Cliché

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ermitam que me apresente: A iniciativa insere-se na construção da Grande Baía, tendo em conta a interligação entre as municipalidades do Pan-Delta do Rio das Pérolas e partindo da plataforma institucional nascida da política “Uma Faixa, uma Rota”, apenas possível graças à soberana e quimérica filosofia “Um País, Dois Sistemas”. Para tal, é necessário prosseguir a edificação da Cidade Inteligente, recorrendo ao precioso auxílio da eterna busca de talentos locais no contexto da consagração do grande Centro Galáctico do Turismo e Lazer. Afinal de contas, esta é a Cidade Criativa onde impera Amor, Paz e Integração Cultural, a consagração da harmonia pela via da máxima “Macau, o Lar Feliz e Sadio”, um conceito inspirado na “família” Manson.

Esqueçam a diabolização dos TNRs, a Internet que faz lembrar tempos jurássicos do Imperador Napster, o taxista que se transforma no Hulk ao ouvir uma palavra em inglês, as fronteiras que encerram cada um dos três pontos da Extraordinária Baía e a faixa que apenas serve para privatizações longe da plataforma giratória. Não liguem aos dois sistemas que emulam a história de Caim e Abel, o centro internacional que vive exclusivamente à sombra periférica do vizinho próximo, ou a diversificação económica que tenta esconder a essencial homogeneidade da mesa de jogo.

No Reino do Cliché a realidade é uma questão de perspectiva. Aqui o significado encontrou o maior e mais irresistível sono no fundo do Rio das Pérolas, jaz nas profundezas, vazio de conteúdo, intencionalmente desenhado para ser impossível de interpretar.

Sou o lugar-comum, a materialização da linguagem vaga, oca, que enche as bocas dos políticos que nada de valor têm para dizer. Sou o grande Kalahari de definições, a triste aridez onde a vida não tem como prosperar, sou o diabólico marketing linguístico que reduz tudo a pó. Quando me entoam empresto vã solenidade aos que se socorrem de mim, atribuo ares de cerimónia protocolar à aniquilação do esclarecimento.

Todos os dias assassino a comunicação, nada germina em meu redor, nada resta depois de salgar o solo onde se deviam cultivar viçosos argumentos. Sou a vitória do niilismo, sou a inexistência que atormenta filósofos, poetas, bêbedos sem mais um centavo no bolso para transformar liquidez em líquido. Sou o nada mais palavroso de que há memória, o tormento conceptual, a morte trazida por bombas de palavras nucleares, vectores de trajectória descendente em direcção ao alvo entendimento. Sou a anti-resposta, a inconsequência, trago o crepúsculo da resolução, tenho orgulho em ser o maior inimigo da acção, o mais eloquente fardo de palha.

Por mim nada passa porque sou indefinível, uma abstracção de bloqueio para que nada mude, sou inércia e letargia oratória. Sustento o conservadorismo de quem se senta nas cadeiras do poder com jargões vazios, actuo como uma muralha de pomposa protecção verbal erguida entre governantes e governados. Enunciem-me como uma oração e proteger-vos-ei do claro e esclarecedor debate com uma mordaça de fogo.

Do alto da minha torre de marfim proclamo o início do “Grande Bastião das Maravilhas”, uma política só alcançável uma vez concretizado o “Rumo para a Perfeição”. Em termos económicos devemos prosseguir a máxima “Um Cidadão, Um Maserati”, enquanto que na área da saúde deve ser dada prioridade ao objectivo “Alegre Caminho para a Imortalidade”.

Tudo prometo e pouco concretizo. Sou o chavão que faz correr vermelho sangue das sílabas, enquanto o excedente de significado se derrama em direcção ao esquecimento. A minha pena serviu para a linguística e a verdade assinarem um pacto suicida por se terem tornado obsoletas, um vestígio arqueológico de uma Era passada.

Sou a mão firme da linguagem que irrompe entre as nuvens e desce até nós ostentando um vigoroso dedo do meio erigido para quem procura resposta, resolução. Sou todo este rol de clichés, o orgulhoso assassino da razão.

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