Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau atribui ‘honoris causa’ a ex-governador Rocha Vieira

A Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau elogiou os “comentários muitos positivos” sobre a prática ‘Um País, Dois Sistemas’ do General, assim como o papel desempenhado para uma “transição pacífica”

 

A Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (MUST, na sigla em inglês) conferiu ao último governador do território durante a administração portuguesa, Vasco Rocha Vieira, o doutoramento ‘honoris causa’ em Ciência e Tecnologia. A informação foi adiantada ontem pela Agência Lusa.

A atribuição do grau ‘honoris causa’ foi feita através de uma cerimónia ‘online’ que celebrou o 22.º aniversário da MUST, e que decorreu a 25 de Março.

No comunicado, assinado pelo presidente da MUST, Joseph Hun-wei Lee, destaca-se que a contribuição do general Rocha Vieira, 127.º governador de Macau, na “devolução pacífica” do território à China “não pode ser negada”.

“Como governador de Macau, o primeiro objectivo do general Rocha Vieira foi a bem-sucedida e suave transferência de poder. Efectuou nove visitas à China onde trabalhou de perto com a República Popular da China, e através de discussões e negociações baseadas no objectivo partilhado de compreensão mútua”, acrescenta-se no texto.

O documento enumera ainda o contributo de Rocha Vieira para que as chamadas ‘Três Localizações’, nomeadamente a legislação, os funcionários públicos e do chinês como língua oficial, fossem cumpridas.

“Inquestionavelmente, as ‘Três Localizações’ ajudaram a colocar Macau na via da ‘continuidade e autonomia’ nas décadas que se seguiram”, é salientado.

Elogios pós-transição

O comunicado destaca igualmente o envolvimento de Rocha Vieira na “continuidade económica e autonomia” de Macau, nomeadamente a “modernização da economia e o contínuo progresso” do território.

“Os resultados do seu trabalho podem ser considerados em dois aspectos, designadamente a conclusão de vários projectos de infra-estruturas de larga escala com a União Europeia e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. O Aeroporto Internacional de Macau, considerado o projecto mais importante para assegurar a continuidade e a autonomia, levou anos de esforços para se tornar uma realidade”, foi detalhado.

No entanto, para a decisão de atribuir o grau de doutor honoris, conferido pelo empresário Liu Chak Wan, contribuiu também o facto de Rocha Vieira ter elogiado Macau e a China depois da transição. “Depois da transição de Macau para a China, o General Vasco Joaquim Rocha Vieira fez muitas visitas a Macau, durante as quais elogiou os novos desenvolvimentos de Macau depois do retorno, e fez comentários muito positivos sobre a prática bem-sucedida de ‘Um País, dois Sistemas’ em Macau”, foi revelado.

Pouco pacífico

Distinguido pela MUST em 2022, a verdade é que a saída de Rocha Vieira de Macau, em 1999, foi tudo menos pacífica, devido à criação da Fundação Jorge Álvares. A fundação foi criada a poucos dias da transferência e recebeu uma dotação de 50 milhões de patacas da Fundação para a Cooperação e Desenvolvimento (FCD), uma fundação pública de Macau.

Se em Portugal a questão causou um enorme mal-estar entre o General e o então Presidente da República Portuguesa, Jorge Sampaio, em Macau o cenário não foi diferente. Entre a revolta pública face ao montante e legalidade do subsídio, que teve o expoente máximo com um cartoon no jornal Ou Mun, em que Rocha Vieira aparecia a voar para Portugal com 50 milhões de patacas, houve ainda um diferendo entre o General e o “amigo” Edmund Ho, então Chefe do Executivo, que instaurou um processo de averiguação ao subsídio. A situação entre ambos só foi ultrapassada em 2009, aquando de uma visita de Rocha Vieira a Macau.

6 Abr 2022

EDP | Rocha Vieira de fora do Conselho Geral de Supervisão

O ex-Governador de Macau, Vasco Rocha Vieira, está fora da lista proposta pelos accionistas para o Conselho Geral e de Supervisão da EDP. Após dois mandatos, e de ter sido sugerido como independente pela Three Gorges, o General deixa a empresa

 

O antigo Governador de Macau, Vasco Rocha Vieira, vai deixar de fazer parte do Conselho Geral e de Supervisão da empresa Energias de Portugal (EDP). A decisão ainda não foi oficializada, mas o General não faz parte dos nomes para o triénio de 2021 a 2023 propostos pelos accionistas China Three Gorges e Oppidum Capital SL.

Segundo o documento enviado à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), o número de membros do órgão de supervisão da eléctrica portuguesa é reduzido de 21 para 16 membros. Vasco Rocha Vieira é excluído, assim como Maria Celeste Cardona, Ilídio Pinho e Jorge Braga de Macedo. A decisão vai ser votada pelos accionista da EDP a 14 de Abril, de acordo com a informação enviada à CMVM.

Vasco Rocha Vieira era um dos membros mais activos da comissão, com uma taxa de presença em reuniões sempre acima de 90 por cento, ao longo do ano passado. Em 19 reuniões plenárias da empresa, em 2020, apenas faltou a uma. No que diz respeito às comissões de que fazia parte dentro do órgão de supervisão, a Comissão de Vencimentos e a Comissão de Acompanhamento do Negócio nos Estados Unidos da América, num total de 14 reuniões, Rocha Vieira participou em todas.

Sugerido pela Three Gorges

Apesar de não ter ligações conhecidas ao mundo empresarial, o ex-Governador e ex-secretário Adjunto para as Obras Públicas e Comunicações do Governo de Macau, foi nomeado para o cargo de supervisor independente por sugestão da empresa estatal chinesa Three Gorges.

Em 2012, a proposta de Rocha Vieira, ligado ao Partido Social Democrata (PSD), gerou polémica partidária, com o Partido Socialista (PS) a acusar a escolha de ser puramente política. No entanto, Rocha Vieira sempre manteve que foi indicado por sugestão da empresa estatal chinesa Three Gorges.

Apesar de perder um emprego, Rocha Vieira não deverá sofrer impacto financeiro, porque tem uma reforma vitalícia de 13.607 euros, equivalente a 130 mil patacas, a mais alta paga pela Caixa Geral de Aposentações de Portugal. Parte deste pagamento está suspensa, devido ao montante que recebia na EDP até Dezembro do ano passado. No entanto, com a saída da eléctrica, a CGA deverá voltar a assumir a totalidade da pensão.

15 Mar 2021

Rocha Vieira: “Tive mais problemas com a parte portuguesa do que com a chinesa”

O último Governador português em Macau recorda que teve, durante as funções, mais problemas com a parte portuguesa do que com a chinesa, mas salientou que o “rumo” a definir para a transição contou com uma “grande compreensão” do poder de então em Portugal. Quanto ao futuro de Macau, Rocha Vieira espera que mantenha a sua identidade

[dropcap]T[/dropcap]ive mais problemas com a parte portuguesa do que com a parte chinesa (…) muitas vezes, por falta de percepção. Normalmente, as pessoas estão longe, em Lisboa – isso é uma coisa histórica, que não é só de agora – e acham que sabem melhor as soluções do que aqueles que estão em Macau”, afirmou Vasco Rocha Vieira, numa entrevista à Lusa a propósito do 20.º aniversário da transição da administração do território para a China.

Porém, assegurou que quando foi necessário definir “o rumo, os objectivos fundamentais das políticas para Macau, foram discutidos pelo Governo de Macau, em Lisboa, com quem deviam ser discutidos, com o Presidente da República e com o primeiro-ministro” e houve “sempre” sobre isso “uma grande compreensão por parte dos órgãos de soberania portugueses e uma grande prova de confiança em relação a quem estava no território”.

“Isso foi fundamental” para que todo o processo de transição de Macau para China “corresse bem”. Nos primeiros anos “em que era preciso saber o que é que se queria, marcar objectivos e ter confiança em quem lá estava (…) isso aconteceu”, sublinhou.

Quando questionado sobre a relação com o Presidente Jorge Sampaio, de quem são conhecidas algumas críticas a Rocha Vieira, o general limitou-se a dizer: “foi aquela que tinha de ser e que o Presidente da República entendia que devia ser”. “Nunca tive nas minhas funções problemas institucionais, porque nunca pessoalizei as coisas”, concluiu.

Da sua parte, enquanto governador de Macau, assegura que “houve sempre a assunção das responsabilidades”. “De acordo com o meu papel, as minhas funções e para aquilo que fui nomeado e quando se é assim não se tem problemas”, disse.

FOTO: Mário Cruz | LUSA

Rocha Vieira explicou que foi nomeado para o cargo de governador de Macau pelo Presidente Mário Soares, na altura em que o primeiro-ministro era o professor Cavaco Silva. “Quero dizer que [a relação] correu de uma forma exemplar. Vinha a Lisboa, punha os pontos, o Presidente da República perguntava-me se queria que falasse com o primeiro-ministro por qualquer problema”, especificou. E continuou: “falava com ele, apreendia da parte dele quais eram as preocupações do Dr. Mário Soares. Tinha reuniões alongadas com o professor Cavaco Silva e as coisas ficavam sempre esclarecidas”. “Nunca houve nenhum conflito”, garantiu, realçando que “as grandes linhas de orientação da administração portuguesa em Macau foram definidas nessa altura”. “Portanto quando, depois, mudou o Presidente da República (…) não houve grande problema” afirmou.

Asfaltar a estrada

Na época, tudo quanto “era importante em toda a área de códigos, legislação do que quer que seja, dos funcionários públicos, tudo isso estava resolvido, ou no caminho já decidido”.

Na ocasião, o que estava a ser definido era como minorar a dependência de Macau de Hong Kong, transferindo-a mais para o Interior da China, para a zona de Cantão. E “isso não é uma subordinação em relação à China. É defender os interesses de Macau. E isso foi compreendido pela parte chinesa, e as coisas correram bastante bem”, referiu.

Rocha Vieira recordou que havia uma preocupação na altura, com o facto de a transição de Hong Kong terminar antes, em 1997, portanto dois anos e meio antes da transferência de Macau, e não se saber o que aconteceria, inclusivamente no panorama internacional, porque muitas coisas estavam a mudar.

Foi na década de 1990 que houve o desmembramento da União Soviética, que começou o grande crescimento da China e a crise financeira asiática, pelo que o propósito da administração portuguesa de Macau foi “ter as coisas resolvidas antes do processo de transição de Hong Kong terminar”. “E conseguimos isso”, referiu.

A experiência de Hong Kong também não trazia ensinamentos ao território: “Não podíamos, porque Hong Kong e Macau são realidades completamente diferentes”, considerou. Desde logo pela escala de Hong Kong e depois pela maneira como as administrações procederam, explicou.

Além disso, “Hong Kong, quando começou o processo de transição tinha tudo localizado, os quadros eram bilingues (…), tinham todos os tribunais, tinham universidades, tinham escolas, tinha os códigos. Macau não tinha”, frisou.

A falta de investimento da metrópole nas periferias ao longo dos séculos foi particularmente sentida no território: “Macau foi deixado muito longe”.

Por outro lado, a China esteve muito tempo fechada ao exterior, pelo que era curto o aproveitamento de Macau ou do papel que poderia desempenhar na zona e nas ligações regionais. Por isso, a percepção desse novo papel de Macau só “passou a existir a partir do momento em que a China começou a abrir-se ao exterior e a ter uma preponderância muito grande como potência cada vez mais global”.

Individualidade preservada

“Passados 20 anos, aquilo que acho (..) mais importante é ver que há uma continuidade em relação àquilo que foi a política portuguesa durante a sua administração. Porque aquilo que se fez tinha sempre como interesse e como propósito a continuidade e o futuro”, de Macau, afirmou Vasco Rocha Vieira.

O ex-governador, sublinhou que a parte portuguesa nunca achou que a transferência da administração fosse “o fechar de uma porta”. Nem que ali acabava “a nossa relação com Macau ou as nossas responsabilidades”. Pelo contrário, entendeu, “sempre”, que “era um novo ciclo que se iniciava”. E esse ciclo “iniciou-se”, defendeu.

No novo contexto, “a identidade é o mais importante para Macau”, defendeu, porque naquele território existe “uma situação perfeitamente original e única no mundo. Ali existe um entendimento entre culturas, que se respeitam. Não é uma mistura de culturas, como em muitos outros sítios”. As duas culturas, a portuguesa e a chinesa, muito diferentes, é que formam “essa identidade de respeito e de trabalho mútuo, de prevalência relativamente às dificuldades e aos problemas que aparecem”, sublinhou.

A diferença pode ser assumida num aspecto de complementaridade ou de antagonismo, referiu, mas “em Macau sempre houve a complementaridade (…) e é um exemplo muito grande, até para outras situações no mundo, de como devem ser as relações”.

No caminho da transição, destacou o trabalho feito pela administração portuguesa, “para que o segundo sistema, prometido a Macau, fosse uma realidade”, mas também a posição da China, que “tem cumprido aquilo que nós também cumprimos na Declaração Conjunta, fazendo com que Macau permaneça no segundo sistema, com as liberdades, as garantias, códigos de matriz portuguesa que deixamos, e que são no fundo a maneira de gerir a relação das sociedades”.

O propósito “era convergente”, e consistia em “respeitar aquilo que ficou combinado e acordado na declaração conjunta, que foi um país dois sistemas, com Macau pertencendo ao segundo sistema e com essa identidade (…), de respeito de culturas”. Por isso, “há problemas que estão noutros sítios, como Hong Kong, que não são vistos da mesma maneira em Macau”, assegurando que ali estão salvaguardados os direitos dos cidadãos chineses que vivem no território. “O Tribunal de Última Instância está em Macau. Portanto, tudo aquilo que se passa, como crimes ou outros aspectos, que têm de ser julgados e apreciados, passa-se em Macau”, afirmou.

Quando questionado se Pequim pode pedir a extradição de pessoas que queira ver julgadas de acordo com o regime chinês, responde: “Não, não vejo porque há de pedir.”

No tempo da administração portuguesa, recordou que “os cidadãos que eram extraditados – de acordo com garantias que a China dava de que não havia pena de morte nem prisão perpétua – eram cidadãos chineses da China que se resguardavam em Macau e que vinham fugidos”. “Isso é completamente diferente em relação aos cidadãos de Macau, sejam chineses ou portugueses”, afirmou.

Poder do yuan

“É importante que haja investimento em Portugal. Agora, grande parte do investimento que tem sido feito [no país], nomeadamente o chinês, resulta muito das fragilidades que temos tido”, considerou Vasco Rocha Vieira.

Para o ex-governador, a sobreviver a uma crise económica que obrigou o país a recorrer à ajuda externa (‘troika’), “Portugal não teve, nessa altura, o espaço de manobra suficiente para poder definir também o que é que queria em contrapartida”. “O contexto da nossa fragilidade, do ponto de vista financeiro, obstou a muitas coisas”, referiu.

Naquela altura “a razão principal, não a única” que terá levado o país a negociar a estes investimentos, foi “minorar a dívida, conseguir melhorar o défice, conseguir que a situação difícil, do ponto de vista financeiro, melhorasse”.

Esse objectivo era necessário referiu Rocha Vieira, mas “é pontual. De curtíssimo prazo” e “o investimento chinês deve ser visto no longo prazo”, afirmou.

Além disso, na opinião do ex-governador de Macau, investimentos da China, devem ser também entendidos como investimento do Estado chinês. “Grande parte do investimento chinês, vem de empresas do Estado. O Estado tem o capital. E, portanto, o Estado chinês não faz as coisas por acaso. Tem objectivos”, sublinhou na entrevista à Lusa, a propósito do 20.º aniversário da transição da administração do território de Macau de Portugal para a China, que se celebra no próximo dia 20.

“O Estado chinês tem muitos objectivos, tem objectivos de aprender com os outros, de conseguir áreas fundamentais que lhe interessam para o seu desenvolvimento e para a sua presença no mundo em expansão, como seja o caso da energia, ou dos seguros, ou da saúde, onde estão, ou da própria banca. Tem esses objectivos”, enumerou o também general do exército português.

Por isso, defendeu que “em qualquer dos casos (…) se deve acautelar, o volume, as áreas desse investimento e fazê-lo de uma forma em que haja contrapartidas, e em que os nossos interesses se conjuguem com os interesses dos chineses”.

Visão de jogo

Para Rocha Vieira, Portugal pode “beneficiar do grande crescimento da China”, quer pela relação que teve com Macau, e com aquele país em geral, quer porque em Macau continuam a viver portugueses, com “a nossa memória e o nosso conhecimento”.

Lembra, porém, que no momento em que se deu o processo de transição de Macau para a China, “Portugal estava mais preocupado com África e em restabelecer as relações que tinha tido, e que com o processo de descolonização se alteraram um pouco”. E, naquele contexto, “Macau era a segunda prioridade (…) e não houve a percepção de que a China ia ter este desenvolvimento”.

Rocha Vieira conta que quando Deng Xiaoping fez uma visita de Estado à província de Cantão, em 1992, “estava a dar um grande sinal ao mundo de que ali ia ser o grande polo de desenvolvimento” do país. “De Macau dissemos isso para Lisboa, mas Lisboa estava preocupada com outras coisas, o que é compreensível”, referiu o antigo governador.

O ex-governador também lembrou que, durante o tempo da administração portuguesa havia muitas empresas portuguesas em Macau, às quais se dizia para que criassem laços e parcerias chinesas, para ficarem depois da transição. Mas muitas não o fizeram. Hoje “temos de aprender com os erros e não desperdiçar oportunidades”, disse.

Em relação a Macau, quando questionado sobre o que ainda podemos fazer no território nos próximos 30 anos que nos restam de período de transição, Rocha Vieira salientou que “importa que [o território] não seja descaracterizado”. “É uma opinião minha e não são sugestões, mas haver uma grande integração de pessoas da China em Macau – que já tem uma densidade imensa – tem que ser feita de maneira a que essa identidade não se perca”, afirmou.

16 Dez 2019

Rocha Vieira: "Tive mais problemas com a parte portuguesa do que com a chinesa"

O último Governador português em Macau recorda que teve, durante as funções, mais problemas com a parte portuguesa do que com a chinesa, mas salientou que o “rumo” a definir para a transição contou com uma “grande compreensão” do poder de então em Portugal. Quanto ao futuro de Macau, Rocha Vieira espera que mantenha a sua identidade

[dropcap]T[/dropcap]ive mais problemas com a parte portuguesa do que com a parte chinesa (…) muitas vezes, por falta de percepção. Normalmente, as pessoas estão longe, em Lisboa – isso é uma coisa histórica, que não é só de agora – e acham que sabem melhor as soluções do que aqueles que estão em Macau”, afirmou Vasco Rocha Vieira, numa entrevista à Lusa a propósito do 20.º aniversário da transição da administração do território para a China.
Porém, assegurou que quando foi necessário definir “o rumo, os objectivos fundamentais das políticas para Macau, foram discutidos pelo Governo de Macau, em Lisboa, com quem deviam ser discutidos, com o Presidente da República e com o primeiro-ministro” e houve “sempre” sobre isso “uma grande compreensão por parte dos órgãos de soberania portugueses e uma grande prova de confiança em relação a quem estava no território”.
“Isso foi fundamental” para que todo o processo de transição de Macau para China “corresse bem”. Nos primeiros anos “em que era preciso saber o que é que se queria, marcar objectivos e ter confiança em quem lá estava (…) isso aconteceu”, sublinhou.
Quando questionado sobre a relação com o Presidente Jorge Sampaio, de quem são conhecidas algumas críticas a Rocha Vieira, o general limitou-se a dizer: “foi aquela que tinha de ser e que o Presidente da República entendia que devia ser”. “Nunca tive nas minhas funções problemas institucionais, porque nunca pessoalizei as coisas”, concluiu.
Da sua parte, enquanto governador de Macau, assegura que “houve sempre a assunção das responsabilidades”. “De acordo com o meu papel, as minhas funções e para aquilo que fui nomeado e quando se é assim não se tem problemas”, disse.

FOTO: Mário Cruz | LUSA

Rocha Vieira explicou que foi nomeado para o cargo de governador de Macau pelo Presidente Mário Soares, na altura em que o primeiro-ministro era o professor Cavaco Silva. “Quero dizer que [a relação] correu de uma forma exemplar. Vinha a Lisboa, punha os pontos, o Presidente da República perguntava-me se queria que falasse com o primeiro-ministro por qualquer problema”, especificou. E continuou: “falava com ele, apreendia da parte dele quais eram as preocupações do Dr. Mário Soares. Tinha reuniões alongadas com o professor Cavaco Silva e as coisas ficavam sempre esclarecidas”. “Nunca houve nenhum conflito”, garantiu, realçando que “as grandes linhas de orientação da administração portuguesa em Macau foram definidas nessa altura”. “Portanto quando, depois, mudou o Presidente da República (…) não houve grande problema” afirmou.

Asfaltar a estrada

Na época, tudo quanto “era importante em toda a área de códigos, legislação do que quer que seja, dos funcionários públicos, tudo isso estava resolvido, ou no caminho já decidido”.
Na ocasião, o que estava a ser definido era como minorar a dependência de Macau de Hong Kong, transferindo-a mais para o Interior da China, para a zona de Cantão. E “isso não é uma subordinação em relação à China. É defender os interesses de Macau. E isso foi compreendido pela parte chinesa, e as coisas correram bastante bem”, referiu.
Rocha Vieira recordou que havia uma preocupação na altura, com o facto de a transição de Hong Kong terminar antes, em 1997, portanto dois anos e meio antes da transferência de Macau, e não se saber o que aconteceria, inclusivamente no panorama internacional, porque muitas coisas estavam a mudar.
Foi na década de 1990 que houve o desmembramento da União Soviética, que começou o grande crescimento da China e a crise financeira asiática, pelo que o propósito da administração portuguesa de Macau foi “ter as coisas resolvidas antes do processo de transição de Hong Kong terminar”. “E conseguimos isso”, referiu.
A experiência de Hong Kong também não trazia ensinamentos ao território: “Não podíamos, porque Hong Kong e Macau são realidades completamente diferentes”, considerou. Desde logo pela escala de Hong Kong e depois pela maneira como as administrações procederam, explicou.
Além disso, “Hong Kong, quando começou o processo de transição tinha tudo localizado, os quadros eram bilingues (…), tinham todos os tribunais, tinham universidades, tinham escolas, tinha os códigos. Macau não tinha”, frisou.
A falta de investimento da metrópole nas periferias ao longo dos séculos foi particularmente sentida no território: “Macau foi deixado muito longe”.
Por outro lado, a China esteve muito tempo fechada ao exterior, pelo que era curto o aproveitamento de Macau ou do papel que poderia desempenhar na zona e nas ligações regionais. Por isso, a percepção desse novo papel de Macau só “passou a existir a partir do momento em que a China começou a abrir-se ao exterior e a ter uma preponderância muito grande como potência cada vez mais global”.

Individualidade preservada

“Passados 20 anos, aquilo que acho (..) mais importante é ver que há uma continuidade em relação àquilo que foi a política portuguesa durante a sua administração. Porque aquilo que se fez tinha sempre como interesse e como propósito a continuidade e o futuro”, de Macau, afirmou Vasco Rocha Vieira.
O ex-governador, sublinhou que a parte portuguesa nunca achou que a transferência da administração fosse “o fechar de uma porta”. Nem que ali acabava “a nossa relação com Macau ou as nossas responsabilidades”. Pelo contrário, entendeu, “sempre”, que “era um novo ciclo que se iniciava”. E esse ciclo “iniciou-se”, defendeu.
No novo contexto, “a identidade é o mais importante para Macau”, defendeu, porque naquele território existe “uma situação perfeitamente original e única no mundo. Ali existe um entendimento entre culturas, que se respeitam. Não é uma mistura de culturas, como em muitos outros sítios”. As duas culturas, a portuguesa e a chinesa, muito diferentes, é que formam “essa identidade de respeito e de trabalho mútuo, de prevalência relativamente às dificuldades e aos problemas que aparecem”, sublinhou.
A diferença pode ser assumida num aspecto de complementaridade ou de antagonismo, referiu, mas “em Macau sempre houve a complementaridade (…) e é um exemplo muito grande, até para outras situações no mundo, de como devem ser as relações”.
No caminho da transição, destacou o trabalho feito pela administração portuguesa, “para que o segundo sistema, prometido a Macau, fosse uma realidade”, mas também a posição da China, que “tem cumprido aquilo que nós também cumprimos na Declaração Conjunta, fazendo com que Macau permaneça no segundo sistema, com as liberdades, as garantias, códigos de matriz portuguesa que deixamos, e que são no fundo a maneira de gerir a relação das sociedades”.
O propósito “era convergente”, e consistia em “respeitar aquilo que ficou combinado e acordado na declaração conjunta, que foi um país dois sistemas, com Macau pertencendo ao segundo sistema e com essa identidade (…), de respeito de culturas”. Por isso, “há problemas que estão noutros sítios, como Hong Kong, que não são vistos da mesma maneira em Macau”, assegurando que ali estão salvaguardados os direitos dos cidadãos chineses que vivem no território. “O Tribunal de Última Instância está em Macau. Portanto, tudo aquilo que se passa, como crimes ou outros aspectos, que têm de ser julgados e apreciados, passa-se em Macau”, afirmou.
Quando questionado se Pequim pode pedir a extradição de pessoas que queira ver julgadas de acordo com o regime chinês, responde: “Não, não vejo porque há de pedir.”
No tempo da administração portuguesa, recordou que “os cidadãos que eram extraditados – de acordo com garantias que a China dava de que não havia pena de morte nem prisão perpétua – eram cidadãos chineses da China que se resguardavam em Macau e que vinham fugidos”. “Isso é completamente diferente em relação aos cidadãos de Macau, sejam chineses ou portugueses”, afirmou.

Poder do yuan

“É importante que haja investimento em Portugal. Agora, grande parte do investimento que tem sido feito [no país], nomeadamente o chinês, resulta muito das fragilidades que temos tido”, considerou Vasco Rocha Vieira.
Para o ex-governador, a sobreviver a uma crise económica que obrigou o país a recorrer à ajuda externa (‘troika’), “Portugal não teve, nessa altura, o espaço de manobra suficiente para poder definir também o que é que queria em contrapartida”. “O contexto da nossa fragilidade, do ponto de vista financeiro, obstou a muitas coisas”, referiu.
Naquela altura “a razão principal, não a única” que terá levado o país a negociar a estes investimentos, foi “minorar a dívida, conseguir melhorar o défice, conseguir que a situação difícil, do ponto de vista financeiro, melhorasse”.
Esse objectivo era necessário referiu Rocha Vieira, mas “é pontual. De curtíssimo prazo” e “o investimento chinês deve ser visto no longo prazo”, afirmou.
Além disso, na opinião do ex-governador de Macau, investimentos da China, devem ser também entendidos como investimento do Estado chinês. “Grande parte do investimento chinês, vem de empresas do Estado. O Estado tem o capital. E, portanto, o Estado chinês não faz as coisas por acaso. Tem objectivos”, sublinhou na entrevista à Lusa, a propósito do 20.º aniversário da transição da administração do território de Macau de Portugal para a China, que se celebra no próximo dia 20.
“O Estado chinês tem muitos objectivos, tem objectivos de aprender com os outros, de conseguir áreas fundamentais que lhe interessam para o seu desenvolvimento e para a sua presença no mundo em expansão, como seja o caso da energia, ou dos seguros, ou da saúde, onde estão, ou da própria banca. Tem esses objectivos”, enumerou o também general do exército português.
Por isso, defendeu que “em qualquer dos casos (…) se deve acautelar, o volume, as áreas desse investimento e fazê-lo de uma forma em que haja contrapartidas, e em que os nossos interesses se conjuguem com os interesses dos chineses”.

Visão de jogo

Para Rocha Vieira, Portugal pode “beneficiar do grande crescimento da China”, quer pela relação que teve com Macau, e com aquele país em geral, quer porque em Macau continuam a viver portugueses, com “a nossa memória e o nosso conhecimento”.
Lembra, porém, que no momento em que se deu o processo de transição de Macau para a China, “Portugal estava mais preocupado com África e em restabelecer as relações que tinha tido, e que com o processo de descolonização se alteraram um pouco”. E, naquele contexto, “Macau era a segunda prioridade (…) e não houve a percepção de que a China ia ter este desenvolvimento”.
Rocha Vieira conta que quando Deng Xiaoping fez uma visita de Estado à província de Cantão, em 1992, “estava a dar um grande sinal ao mundo de que ali ia ser o grande polo de desenvolvimento” do país. “De Macau dissemos isso para Lisboa, mas Lisboa estava preocupada com outras coisas, o que é compreensível”, referiu o antigo governador.
O ex-governador também lembrou que, durante o tempo da administração portuguesa havia muitas empresas portuguesas em Macau, às quais se dizia para que criassem laços e parcerias chinesas, para ficarem depois da transição. Mas muitas não o fizeram. Hoje “temos de aprender com os erros e não desperdiçar oportunidades”, disse.
Em relação a Macau, quando questionado sobre o que ainda podemos fazer no território nos próximos 30 anos que nos restam de período de transição, Rocha Vieira salientou que “importa que [o território] não seja descaracterizado”. “É uma opinião minha e não são sugestões, mas haver uma grande integração de pessoas da China em Macau – que já tem uma densidade imensa – tem que ser feita de maneira a que essa identidade não se perca”, afirmou.

16 Dez 2019