não apenas para habitação pública, mas para os jovens”, disse ontem à margem da apresentação oficial do programa. Melinda Chan citou o inquérito a que deu a cara. “Mais de 70 por cento dos inquiridos gostaria de comprar a sua casa. É necessário um espaço para habitações que sejam adquiridas por residentes e que não têm casa.” Jorge Valente, número três da lista, deu como exemplo um espaço na zona A dos novos aterros. “Os residentes de Macau que estão a comprar casa pela primeira vez têm de ter prioridade. O Governo, quando desenvolver essa área, deve incluir essa directiva.” Desenvolver o aeroporto Outro objectivo da Aliança Pr’a Mudança passa pelo desenvolvimento do aeroporto, para que tenha um maior papel no transporte de mercadorias. Melinda Chan defende a criação de um complexo de armazéns no futuro aterro E. Tudo para dar uma maior resposta aquando da conclusão da nova ponte Hong Kong-Macau-Zhuhai e do projecto da Grande Baía, com a região de Guangdong. “O Governo tem de desenvolver boas políticas, o aterro E vai estar muito perto do aeroporto e podemos utilizar o espaço para esse transporte de mercadorias. O aeroporto não está a ser plenamente utilizado, e ainda há espaço nesse sentido, sobretudo na relação com os países de língua portuguesa”, disse Melinda Chan. A lista acredita ser necessária uma flexibilização na contratação de trabalhadores não residentes, para ajudar as pequenas e médias empresas (PME). “Deve existir uma flexibilização da mão-de-obra estrangeira, porque a actual lei precisa de ser actualizada. Foi feita numa altura em que ainda existia indústria fabril e as duas que ainda conseguem tirar proveitos da lei são da construção civil e da restauração. Não queremos aumentar o número de trabalhadores, queremos apenas flexibilizar”, disse Jorge Valente. A lista Aliança Pr’a Mudança é ainda composta por Kenny Fong, presidente da Associação Comercial Federal Geral das PME, Osborn Lo, presidente da Associação Comercial Federal da Indústria de Convenções e Exposições, Leng Leng Fok, ligada à Associação Budista Geral de Macau, Evans Iu, da Associação de Beneficência Sin Meng, e ainda Brian Wu, vice-presidente da direcção do comité da juventude Sin Meng. Três assentos não é impossível Jorge Valente será o número três da lista, a seguir a Andy Wu, ligado aos sectores do turismo e PME. Ainda assim, o candidato tem confiança na obtenção de um lugar no hemiciclo. “É difícil, mas não é impossível, e as estatísticas do passado mostram que é possível eleger um terceiro lugar. A participação dos jovens é importante para a democracia e para a manutenção da política ‘Um País, Dois Sistemas’. Se continuo ou não a participar na política, depende do apoio que tiver”, apontou. Sufrágio universal? “Somos uma equipa realista” Um dos primeiros pontos do programa de Melinda Chan faz referência à necessidade de democratização do sistema político, com a eleição de mais deputados pela via directa. Sobre o sufrágio universal, Jorge Valente diz que há apoio, mas preferem ir devagar. “A longo prazo defendemos. Achamos que, dentro de quatro a oito anos, deveria haver mais deputados eleitos pela via directa. Defendemos o sufrágio universal, mas não podemos dizer se é daqui a quatro a oito anos. A nossa equipa é bastante realista.” O programa, alguns pontos – Cancelar o regime de comissão de serviços para os cargos de chefias de departamento e divisão na Função Pública – Aperfeiçoamento dos procedimentos de avaliação e concessão de subsídios por parte da Fundação Macau e outros fundos – Rever o Código Penal para que a lesão corporal dos menores praticada por não familiares seja qualificada como crime público – Acelerar o desenvolvimento dos recursos de turismo marítimo – Quebrar os monopólios e reforçar a fiscalização sobre as concessionárias exclusivas de utilidade pública
Andreia Sofia Silva PolíticaEleições | Nova Esperança alerta para votos à distância [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] lista Nova Esperança, encabeçada por José Pereira Coutinho e Leong Veng Chai, entregou uma carta à Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa (CAEAL) onde alerta para a existência de casos ilegais de votos à distância. “Fomos informados de que algumas listas candidatas às próximas eleições da Assembleia Legislativa têm estado a sugerir aos seus apoiantes que, no caso de não poderem estar presentes na RAEM na altura do acto eleitoral, por motivos profissionais ou por estarem a frequentar o ensino superior, para cederem os seus documentos de identificação a familiares e irmãos gémeos para votarem em nome deles”, lê-se na carta. Assinada por Rita Santos, mandatária da lista, a carta alerta para a ocorrência de fraude eleitoral e a necessidade de adopção de medidas. “Sugere-se que no momento anterior à entrega do boletim de voto sejam verificadas as impressões digitais do votante consoante o que consta nos registos oficiais para a obtenção do BIR. Tal acontece em muitos actos eleitorais de países democráticos, como é o caso de Singapura.” “Tendo em consideração que, no dia do acto eleitoral, muitas centenas de milhares de pessoas irão deslocar-se às urnas, será possível, na prática, uma pessoa votar por outra tendo em conta as pressões características de um acto eleitoral de tamanha magnitude”, pode ler-se.
João Luz PolíticaOrçamento | Incumprimentos punidos penal, civil e disciplinarmente O novo articulado da lei de enquadramento orçamental prevê punição para irregularidades na execução do Orçamento em termos penais, civis e disciplinares. As penas de multa deixam de se aplicar e passa a valer um regime de restituição de valores de dinheiro em falta, com responsabilidade solidária [dropcap style≠’circle’]À[/dropcap] medida que a legislatura se aproxima do fim, a legislação que regula o enquadramento orçamental torna-se mais precisa, na opinião de Chan Chak Mo. “No dia 20 de Junho, o Governo entregou-nos um novo texto de trabalho que achamos que tem grandes melhorias, o conteúdo ficou mais concreto, mas ainda há aspectos a rever”, conta Chan Chak Mo. O presidente da 2.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa (AL) adiantou que, para já, o projecto de diploma conta com 73 artigos. Um corpo legal com esta dimensão e detalhe pode resultar na menor dispersão de disposições que regulam o enquadramento orçamental. Uma das inovações mais dignas de nota é referente aos capítulos das responsabilidades. Na versão inicial, as irregularidades à execução orçamental eram punidas apenas com aplicações de multas. Na proposta actual, “o pessoal de direcção e chefia dos serviços, assim como os trabalhadores, são responsáveis criminal, civil e disciplinarmente pela violação das normas de execução orçamental”, explica o deputado. A pena de multa desaparece para se evitar “duplicação de punição”. Chan Chak Mo explicou ainda que se a infracção envolver perda de dinheiro para os cofres públicos, terá de haver restituição, com responsabilidade solidária. Apesar desta proposta estar mais precisa, na óptica dos deputados, o presidente da comissão permanente diz ainda ter dúvidas quanto à aplicação da lei em concreto, dúvidas essas que “serão colocadas ao Governo na próxima reunião”. Neste aspecto, é de salientar que a próxima reunião ainda não tem dia marcado, mas deverá ocorrer na próxima semana. Relatório antecipado Outra das novidades na nova lei de enquadramento prende-se com o facto de a AL passar também a efectuar fiscalização às actividades orçamentais. “Esta regra não existia, na versão anterior a entidade fiscalizadora era apenas a Direcção dos Serviços de Finanças”, revela Chan Chak Mo. Também a data para a apresentação do relatório de execução orçamental é algo que deve mudar, no entender dos deputados da comissão permanente. Anteriormente, o Governo tinha até 30 de Novembro para entregar para apreciação da AL o relatório de execução e a proposta de lei do Orçamento. Chan Chak Mo considera que esta calendarização é muito trabalho para o Governo, o que pode levar à antecipação do trabalho da AL. Desta forma, propõe-se uma antecipação da data de entrega do relatório de execução para 15 de Outubro e a proposta de Orçamento para o dia 15 de Novembro. O presidente da comissão permanente que acompanha este diploma preferia que o Chefe do Executivo fosse à AL mais cedo; porém, o Governo ainda não expressou a sua opinião nesta matéria. A presente lei de enquadramento será revista passados cinco anos da sua entrada em vigor. Normalmente, os diplomas são revistos decorridos três anos, porém, “como aqui se trata de uma lei de bases, há que deixar passar algum tempo de aplicação prática”, explica Chan Chak Mo. O deputado acrescentou ainda que este tipo de diploma não é de fácil alteração, não se muda “de um dia para o outro”. Foi ainda clarificado que, em caso de dissolução da AL, a proposta de Orçamento deve ser apresentada em período acordado entre o Executivo e a órgão legislativo.
Sofia Margarida Mota SociedadeTráfico humano | Relatório é injusto para Macau, diz Juliana Devoy Macau e Hong Kong estão no nível dois de vigilância no que respeita ao tráfico humano. A comparação não é justa, considera a directora do Centro do Bom Pastor [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omparar Macau e Hong Kong quando se fala no combate ao tráfico humano não é justo. A ideia é deixada ao HM pela directora do Centro do Bom Pastor, Juliana Devoy, em reacção relatório acerca do tráfico humano divulgado, esta semana, pelos Estados Unidos. Para a responsável, os resultados foram uma surpresa. “Fiquei muito desiludida com o relatório: Hong Kong e Macau estão na lista de vigilância e penso que não é justo para o território”, diz. Em causa, para Devoy, estão duas situações que podem ser equiparadas. “Seria como comparar Macau a países como a Coreia do Norte ou mesmo ao Continente”, refere. Em Hong Kong, o Governo nega a existência de tráfico humano, “nega que exista um problema e, como tal, não há qualquer medida para que seja combatido”, refere. Envolvida no combate a este tipo e criminalidade e na protecção das vítimas, Juliana Devoy justifica: “Tenho contacto com agências do território vizinho, nomeadamente com organizações não governamentais (ONG) que têm tentado, por todos os meios, alertar o Governo da RAEHK para a existência deste problema e para a necessidade de intervenção”, diz. Mas a resposta, afirma, repete-se: “Em Hong Kong não há tráfico humano, pelo que não é necessário fazer nada”. Em Macau, a situação é muito diferente. “Dizer que não estão a ser feitos esforços neste sentido, não é verdade.” Para Devoy, o Governo local tem levado a sério a questão do tráfico de pessoas e os resultados apontados por Washington são baseados, “à partida, em critérios que nada revelam acerca da realidade”. A classificação foi dada tendo por fundamento o número de condenações, o que “não é um critério justo”, diz. “Quando se fala de tráfico humano não é possível contabilizar os seus actores e as dificuldades são muitas”, sublinha a directora. Nem tidos, nem achados Por outro lado, dada a escala do problema e o número de entidades envolvidas no seu combate, Juliana Devoy considera que, quando se faz uma avaliação deste género, há que ter em conta todos os envolvidos. “Tanto quanto sei, no ano passado, a pessoa que recolhia os dados vinha ao território algumas vezes. No entanto, não quiseram saber de quem trabalha também no terreno, como nós. Nem nos contactaram”, explica, sendo que não deixa de sublinhar que, tratando-se de uma matéria que envolve várias entidades, além do Governo, seria fundamental o contacto com as ONG que estão em acção. O combate ao tráfico humano existe, no território, desde 2008 e, de acordo com a directora, o Governo tem dado passos para melhorar a situação. “Não está feito tudo e há muito a fazer, há mais e melhor”, incentiva Juliana Devoy, que considera os resultados do relatório também desmotivantes para quem anda a lutar contra o tráfico de pessoas. A opinião é partilhada pelo secretário-geral da Caritas Macau, Paul Pun. Para o responsável, Macau tem feito esforços efectivos no sentido de combater a criminalidade associada ao tráfico humano. No entanto, a matéria é complicada, é preciso mais, e Paul Pun deixa algumas sugestões. De modo a tornar mais visíveis as acções que pretende implementar e para deixar uma mensagem às possíveis vítimas, seria bom que o Governo avançasse para outro tipo de iniciativas. “O Executivo podia colocar cartazes e informação nos postos fronteiriços, nos terminais marítimos e no aeroporto, visto que muitas das vítimas passam por ali”. Desta informação constariam números e formas de contacto para pedir ajuda. Juliana Devoy apela ainda a uma formação específica dirigida aos juízes que tratam este tipo de casos. A directora do Centro do Bom Pastor recorda também palestras a que assistiu em que as forças de segurança mostraram as suas preocupações. “Quando se fala de tráfico de pessoas, além das dificuldades relativas às provas, os métodos que os criminosos adoptam estão constantemente a ser actualizados para que não sejam apanhados e os magistrados, muitas vezes, não têm sensibilidade e meios”, explica Devoy. Salário a quem vem de fora Um dos recados que também foi deixado por Washington diz respeito à criação de um salário mínimo para não residentes. Paul Pun, que tem trabalho feito junto das populações mais carenciadas, não podia estar mais de acordo. “É fundamental que isso aconteça porque as pessoas têm de viver com dignidade e a imposição de um salário mínimo permitiria não só a subsistência familiar da população migrante que se encontra em Macau, como podia vir a prevenir situações de abuso que têm que ver com a escravatura moderna”, disse.
Andreia Sofia Silva SociedadeTradução | IPM nega queixas de alunos e abre mais cursos diurnos Alunos locais do curso de tradução do Instituto Politécnico de Macau, que dominam o português, queixam-se de discriminação face aos alunos da China e dizem que são obrigados a frequentar os cursos nocturnos. O IPM refuta as acusações e diz que no próximo ano lectivo vai abrir mais opções diurnas [dropcap style≠’circle’]“O[/dropcap] curso diurno de Português é apenas um sonho para os estudantes residentes de Macau.” É desta forma que começa a carta enviada por alguns alunos do curso de Tradução Português/Chinês do Instituto Politécnico de Macau (IPM) à Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau (ATFPM). Trata-se de alunos que já dominam o português e que pretendem fazer a sua formação como tradutores ou intérpretes de chinês. Os estudantes dizem ser discriminados em relação aos alunos da China, pelo facto de estes preencherem todas as vagas das turmas diurnas de licenciatura. Afirmam também que os estudantes de Macau têm de frequentar as aulas a partir das 18h30, ainda que não sejam trabalhadores-estudantes. “Nas turmas diurnas do curso de Interpretação e Tradução Chinês/Português e Português/Chinês, 90 por cento dos alunos são do Interior da China. Os alunos locais só frequentam uma turma nocturna. Já há muitos anos que é elevado o número de alunos do Interior da China nas turmas com horário diurno, desmotivando os residentes locais na formação de intérpretes-tradutores”, lê-se na missiva. “O IPM afirma que o número de alunos não é suficiente, e que os alunos da turma de Português não são qualificados”, acrescentam na carta a que o HM teve acesso. Apesar disso, os estudantes afirmam que muitos passam nas provas de acesso. “Há muitos candidatos que passaram no exame para integrar uma turma do ensino diurno de Português. No exame oral, os examinadores fazem umas perguntas simples e exigem a leitura de um texto em chinês e outro em português.” Ana (nome fictício) já concluiu o seu curso e tem conhecimento da carta que foi enviada. Também ela frequentou uma turma nocturna e diz que há alunos de Macau, que dominam o português, nas turmas diurnas, mas são poucos. “Que eu saiba, desde 2005 não abrem turmas diurnas”, explicou Ana. “Os alunos de Macau, chineses, só conseguem entrar no nocturno e não no diurno. O que nos dizem é que os estudantes da China têm melhores notas e ocupam as vagas.” Ana acrescentou ainda que lhe foi dito que havia falta de professores para abrir mais turmas diurnas. “Disseram que não havia professores portugueses suficientes. O que me dizem é que a qualidade dos alunos não é boa e não têm alunos suficientes para abrir cursos diurnos.” A estranha declaração A carta dos alunos faz ainda referência a uma declaração que os locais terão de assinar quando concluem o período de exames e entrevistas de acesso, para que sejam transferidos para as turmas nocturnas. Isso também aconteceu com Ana. “Quando fiz a entrevista, passei no exame escrito. Fiz a entrevista oral e os professores gostaram. Mas antes de sair apresentaram-me um papel e perguntaram-me se me importava de frequentar o curso nocturno, caso a escola não tivesse aulas no período diurno.” “Disseram-me que podia não assinar, mas as minhas colegas disseram-me que quem não assina não entra no curso. Porque não há aulas diurnas e os alunos ficam excluídos”, acrescentou. Os alunos locais queixam-se também das limitações em termos de viagens a Portugal para a aprendizagem da língua. “Os alunos que frequentam o curso de chinês na turma nocturna podem ser transferidos para uma turma diurna e depois ir a Portugal estudar, mas estão sujeitos a uma limitação da quantidade de alunos”, pode ler-se. IPM nega tudo Em resposta ao HM, Luciano Almeida, director da Escola de Línguas e Tradução (ESLT) do IPM, nega as acusações e diz que “não fazem sentido”. “Os critérios são iguais para todos. Os alunos locais não concorrem com os alunos da China porque têm vagas e o processo de selecção dos alunos é extremamente rigoroso, porque há muitos candidatos”, explicou. “As vagas para os alunos locais nunca são totalmente preenchidas, porque há sempre menos candidatos [em relação aos alunos do Continente]. Um aluno local que quiser estudar no período diurno não tem problema nenhum”, acrescentou Luciano Almeida, que referiu ainda que vão existir mais turmas no período diurno. “A questão será saber se a escola tem recursos para abrir mais turmas diurnas, em especial no curso de licenciatura em Tradução e Interpretação Chinês/Português e Português/Chinês. A resposta é afirmativa e no próximo ano lectivo teremos mais uma turma deste curso em regime diurno”, apontou. Segundo o director da escola, vão existir, em 2017/2018, três turmas em regime diurno, num total de 75 vagas, e duas turmas em regime nocturno com 40 vagas. “O número de vagas para o ensino da tradução e interpretação chinês/português, para o ensino da língua chinesa e para o ensino da língua portuguesa duplicou nestes dois últimos anos, não só pelo aumento das turmas, como pela criação de dois novos cursos”, referiu Luciano Almeida. Actualmente existem 55 professores na escola, um número que “é suficiente para a actividade lectiva que [o IPM] tem programada”, explicou. O responsável afirma ainda desconhecer a declaração de que os alunos falam. “Como director da ESLT desconheço a existência da exigência de qualquer declaração desse género, que não faria qualquer sentido porque o aluno candidata-se livremente ao regime que prefere. Todos os alunos que pediram mudança do regime viram os seus pedidos deferidos.” Há vagas para locais, mas notas é que mandam Para entrar no curso de tradução e interpretação do IPM não bastam as notas. É necessária a realização de entrevistas, que inclui a leitura de alguns textos nas duas línguas. Apesar de, segundo os alunos queixosos, o IPM afirmar que os alunos da China têm melhores notas, a verdade é que há vagas para todos. “No curso de Tradução e Interpretação Chinês/Português, Português/Chinês, no regime diurno, existe uma quota de 46 vagas destinadas a alunos locais [num total de 75] e no regime nocturno as 40 vagas são igualmente destinadas a alunos locais”, explicou Luciano Almeida. O director da ESTL referiu também que a “selecção dos alunos é efectuada de acordo com a legislação aplicável”, ou seja: contam as notas do ensino secundário e do exame unificado de acesso, e a entrevista com os responsáveis do curso.
Victor Ng SociedadeAliança do Povo | Criticados atrasos na lei de bases das garantias dos idosos A Associação Aliança do Povo de Instituição de Macau realizou ontem um fórum onde abordou as insuficiências nas políticas de apoio aos reformados. A deputada Song Pek Kei questionou o atraso na implementação da Lei de Bases de Garantias dos Idosos. O IAS diz que cerca de sete mil vivem sozinhos [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] ausência de políticas efectivas para apoiar os mais velhos esteve ontem em debate num fórum promovido pela Aliança do Povo de Instituição de Macau, que contou com a presença da deputada Song Pek Kei e de uma representante do Instituto de Acção Social (IAS). Song Pek Kei, deputada à Assembleia Legislativa (AL) e candidata às eleições legislativas deste ano, alertou para o agravamento do problema de envelhecimento da população. A deputada questionou as razões para o atraso na elaboração da Lei de Bases das Garantias dos Idosos. “O Governo já falou muito sobre o assunto, a lei é falada há quase dez anos e ainda não vimos qualquer trabalho concreto quanto à sua elaboração”, referiu. Song Pek Kei lembrou que há muitos idosos a viverem sozinhos nas suas casas e que existe, por parte do Executivo, um esforço para a protecção dos idosos, mas as medidas não são satisfatórias. A deputada alertou ainda para o facto de o envelhecimento da população trazer muita pressão às famílias, uma vez que os casais mais jovens precisam de trabalhar. Na visão de Song Pek Kei, os apoios sociais ajudam a atenuar este problema, mas o número de acções da Administração não chegam para as necessidades actuais. Sete mil sozinhos Lo Sok Ha, chefe de divisão dos serviços para idosos do IAS, referiu que há cerca de sete mil idosos que vivem sozinhos. Quanto ao plano de acção actual, contém mais de uma centena de objectivos a cumprir a curto prazo, sendo que um deles já foi cumprido: a abertura do centro de avaliação e tratamento da demência, bem como a inauguração de dois centros de cuidados diurnos para este tipo de doentes. A responsável do IAS adiantou ainda que vão ser contratados consultores para inspeccionar os lares de idosos e centros de dia, tendo sido já criados dez organismos que dão apoio via telefone ou visitas ao domicílio. Song Pek Kei lembrou que, no passado, houve casos de acidentes que se revelaram fatais para os idosos que residiam sozinhos. A deputada defende ainda uma revisão da lei de habitação económica no sentido de permitir que um idoso que viva sozinho na sua casa social possa ter a companhia de alguém que possa tratar dele. Falando do exemplo de Seac Pai Van, a deputada frisou que, nessa zona, os idosos vivem como se estivessem numa ilha isolada, com dificuldades de acesso ao local e com poucos transportes públicos.
Hoje Macau SociedadeLote de terreno na zona do Pac On não fica na empresa de Ho Meng Fai [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Tribunal de Segunda Instância considerou improcedente um recurso contencioso interposto pela concessionária de um terreno no Pac On. O caso, que envolve a Sociedade Imobiliária Belo Horizonte, envolveu um pedido de troca de parcelas, o antigo secretário Ao Man Long e o empresário Ho Meng Fai, ambos condenados por corrupção. A declaração de caducidade da concessão do terreno no Pac On foi feita pelo Chefe do Executivo em Maio de 2015. Inconformada, a empresa apelou para o Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, entre outros, “a total desrazoabilidade no exercício do poder discricionário, a violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da boa-fé e da colaboração entre a Administração e os particulares”. A concessionária defendeu que o prazo de aproveitamento do lote em causa – o PO5d – não era de 12 meses, mas sim de 36. Argumentou também que, ao contrário do que disse o Executivo, requereu a prorrogação do prazo de aproveitamento. A recorrente tinha requerido uma troca de terreno – e a sociedade entende que “não é correcto entender que não tinha intenção de aproveitar” o lote em causa. Por fim, apontou o dedo ao Governo, ao afirmar que a falta de aproveitamento era da “culpa predominante da Administração, porque tinha decidido, morosamente, sobre o pedido da troca de terreno, e não era a prática habitual da Administração, antes de 2010, declarar a caducidade da concessão por incumprimento dos prazos de aproveitamento”. O TSI reconheceu que é verdade que o prazo de aproveitamento do lote era de 36 meses, mas desvalorizou o facto, ao dizer que se trata de “um erro irrelevante”, visto que no momento da declaração da caducidade da concessão, o prazo de aproveitamento de 36 meses já tinha terminado há cerca de oito anos. Pequeno por grande Os restantes argumentos da empresa também são rebatidos. Em relação à troca de terrenos, a Segunda Instância considera que “o facto de pedir a troca de terreno em si já evidencia que a recorrente não queria aproveitar o terreno em causa, visto que o valor económico do lote destinado apenas para construir uma vivenda de três pisos é bastante inferior ao valor de um terreno que permite construir centenas de fracções autónomas”. E o colectivo continua: “Caso contrário, o comerciante Ho Meng Fai, que efectivamente tomava decisões sobre a sociedade, não teria tentado oferecer vantagens ilícitas a Ao Man Long, então secretário para os Transportes e Obras Públicas, com vista a obter a troca de terreno”. O TSI também não colhe a ideia da “morosidade da Administração e a prática habitual antes de 2010”, ao dizer que não servem para justificar o incumprimento do prazo de aproveitamento por parte da recorrente. Ho Meng Fai encontra-se em parte incerta. Em 2007, foi condenado à revelia a 25 anos de prisão.
Hoje Macau EventosImagens | HK Urbex à procura da memória colectiva de Hong Kong Na cidade dos arranha-céus, um grupo de jovens exploradores documenta, em fotos e vídeo, o interior de edifícios abandonados, na tentativa de os inscrever na memória colectiva de Hong Kong [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]e a metrópole é frequentemente associada à modernidade e futurismo – no cinema já foi, por exemplo, a Gotham City de “Batman” e cenário de “Ghost in the Shell” – nos vídeos do grupo “HK Urbex” são os redutos mais antigos, e até decadentes, que estão em destaque. O grupo de oito elementos, que mantém a identidade oculta, já entrou, sem autorização, em mais de 100 edifícios ou estruturas deixadas ao abandono em Hong Kong, desde um centro de detenção para a antiga agência de serviços secretos, a um hospital psiquiátrico, uma antiga mansão, escolas, cinemas, um mosteiro, um antigo matadouro. “Há muito património, mas é difícil de ver. Muitos destes sítios são demolidos sem que ninguém conheça a sua história. Partilhamos informação sobre eles para que entrem na consciência colectiva”, diz à Lusa Ghost, de 34 anos, um dos fundadores do projecto. Os edifícios com valor histórico – mesmo que não reconhecido oficialmente – são o ‘alvo’ preferido, mas também já entraram em “estações de metro [desactivadas], estaleiros de obras”, já que também “fazem parte da narrativa de Hong Kong” e são locais “que as pessoas não vêem normalmente”. Há também blocos residenciais, sem particular traço arquitectónico, mas que representam uma forma de viver. É o caso do prédio Hoi Hing, em Tai Kok Tsui, onde as 283 fracções estão quase todas abandonadas, mas nem por isso vazias. Além do avançado estado de decadência – janelas partidas, canos soltos, paredes lascadas – os corredores e os apartamentos do Hoi Hing estão repletos de coisas, móveis, roupa, sacos, caixas, papéis, um amontoado de lixo onde se avistam subitamente objectos pessoais: um sapato de bebé, um jornal de 1982, álbuns de fotografias. Num deles uma família à mesa, miúdos e graúdos de pauzinhos em punho, olha para a câmara com um ar desanimado. O edifício de 53 anos – que conta na sua história com um macabro caso de homicídio de um casal pelo filho – aguarda demolição, tendo a propriedade sido adquirida por 2,6 mil milhões de dólares de Hong Kong. O património que morre Os dois fundadores do projecto HK Urbex (2013), Ghost e Echo Delta, estão atentos às notícias sobre demolições e novos projectos imobiliários, e até desenvolveram um “sexto sentido”. “Há sinais. Notamos que há um edifício sem ar condicionado, a parede está partida, começamos a investigar. Muitas vezes somos as últimas pessoas a entrar nestes edifícios.” “Na última década muito património foi demolido ou renovado”, diz Echo Delta, lembrando o caso do Queens Pier, cujo anúncio de demolição gerou forte contestação. “Eu era jornalista na altura e estava a cobrir a história. Muitos jovens ficaram indignados e até se acorrentaram ao cais, fizeram greves de fome. Foi a primeira vez que assisti a isso e marcou-me muito”, conta. Uma combinação de demolições e gentrificação estão a ter um impacto significativo na cidade, garantem os exploradores. “Está a mudar muito rápido, está sempre tudo em obras, não fazemos ideia de qual será o aspecto da cidade daqui a 20 anos”, diz Echo Delta. “Em cantonês há um termo que quer dizer ‘memória colectiva’ e tem sido muito utilizado nos últimos anos, em que as pessoas se sentem nostálgicas em relação ao antigamente. O processo de gentrificação está descontrolado. Daqui a dez anos, até os sítios mais tradicionais vão ficar como Singapura, onde tudo tem um aspecto muito genérico”, comenta. Os edifícios “formam a identidade de Hong Kong” e, na opinião dos exploradores, o ímpeto para os proteger insere-se na mesma narrativa da luta política por democracia. “Muitos jovens querem diferenciar-se da China, por isso há tantos grupos pró-democracia, o Occupy Central, o ‘localismo’. De certa forma, isto surge em paralelo com isso, estamos a defender a nossa identidade e parte dela são estes edifícios”, salienta. Numa cidade que luta com a falta de espaço e bate recordes nos preços do imobiliário, Ghost considera “uma loucura” que existam tantos edifícios remetidos ao abandono, recordando uma notícia de 2015 que dava conta que cerca de 100 escolas permaneciam abandonadas. Embora longe de ser representativo, um relatório oficial indica que existiam no ano passado 43.660 fracções vagas em propriedades privadas. “É incrível, numa cidade onde as pessoas têm de viver no espaço de duas mesas, é criminoso, viola mais a lei do que nós ao entrarmos nesses sítios”, destaca. De toda a gente Apesar de saberem que não é permitido, os dois consideram as incursões importantes. “Não conhecemos a história se não entrarmos”, afirma Echo Delta, lembrando as emoções fortes das suas incursões, onde se comovem, assustam, divertem. “Os álbuns de fotografias dizem-me muito. Questiono-me sobre o que é feito daquelas pessoas. Cresceram, morreram, ainda estão em Hong Kong? É um pouco triste por vezes, são sentimentos mistos. O sapato de criança que encontrámos, por exemplo, é um pouco mórbido. Não conseguimos deixar de pensar ‘O que se passou aqui?’”, comenta. Estes salteadores dos prédios abandonados, que têm como mote “Não levar nada, não deixar nada, não matar nada”, começaram por usar máscaras para esconder a identidade, tendo em conta a ilicitude dos actos. As máscaras acabaram por se tornar numa forma de “combater a cultura das ‘selfies’ e do ego”, sublinha Echo Delta. “Estes sítios onde vamos não nos pertencem, são de toda a gente”.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO Seminário-Liceu de Macau [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] instituição de ensino secundário Liceu foi criada em Portugal no reinado de D. Maria II pelo então ministro Passos Manuel, em Novembro de 1836. Resolução para colmatar a lacuna existente nos cursos secundários, anteriormente quase exclusivamente ministrados pelas Ordens e Congregações Religiosas, mas extintas em Portugal por decreto de 28 de Maio de 1834 de Joaquim António de Aguiar e em Macau, só a 19 de Setembro de 1835. Repetia-se o que se passara por ordem do Marquês do Pombal com a expulsão da Companhia de Jesus, efectivada em Macau no ano de 1762 e que veio fechar os estabelecimentos jesuítas como a Universidade, no Colégio de S. Paulo e o Seminário de S. José, fundado em 1728 e onde funcionava o ensino primário e secundário. D. Frei Alexandre de Gouvea, eleito Bispo de Pequim e sagrado em Lisboa a 7 de Fevereiro de 1783, veio para Macau e ao passar por Goa visitou o Seminário de Chorão, então regido pelos lazaristas, onde convidou dois padres da Congregação da Missão para irem dirigir o Seminário de S. José em Macau, ficando este assim restabelecido em 1784 e confiado aos lazaristas como Colégio de S. José. No advento do Liberalismo, os lazaristas aderiram ao constitucionalismo, mas este movimento em 23 de Setembro de 1823 foi substituído pelo conservador Conselho de Governo, presidido pelo Bispo de Macau, Frei Chacim e os lazaristas protestaram, sendo presos em 4 de Outubro três professores do Colégio de S. José. Joaquim Afonso Gonçalves e Luís Álvares Gonzaga fugiram para Manila, regressando poucos anos depois, talvez em 1825, onde continuaram a leccionar como seculares no Real Colégio de S. José (o antigo Seminário), que agora tinha na direcção o Padre Nicolau Rodrigues Borja. O Colégio voltou a funcionar, mas sem a regularidade anterior, contando com novos padres vindos de Portugal. Por aí passou Jerónimo José da Mata, primeiro, em 1826 como aluno, onde terminou os seus estudos e nos anos trinta do século XIX como professor. Eram as “grandes reformas do Liberalismo, com a introdução de órgãos mais especializados de supervisão do ensino. Início do ensino secundário, público e privado, em Macau”, segundo Aureliano Barata que adita, “O Seminário de S. José foi suspenso em 1845, sendo os seus alunos distribuídos pelos diferentes vicariatos da Congregação da Missão de S. Vicente de Paulo ou lazaristas, na China. No Colégio apenas ficou o Padre Joaquim Leite, que continuou a ensinar Latim, vindo a falecer em 1854. O Colégio de S. José reabriu em 6 de Janeiro de 1857, existindo também aí a instrução primária, que a 3 de Novembro de 1858 o Governador Isidoro Guimarães propôs reunir com a Escola Principal de Instrução Primária, o que não foi aceite. Já a Nova Escola Macaense, idealizada pelo Barão de Cercal, António Alexandrino de Melo e inaugurada a 5 de Janeiro de 1862, contou com três professores contratados na Metrópole, mas, ao terminarem os contratos feitos por seis anos, fechou em 21 de Outubro de 1867. Já como Bispo de Macau, D. Jerónimo José da Mata ao encontrar no Colégio de S. José apenas um aluno interno e outros oito ou nove externos, em 1862 pediu para voltar este estabelecimento de ensino a receber professores jesuítas, pois em 1814 o Papa Pio VII reabilitara a Companhia de Jesus. Chegaram os padres Francisco Xavier Rôndina e José Joaquim da Fonseca Matos a Macau e em dez anos, com um “escolhido corpo docente” transformaram o Seminário numa das melhores e exemplares escolas de toda a Ásia. Atraídos por bons professores de diversas nacionalidades, a afluência de alunos era grande, apesar de a maioria não fazer intenção de seguir a vida sacerdotal e assim, quando terminaram o curso, muitos ocuparam lugares de destaque na Administração. Em Macau, o ensino secundário oficial surgiu em 1870, integrado no Seminário de S. José, segundo Aureliano Barata, referindo que no ano seguinte os missionários estrangeiros daqui foram expulsos. Tal criou graves problemas no funcionamento, pois no Seminário “funcionava não só o ensino liceal mas também uma escola comercial, onde estudavam, nomeadamente, os portugueses de Macau. Esta situação despoletou a comunidade macaense a constituir a Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM), liderada por homens afazendados de Macau e Hong Kong”. O Seminário-Liceu e a Escola Comercial Sete anos após a fundação da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (A.P.I.M.), tempo necessário para encontrar professores, em 8 de Janeiro de 1878 foi criada a Escola Comercial, que funcionava no edifício do Seminário de S. José, na Colina de Santo Agostinho. Pedro Nolasco da Silva assumiu o cargo de Director e em 1881 também o de Presidente da Associação. Na Escola Comercial havia a Classe Elementar, onde se ensinava Português, Geografia, Aritmética, Catecismo e Inglês e a Classe Superior, com Português, História e Geografia, Inglês, Aritmética, Álgebra, Escrituração Comercial, havendo ainda língua chinesa escrita e falada, Caligrafia e duas vezes por semana rudimentos de ciências naturais. Para se perceber a eficácia da Escola Comercial, o jornal O Independente de 13 de Fevereiro de 1886 refere: “Ninguém duvida que a causa da instrução pública em Macau ganhou muito, imenso, com a fundação da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses e com a sua Escola Comercial. Preparar a mocidade para a única carreira profissional que a habilitasse a ganhar a vida nos escritórios estrangeiros e nacionais, em Hong Kong, em Xangai, nos diversos portos do tratado do Japão, ou mesmo em Singapura e na Austrália, era sem dúvida uma missão digna de patriotas e de pais de família.” Este grande elogio à importância da Escola Comercial e à APIM aconteceu após formados os primeiros alunos do curso e logo terem conseguido emprego em Macau e nos escritórios no estrangeiro, mas também já se sabia do convénio assinado em Junho de 1885, entre Pedro Nolasco da Silva, como presidente da APIM e o Bispo da Diocese de Macau, José Manuel Carvalho, que estipulava serem as aulas da Escola Comercial dadas nas salas do Seminário de S. José, o que veio a acontecer durante dezasseis anos, até 1901. Por Decreto de 22 de Dezembro de 1881 os estudos do Seminário de S. José foram reorganizados e com o nome de Seminário-Liceu de S. José de Macau passou a ter também o ensino comercial, mantendo-se aí a serem leccionadas a cadeira de Náutica e as aulas da Escola Comercial. Aureliano Barata refere: “Desta forma, passaram a existir em Macau duas escolas comerciais”. A APIM tomou então a iniciativa de fundir a sua Escola Comercial com a já existente no Seminário-Liceu de S. José. O Macaense de 1891 refere existirem quase todas as cadeiras de instrução secundária, mas dispersas, sem nexo entre elas; o que se precisa é reuni-las e formar um curso. Percebe-se ter fracassado a reforma do ensino secundário no Seminário-Liceu de S. José e para colmatar tal falha, por Carta Régia de 27 de Julho de 1893 voltou o Ensino a ser organizado, com a criação do Liceu Nacional de Macau.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasUma praça cheia de gente [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma desproporção entre a configuração anatómica do ser humano e o que somos. Despertamos sensações uns nos outros pela nossa aparência. Podemos nem sempre percebê-lo. Podemos passar despercebidos uns pelos outros. Mas não me estou a referir a impressões que causamos uns aos outros. Estados em que nos deixamos uns aos outros. Estou a referir-me a uma outra forma de desproporção. Numa praça cheia de gente, a praça é o local onde as pessoas se encontram. É um sítio que alberga todas elas. Mas ali há tantas praças quantas as pessoas que lá se encontram. No mínimo. Mas é muito difícil de perceber porque fazemos caber cada pessoa: bebé, criança, jovem, adulto, velho, homem ou mulher nas fronteiras compactas do seu corpo, no interior da sua anatomia. Há tantos seres humanos quantos os corpos que lá estiverem. Sim. É verdade. É inegável. Mas a lotação pode estar esgotada e tocamos uns nos outros, desviamo-nos uns dos outros, deixamo-nos passar uns aos outros. Estamos a ir à casa de banho ou ao bar, a entrar ou a sair e não apenas de sítios mas vamos às nossas vidas, como viemos das nossas vidas. Como poderíamos nós vir de outro tempo e ir para outro tempo que não os das nossas vidas? Não estamos nas nossas anatomias apenas espacialmente. Estamos sempre fora: de casa para o trabalho, a ir para onde vamos e a regressar. Estamos sempre a ir, como se ser fosse ir e com efeito a ter de ir. Mas estamos sempre distendidos entre o quando saímos de casa para vir até aqui ou ir onde vamos e o quando regressarmos. Sair e chegar, partir e regressar não são fronteiras estanques. Desde sempre estamos a sair: quando foi a primeira vez de todas as primeiras vezes e havermos de ter uma última vez de todas as vezes. E podemos já nem sair, nem partir, podemos só estar. Quando partimos só já estamos, e talvez nem seja assim. Nos sonhos dos moribundos tal como nos sonhos das crianças estão a ser inventadas vidas já vividas ou por viver. A vida distende-se e faz-se mesmo no interior estanque de onde não vem já sorriso nem queixume. Às vezes uma lágrima mas que pode ser do sebo da carne no quarto de hospital. Na praça apinhada de gente, estão troços de vidas, uns mais longos do que outros, uns com rumo e tempo outros sem rumo nem tempo. Mas nada do que está ali está ali. O trânsito humano numa praça: um aeroporto, um igreja, uma praia, uma esplanada ou a Praça do Comércio não existem primeiramente geograficamente, mas como encruzilhada onde nada está parado e tudo é escoado e se precipita para não se sabe bem onde. Há uma desproporção entre o que achamos ser uma vida humana e o seu corpo. E sim: o corpo é o órgão do tempo. Mas o corpo não é estanque e aponta também para o tempo. E vibra em nós o tempo no corpo, quando o forma e definha. Mas não é só assim que a vida e o tempo fazem corpo com a sua anatomia. Não somos sem pai nem mãe, nem antepassados nem descendentes, nem sem amigos, namoradas. Encontramo-nos no corpo uns dos outros e desencontramo-nos de nós por não nos encontramos no corpo uns dos outros. E encontramo-nos sem ser só no toque. Pode ser no olhar, no cheiro e quando nos escutamos. É difícil conhecermos o tom de cada pessoa, quando não a conhecemos. Mas cada um forma essa possibilidade. Eu, por exemplo, sou lá uma multidão de gente. Não apenas os meus que até posso esquecer, mas os outros mais ou menos afastados. Pode ser uma nação, quando vivemos nesse país, pode ser uma única pessoa que está a dar o mote à cadência vibrante da chegada ou da partida. Numa praça de gente estão muitos destinos, muitas cadências vibrantes, cada pessoa entroncada com os seus destinos, o tempo que houve e o que há-de haver, com e sem esperança. Não está nunca simplesmente onde está. Não está primariamente onde está. Está onde não está. Coisa estranha.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialA curva e o foco [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] fascínio da geometria – volto a ele – e das suas formas e superfícies regradas. Puras. Os sólidos de revolução, fantasias intelectuais perfeitas e de vida expectável. Como quereria a linguagem. Qualquer linguagem. Mas de abstracções não se tece a vida nem urde a existência. Hiperbólica, metafórica, saturada de figuras, de uma retórica que é paradigma ou pura ilusão. Da hipérbole, dois ramos, numa curvatura que resulta do corte de duas superfícies cónicas por um plano. Sabe-se-lhe a intensão do plano, sabe-se-lhe o foco. Como noutras curvas. Pontos externos e de misterioso domínio sobre a expectativa da curvatura obtida. Como essências que determinam subterraneamente uma forma existencial. Sem deixarem de ser elementares, ínfimos e fundamentais. Invisíveis geradores. E as linhas, geratrizes de revolução. Nas superfícies. Fico extática perante o poder metafórico da geometria. E o quanto de existencial, na geometria possível do ser enquanto tal, se rebela de uma estrutura que é definição e orientação a uma coerência confortável. Mas tão desnorteada. E que não é rígida só porque existe. Existe na sua perfeição utópica. Às vezes, na vida. E depois, essa oscilação pendular entre a corrosiva e imparável teatralização do sentir, que torna cada um tão fingidor como o poeta e tão dorido como ele, e a compulsão da verdade como se ela existisse. E um dia. Um dia de chofre. Uma luz cortante. E o paradigma dissolve-se no ar como um leve bouquet de feromonas em fuga, até não restar senão memória de um perfume. Uma verdade sempre acarinhada como antro de um bem maior e que se revela perversa, inóspita. Traindo a disposição dos focos, dessas curvaturas duplas em ramos estilizados, de uma árvore que deixa de ser construção e vida para ser demolidora. A competir com o ar respirável. Morreu. A verdade morreu. De saturação e excessos existenciais. De precipitação. Dela sobrevive-se com a prescrição dos maiores cuidados de futuro. De presente. Mas como uma doença crónica, como um alcoolismo, fica latente para sempre e para sempre a requerer cuidados. À espreita, enganosa e divergente como só ela. Emoção, o terror a evitar, o perigo abismal, a selvajaria incontrolada, como curva em crescente, gerada num foco íntimo e distante. Como uma oxidação que corrói para dentro a pureza de um metal. Uma ferrugem a lapidar até á raiz do corpo onde reside a essência mascarada de castanhos ferrosos. Verdades múltiplas e disparadas como armas mortíferas. Químicos de fórmula desadequada. O que não cura, pode matar. Um espelho. Que se segura contra um rosto, como uma lente a ferir de sol uma haste seca. Até incendiar. Eu às vezes sinto a embriaguez enorme e arrepiante de palavras com as vísceras em fogo, de líquidos derramados em páginas como lava fresca de vulcão extinto de imediato ou mesmo antes e são bolas porosas e de cores extravagantes que rolam página abaixo e se esvaem nas margens. Ou para além delas. Tão para além que não voltam. Não adianta perscrutar os outros dias das palavras poéticas, porque em muito se furtam a um retorno a que o tempo invalida a costura. Emoções de um tempo preciso. Ou porque não eram as minhas vísceras, o meu tempo ou a minha ferida que ali se abria. Era. Era a ferida como se ressonância por simpatia. Como se telecomandada a partir de uma origem, como corpo a abrir ao primeiro raio de um poema. De sol, digo. Como flor. Como gineceu túmido na azul glória matinal. Mas são outros tempos do corpo e são outros corpos do sentido tacto. Na fantasia das manchas ensolaradas e das sombras magras e febris dessas palavras texto, tecido de uma urgência outra. Ou de outra urgência minha. Tudo a debandar das páginas folheadas como dedos naquele ponto. Naquele preciso ponto húmido. Onde mesmo os dedos podem ser ásperos. Nenhuma carícia é demais para as flores. Mas por vezes mata de peso e inércia desmedida para a espessura de uma determinada configuração que não condiz com o gesto. Mas não nos incomodemos a chorar se uma estrofe não volta a dizer o que disse. Nunca prender com âncoras marinhas o destino que é térreo. E nele o balanço ondulado das ondas, de carreiros pedregosos. Ou arar ondas de mar. Cada emoção tem um único tempo. Um compasso e uma melodia irrepetível. E depois, numa daquelas epifanias de trazer a dias sem pretensões, ver todas aquelas frases a cair, misturadas e desarranjadas, desgrenhadas mesmo, amotinadas de fresco das suas linhas seguras, umas para andares abaixo, outras em flick flack destemido a ultrapassar o limite do texto, da folha, do mundo. O delírio mais lírico de um poema. Entornar-se no mundo e misturar-se entre as pessoas. Em bocadinhos, com de pão com manteiga, em interjeições sem destino certo, em negações do que era e do que era para ser se fosse. Tudo a invadir a capa. Partes de texto poético a andar para trás. Há pessoas assim. A confusão de sentidos intercomunicantes pode trovejar-nos na cabeça mesmo no seu lugar. A cabeça. E subitamente esqueci se era a cabeça ou o lugar dos sentidos. O lugar certo. Mas depois nem isto importa. Não devia ser permitido usar pronomes pessoais para abstracções. Como se fossem flores e concretas como tal. Chamar ela a uma hipérbole retorcida em si. Ou a angústia. Como defini-la sem dela se dizer o que a transforme em entidade. E, no entanto, há uma espécie de textura de uma densidade própria e deslizante. Lentamente a entorpecer talvez de cima para baixo. Mas a cor. Tentar entender-lhe a cor, parece fútil face ao abraço entorpecente e espesso. Que anula até a dor. Olhar para aquele lado. São enormes pedras de jazz. De sal, era o que queria dizer. Mas caiu dali outra palavra. Com luz natural de lâmpada no interior. As pedras. Enormes. De sal. E que lhes vem de dentro como é da natureza do que se acende. A partir de um ponto e em expansão. E sem voltar atrás. A luz. Espreito sempre à porta antes de entrar por um livro adentro não vá estar em trajes menores. E surpreendo-o, àquelas horas com as palavras a sair por todos os cantos como numa sandes demasiado cheia e desleixada. A capa com nódoas de pequenas palavras que se soltaram mesmo. Uma coisa do outro mundo. O descrédito quase me faz rir. Mesmo que à custa de um livro desmanchado de poemas. Por isso penso mas porque se escreve ainda quando todas as palavras já foram usadas com todas as temperaturas a expelir fumo de todos os termómetros inaplicáveis. É que o fogo que lavra destemente a qualquer deus e a qualquer balança, é privado de braços e pernas se não atacar outras folhas. Não há descanso. Para a verdade crónica e imperfeita. Escrever, é uma coisa triste. O desvendar da alma a quem só nós conhecemos. O desabafo tão íntimo e tão privado que só nós ouvimos. Filtrado das linhas mesmo se baralhadas como cartas de jogar. Tudo o que se tenha que definir em mais do que duas ou três palavras, a substitui por um gesto. Um sorriso. E chega. Ando há tempo a rondar este ângulo muito específico de estarmos a enlouquecer. Dizer isso como irremediável. E talvez porque muito da vida já o é, dizer. Estamos. Muito de nós está. A enlouquecer de desespero. De sabe-se lá, sabemos nós, não o sabemos, talvez a enlouquecer. Sim. De como as roupas que vestimos dia a dia hora a hora e circunstância a circunstância. E lugar. Hiperbólicas. A esquecer o foco. Talvez se escolha o ângulo concreto da loucura diária, como uma roupa e uma deixa, que nem sempre encaixa na fala global da peça, mas não sabemos fazer melhor. É talvez um facto que se vive entre paredes, entre as circunstâncias em que queremos ser amados e vistos com um olhar benévolo, e a necessidade de que os outros nos vejam na crua realidade do que se é. E ainda assim. Ser amados. Sofrer de figuras de estilo. Sofrer de lugares geométricos que tendem, ao invés da sua natureza matemática de rigor e abstracção, a deixar-nos num limbo de curvaturas várias num universo de espaço amplo e ilimitado. À mercê de elevações e expansões para as quais o corpo não oferece limite à fuga. Encosto-me a uma amurada, junto daquele mar imenso que é o único a entender-me, e a dizer que se nele mergulho ou nado, sem saber regras e correntes, tudo depende da força que tiver. Para resistir às vagas. O mar que não pune nem castiga, simplesmente segue a natureza desmedida que há que conhecer. Já nos humanos, a natureza é razão que se pode ponderar. Porque há o lugar geométrico do apaziguamento. Encosto-me a essa amurada com vista, só porque me sinto menos só face ao mar e é a este que devo escutar. Encosto-me mais ao olhar. Apuro o ouvido. Vejo-me de costas como quem diz que é de costas que melhor nos vemos e aos outros. Hiperbólicos, sentidos. Muito. Às vezes demais. Para uma única superfície de pele de rosto. De pelos nos braços, insuficientes na expressão de tamanho arrepio. Porque o vento vem forte. E hiperbólicas. Pessoas assim, a quem dói a temperatura do corpo. E para quem a respiração é um risco a sangrar. Quando a sacralização de cada regra pode enfermar de uma ferida que se agrava. A verdade. Não mais que um momento. Os conceitos que amamos, as definições. Outra coisa é a explicação dos anjos. Sem nome. Os anjos não têm nome. Não subjaz à forma o sentido, mas uma realidade motora que conduz a emoção do gesto à sua origem. Ao seu destino. O que liberta e o que contém envolve numa ilusão lúcida. A da realidade feita e perfeita, mas numa camada lírica, como num corpo, uma emoção e um sentido íntimo. Onde se vive mas não se encontra. Como a curva ao foco. Pequeno pirilampo. Ou o beijo da razão. Nem na verdade, nem na emoção.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasKaradeniz | O Filho [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] vista, do terraço do restaurante do Conrad Hotel, é uma das mais terríveis do planeta Terra. É o lugar onde o que o homem faz e o que a natureza é se encontram esplendorosamente, sem máculas e sem culpas. Fui apenas duas vezes a esse lugar: a primeira por amor de uma mulher; a segunda pela morte de um homem. Karadeniz morreu em sua casa junto à torre de Gálata, numa das muitas noites em que lá ficava, em que não me apetecia apanhar um táxi para a minha casa em Baltalimani, junto a Bebek, no Bósforo. Deve ter tido uma morte santa, sem sofrer. Foi para a morte como se tivesse ido apenas deitar para outro dia. Encontrei-o de manhã com o rosto mais pálido do que o costume, e já só consegui tocar-lhe o frio. O homem já não estava ali. Tinha o passado à minha frente, diante do rosto e das mãos e não sabia o que fazer. Fiquei ali parado, sem fazer nada, a saber a morte. A seguir ao funeral de Karadeniz, em Istambul, o seu filho, T., que conheci na cerimónia, pediu-me para jantar com ele. Precisava de falar comigo com urgência, antes de partir para Londres, ainda essa noite. T: Soube pelo porteiro que você passava muito tempo com o meu pai, posso saber porquê? PJM: Porque gostava dele e ele me ensinava muito. T: Ensinava-lhe o quê? PJM: Tudo! Só não me ensinou a matar. T: A mim, foi só o que ele me ensinou. PJM: Ensinou-o a matar!? T: Não propriamente, mas vi-o várias vezes a disparar com a espingarda contra os gatos da rua. PJM: Foi só para saber porque me encontrava com o seu pai, que quis encontrar-se comigo? T: Não, não foi só por isso! Queria saber como é que ele morreu, parece que não sofreu, pois não? PJM: Não, não sofreu. Morreu a dormir. T: Morreu como viveu! PJM: A dormir!? T: Não, sem sofrer. PJM: Julga que o seu pai não sofreu na vida, é isso que me está a dizer? T: Não me leve a mal, mas não quero falar sobre isto consigo, com quem nunca vi e provavelmente nunca mais vou ver. Não me leve a mal, mas não sou muito bom a falar de mim. PJM: Não tem de que se desculpar! Compreendo perfeitamente. Há mais alguma coisa que queira saber? T: Gostava de saber o que é que você faz na vida? PJM: Escrevo livros. T: Que tipo de livros é que escreve? PJM: Romances, poesia e teatro. T: Romances acerca de quê? PJM: Acerca da vida e da morte, acerca dos homens. T: E isso dá-lhe para viver? PJM: Às vezes, dá! Outras vezes, não. T: Então e quando não dá, o que é que você faz? PJM: Isto é alguma entrevista, que me está a fazer? T: Se quiser não me responda, não é obrigado a fazê-lo. Mas tenho curiosidade em saber que tipo de pessoa passou os últimos… PJM: Dois anos! T: Dois anos!? PJM: Sim! T: Pois, gostava de saber que tipo de pessoa passou os últimos dois anos a visitar o meu pai, a fazer-lhe companhia. PJM: A companhia era mútua. Quanto à sua pergunta anterior, quando os livros não dão para viver, peço dinheiro emprestado, até que volte a dar. T: O meu pai chegou a emprestar-lhe dinheiro? PJM: Não! Estou num momento em que não é preciso. T: O meu pai chegou a falar-lhe de mim, a dizer-lhe o que faço? PJM: Sim! T: E o que é que ele disse que eu fazia? PJM: Disse-me que você era um homem de negócios, que importava vegetais da Turquia para Inglaterra. T: Foi só isso que ele disse, não mencionou mais nada? PJM: Não, só me disse isso. Porquê, há mais alguma coisa que você faça que o seu pai não me tenha contado? T: Não, não há mais nada. Queria só ter a certeza de que o velho não tinha perdido o juízo, nestes últimos anos de vida. PJM: O seu pai esteve sempre muito lúcido até ao fim, pode ficar descansado. O seu pai era um homem muito bom. T: Muito bom!? Ele chegou a contar-lhe como era o inferno? PJM: Qual inferno? T: Qual inferno!? A casa! Crescer naquela casa com dois loucos à volta dos gatos: um aos tiros aos animais e o outro a salvá-los; e eu no meio, sem ser gato. E nem os matava, nem os salvava. Ele não contou isso, pois não? PJM: O seu pai contou-me dos gatos, sim. Também me parece que sempre soube do mal que tudo isso lhe fez. Até ao fim, nunca quis aceitar culpa de nada, mas julgo que ele sempre se sentiu culpado em relação a si. T: Que mais culpas é que ele poderia ter? PJM: Culpa em relação à sua mãe. T: Em relação à minha mãe, não teve culpa nenhuma. A minha mãe era louca. Não se pode fazer nada por um louco, muito menos ser responsável por ele. PJM: O seu pai amava muito a sua mãe. T: Essa é que é a sua culpa! Nunca lhe perdoei, ter-se sempre esquecido de mim, do que eu precisava, por causa dessa louca. PJM: Se pensa assim da sua mãe, porque foi com ela para Londres, porque não pediu para ficar com o seu pai? T: Precisamente para magoá-lo. E também, porque não queria ter mais nada que ver com ele. Queria esquecê-lo. Queria ser uma pessoa completamente diferente dele. Queria ser o homem que ele nunca foi. PJM: Não sente culpa, por isso? T: Na vingança não há culpa. Depois de um longo silêncio, T. pegou no seu telefone e deu instruções para o piloto do helicóptero que o esperava no heliporto do hotel. Nesse momento pensei que Karadeniz sempre estava certo acerca das actividades do filho, que não é só legumes que ele importa para Inglaterra. Despedimo-nos e eu fiquei ainda ali sentado à espera de ver o ferro a voar para o aeroporto, levando para sempre da minha vida a história desta estranha família. Uma família sem culpa, a vingar-se da vida.
Isabel Castro VozesCom uns trocos no bolso [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão é difícil perdermos a noção das coisas. Vivemos numa bolha com demasiadas especificidades para conseguirmos espreitar além das paredes. Vivemos a um ritmo que não nos dá tempo para parar, escutar e atravessar para outros lados. Por isso é que andamos em círculos, muitas vezes às escorregadelas, mas sempre a acelerar. Macau é uma terra de ilusões, de sensações, de milhões, de excessos, de excessos excessivos, onde o tempo passa mais depressa do que a nossa capacidade de fazermos contas à vida. No meio deste turbilhão onde toda a gente tem tudo, achamos sempre que ainda não temos aquilo de que precisamos. Os que têm tudo também querem mais, querem o dobro do que têm, como se fosse possível duplicar o infinito. Descobrem fórmulas de multiplicação de fortunas que não vêm nos manuais de economia. Das finanças sentimentais ninguém trata, porque não há tempo e, colocando tudo o que é de relevo em perspectiva, as almas ficam tão longe que mal se vêem. Os zeros é que contam. Não é fácil mantermos os pés nesta terra, nem aterrarmos noutra qualquer. Sobrevoamos a vida sem pousarmos em nada, atarefados que estamos em afazeres que são os mais importantes, os mais decisivos, os mais inúteis também, mal o dia acaba e outro começa, com cinco minutos de intervalo para descanso dos pés cansados. Tudo mudou muito nos últimos tempos, sabemos bem, apesar de não sabermos para onde vamos nesta centrifugadora de tempo e de energia. Tudo mudou muito e mais vai mudar, sabemos bem também, nós que começamos a olhar com normalidade para tudo aquilo que os outros fazem, todas as extravagâncias, todos os inusitados pedidos, todas as estranhas exigências. Já não nos espantamos com este mundo, como se a ausência de espanto fosse a normalidade. Queiramos ou não, todos nós fomos sugados pelo dinheiro que nos paga a casa, o carro, as jóias, as refeições com estrelas e sem estrelas, os ovos estrelados, o arroz com vegetais, o peixe cru raro e a sardinha na brasa. Só no mundo da normalização da invulgaridade é que é normal comprar casas com três quartos, sem despensa, por dez milhões. Ou palácios por 70. Compram-se coisas aos milhões como quem muda de camisa. Ou de gravata. Assim como é normal mudar de roupa, também é normal tirar notas da mala, passar cheques, fazer transferências e comprar imóveis classificados em terras distantes. É tudo demasiado normal. A Fundação Macau também compreende este espírito de normalidade. E alinha nele sem qualquer problema, sem qualquer desfaçatez, com toda a sinceridade de quem tem bem assimilado este modo de vida abastado, alargado, despreocupado, por ser aos milhões. Outra coisa não conhece. Porque tem muitos milhões, mandatou um dos seus curadores para que este estudasse a aquisição de um determinado palácio lisboeta que pretendia comprar. Por coincidência, o curador é um empresário com olho para o negócio e com capacidade para cheirar a concorrência a quilómetros de distância. Por coincidência também, o mandatado anda com 65 milhões no bolso e não é pessoa para ficar à espera de convocatórias, reuniões e actas. Porque é um businessman, faz business. Compra o palácio em perspectiva, chega a casa e comunica o facto, os seus pares batem palmas ao feito, fazem-se poucas contas aos trocos, gastam-se mais uns milhões em avaliações e estudos ao que já se pretendia comprar antes de ser comprado, e está feito o negócio. Não se falou dele porque não calhou. Numa terra em que os milhões andam aos pontapés, tanto se lhe dá, como se lhe deu. E depois ninguém tem nada que ver com isso. Também já nos habituámos a que nos normalizem os passos. Como se as tecnologias não bastassem para que se saiba se vos escrevo de Macau, da Taipa ou da Papua Nova Guiné. Todos sabemos onde andam uns e outros. Mas há quem queira ir mais longe e precise de compreender o que se faz entre este passo e o seguinte, o que se lê entre este livro e o próximo, a quem se sussurra, com quem se grita, com quem se viaja, qual é o último pensamento que nos abraça antes de o sono nos apagar. Estranha normalização esta que não nos faz gritar, espernear, fugir a sete pés, agarrar a vida com as duas mãos. Não é difícil perdermos a noção das coisas quando as coisas que nos rodeiam surgem sem pré-aviso para se instalarem no meio da normalidade, disfarçadas de vulgaridades. Mas há que parar. Parar e escutar, para atravessar sempre, porque na travessia é que corre a liberdade.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasE agora, as autárquicas [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste ano teremos eleições autárquicas e, com elas, a multiplicidade infinda de cartazes, porta-chaves, autocolantes e demais brindes de campanha, estradas remendadas com uma pasta muito semelhante a alcatrão mas com um tempo de vida útil substancialmente inferior ao do alcatrão, soluções para tudo menos para a morte, tempos de antena na RTP com pessoas estranhamente parecidas com pessoas, discussões acerca do centralismo e dos seus malefícios, partidos-bebé com siglas de doenças, caixas de correio entupidas de circulares desenhadas pelo primo de um cunhado que tem muito jeito, arraiais e arruadas para todos os gostos menos para o nosso e os habituais comícios enfeitados por figurantes tão entusiasmados como crianças numa leitura de poesia. Lisboa, por exemplo, e a julgar pelas obras que decorrem a um ritmo frenético para estarem concluídas antes das eleições, está em campanha há quase dois anos. A zona do Campo das Cebolas e arredores, se seguirmos o mesmo critério, está em campanha desde o início do século XXI, e não há previsão para que finalmente deixe de estar e cumpra a função de fazer pender o voto. As eleições têm o condão de precipitar todas as decisões, arranjos e melhorias que podiam ter sido feitos ao longo dos quatro anos que corresponde ao mandato daqueles que foram eleitos para os últimos doze meses do mesmo, porque os políticos, justa ou injustamente, acham que a memória dos eleitores é semelhante à do peixinho de aquário que confunde os dejectos da ida com a comida da volta. Os primeiros três anos do mandato são de “estabilização e renovação”, o que equivale a resolver de forma unilateral todas as avenças do partido deposto do poder e à contratação ou adjudicação das pessoas “da nossa confiança”, no caso de uma mudança de cor política, ou, no caso da continuidade, a um inexplicável mas aparentemente confortável nada mascarado de planeamento. Como a taxa de natalidade em Portugal é ainda mais baixa do que a taxa de crescimento, as campanhas apontam baterias, invariavelmente, aos velhos que, em linguagem política, são ora a população idosa, ora a população sénior, ou qualquer outro jargão pós-moderno e politicamente correcto que cumpra a função de desossar das palavras a realidade que lhes subjaz. E os velhos, como se sabe, têm de ser tratados como crianças acumulando décadas de mau-gosto. Afinfa-se-lhes portanto o cantor pimba da moda, uma excursão a Badajoz para evocar a lembrança da fome e das maravilhas que Abril cumpriu e uns arraiais com bifanas à pala que cada um cuida de comer como se não o fizesse há largos dias. Quando o triste espectáculo do disparate continuado finalmente termina, ficam os cartazes, outdoors e mupis desbotando, verão após verão, até da criatura constando neles se assemelhar uma nódoa informe numa toalha velha, ficam as promessas ainda mais desbotadas dos que as criaturas dos cartazes, ainda mais desossadas do que as palavras da moda, as promessas de que não nada resta senão, como escrevia o Eça na Relíquia, a “ousadia de afirmar”. A única coisa boa é que o circo se repete somente de quatro em quatro anos. É o intervalo possível entre estas apneias de sentido em que já ninguém acredita mas que cumprem o propósito higiénico de simular uma alternância trajada de alternativa.
João Luz Perfil PessoasKerill Ezzy, instrutora de ioga | De Brisbane para Macau [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] vida tem uma dinâmica cada vez menos linear. A australiana Kerill Ezzy é um bom exemplo disso mesmo. Chega a Macau como engenheira de som de espectáculos musicais para a apresentação de “Cats”, há cerca de 10 anos, e torna-se instrutora de ioga. Passados dois anos da primeira visita ao território voltou com a companhia que apresentou “The House of Dancing Water” e acabou por ficar por cá. Com um trabalho com características itinerantes, na altura, a engenheira de som sentiu a estranheza de trabalhar apenas num sítio. Porém, criar, construir um espectáculo e continuá-lo “foi uma experiência linda”, comenta. Além disso, Macau, com o seu charme muito próprio, acabou por seduzir Kerill. Quando chegou, a cidade era muito mais calma do que é actualmente. Vivia-se a época da crise económica. “Quando, vim o City of Dreams tinha sido acabado de construir”, lembra. Também o caldeirão cultural impressionou a australiana originária de Brisbane. Ao princípio, “a mistura de um povo asiático numa cidade com arquitectura portuguesa foi muito estranha para mim, porque sou australiana e não temos este grau profundo de diversidade”, conta. A herança resultante do cruzamento de culturas criou um grande impacto em Kerill Ezzy. “Foi tão bonito descobrir uma antiga colónia portuguesa com chineses, numa mistura que casa com tanta perfeição”, explica. Entre o dia em que chegou e a actualidade, a australiana sente que uma das maiores diferenças é o evidente aumento do turismo, assim como da actividade ligada à indústria do jogo. Também o número de pessoas cresceu imenso, para dar resposta laboral às novas necessidades económicas. Na opinião de Kerill, a era de confusão e crescimento económico não tiveram repercussão na capacidade dos seus habitantes para pararem e se encontrarem consigo próprios. “Acho que a introspecção e a reflexão aumentaram como resposta ao crescimento de Macau”, analisa. No aspecto cultural, acha que ainda é cedo para medir as repercussões do boom da cidade. Uma coisa é certa, “os portugueses e os chineses continuam a ser os povos lindos que sempre foram”, conclui. Zen na cidade Hoje em dia, Kerill é instrutora de ioga, uma inversão que aconteceu por um acaso trazido pela sua antiga profissão. O ioga entra na sua vida devido aos problemas de costas provocados pelo trabalho como engenheira de som. O ashtanga foi-lhe recomendado pela sua fisioterapeuta e foi uma surpresa para a australiana. “Era uma pessoa muito activa e a ideia de fazer ioga não era algo que me passasse pela cabeça”, conta. Passados cinco anos de prática e na sequência da falta de professores, a australiana tornou-se instrutora. “Pensei que era a melhor forma de continuar a aprender, nomeadamente através dos meus alunos”, revela a instrutora, que falou ao HM numa pausa de formação que está a tirar na Tailândia. Contrariando a impressão recorrente de que o ioga pode ser uma actividade rotineira, Kerill vê a sua dinâmica tendo em conta a maleabilidade do corpo humano. “Para quem olha de fora, o ashtanga parece ser sempre a mesma coisa mas, na realidade, o teu corpo muda, comes coisas diferentes, dormes de forma diferente, todos os dias são diferentes”. Esta evolução torna o ioga algo fascinante de se trabalhar, na óptica da australiana. A instrutora encontra sempre algo na cidade locais que merecem atenção. “Há pequenas bolsas em Macau muito giras”, comenta. Por isso gosta de passar tempo nos pequenos cafés. Nesse aspecto, destaca o Macau Soul pelo belíssimo vinho português e fotografias antigas da cidade. Outro dos lugares de eleição da instrutora de ioga é o Jardim Luís de Camões, que “tem uma energia especial”. É um sítio onde gosta de estar, onde se sente bem a partilhar o espaço com os iodos que por lá ficam o dia inteiro a praticar tai chi, a meditar, ou simplesmente a conviver. “Há ali um sentido comunitário muito forte e uma grande tranquilidade apesar de se estar mesmo no coração da cidade”.
Hoje Macau China / Ásia MancheteHong Kong, 20 anos | Quase 200 mil pessoas residem em fracções subdivididas [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]em menos de sete metros quadrados o espaço a que Wong chama de casa. Localizado num prédio do bairro mais pobre de Hong Kong, reflecte as condições miseráveis em que milhares sobrevivem num dos territórios mais ricos da Ásia. Wong, de 55 anos, subiu as escadas sem perder o fôlego, habituada que está à rotina de viver num quinto andar sem elevador de um prédio antigo de Sham Shui Po. À boa maneira chinesa, deixa o calçado à porta do minúsculo espaço pelo qual paga 3200 dólares de Hong Kong por mês. O beliche ocupa boa parte dos aproximadamente 6,5 metros quadrados da fracção subdividida onde mora. A parte inferior serve para dormir, a superior para guardar os poucos pertences: volumosos sacos pretos quase tapam os lençóis sobre os quais pousam ainda utensílios do dia-a-dia, produtos de higiene ou um rádio. Ao lado do beliche encontra-se um frigorífico, com um microondas por cima, defronte para um móvel de gavetas de plástico onde está uma televisão. Por cima, funciona quase ininterruptamente uma ventoinha fixa na parede que ajuda a suportar o calor. Existe uma pequena janela, mas nunca se abre, porque lá fora há “apenas lixo”, diz Wong à Agência Lusa. Do outro lado, a casa de banho e a cozinha formam uma ‘divisão’, ainda que sem porta, onde cabe uma pessoa. A sanita encontra-se ao lado da bancada e o lava-loiça e o lavatório são uma e a mesma coisa, expondo “problemas de higiene” que Wong reconhece, sem ter como os solucionar. Wong, que é empregada de limpeza, cozinha quase sempre, embora “não seja fácil”, “porque o espaço é muito pequeno”. Diz ser rara a vez em que vai buscar ‘tapau’, optando por regressar a casa nas duas horas que tem de almoço. A refeição é feita sobre uma pequena mesa, sentada numa cadeira, ambas desdobráveis, que quando abertas tomam todo o espaço livre entre o beliche e a parede. Já do tecto brotam peças de roupa penduradas em cruzetas engatadas em pregos, depois de terem sido lavadas à mão numa bacia colocada sobre a tampa da sanita, custando “dores de costas” à simpática Wong. O único dia de descanso usa-o principalmente para duas coisas: dormir e ir à rua fazer compras. Também vai uma vez por semana à igreja pentecostal à qual pertence, como denuncia um autocolante na porta. O contrato da chamada unidade subdividida – cujo modelo pode ser adquirido numa papelaria – expira em Fevereiro do próximo ano. Pese embora as condições, Wong não deseja mudar, não só pelo “pesado fardo financeiro” que será pagar um depósito e renda extra, mas porque sabe à partida da dificuldade de encontrar um lugar melhor, compatível com as suas possibilidades. Wong tem um rendimento mensal de 8900 dólares de Hong Kong, pelo que praticamente metade vai para as despesas relacionadas com a habitação, incluindo água e electricidade. A morar há quatro anos em Sham Shui Po, só conhece fracções subdivididas desde então. A anterior, onde foi surpreendida com um despejo, era maior, mas igualmente degradada, descreve. Um elevador faria a “grande diferença” para Wong que se queixa também do “barulho frequente de obras” e “da chatice” de morar no espaço que fica logo à entrada do apartamento subdividido – que tem mais três espaços idênticos – porque, às vezes, os vizinhos acordam-na. Habitação social não chega A vida de Wong – chinesa nascida na Indonésia que se mudou para Hong Kong em 1989 e casou, no ano seguinte, com um residente da então colónia britânica – nem sempre esteve confinada a um cubículo. A separação levou-a a deixar a habitação pública em Ma On Shan, nos Novos Territórios, onde residia com o marido e três filhos, hoje com idades entre 20 e 28 anos, com os quais não mantém contacto. “Nunca me ajudaram, nunca me deram um único dólar”, lamenta. O seu sonho é voltar a viver numa habitação pública. Contudo, a lista de candidatos é extensa e a espera longa. Além disso, para formalizar o pedido tem de primeiro oficializar o divórcio, um processo em curso graças à ajuda legal que a Society for Community Organization arranjou, explica Gordon Chick, assistente social que a acompanha e que serve como intérprete-tradutor. Wong foi referenciada pela organização não-governamental há aproximadamente um ano, altura em que foi despejada da anterior fracção subdividida e a ajudaram a arranjar dinheiro para suportar os custos inerentes à mudança. Já Wong destaca antes, com especial carinho, quando lhe consertaram a televisão que se avariara. Não obstante as duras condições, as suas expectativas são “muito simples”, à imagem e semelhança da sua vida: “Manter o emprego e ter saúde”. Pelo menos 200 mil pessoas vivem em habitações inadequadas em Hong Kong, em fracções subdivididas de variadas formas, em cubículos ou gaiolas, muitas com condições precárias que constituem um “insulto à dignidade humana”, na descrição da ONU.
Isabel Castro Entrevista MancheteHong Kong, 20 anos | Entrevista | Larry So, académico: “Há muitas pessoas a falar dos velhos tempos” Larry So não é saudosista, embora agradeça a educação que teve. Nascido e criado em Hong Kong, o académico conta que a geração a que pertence se sente desiludida com duas décadas que podiam ter sido muito melhores. As expectativas eram grandes e os sucessivos Governos da RAEHK não deram conta do recado. O analista explica ainda porque é que os que nasceram depois também não se conformam Em termos gerais, estes 20 anos de Hong Kong enquanto região administrativa especial da China vão ao encontro do que estava à espera? De uma forma geral, sim. Mas também há muitos aspectos que não correspondem às expectativas. Sou da área dos serviços sociais. Eu e os meus amigos desta área estávamos à espera de que houvesse uma melhoria significativa neste aspecto. Hong Kong era uma colónia britânica e, com esse estatuto, não se esperava que houvesse um grande investimento, pelo que havia a esperança de um desenvolvimento dos serviços sociais. Claro que houve algumas melhorias, mas ficaram aquém das expectativas. Tínhamos, na altura, entre 40 a 50 anos e pensávamos que poderíamos ter uma reforma, por exemplo. Mas em Hong Kong, à semelhança de Macau, o sistema de previdência é terrível. Estamos a falar de um centro financeiro internacional, mas também de uma cidade onde existem muitas pessoas em situação de pobreza extrema – e os números aumentam nos últimos anos. Estas duas décadas não serviram para se trabalhar para a igualdade social. Os ricos ficaram mais ricos e os pobres passaram a ter cada vez menos, como aliás demonstra o Coeficiente de Gini, que mede a desigualdade. Este coeficiente aumentou quase um ponto desde 1997. É uma medida objectiva. Qual é a explicação para este fenómeno? Quando Hong Kong voltou para a China, a política prioritária da região administrativa especial foi a manutenção da estabilidade económica. Partiu-se da ideia de que se houvesse mais dinheiro no topo, chegaria a todos e que a população sairia beneficiada. Mas parece que houve uma concentração excessiva das políticas na dimensão económica: tentou-se arranjar terras para que houvesse mais construção, mas não se investiu em habitação pública. Deram mais terrenos aos magnatas, que puderam aumentar os seus investimentos. Este tipo de política funcionou em certa medida, mas foi um erro pensar-se que o dinheiro iria chegar às pessoas comuns. Se olharmos para os níveis de qualidade de vida e os problemas políticos com que Hong Kong se depara, chegamos à conclusão de que a aposta na economia só beneficiou uma pequena parte da população. Podemos falar em falhanço no que toca à qualidade de vida dos residentes de Hong Kong? A cidade é muitas vezes retratada como o local onde milhares de pessoas vivem em cubículos. No tempo em que Hong Kong era uma colónia britânica, a habitação pública tinha muita importância em termos de apoio social. A Administração construiu apartamentos que disponibilizava a preços baixos. Metade da população vivia em habitação pública. Neste momento, temos pouco mais de 40 por cento da população a residir neste tipo de habitação. É um tipo de apoio muito importante porque um terço dos rendimentos das famílias é gasto nas rendas. É muito complicado. A Administração britânica lançou, na altura, medidas que considero muito boas, porque permitiram combater a pobreza. Mas este tipo de políticas não beneficia os magnatas ou os investidores do sector imobiliário, porque quantas mais fracções públicas houver, menos gente irá comprar no mercado privado. Neste momento, falta habitação pública e o preço do imobiliário continua a aumentar. De cada vez que se pensa que não pode subir mais, há um novo pico. Neste momento, o pé quadrado custa em média 20 mil dólares de Hong Kong. O primeiro Chefe do Executivo de Hong Kong, Tung Chee-hwa, não foi propriamente popular. O Governo Central tinha de escolher alguém em quem pudesse confiar. Essa pessoa tinha de ter uma ligação a Pequim e à Administração britânica. Não digo que fosse a única escolha mas, nessa altura, era a melhor. Eram anos complicados, que foram pouco tempo depois dificultados pela tentativa falhada de legislar o Artigo 23.o da Lei Básica. E aí começámos a ver milhares de pessoas nas ruas. Sim, isso foi um problema. Tung Chee-hwa forçou essa questão demasiado depressa, subestimando o facto de, ao contrário dele, nem toda a gente estar satisfeita com o regresso à China. Muitas pessoas da classe média e da classe baixa-média não pensam dessa forma. Na altura, não teve sorte, na medida em que a situação económica também não era uma vantagem. Tentou disponibilizar mais habitação pública, mas a resistência dos promotores do mercado imobiliário foi tão forte que se viraram para o Governo Central. Foram directamente a Pequim e o Governo Central, que tinha de arranjar um equilíbrio, decidiu que não ia haver habitação pública. Os magnatas opuseram-se. Tung Chee-hwa estava de mãos atadas? Ambas as mãos, não foi apenas uma. Uma delas com a questão das condições de vida da população e a outra com os magnatas a dizerem ‘não’. Portanto, não teve suficiente força política. Não, na altura não teve. Se nos lembrarmos dessa altura, a economia não era uma vantagem. Tinha rebentado a crise financeira asiática de 1997. Sim. A economia num estado complicado, ele a tentar levar por diante o projecto de habitação pública e os magnatas a dizerem que não. Tentou desviar as atenções com o Artigo 23.o, e foi o que se viu. E ainda houve o surto de pneumonia atípica, em 2002 e 2003. Morreram quase 300 pessoas em Hong Kong. Foi outra coisa terrível. Diria que Hong Kong enquanto região administrativa especial não teve um bom início. Havia muitas pessoas que esperavam uma série de coisas positivas depois do retorno à China, mas toda esta situação não ajudou. Depois Donald Tsang assumiu o poder. Há analistas que consideram que foi o único Chefe do Executivo capaz de congregar diferentes sectores e interesses. Foram anos de alguma acalmia. Teve sorte logo no início, em termos políticos e no contexto económico. Teve pelo menos dois ou três anos de estabilidade. Era muito diferente de todos os outros. Era um funcionário público, um burocrata. O modo britânico de treinar os funcionários da Administração fazia com que as pessoas não estivessem sempre nos mesmos cargos. Tinham determinadas funções durante um par de anos e depois mudavam de departamento. Donald Tsang beneficiou dessa formação. Sem dúvida alguma. Toda esta geração de funcionários públicos passou por esta experiência e Donald Tsang tinha a vantagem de perceber de finanças. C.Y. Leung, que deixa agora o cargo, foi bastante menos popular. Teve um mandato com dias muito difíceis, com o movimento Occupy. Mais recentemente, surgiu uma nova palavra na política de Hong Kong: independência. Há estudos que apontam para um reforço do sentimento de pertença a Hong Kong, por oposição à China, nos últimos anos. Confirma esta ideia? Sim, isso é um dado adquirido. O movimento Occupy não teve na origem qualquer vontade independentista – as pessoas pediam o sufrágio universal. Era este o pedido da maioria dos jovens. Mas o Governo Central apoiou o pulso forte de C.Y. Leung, o método que ele utiliza. De facto, ele hostilizou os jovens. Quando olhamos para o Occupy e outras manifestações que têm acontecido em Hong Kong, deparamo-nos com líderes que, se já eram nascidos em 1997, eram ainda demasiado novos para perceberem onde estavam. Compreende-se que pessoas de gerações anteriores possam estabelecer paralelismos com os tempos da colónia britânica, mas estes jovens não podem fazê-lo. De onde vem toda esta vontade de oposição? Como é que se explica que não queiram fazer parte da China? Não estavam em Hong Kong antes de 1997, mas ouviram muito e leram muito acerca do passado. Percebem o espírito antigo de Hong Kong, em que muitas pessoas vinham das classes baixas, lutavam por vidas melhores, entreajudavam-se e conseguiam um nível de vida melhor. As gerações mais novas não viveram isto, mas sabem do que estão a falar. Por outro lado, nas escolas secundárias e universidades leccionam professores que, em 1997, tinham 20 ou 30 anos. São pessoas que nutrem certos sentimentos em relação aos tempos da colónia britânica, sobretudo quando comparam C.Y. Leung com a Administração britânica. Alguns deles dizem: ‘Nos velhos tempos, pelo menos o Governo iria ouvir-vos. Não vos iria dar tudo, mas vinha, sentava-se e falava com vocês. Talvez vos desse um bocadinho do que querem. C.Y. Leung, com o pulso forte que tem, não vos dá nada’. O passado continua demasiado presente em Hong Kong? Diria que sim, há muitas pessoas que voltaram a falar dos velhos tempos. E os velhos tempos não significam necessariamente que a Administração britânica era boa. Mas o modo e a qualidade de vida, em termos comparativos, eram muito melhores. Em termos económicos, no que toca à performance do Governo, encontramos diferenças antes e depois de 1997. As pessoas sentem-se traídas, na medida em que havia expectativas no retorno à pátria que saíram defraudadas? Na minha geração, sim. As pessoas que nasceram depois de 1997 não tiveram essa experiência, mas comparam estes três Chefes do Executivo e encontram diferenças. Dos três, C.Y. Leung foi o pior. Em termos económicos, estes últimos cinco anos foram melhores do que a recta final de Tung Chee-hwa. Mas não é a economia que interessa. É o modo como o Governo lida com as pessoas e, sobretudo, a forma como defende as políticas que implementa. C.Y. Leung não defende as suas políticas; limita-se a dizer que são as soluções possíveis e que o que está a fazer é o melhor. Há muitas coisas que foi dizendo que levam as pessoas a perguntar ‘mas o que é que ele está a dizer?’. Falando agora do futuro. Carrie Lam toma posse amanhã. Quando foi eleita, vários analistas consideraram que se trata de mais do mesmo. Sim. Carrie Lam tem uma carreira como funcionária pública, o que é uma vantagem em relação a C.Y. Leung, porque conhece a Administração. Mas isto não significa que esteja numa posição tão vantajosa como a que Donald Tsang teve, porque ele não se rodeou do mesmo tipo de pessoas. Todos sabemos que Carrie Lam fez muitas promessas ao regime para poder estar no poder. Tem de pagar todos os favores. Uma das formas passa pela nomeação de pessoas para a sua equipa. A maioria delas não corresponde às preferências da população. Não podemos esperar, então, melhorias no ambiente social e político de Hong Kong. Não. É algo que posso afirmar com certeza. Ela poderá não ter o mesmo pulso forte de C.Y. Leung, pode ser ligeiramente mais diplomática, mas não acredito que consiga dialogar com as diferentes forças políticas. Teremos mais ou menos o mesmo tipo de situação. Tem saudades da Hong Kong anterior à transferência? Não exactamente porque, quando era jovem, era uma espécie de anti-colonialista. Mas posso dizer que valorizo muito a educação que Hong Kong me deu. Patten, lágrimas, entusiasmo Partiu para o Canadá, passou uns anos nos Estados Unidos, mas antes de embarcar garantiu que, a 1 de Julho de 1997, estaria em Hong Kong. A promessa, feita ao seu grupo de amigos, foi cumprida. No momento em que nascia a primeira das duas regiões administrativas especiais da China, Larry So estava em Hong Kong, a assistir às cerimónias pela televisão, em casa de um amigo. “Chovia muito”, recorda. “Estávamos todos muito entusiasmados. Chris Patten [o ultimo Governador de Hong Kong] estava emocionado, com lágrimas nos olhos”, conta. Foi uma imagem que o marcou. Assim como “ver a polícia a mudar os distintivos, substituir a coroa pelo logótipo da região administrativa especial”. Foi uma noite em que se falou muito. O futuro era uma incerteza. “Havia muita especulação. Entre os meus amigos, alguns tinham passaporte do Canadá e do Reino Unido. Todos decidiram ficar por algum tempo, para ver o que ia acontecer”, explica Larry So. O que aconteceu não correspondeu às expectativas da generalidade. Nascido e criado em Hong Kong, o académico da área dos Serviços Sociais acabou por partir mais uma vez, em 2002, mas para um destino mais próximo: Macau. É por cá que tem estado desde então, sempre atento ao outro lado do Delta.
Hoje Macau China / Ásia MancheteHong Kong, 20 anos | Aumentam pedidos de passaportes britânicos [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á cada vez mais residentes de Hong Kong a tentarem assegurar passaportes estrangeiros como garantia para o futuro, conta a Reuters. São pessoas que temem o aumento dos conflitos sociais ou uma rápida erosão das liberdades. A agência combinou dados oficiais, informações de fontes diplomáticas e testemunhos de vários residentes para fazer aquilo que diz ser “o retrato de uma ansiedade crescente em relação ao futuro”. Sobretudo entre a nova geração, a influência cada vez maior de Pequim é encarada como uma sombra. A procura de passaportes estrangeiros cresceu a partir do momento em que a sociedade se fragmentou, na sequência do movimento Occupy de 2014. O facto de haver quem peça a independência – uma linha vermelha que o Governo Central não deixa pisar – contribuiu para o aumento dos receios, assim como o episódio do desaparecimento de vários editores e livreiros de Hong Kong. “Em 2047, acaba o período da transição e não sabemos o que irá acontecer. Estou a preparar-me para o pior”, conta Dennis Ngan, um jovem de 25 anos. À semelhança de vários amigos, vai renovar o seu BN(O) – o passaporte britânico especial dado aos permanentes residentes antes de 1997. No ano passado, foram emitidos mais de 37.500 documentos deste género, um aumento de 44 por cento em relação a 2015 e o número mais elevado da última década. O BN(O) não dá direito à residência no Reino Unido, mas os seus titulares podem permanecer seis meses e têm garantida protecção consular britânica. As autoridades do Reino Unido não forneceram à Reuters dados sobre os passaportes emitidos este ano, nem o número de pessoas que pediram a cidadania. No entanto, fontes diplomáticas da agência garantiram que houve “uma corrida aos pedidos de cidadania”, um fenómeno que justificam com as preocupações sobre o futuro do território. Outras possibilidades Há quem prefira olhar para o Canadá: o número de residentes de Hong Kong com passaporte do país cresceu substancialmente entre 2005 e 2015. Também Taiwan é visto como uma possível saída. Só no ano passado, 1086 pessoas de Hong Kong passaram a ser residentes da ilha, o valor mais elevado da última década. Em 2015, o número de cidadãos da RAEHK que pediu residência permanente na Coreia do Sul foi sete vezes superior ao registado em 2007. Os vistos concedidos pelos Estados Unidos aumentaram 22 por cento de 2015 para 2016.
Hoje Macau China / Ásia MancheteHong Kong, 20 anos | Primeira geração pós-97 não se identifica com a China [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]asceu no ano da transferência de soberania. Chau Ho-oi tem hoje 20 anos e houve uma altura em que sentia um orgulho imenso em pertencer a um território que faz parte da Grande China. Em entrevista à Reuters, a jovem recorda um desses momentos: os Jogos Olímpicos de Pequim 2008, em que a selecção nacional conquistou 48 medalhas de ouro, mais do que qualquer outro país. Chan tinha 11 anos. “Achava que a China era óptima. Se me perguntassem, na altura, se me sentia chinesa, dizia imediatamente que sim”, conta. Nove anos depois, a forma como lida com o país modificou-se. E não é a única: a primeira geração pós-transferência está, cada vez mais, a virar as costas ao Continente. De acordo com um estudo da Universidade de Hong Kong publicado na semana passada, apenas 3,12 por cento dos 120 jovens entrevistados consideram ser “chineses”. Os inquiridos têm entre 18 e 29 anos. Há duas décadas, quando o estudo começou a ser feito, 31 por cento diziam ter um sentimento de pertença à China. A Reuters conversou com dez jovens nascidos em 1997. Todos eles, incluindo um migrante da China Continental a viver na antiga colónia britânica, afirmaram que se identificam como “Hong Kongers”. E acrescentaram que a lealdade que sentem é para com a cidade. Para esta forma de estar contribuíram em muito vários acontecimentos percepcionados pelos residentes como manobras de Pequim para controlar o território. Em 2012, o então adolescente de 15 anos Joshua Wong arrastou milhares de pessoas para as ruas em protesto contra um novo currículo nacional obrigatório, entendido como uma “lavagem cerebral” aos estudantes, que tinha como objectivo promover o patriotismo. O currículo acabou por ser engavetado. Dois anos depois, aconteceu o movimento “Occupy”, mais uma vez com Joshua Wong ao leme. Foram 79 dias de protestos nas ruas numa tentativa – falhada – de pressionar Pequim a autorizar o sufrágio directo universal para a eleição do Chefe do Executivo. O desaparecimento de vários editores de Hong Kong e os esforços de Pequim para que dois jovens deputados eleitos, ambos pró-independentistas, fossem afastados do Conselho Legislativo também abalaram a confiança no princípio “Um país, dois sistemas”. O medo invisível Vinte anos depois da transferência de soberania, as perspectivas não são animadoras. A estudante Candy Lau tem receio de que a vida em Hong Kong seja cada vez mais controlada. A jovem teme que “a vigilância massiva da China Continental” chegue a Hong Kong, que deixará de ser “uma cidade segura”. “É um medo invisível”, diz. Há cada vez mais jovens a lutarem pela autonomia do território e, nos últimos anos, surgiu uma palavra nova no léxico político local: a independência, ideia que é, obviamente, afastada por Pequim com veemência. No mês passado, o número três da hierarquia chinesa, Zhang Dejiang, responsável pelos assuntos de Hong Kong, vincou que é necessário “reforçar a educação nacional junto da juventude de Hong Kong e desenvolver conceitos correctos acerca do país desde tenra idade”, para que a população mais nova possa “amar a pátria”. Carrie Lam, que toma amanhã posse como Chefe do Executivo, não perdeu tempo: em declarações à Agência Xinhua, prometeu que vai cultivar o conceito “Eu sou chinês” desde as creches. A agência oficial chinesa deu conta da participação de 120 mil jovens de Hong Kong em programas de intercâmbio com o Continente, no âmbito do 20.o aniversário da transferência. Para os entrevistados da Reuters, estes esforços podem ser contraproducentes. “Como é que o Governo não percebe que quanto mais obriga as pessoas de Hong Kong a amar a China, mais força dá à oposição?”, pergunta o jovem Jojo Wong. A importância da cultura Até mesmo os estudantes mais moderados, que dizem não ter qualquer posicionamento político – como é o caso de Felix Wu –, preferem identificar-se primeiro como sendo “Hong Kongers” e só depois fazem referência ao facto de serem da etnia Han. “A China é um mercado muito grande e Hong Kong tem necessidade de se integrar neste mercado”, afirma Wu. “Mas politicamente prometeram que nada iria mudar durante 50 anos. Acho que estão a faltar um pouco à palavra.” Ludovic Chan, um estudante de Gestão que quer ser funcionário público, também diz ser um “Hong Konger”, mas não vê como é que o seu sentimento de pertença conflitua com o facto de ser chinês. “As duas culturas diferentes podem coexistir. Não deviam estar sempre a dizer que Hong Kong e a China têm de estar integrados. Mas os dois lados deviam tentar um entendimento mútuo.” Há estudantes do Continente a viverem na antiga colónia britânica que olham para a questão de uma forma mais optimista. “Vinte anos são apenas o início”, lança Yoshi Yue, a viver na RAEHK há três anos. “Irão lentamente desenvolver um sentimento de pertença. Vem da cultura, não da política.”
Hoje Macau China / Ásia MancheteHong Kong, 20 anos | Aproximação à China com impacto no modo de vida [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] historiador Jason Wordie considera que as maiores mudanças dos últimos 20 anos em Hong Kong estão relacionadas com o aumento de turistas e residentes da China continental. O fluxo de gente vinda do outro lado da fronteira teve um efeito quase transversal: o comércio passou a estar subordinado aos seus interesses, alterando a fisionomia de grandes partes da cidade, e o excesso de gente em quase todos os espaços públicos gerou uma tensão que explica, pelo menos em parte, a contestação política actual. “Há 150 mil pessoas por dia a vir da China. Desde a transferência, mais de um milhão passou a residir em Hong Kong”, salienta o britânico, a viver na cidade há três décadas. Dados oficiais indicam que dos 7,3 milhões de habitantes de Hong Kong 2,2 milhões nasceram na China Continental, em Macau ou em Taiwan. Em 2016, mais de 56 milhões de turistas visitaram a cidade, a maioria da China. “Há 20 anos não havia o fluxo de turismo da China. Em algumas zonas vemos que o comércio mudou. Locais onde originalmente as pessoas comuns viviam, tornaram-se áreas de comércio para os ‘mainlanders’. Sítios que costumavam ser cafés, bancas de jornais, agora vendem cosméticos ou produtos de leite ou alguma coisa que os chineses querem”, aponta. Isto veio alterar o ambiente de vastas partes da cidade, onde “é preciso andar muito para se encontrar uma papelaria”. Segundo Wordie, há um sentimento de que a cidade foi, de alguma forma, sequestrada. O historiador lembra um protesto numa zona pacata, Yuen Long, que considerou compreensível, perante o cenário de fim-de-semana, em que “as pessoas comuns não conseguem atravessar a rua porque toda aquela gente está lá, com malas de viagem, a comprar coisas”. O mesmo se passa na piscina pública, onde grupos turísticos terminam as visitas, e subitamente “estão lá mais 300 pessoas”. “Os residentes sentem: Esta é a minha cidade, é o meu dia de folga e não consigo entrar num café, ir ao cinema”, explica. Wordie destaca que o volume chama a atenção para a origem, que noutra situação não seria problemática. “As pessoas sentem-se pressionadas. Além disso, os que vêm de fora têm um nível cultural diferente e há choques. Quando subitamente são 18h e o metro está a abarrotar, há pessoas a empurrar… Isso enfatiza a diferença. Quando as pessoas são fisicamente confrontadas com outras faz com que digam: Nós não somos como eles”, comenta. O número de visitantes da China começou a aumentar em 2003, depois de serem lançadas medidas para facilitar a entrada, após um surto de pneumonia atípica. No entanto, foi a partir de 2008 que “os números aceleraram muito” e isso deu “um grande empurrão à situação política”, de grande contestação. A presença dos chamados ‘mainlanders’ aliou-se se a outros factores que fazem com que hoje Hong Kong seja “mais como a China”. “Ouve-se mais mandarim, o Governo parece-se mais com o da China, é mais burocrático”, exemplifica. O valor do antigo No topo das cidades mais caras do mundo, Hong Kong esticou as pernas nas últimas duas décadas: tem um novo aeroporto, os aterros permitiram-lhe crescer, tem novas pontes, mais linhas de metro, mais construção em altura. Mas este ímpeto de modernização gerou a vontade de proteger as primeiras vítimas do desenvolvimento desenfreado, os edifícios. “Há uma lojinha em processo de ser preservada, tem 130 anos, uma arquitectura interessante, é uma sobrevivente, mas ouvindo alguns dos activistas até parece que é o Coliseu de Roma”, ironiza o autor de três livros sobre a história de Hong Kong, admitindo que esse tipo de movimentação “é sinal que as pessoas sentem que tudo está a mudar e têm de se agarrar a algo”. “As pessoas precisam de alguns edifícios velhos”, que carregam a memória e a identidade do espaço. Há 114 edifícios protegidos em Hong Kong (considerados monumentos) e outros mil classificados como tendo algum valor histórico. No entanto, nem todos os imóveis com valor estão nas mãos do Governo e os elevadíssimos preços fazem com que não seja viável a aquisição dos que estão na mão de privados. “O promotor imobiliário vai dizer ‘Isto não é histórico, é só velho e posso ganhar dez mil milhões de dólares [de Hong Kong] com ele’”, aponta Wordie. O historiador, que organiza passeios históricos pela cidade orientados para residentes, entende que entre 2003 e 2014 “gerou-se uma verdadeira consciencialização em Hong Kong sobre questões de património, ambientais, de igualdade, por melhores políticas sociais”. “As pessoas sentiam-se com poder”, principalmente depois de meio milhão de ter saído à rua, para rejeitar a adopção da legislação sobre o Artigo 23.o – e ter conseguido. “Nos últimos cinco anos isso acabou.” “As pessoas olham em volta e dizem: ‘Qual é o objectivo? Não está a funcionar, ninguém está a ouvir, estou a perder tempo’. Muitos juntaram as peças e perceberam que vai tudo dar à política”, afirma.
Isabel Castro China / ÁsiaHong Kong, 20 anos | Êxodo de expatriados nos sectores bancário e financeiro [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ai um, entra outro. Sai um estrangeiro, entra um oriundo da China Continental. É este o fenómeno que se tem vindo a verificar nos sectores bancário e financeiro de Hong Kong, uma movimentação que chamou a atenção das agências internacionais de notícias e que pode resultar na descaracterização de uma das principais praças de negócios do mundo. “Houve um influxo de profissionais da China em Hong Kong, mais visível no sector financeiro”, explica ao HM Diana Pires, uma gestora luso-britânica que trabalha na RAEHK, no sector financeiro. “Olhando para trás, há apenas dois anos os expatriados teriam várias ofertas de emprego a qualquer momento. Isso mudou drasticamente.” De acordo com dados oficiais, o aumento de pessoas oriundas do Continente regista-se sobretudo em bancos de investimento, onde 80 por cento dos funcionários são oriundos do outro lado da fronteira. Um dos gestores do BOCOM International contou à Reuters por que decidiu trocar a capital pela região administrativa especial: “O ambiente é muito melhor do que o de Pequim, onde costumava trabalhar”. Hong Hao vive em Hong Kong há já cinco anos. “A comida é boa e os impostos também.” Diana Pires confirma a impressão transmitida por Hong Hao. “Os profissionais da China são cada vez mais atraídos pelo estilo de vida de Hong Kong”, diz. Esta procura pela região é “impulsionada principalmente pelo sistema fiscal atractivo que aqui temos”. Os impostos na RAEHK variam entre 15 e 17 por cento; no Continente podem chegar aos 45 por cento do valor do vencimento. O mercado da língua As ofertas públicas iniciais (IPO, na sigla inglesa) chinesas dominam o mercado de Hong Kong. No ano passado, era o maior do mundo em termos de IPO, com 80 por cento das novas empresas listadas a surgirem da China Continental. Os serviços financeiros representam neste momento 18 por cento da economia do território, uma subida significativa quando comparando com os 10,4 por cento de 1997. Evan Zhang, um jovem de 26 anos natural da província de Guangdong, é uma das novas contratações da CITIC Securities International e olha para o aumento do capital chinês em Hong Kong como uma oportunidade pessoal, por poder “desempenhar um papel” nestas transacções. Num mundo de negócios cada vez mais em língua chinesa, os profissionais do Continente têm uma vantagem em relação a muitos expatriados: o domínio do idioma. “Não estamos a ver apenas um aumento significativo nos executivos da China Continental. O conjunto de habilidades também mudou. As línguas tornaram-se um requisito, seja cantonês ou mandarim, ou então ambos os idiomas”, aponta Diana Pires. “É uma habilidade que muitos expatriados não têm.” O aumento dos negócios da China está a ser acompanhado por algum desinvestimento de multinacionais com sede no Ocidente, que procuram deslocar os seus serviços para cidades menos dispendiosas. Numa cidade com um custo de vida elevado, as condições que se oferecem aos expatriados têm vindo a cair. O valor médio dos salários oferecidos a gestores com alguns anos de carreira diminuiu dois por cento nos últimos cinco anos; os benefícios desceram cinco por cento, apontam as consultoras internacionais. “Há uma enorme mudança no panorama de expatriados e naquilo que lhes é oferecido para trabalharem aqui”, constatou à Reuters a gestora Christine Davis, a viver em Hong Kong desde 2011, depois de ter residido na cidade entre 1999 e 2001. Diana Pires destaca que a facilidade em se contratar profissionais na China faz com que as empresas invistam menos no recrutamento de estrangeiros. “É por isso que existe um êxodo de expatriados. Os pacotes não são tão atraentes e a concorrência da China é feroz.” No sector bancário, os jovens chineses ganham entre menos 20 a 30 por cento do que os colegas expatriados. Na lista de benefícios não constam, por exemplo, a habitação e as propinas das escolas dos filhos. Outros impactos A Reuters assinala que esta mudança demográfica na indústria financeira tem reflexos na economia local. Os restaurantes de comida chinesa congratulam-se com os resultados obtidos. O mesmo acontece com as empresas que têm apartamentos prontos a arrendar a executivos sem famílias e os centros que oferecem cursos de Inglês. Há ainda um aumento de Audis nas estradas, uma vez que se trata de uma marca de carros muito popular entre os chineses. Esta alteração na demografia tem impacto junto de restaurantes ocidentais de certas zonas da cidade e, noutra perspectiva, poderá significar uma mudança no modo como Hong Kong tem vivido e se tem apresentado ao mundo. “Sem ocidentais em Hong Kong ou chineses ocidentalizados, os chineses [do Continente] têm pouca visão sobre a condução dos negócios ocidentais”, afirma Diana Pires. “E esse foi essencialmente um dos muitos papéis de Hong Kong.”
Hoje Macau PolíticaAntónio Lobo Antunes – “Juro que não vou esquecer” “Juro que não vou esquecer” [dropcap]N[/dropcap]unca vou esquecer o olhar da rapariga que espera o tratamento de radioterapia. Sentada numa das cadeiras de plástico, o homem que a acompanha (o pai?) coloca-lhe uma almofada na nuca para ela encostar a cabeça à parede e assim fica, magra, imóvel, calada, com os olhos a gritarem o que ninguém ouve. O homem tira o lenço do bolso, passa-lho devagarinho na cara e os seus olhos gritam também: na sala onde tanta gente aguarda lá fora, algumas vindas de longe, de terras do Alentejo quase na fronteira, desembarcam pessoas de maca, um senhor idoso de fato completo, botão do colarinho abotoado, sem gravata, a mesma nódoa sempre na manga (a nódoa grita) caminhando devagarinho para o balcão numa dignidade de príncipe. É pobre, vê-se que é pobre, não existe um único osso que não lhe fure a pele, entende-se o sofrimento nos traços impassíveis e não grita com os olhos porque não tem olhos já, tem no lugar deles a mesma pele esverdeada que os ossos furam, a mão esquelética consegue puxar da algibeira o cartãozinho onde lhe marcam as sessões. Mulheres com lenços a cobrirem a ausência de cabelo, outras de perucas patéticas que não ligam com as feições nem aderem ao crânio, lhes flutuam em torno. E a imensa solidão de todos eles. À entrada do corredor, no espaço entre duas portas, uma africana de óculos chora sem ruído, metendo os polegares por baixo das lentes a secar as pálpebras. Chora sem ruído e sem um músculo que estremeça sequer, apagando-se a si mesma com o verniz estalado das unhas. Um sujeito de pé com um saco de plástico. Um outro a arrastar uma das pernas. A chuva incessante contra as janelas enormes. Plantas em vasos. Revistas que as pessoas não lêem. E eu, cheio de vergonha de ser eu, a pensar faltam-me duas sessões, eles morrem e eu fico vivo, graças a Deus sofri de uma coisa sem importância, estou aqui para um tratamento preventivo, dizem-me que me curei, fico vivo, daqui a pouco tudo isto não passou de um pesadelo, uma irrealidade, fico vivo, dentro de mim estas pessoas a doerem-me tanto, fico vivo como, a rapariga de cabeça encostada à parede não vê ninguém, os outros (nós) somos transparentes para ela, toda no interior do seu tormento, o homem poisa-lhe os dedos e ela não sente os dedos, fico vivo de que maneira, como, mudei tanto nestes últimos meses, os meus companheiros dão-me vontade de ajoelhar, não os mereço da mesma forma que eles não merecem isto, que estúpido perguntar – Porquê ? que estúpido indignar-me, zango-me com Deus, comigo, com a vida que tive, como pude ser tão desatento, tão arrogante, tão parvo, como pude queixar-me, gostava de ter os joelhos enormes de modo que coubessem no meu colo em vez das cadeiras de plástico (não são de plástico, outra coisa qualquer, mais confortável, que não tenho tempo agora de pensar no que é) isto que escrevo sai de mim como um vómito, tão depressa que a esferográfica não acompanha, perco imensas palavras, frases inteiras, emoções que me fogem, isto que escrevo não chega aos calcanhares do senhor idoso de fato completo (aos quadradinhos, já gasto, já bom para deitar fora) botão de colarinho abotoado, sem gravata e no entanto a gravata está lá, a gravata está lá, o que interessa a nódoa da manga (a nódoa grita) o que interessa que caminhe devagar para o balcão mal podendo consigo, doem-me os dedos da força que faço para escrever, não existe um único osso que não lhe fure a pele, entende-se o sofrimento nos traços impassíveis e não grita com os olhos porque não tem olhos já, tem no lugar deles a mesma pele esverdeada que os ossos furam e me observa por instantes, diga – António senhor, por favor diga – António chamo-me António, não tem importância nenhuma mas chamo-me António e não posso fazer nada por si, não posso fazer nada por ninguém, chamo-me António e não lhe chego aos calcanhares, sou mais pobre que você, falta-me a sua força e coragem, pegue-me antes você ao colo e garanta-me que não morre, não pode morrer, no caso de você morrer eu No caso de você e da rapariga da almofada morrerem vou ter vergonha de estar vivo. António Lobo Antunes
António Saraiva VozesO efeito de estufa [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] “efeito de estufa” uma expressão muito em voga – consiste no aumento, ainda que até à data reduzido – desde 1975 cerca de 0,15 º C por década- da temperatura média da Terra. Tal subida, embora ligeira como dissemos, é inegável, pois resulta da média de milhares de medidas, em variados pontos do globo. Esta subida acompanha a subida constante da percentagem de anidrido carbónico na atmosfera, tendo-se assim relacionado as duas variáveis (há ainda outros gases que provocam o efeito de estufa, nomeadamente o metano (um gás combustível e explosivo, produzido nos campos de arroz, nas vacarias e nos aterros sanitários), os óxidos de azoto (produzidos pelos veículos), e os carbonetos halogenados (CFC e HCFC). Estes gases, juntamente com as poeiras, formam como que um manto que cobre a terra, impedindo a dissipação do calor, e provocando assim o aquecimento da Terra. A subida das temperaturas tem-se traduzido no degelo de gelos polares, o que por sua vez provoca uma subida das águas do mar (10 a 20 cm no século XX); a isto há que somar a expansão das águas devido ao aumento de temperatura, o, que, a continuar, fará com que algumas terras baixas fiquem alagadas; degelo das partes menos frias das montanhas geladas, subindo assim em altitude a zona ocupada pelas árvores; florações mais precoces alguns dias; da mesma forma antecipação das migrações de algumas aves; etc. As subidas de temperatura causarão maior evaporação – assim o ar será mais húmido e haverá maior precipitação (aumento de 7% da precipitação por cada grau Centígrado de aumento da temperatura); embora numas regiões passará a chover menos e noutras mais; e têm sido apontadas como causadoras de um maior número de tufões, tornados e cheias. A nível dos oceanos, haverá mais anidrido carbónico a dissolver-se na água, que ficará mais ácida; esta acidez afecta a fixação de calcário, ou seja, prejudica os corais, os bivalves (como as ameijoas), e os animais de esqueleto externo (lagostas, camarão…). Quanto ao impacto nas plantas poderá ser positivo – pois com mais calor e mais anidrido carbónico as plantas crescerão mais (já se usa a técnica de aumentar a percentagem de anidrido carbónico em estufas) – ou negativo, pois algumas plantas, nomeadamente as de longo ciclo vegetativo (árvores e arbustos) e pouca ”margem de tolerância” quanto à temperatura (ou também a outros factores, pois, como vimos, haverá alterações na quantidade de chuvas) poder-se-ão ver “fora” do seu clima preferido, e assim definhar, ou mesmo morrer. O acordo de Paris Cientes de tais problemas numerosos responsáveis das nações começaram a discutir a melhor forma de o enfrentar- do que resultou, após muitos avanços e recuos (1), o acordo de Paris. Este acordo visa limitar as emissões de anidrido carbónico, de forma a manter o aumento da temperatura média mundial em limites “aceitáveis” – abaixo dos 2 º C (preferivelmente a 1,5 º C) em relação aos valores da época pré-industrial. Embora tal acordo seja mais teórico do que efectivo – os Estados apenas têm que comunicar as suas emissões, não estando previsto qualquer mecanismo de ”punição ” para quem não cumpra, nem de ”recompensa” para os “bons alunos” (2), este acordo tem duas virtudes que importa realçar: em primeiro lugar assume o medo da humanidade face à alteração, por acção humana, de algo muito básico – visto por muitos como pertencendo à esfera do divino, o clima – assim como o medo do fogo. Em segundo lugar por ter sido um acordo que – num mundo tão dividido –- envolveu praticamente todos os Estados (talvez pelo medo a que acima nos referimos). Em todo o caso esse acordo – e aí a porca começa a “torcer o rabo” – considera que certos países já se desenvolveram o suficiente, tendo que diminuir os seus gastos energéticos, enquanto outros, menos desenvolvidos, têm direito a aumentar as suas emissões de anidrido carbónico. Mas quem deseja de boa vontade ver coartados os seus ”direitos”? Um, Dez, Cem Quando era miúdo, e andava na Escola Primária, escrevíamos numa lousa (pedra negra de xisto) com um lápis também de lousa. Uma verdadeira receita ecológica, pois apagava-se com um pano e voltava-se a escrever na mesma lousa. Havia ainda uns cadernitos, de papel de má qualidade, nos quais se escrevia com uma caneta de aparo, que era preciso molhar na tinta ao fim de cada linha. E havia alguns privilegiados que até tinham um lápis! Já em Macau, no início dos anos 90, as minhas filhas pediram-me lápis. Sabendo que havia muitos lápis em casa dediquei uma hora a junta-los numa gaveta: havia cerca de 30! Trinta lápis! Número ridículo quando comparado com as caixas cheias de lápis, uns ainda por afiar, outros de bico partido, não poucos já secos – que, vinte anos mais tarde, encontrei em caixas no quarto de uma das minhas netas. E assim vai o Mundo. Cada criança (adulto) “rica” tem hoje quilos de lápis, de brinquedos, de sapatos e sapatilhas…de facto calcula-se que hoje cada homem tenha às suas ordens cerca de 100 escravos mecânicos (número que, evidentemente, varia de país para país) …que .nos transportam de Macau para Portugal em 24 horas, nos levam aos ombros quando moramos no 20º andar, nos cozinham a comida sem fazer fumo, nos fazem ter temperaturas agradáveis em casa mesmo no Verão, nos possibilitam ter os tais 100 ou duzentos lápis, etc., etc., etc.. E vejamos: quem está disposto a dispensar o trabalho que todas essas máquinas nos fazem? Vamos por um exemplo caseiro – quem dá o sábado livre às empregadas filipinas que tem em casa? E será que não sabemos o que come essa multidão de escravos mecânicos? Matérias primas arrancadas da Terra e Energia. E dessa Energia 80%, ou mesmo mais, provem de “combustíveis fósseis” (restos de antigas florestas) – ou seja do petróleo, do carvão, e do gás natural. Que ao serem queimados produzem anidrido carbónico – o tal gás que provoca o “efeito de estufa”. E note-se que mesmo energias aparentemente “limpas” como a electricidade, foram geradas muitas vezes pela queima destes combustíveis (3). Quanto a outros gases de efeito de estufa, nomeadamente o metano, o problema é semelhante – se alguns podem dispensar o bife – quem dispensará o arroz? E assim, malgrado as numerosas declarações a favor da ecologia – todos podemos constatar que o tamanho dos automóveis aumentou (tendo não poucos as dimensões dos antigos carros funerários), o nível de iluminação das lojas aumentou, as lojas aboliram as portas para melhor chamarem clientes (aumentando-se assim os gastos energéticos para obter um ambiente fresco)… os prédios frente a Macau, no Zuhai, brilham toda a noite em festivais de cores e de formas… Alargando um pouco a discussão, todos os políticos baseiam o seu discurso em “mais bens, mais progresso”. Os investidores procuram o máximo lucro, os próprios atletas procuram bater records. Em jeito de conclusão O Acordo de Paris é mais um processo de intenções que a solução do problema –embora, como diz a minha mulher, “quem me dá um osso não quer que eu morra”. E somos NÓS que provocamos o efeito de estufa, e não políticos mais ou menos simpáticos. E embora não seja a única ameaça que pesa sobre a Humanidade – entre outras poderemos mencionar a bomba atómica – a solução deste problema – a menos que se descubram novos e revolucionários meios de obter energia, ou de captar o anidrido carbónico – implicará as mais profundas mudanças na vida dos cidadãos.
João Luz Manchete SociedadePonte em Y | Preocupações de Hong Kong não são partilhadas por Macau A ligação entre Hong Kong-Zhuhai-Macau está quase completa, criando receios na outra região de administração especial, em particular entre os movimentos pró-democratas. Por cá, a questão é vista mais da perspectiva económica [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] assunto não é novo, mas tem muitos contornos políticos, principalmente em Hong Kong. À medida que a construção da maior ponte do mundo chega ao fim, os receios trazidos pela inevitável integração lançam gasolina na fogueira das relações já tensas entre o território e Pequim. Com a celebração dos 20 anos da transferência de soberania de Hong Kong, e a visita de Xi Jinping ao território, as velhas preocupações do Governo colonial britânico são hoje evocadas pelas forças pró-democratas da região, que temem que o projecto da ponte ponha em causa a política “Um país, dois sistemas”. “Dentro de 10 a 15 anos, quando estas infra-estruturas estiverem concluídas, Hong Kong será visto apenas como parte da China devido à ausência de uma fronteira clara.” As palavras são de Kwok Ka-ki, deputado pró-democrata de Hong Kong, em declarações à agência Reuters. O tribuno alarga a sua desconfiança também à ligação ferroviária com o Interior da China. Por cá, Au Kam San considera que “a ponte não causa uma grande influência em Macau”. “Não penso que as fronteiras entre as três regiões fiquem menos visíveis”, declara. O deputado à Assembleia Legislativa (AL) não considera que a infra-estrutura coloque em causa a política “Um país, dois sistemas”. O pró-democrata local recorda que a ponte da Baía de Shenzhen, que causou muitos protestos do outro lado do Delta, pode levantar problemas mais complicados em termos políticos. Com o arranque desse transporte público prevê-se que polícias do Interior da China possam exercer acções de fiscalização junto dos passageiros oriundos de Shenzhen em território de Hong Kong. Uma questão diferente, que foi considerada na outra região de administração especial como o aperto de controlo de Pequim. Em Macau, Au Kam San entende que, como já existe a Ponte Flor de Lótus, com ligação à ilha de Hengqin, que não prejudicou o princípio “Um país, dois sistemas”, acrescentando que não será a nova ponte a causar erosão à política estatuída nas declarações conjuntas. Margens históricas A ponte é um projecto que tem sido discutido há décadas. Em 1983, o histórico empresário de Hong Kong Gordon Wu lançou a ideia para a construção da infra-estrutura. Esta seria a resposta rodoviária ao crescendo de trocas comerciais entre a antiga colónia britânica e a cidade de Shenzhen, bem antes da transferência de soberania. Albano Martins entende os receios de integração por parte de um sector de Hong Kong mais activo politicamente, “porque os sistemas são, de facto, muito diferentes”. Porém, o economista entende que “a China irá cumprir com o acordo firmado na assinatura da Declaração Conjunta e terá de manter o segundo sistema a funcionar até se esgotarem os 50 anos”. O analista vê com naturalidade os desejos de aceleração nas forças mais agressivamente pró-Pequim, a fim que a integração se faça progressivamente. Por exemplo, os casos de políticos pró-democratas a serem barrados nas fronteiras de Macau e Hong Kong são, na óptica de Albano Martins, “uma violação ao segundo sistema”. Ou seja, uma aproximação à forma como se faz política no Interior da China. Porém, o economista não considera que a ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau possa, por si só, ser tão preponderante do ponto de vista da integração política. O membro do Partido Comunista Chinês e director da Autoridade da Ponte, Wei Dongqing, encara o projecto como uma forma de ligação para promover a unidade, tanto física, como mental. “É uma ligação psicológica, ainda assim estamos confiantes num futuro com um mercado único, um povo único. Esse é o sonho”, disse o alto funcionário à Reuters. É precisamente este sonho que é visto como um pesadelo para os pró-democratas de Hong Kong que encaram a construção como uma aproximação do território à China comunista. Travessia financeira “Acho que facilitará, em muito, o fluxo de mercadorias e serviços entre os três sítios que já têm uma enorme tendência de integração económica”, comenta Wang Jianwei, académico da Universidade de Macau, especialista em política externa chinesa. O professor da Faculdade de Ciências Sociais olha para a situação como uma questão de inevitabilidade económica. “Macau e Hong Kong não podem passar ao lado da possibilidade de se conectarem com uma região e mercado maiores”, comenta. Wang Jianwei vê a integração como uma hipótese de desenvolvimento económico com grande potencial para a criação de emprego. Ficar de fora do projecto de construção que está em curso seria uma decisão com consequências maiores do que o preço político a pagar. Porém, o académico não acha que “o Governo Central veja a construção da ponte como uma forma de se imiscuir politicamente em Hong Kong e Macau”. Por outro lado, Albano Martins considera que houve uma ilusão criada pela forma como a China se abriu economicamente. “Com a aproximação ao segundo sistema do ponto de vista da adesão à economia de mercado, houve quem ficasse com a ideia de que o primeiro sistema poderia ser absorvido pelo segundo”, comenta. Porém, essa situação é contrária à “própria dinâmica de manutenção do sistema de partido único”. O economista entende as preocupações da população de Hong Kong, sobretudo das famílias que “viveram os dramas do êxodo de Xangai depois da conquista do poder pelo Partido Comunista Chinês”. Albano Martins acrescenta ainda que este será um problema que terá sempre de ser enfrentado pelos descendentes de uma “elite empreendedora de Xangai, que ajudou muito à criação do tecido económico de Hong Kong e que tem um trauma com a aproximação de Pequim”. Reverso da moeda No meio de tanta celeuma, o facto é que o controlo fronteiriço se mantém. Além disso, há uma realidade que parece estar a escapar aos activistas pró-democratas de Hong Kong: a ponte também vai para Zhuhai. “A aproximação entre as três cidades incrementa as comunicações e os transportes, mas também a compreensão entre as três regiões”, projecta Wang Jianwei. O professor da Universidade de Macau espera que a ponte encoraje ainda mais o incremento do turismo do Continente nas regiões administrativas especiais. Wang Jianwei vê a infra-estrutura como a forma de implementar o ciclo de vida de um dia, em que “uma pessoa possa viver em Zhuhai, trabalhar em Hong Kong e regressar no mesmo dia”. O académico espera ainda que a ponte contribua para “reduzir as suspeitas e mau ambiente entre as pessoas”. Como Macau e Hong Kong têm um estilo de vida e cultura diferentes do Interior da China, isso também será um “desafio para os ‘mainlanders’ que serão sujeitos a um espírito mais liberal”. O facto é que, economicamente, ambas as regiões administrativas especiais dependem da China, a segunda maior economia mundial, como seria inevitável. Nesse aspecto, Albano Martins explica que “o cerco económico está feito”. A restante integração política é a grande questão, ainda envolta em grandes dúvidas, uma vez que os três territórios têm jurisdições e culturas políticas bem distintas. O economista não duvida de que “a integração não se vai fazer sem alguns danos colaterais para as populações”. O grau desses danos está por apurar, assim como a direcção das influências culturais num sentido bilateral. Para que o futuro se clarifique “é preciso ver o que acontece com a renovação de gerações”. Um dos desafios é saber como a liberdade de expressão será tratada, feita a total integração política, assim como o respeito pelos direitos humanos. Mas também do lado de Pequim, até que ponto as novas gerações, com maior fluidez de movimentos e possibilidades económicas, irão encarar e construir o futuro da China.