Terceiro acto – Cena 5

Os dois amigos deixam-se ficar em silêncio durante algum tempo. Há uma fina cortina de fumo que paira na sala. Apesar da janela estar fechada, ainda se ouve o murmúrio da floresta no exterior.

Gonçalo
E se a tua aluna te vê assim?

Valério
Assim, como?

Gonçalo
Deitado no sofá, afundado no poço, com as lágrimas a caírem-te dos olhinhos…

Valério
Pois… [pausa] Isso não pode vai acontecer.

Gonçalo
Ela até pode achar interessante… um estímulo positivo na vossa nova relação: um professor inteligentíssimo, que faz mergulhos de escafandro na sua própria depressão… “Ai, ele é incrível, até domina o seu lado mais negro…”

Valério
Mais uma razão para eu ficar quieto.

Gonçalo
… Ou então ela resgata-te do poço e deixas aos poucos de fazer os teus mergulhos higiénicos, muito apreciados pela tua alminha sensível…

Valério
Talvez…

Gonçalo
E depois dás por ti a sentir falta dos mergulhos, daquele hábito diário, tão entranhado que estava… e pouco a pouco começas a detestá-la: primeiro a evitar o olhar dela, depois o toque… depois vais deixando de lhe falar… [pausa] Até que ela acaba por desistir de tentar comunicar e vai-se embora… sem nunca saber o que terá acontecido.

Valério
Perspectiva animadora, sim senhor.

Gonçalo
Mas realista, não?

Valério
Em que sentido?

Gonçalo
De deixar andar… até apodrecer.
Valério
Talvez.

Gonçalo
Seria o mesmo com bebida ou com droga… o amor salva, mas também limita. [pausa] Quem disse que queríamos ser salvos?

Gonçalo vai até à mesa e começa a desarrolhar outra garrafa de vinho tinto. Os seus movimentos são atabalhoados, ele próprio ri-se da sua falta de jeito potenciada pelo nível crescente de álcool no sangue.

Valério
[rindo]
São umas egoístas, essas pessoas.

Gonçalo
Já não se pode beber até cair sem que nos chamem à atenção para a vida que estamos a deitar fora!

Valério
E para o tempo desperdiçado…

Gonçalo volta ao seu lugar. Antes de se sentar, serve os dois copos que Valério segura. Os dois erguem os copos e fazem um brinde desajeitado. Pega cada um no seu cigarro e acendem à vez, partilhando o isqueiro. Regressa o silêncio, acamado pelo murmúrio que vem lá de fora.

Valério
Não tens vizinhos?

Gonçalo
Boa pergunta… não faço ideia. [pausa] Há por aí umas casas…

Valério
Não me lembro de ver nenhuma no caminho.

Gonçalo
Da estrada não se vêem muitas, mas se andares pelo meio da floresta…

Valério
Tens de me levar a passear, então…

Gonçalo
Sim, quando amanhecer.

Mais uma vez deixam que o silêncio invada a pequena casa de montanha. Gonçalo vai até à lareira. Pega num toro de madeira com a tenaz e põe-no por cima das brasas incandescentes. Sopra- as brasas para atiçar o lume.

Valério
Porque é que não foste ao funeral?

Gonçalo observa as chamas que consomem a madeira recém-chegada. Dá várias passas seguidas no seu cigarro. Depois de terminado, atira a ponta para as brasas. Tira outro cigarro do maço que tem no bolso e usa a tenaz para trazer uma pequena brasa à boca. Acende o fumante, pousa a brasa e a tenaz, e põe-se outra vez a observar as pequenas labaredas.

Valério
Ninguém te levou a mal… não há maneira certa de reagir à morte. [pausa] Acho eu… Mas houve perguntas… “Onde é que ele está?”… “Porque é que ele não veio?”… “Andavam chateados?”…

Gonçalo
E as tuas?

Valério
As minhas quê?

Gonçalo
Perguntas… Quais são as tuas?

Valério
Não tenho… [pausa] Quer dizer, já a fiz.

Gonçalo
Pois…

Gonçalo regressa ao seu lugar, ao lado do amigo, e põe-se a olhar um ponto distante, como se pensasse cuidadosamente no que irá dizer.

Gonçalo
Estive quase a sair de casa… mas não me consegui levantar do sofá. Estava com o casaco vestido, tinha as chaves de casa no bolso e os óculos escuros postos. Mas não me consegui levantar… [pausa longa] Há aqui um filão a explorar, não sei se reparaste…?

Valério
[surpreendido]
Qual?

Gonçalo
Homens solteiros e solitários… sofá… depressão…

Valério
Não é novidade.

Gonçalo
Certo… [pausa] A que horas acabou?

Valério
Por volta as cinco.

Gonçalo
Pois. Foi quando finalmente me levantei… mais coisa, menos coisa.

Valério
Estiveste essas horas todas sentado?
Gonçalo
Estive, pois.

Valério
Uns descem ao poço deitados, outros descem sentados.

Gonçalo
Não sei se desci.

Valério
[sorrindo]
Foi só cobardia?

Gonçalo
Talvez…

Valério
Estou a brincar.

Gonçalo
Eu percebi… Mas talvez tenha sido, sim.

Valério
Não é preciso desceres ao fundo do poço… às vezes já andas sem saber.

Gonçalo
Verdade.

Valério
É uma vibração constante, muito ténue… que às vezes não se nota, mas está lá sempre presente. [pausa] Talvez eu use as minhas sessões de descensão precisamente para reconhecer a existência dessa pequena nota constante na minha vida.

Gonçalo
És muito poético em relação a esse estado…

Valério
Pois sou.

Gonçalo
Romantiza-lo muito, na minha opinião…

Valério
Talvez… [pausa] Uns sentam-se e apagam, outros deitam-se e romantizam.

Gonçalo
E há os que escondem essa música durante uma vida inteira… e quando finalmente são apanhados e a ouvem, vão atrás dela, como a criançada vai atrás do flautista… e adeus.

23 Fev 2022

Terceiro Acto – Cena 4

Valério pega num cigarro e vai à lareira. Pega num toro de azinho com uma tenaz e junta-o às brasas incandescentes.

Valério
Ainda sonho acordado…

Traz de volta uma brasa e acende o seu cigarro com ela. Deixa-se ficar a olhar para a madeira a pegar fogo.

Valério
Acho que nunca tinha dito isto a ninguém.

Gonçalo
Porquê?

Valério
Porque é que sonho acordado?

Gonçalo
Não, porque é que nunca disseste a ninguém?

Valério
Sei lá… [pausa] Vergonha, talvez.

Gonçalo
[imitando uma mãezinha]
Já não tens vinte anos, filho…!

Valério
Pois não, mas ainda assim…

Gonçalo
Sonhas com o quê?

Valério
Coisas parvas…

Gonçalo
Isso já percebemos. [pausa] Dá-me um exemplo.

Valério
É difícil… [pausa longa] Se estiver a ouvir música, fico a imaginar que sou eu que a estou a tocar, ou a cantar… ou as duas coisas. [pausa] Acho que acontece o mesmo quando vejo um quadro… ou se vejo um jogo de ténis na televisão…

Gonçalo
Imaginas-te o tenista?

Valério
Sim… [pausa] A questão é… se calhar não é questão nenhuma…

Gonçalo
Desembucha, jovem!

Valério
A questão é a duração… e a quantidade que vezes que me acontece o mesmo

Gonçalo
O sonhar acordado?

Valério
Sim… e o facto de me acontecer com esta idade. [imitando uma mãezinha] Já não tens vinte anos, filho…!

Gonçalo
Pois não.

Valério
Pois não… mas a verdade é que acho que já não há remédio. [pausa] Mas não me acontece o mesmo quando leio um livro.

Gonçalo
Não?

Valério
Não. E olha que leio cada vez mais… deve ser da velhice.

Gonçalo
Ou seja, queres brilhar como músico, pintor ou tenista, mas não como escritor.

Valério
Já não vou brilhar em nada.

Gonçalo
No entanto, já escreveste algumas coisas brilhantes.

Valério
Que ninguém leu. [pausa] Mas é qualquer coisa mais profunda do que isso…

Gonçalo
Do que quê?

Valério
Do que o querer brilhar…

Gonçalo
Senta-te no divã e aprofunda lá isso.

Valério regressa à sua cadeira, perto de Gonçalo, e leva o seu milionésimo copo de vinho à boca.

Valério
Escapismo?

Gonçalo
Estás perguntar?

Valério
Estou a falar para o ar.

Gonçalo
Pronto…

Valério
[pausa]
Ou então é uma maneira de me manter activo, com vontade de fazer coisas… [pausa] se não desisto.

Gonçalo
Estás a conjecturar ou é já uma sentença?

Valério
Não estás a ajudar.

Gonçalo
Desculpa, continua…

Valério
A verdade é que é coisa de adolescente, o resto é conversa.

Gonçalo
Julgas que não há outros quarentões a sonhar acordados?

Valério
Não deve haver muitos.

Gonçalo
Se te ajuda achares que és único, tal como te ajuda sonhares acordado, ainda bem para ti.

Valério
Certo. O que não deve faltar por aí é quarentões adolescentes…

Gonçalo
[imitando uma mãezinha]
Já não tens vinte anos, filho…!

Valério
Pois não… [pausa] Mas é uma coisa que eu procuro… é parecido com a depressão.

Gonçalo
Depressão?

Valério
Não falo de depressão profunda, nunca padeci de tal coisa, felizmente… [pausa] Mas há qualquer coisa naquela depressãozinha ligeira… [pausa] Um prazer qualquer quando me deito no sofá e começo a descer na horizontal… pelo poço abaixo… tudo a escurecer à minha volta e a luz a ficar lá em cima… [pausa] Até acho que as duas coisas estão ligadas.

Gonçalo
A depressão…?

Valério
[abrupto]
Zinha!

Gonçalo
A depressãozinha e o sonhar acordado?

Valério
Sim…

Gonçalo
E é qualquer coisa que buscas, tu próprio?

Valério
Activamente, sim… se estiver em casa, então, é o meu desporto preferido. [pausa] Felizmente, já não me masturbo tanto como dantes. [imitando uma mãezinha] Já não tens vinte anos, filho…!

Gonçalo
Pois não.

Valério
Posso até ter à disposição um manancial de coisas para me entreter… filmes, livros… A verdade é que, a maior parte das vezes, ponho música e me deito a olhar para o tecto… [pausa] E… ou aguardo a descida ao poço, activamente, deixo o corpo relaxar, começam as lágrimas a correr… [com uma ponta de vergonha] Mas não me comovo, atenção, não tem nada que ver com comoção… é uma espécie de abandono…

Gonçalo
Isso é quase erótico.

Valério olha para Gonçalo, desagradado com o comentário aparentemente despropositado.

Gonçalo
Falo a sério! Parece que…

Valério
Eu percebo, sim… Sim, é esse abandono. [pausa] Ou então a música eleva-me e eu imagino que sou eu o músico…

Gonçalo
Para fora do poço…

Valério
Não é que estivesse no poço quando me deitei, mas sim… eleva-me… [pausa] para fora do poço, sim.

Gonçalo
[pausa]
E também procuras isso… essa elevação?

Valério
[inabalável]
Bem como a descida.

Gonçalo
[pausa]
Parece-me que tens isso tudo já muito bem dominado… parece a tua hora do ginásio.

Valério
Pois parece.

Gonçalo
E gostas.

Valério parece não saber o que responder, mas também não parece abalado com a afirmação que acabou de ser proferida.

Gonçalo
Cada um com o seu desporto…

Valério
[acanhado]
Já vivo com isto há tanto tempo que já nem penso muito no assunto, confesso.

Gonçalo
O desporto em si não tem nada de errado, se é isso que estás a pensar. Mas é uma droga, mais do que um desporto… sabe-lo bem. Uma droga pesada. [pausa] Há que saber dominá-la… um deslize e já foste.

Valério
Sim… [pausa longa] Se calhar está na hora de terminarmos a consulta, não?

17 Fev 2022

Terceiro acto – Cena 2

Gonçalo continua absorto na sua nuvem de fumo, há qualquer coisa de mágico na forma como o fumo se espalha pela divisão, iluminado pelo luar que vem da janela. Os pássaros nocturnos vão picando o ponto na noite silenciosa que se adivinha lá fora. Ouve-se uma descarga do autoclismo, depois água a correr do lavatório. A porta do fundo abre-se, Valério entra, volta a fechá-la atrás de si e aproxima-se da mesa. Abre o frasco de tremoços e trá-lo consigo de volta ao seu lugar.

Gonçalo
Lavaste as mãos, fofa?

Valério
Claro, meu amor.

Gonçalo levanta-se e vai buscar duas tigelas a um dos armários por cima do balcão lava-loiça. Depois pega num dos pacotes de batata frita e regressa ao seu lugar. Abre o pacote e deita algumas para uma das tigelas. Valério já mastigou alguns tremoços e usa a outra tigela para as cascas.

Gonçalo
Foram jantar e…?

Valério
E… [longa pausa] Não sei exactamente quando é que foi, mas sei que foi cedo… que me esqueci de que estava a falar com uma mulher com metade da minha idade…

Gonçalo
[interrompendo]
Uma mulher. Muito bem!

Valério
[confuso]
O quê?

Gonçalo
Por isso é que te esqueceste da idade dela… olhas para ela como uma mulher.

Valério
Hmmm… pois. [pausa] Estava completamente babado a ouvi-la… no meu babete interior [ri-se]. Ela é inteligente… tem a voz aveludada… e cheira tão bem, valha-me Deus. [pausa] Mas depois lembrei-me de como fomos ali parar… e lembrei-me da idade dela… e comecei a gaguejar. [pausa] Acho que ela notou… e até achou piada. Entrámos no carro… ela queria ir dançar. Mais um lembrete: já não danço. É da idade. Ela pediu-me para tentarmos noutro dia… beijou-me. [pausa] Foi sair com umas amigas, deixei-a à porta de um bar… depois fui para casa.

Gonçalo
E porque é que estás com o ar mais deprimido do mundo?

Valério
É uma boa pergunta…
Gonçalo
Pois é.

Os dois ficam novamente em silêncio. Gonçalo acende dois cigarros ao mesmo tempo e dá um ao amigo. Agora contemplam a nuvem de fumo e os estranhos padrões mutáveis que ela vai formando. Valério volta a olhar para o texto de Gonçalo. Hesita antes de falar.

Valério
[indicando o texto]
Talvez o sentido mais alargado de que falava, essa coisa mais impenetrável e absoluta, já lá esteja… [pausa] Eu sou demasiado analítico… por isso é que me pedes para ler os teus textos. [pausa] Está lá alguma coisa… isso é certo. E pelo simples facto de não falares dela, torna-se quase palpável… Há uma força qualquer… não sei apontá-la, confesso. Mas pressentimo-la a cada frase. E não estou a falar deste texto em particular… falo da tua escrita em geral. [pausa] Às vezes parece totalmente superficial… irónica, muitas vezes sarcástica… mas… lá está… do nada pregas-nos uma rasteira e passamos a ver tudo com outros olhos… é interessante… muitas vezes essas rasteiras vêm tarde no texto, mas mesmo assim, quando acontece, revemos tudo num ápice, desde o início, com outros olhos… até ao ponto da rasteira… e percebemos que o que quer que nos tenha feito tropeçar já lá estava desde início… e era tão óbvio… mas estava muito bem disfarçado.

Valério volta a reler algumas passagens. Gonçalo termina o seu cigarro e acende outro com a beata do quase defunto. Depois serve-se de mais vinho.

Valério
O truque é… [interrompe-se] Não há truque, eu sei… da tua parte. Para quem lê, sim, pode passar por truque… mas isso não é mau… [indica o fumo dos cigarros] É como estas nuvens de fumo… há algo de fortuito nas formas… imperfeições, às vezes parecem inacabadas, outras parecem ter sido excessivamente elaboradas… mas aconteceram assim, formaram-se assim… e é precisamente nesta aleatoriedade que reside a beleza destas nuvens de fumo, não é?

Gonçalo
É… acho que sim.

Os dois ficam durante algum tempo a admirar as nuvens de fumo que se espalham novamente pelo tecto. O luar está ainda mais intenso.

Valério
Vais continuar?

Gonçalo
O Joãozinho Neo-Nazi?

Valério
Isso era um título com tomates!

Gonçalo
Também acho… [pausa] Vais vê-la outra vez?

Valério
Pois que não sei…

Gonçalo
Acho que devias…

Valério
Eu acho que não. [pausa] Ela vai querer dançar… eu vou querer ficar-me pelo jantar… Isso aguenta-se durante uns meses… e depois? Eu quero ler… quando muito ir ao cinema… e chega. E depois? [pausa] Às tantas ela farta-se, começa a dar-se conta dos anos que nos separam… gosta muito de estar comigo, mas… e eu não digo nada, deixo andar… e ficamos assim, durante algum tempo, até os ventos da paixão amainarem… [os dois desatam à gargalhada]. Que azeiteiro…!

Gonçalo
Até Os Ventos da Paixão Amainarem… o novo romance de Valério R…

Valério
Prefiro ir dançar!

Gonçalo
E achas que ela é como tu…? [ri-se] Que vai deixar andar até os ventos da paixão amainarem…?

Valério
É bem visto… Não sei. [pausa] Mas sei que não vou esperar que chegue até aí. E já percebi que ela quer dançar e sair… e vai querer que eu conheça os amigos e as amigas… Deus me livre e guarde!

Gonçalo
Se calhar ela sabe como és e não vai insistir.

Valério
Vai, vai… não tenho a mínima dúvida.

13 Mai 2021

Terceiro Acto – Cena 1

Gonçalo escreve à máquina, sentado na mesinha em frente à janela. Tem uma garrafa de vinho aberta e o candeeiro a petróleo aceso. A janela aberta por onde entra o luar e uma brisa nocturna. Gonçalo escreve com intensidade, a percussão das teclas é impiedosa. Batem à porta e Gonçalo assusta-se, como se acordasse de um pesadelo. Abre a porta a medo. É Valério, sorridente. Traz um saco de compras cheio e uma garrafa de vinho na mão. Ele avança para a mesinha, pousa a garrafa de vinho e tira mais quatro garrafas iguais do saco, para além de três pacotes de frutos secos, dois de batatas fritas e um grande frasco de tremoços. Valério repara no montinho de folhas dactilografadas, ao lado da máquina, e passa-lhes o polegar, avaliando a quantidade de texto produzida. Olha para Gonçalo e aquiesce com um trejeito de boca. Aponta para o montinho, como se perguntasse: “posso?” e Gonçalo aquiesce, também com um trejeitozito, como se respondesse “por quem sois!” Valério fecha a janela, pega no montinho e trá-lo até à sua cadeira de madeira onde se senta a ler. Gonçalo vai até à lareira, pega em duas pinhas e pousa-as lá dentro. Depois cobre-as com bastante caruma e acende-as. O lume leva o seu tempo a aparecer. Depois põe dois toros por cima do lume, não deixando que este se apague. Quando lhe parece que tudo corre pelo melhor, volta à mesa para abrir uma das garrafas de vinho. Pega no saca-rolhas…

Valério
[sem olhar para Gonçalo]
Abre já duas.

Gonçalo ri-se discretamente e faz o que o amigo lhe recomendou. Serve dois copos e trá-los para as cadeiras. Dá um dos copos a Valério e pousa a garrafa no chão. Olha para Valério.

Valério
[sem olhar para Gonçalo]
Não me pressiones. [agora fita Gonçalo] Se vais ficar a olhar para mim, paro já!

Gonçalo
Sim, senhor!

Gonçalo levanta-se a vai espreitar a lareira. Os toros ardem bem, nada a apontar. Gonçalo finge que mexe neles com a tenaz, aproveitando para olhar para Valério e adivinhar as reacções do amigo à leitura.

Valério
Pára!

Gonçalo volta aos seus toros ardentes, sem conseguir disfarçar uma gargalhada.

Valério
Ri-te, ri-te…!

Gonçalo vem sentar-se à mesa, olhando pela janela enquanto termina o vinho que tem no copo. Serve-se outra vez e tira a folha que está na máquina e põe-se a ler o que está escrito. Pega num pequeno lápis e vai tirando algumas notas. Quando acaba, vai até à porta do fundo, abre-a e sai de cena, fechando a porta atrás de si.
O tempo passa. Valério termina de ler e pousa as folhas na cadeira de Gonçalo. Serve-se de mais vinho da garrafa que está no chão e olha pensativo pela janela.
Gonçalo volta a entrar e vem sentar-se ao lado do amigo. Os dois ficam em silêncio durante bastante tempo.

Valério
[olhando a janela]
O Joãozinho Neo-Nazi…

Gonçalo
Hmm… [pausa] E…?

Valério
[medindo as palavras]
Estás no bom caminho… às vezes.

Gonçalo
[franzindo o sobrolho]
Às vezes…?

Valério
Calma… deixa-me pensar! [pausa] É interessante… mas fica sempre a sensação de que não acreditas no que estás a escrever e, às tantas, sabe-se lá porquê, boicotas-te… e boicotas a história. [pausa] Mas depois voltas a agarrar-nos… e isso até pode ser interessante… assim como está, digo eu… de boicote, recuperação… novo boicote, nova recuperação… é intrigante, não haja dúvida. As personagens são sólidas, apesar da pouca informação que nos dás delas… e isso é bom. Há mistério… há sensação de local… de sítio… embora estejam numa sala estéril… e isso também é bom. Mas quando estás a chegar às profundezas… a um significado mais alargado… a qualquer coisa mais impenetrável, mas mais absoluta, parece que tens medo… do escuro ou da falta de ar, não faço ideia… e voltas à superfície para nos pregares outra rasteira.

Gonçalo
O que é que queres dizer com…

Valério
[interrompendo]
Não sei! [pausa] Deixa-me pensar mais um bocadinho…

Gonçalo
Não se safa com uma segunda leitura?

Valério
[estranhando a pergunta]
Não se trata de safar. [pausa] É bom que na segunda leitura se mantenham as dúvidas e o mistério…

Valério saca do seu maço e oferece um cigarro a Gonçalo. Tira um para si e acende o isqueiro. Os dois ficam mais algum tempo em silêncio, saboreando os seus pregos fumantes.

Valério
[comprometido]
Fui sair com a minha aluna…
Gonçalo
[travesso]
É preciso chamar a polícia?

Valério
[sorrindo]
Para já, não.

Gonçalo
E como é que isso aconteceu?

Valério
[leva o seu tempo]
Foi…estranho.

Gonçalo
Estranho?

Valério
Sim… [pausa] Foi ela que me abordou… perguntou-me se eu a queria levar a jantar.

Gonçalo
Na faculdade?

Valério
Sim… à saída de uma aula.

Gonçalo
[sorrindo]
E tu, borraste-te todo nas calças…

Valério
Não… foi bastante natural, por acaso.

Gonçalo
Natural?

Valério
[rindo]
Sim, natural é uma palavra horrível… mas não me ocorre nenhuma melhor.

Gonçalo
Eu percebi… [pausa] E foram jantar?

Valério
Fomos, pois.

Valério levanta-se e vai até à porta do fundo, saindo de cena. Gonçalo fica sozinho, contemplando a nuvem de fumo que se espalha pelo tecto da sua cabana nas montanhas.

6 Mai 2021

Primeiro acto – Cena 3

Valério serve-se de mais vinho enquanto o amigo continua os seus afazeres na divisão dos fundos.

Valério
Um aluno consultor…

Valério desata a rir às gargalhadas, entornando vinho na camisa, nas calças e no chão. Pousa o copo no chão e vai buscar um pano ao balcão de madeira, perto do lava-loiças.

Gonçalo
[fora de cena]
O que é que disseste?

Valério
Nada!

Gonçalo
[ainda fora de cena]
Um aluno consultor!

Valério
Tens ouvidos de tísico!

Valério limpa a camisa e as calças com o pano molhado. Gonçalo regressa da divisão dos fundos e volta a sentar-se na sua cadeira.

Gonçalo
Sabes que eu tenho livros publicados?

Valério
E…?

Gonçalo
Nada…

Valério
Eu disse que ias fazer birra!

Valério regressa ao seu lugar e volta a servir-se de vinho.

Valério
E disseste que as paredes são densas e desfocam bastante quanto explicaste que ele não conseguia ver muito bem o que se passava do lado de fora da estufa. Por densas, querias dizer espessas, embora, neste caso, densas seja perfeitamente aceitável como sinónimo. Mas ajudaria mais falar em espessura, ou mesmo em grossura, para dar mais ênfase à desfocagem que aludiste. Mas é como te digo, a densidade, aqui, e tendo em conta de que se trata de um conto de ficção-científica… [sorri] fica muito bem.
Gonçalo
[irritado]
Se fica bem, porque é que estás a… ?

Valério
[interrompendo]
Porque tudo o que tu fazes, escreves, contas, estudas, ouves, lês… tudo, tem de ter a minha aprovação!

Gonçalo abre a boca, chocado. Ameaça rir, mas a facada que levou não o deixa.

Valério
Não faças esse ar, é assim que nós os dois funcionamos! Lês uma crítica má a um livro que adoraste, sentes-te inseguro, será que ando enganado? e lá vens tu então, já leste isto? e ficas à espera que eu te dê a minha opinião. Porque se eu gosto, deve ser bom! E andas dias a chatear-me… já leste? já leste?… Mas és incapaz de me dizer olha, gosto de um livro de que toda a gente anda a dizer mal, achas que tenho um gosto duvidoso? Alguma coisa deve ter acontecido, andas inseguro com alguma coisa… e eu sei o que
é! Essa história do conto de ficção científica rejeitado traz água no bico, contigo é sempre assim… ando às apalpadelas até perceber se é o interruptor ou se o raio que o parta… e tu sempre à frente, armado em sonso, a mudar o braille das paredes! E isto começou porque não me perguntaste o que é que eu achava da tua primeira descrição de há pouco, a do cenário de guerra… foi ou não foi? Interrompi com uma piadinha e tu começaste logo a roer-te todo por dentro… ai, ele não deve ter gostado! E o menino pôs-se à pesca, a ver se eu mordia… ’tadinho de mim.. olha, sabias que uma vez me recusaram um conto… E o que me estavas a contar, chapéu! Portanto, já são dois boicotes seguidos…

Gonçalo
Boicotes!?

Valério
Seguidinhos, meu amigo! Mas tudo bem, quem fica a perder és tu, não vais saber o que eu penso da tua ideia para o novo livro, nem vais saber o que eu penso do teu conto recusado…

Gonçalo
[irónico]
Porque és tu quem aprova as minhas obras antes do editor!

Valério
Basta eu torcer o nariz a uma vírgula e adeus… são mais três meses de molho a bateres com a cabeça nas paredes.

Gonçalo
[irritado]
Porque és tu quem aprova as…!

Valério
Tu é que fazes por isso! Vê lá se foste descrever o orgasmo de guerra ao teu editor… Ah, pois é! Tens medo das tuas ideias…

Gonçalo
Tenho o quê?!
Valério
Borras-te todo… [Valério põe-se a escrever furiosamente num teclado imaginário.] “Um neo-nazi entra num bar”… ai, meu Deus! Um Neo-Nazi, porquê? Porque é que ele entra num bar? Ainda há quem entre em bares? E como é que ele entra? Porquê num bar? Porque é que ele entra onde quer que seja? Porque não “Um Neo-Nazi entra…”? Não, se calhar é só “Um entra…”! Não, não, isto não dá! Vou desistir… vou deixar de escrever, a minha vida acabou!

Gonçalo
Mas o que é que tem o eu ter medo das minhas ideias com o bypass ao editor?

Valério
Porque me tens em grande consideração…? Porque achas que eu sou um tipo inteligente e carismático…?

Gonçalo
Espera! Primeiro, explica lá isso de eu ter medo das minhas ideias!

Valério
[rindo]
Ai, agora temos ordem de trabalhos… sim senhor, vamos lá! Ponto número um, medo das tuas ideias… precisas mesmo que eu explique melhor!

Gonçalo
Acho que percebo o que queres dizer…

Valério
Vês, já estás a fazer o mesmo…! Percebeste perfeitamente o que eu quero dizer, mas estás a arranjar uma maneira de sair por cima, como se sempre tivesse sido evidente para ti que toda a gente sabe que tens medo das tuas próprias ideias. [pausa] Faz-me a pergunta! Achas que tenho medo das minhas próprias ideias?

Gonçalo
Oh!

Valério
Acho… mas das ideias boas! Das que te tiram o tapete, como “O Joãozinho Neo-Nazi vai à escola e no meio de uma aula de história distrai-se e tem um orgasmo de guerra”… e ficas borrado, porque sabes que aquilo é radioactivo e vens logo a correr… para quem? Para mim… para o teu paizinho que te quer tão bem!

Agora é Valério quem se levanta e sai pela porta do fundo. Gonçalo fica a sós, com o seu copo de vinho e as suas ideias.

25 Fev 2021

Primeiro acto Cena 2

Valério dá mais uma longa baforada no seu cigarro. Gonçalo bebe o vinho todo que tem no copo e pousa-o no chão, ao lado da cadeira. Não se levanta.
Valério
Não ias mijar?
Gonçalo
Depois mudo a fralda.
Valério pega no copo de Gonçalo e serve-lhe mais vinho. Levanta-se e vai até à mesa para escolher outra garrafa. Só passados alguns segundos é que percebe que as garrafas são todas iguais. Tinto, mesma casta e mesmo ano.
Valério
Então e o conto?
Gonçalo
Sim… [pausa] Era uma história de ficção-científica. Valério
Hmmm…
Gonçalo
Era sobre um neo-nazi português que encontra uma máquina do tempo…
Valério interrompe abruptamente o desarrolhamento e desata a rir. Quase que deixa cair a garrafa.
Gonçalo
[rindo]
Pois…
Valério
Continua!
Termina de abrir a garrafa, pousa o saca-rolhas na mesa e regressa ao seu lugar. Enche o seu copo e pousa a garrafa no chão.
Gonçalo
[suspirando]
Encontra uma máquina do tempo… e como sempre sonhou com…
Valério
[interrompendo]
Onde é que ele encontra a máquina?
1
Gonçalo
Onde…? [pausa] Era um estudante, físico teórico… estava envolvido num projecto qualquer como consultor… num laboratório de física experimental.
Valério
Certo!
Gonçalo
E não era uma máquina tipo cabine telefónica…! Não era uma máquina, ponto! Era uma espécie de estufa… criada para reverter a entropia…
Valério
A entropia de quê?
Gonçalo
De quê, o quê?!
Valério
De um objecto, de um corpo celeste…?
Gonçalo
Não, não, de nada… [pausa] … do pó! Se um quarto estiver fechado durante uns anos… sem ninguém lá entrar… quando alguém o abrir, não estará exactamente na mesma.
Valério
Terá pó!
Gonçalo
Que é desorganização, a segunda lei da termodinâmica e tal…
Valério
Certo, continua!
Gonçalo
Ele fica fechado na estufa… não me perguntes porquê, não me lembro!… [pausa] Acho que tinha havido um beberete qualquer, a experiência foi um sucesso… ele foi com uma colega para a estufa, passaram lá um bocado, estavam bebidos – vês, já me estou a lembrar! – … ela vai-se embora e ele adormece lá dentro…
Pega no seu copo de vinho e bebe com avidez até o esvaziar. Valério volta a atestá-lo, aproveita e atesta também o seu.
Gonçalo
[continuando]
… acorda no dia seguinte… abre os olhos, não se consegue mexer… vê que há movimento fora da estufa… estranha o movimento, porque era suposto estarem todos de folga, a curar a ressaca… mas está toda a gente de bata, e luvas, e capacetes, tanto quanto ele pode ver… as paredes da estufa são densas e desfocam bastante… até que alguns entram na estufa para fazer umas medições quaisquer com uns aparelhómetros… [olha para o amigo] Eu tinha isto tudo bem pesquisado, agora não me lembro bem dos detalhes científicos…
2
Valério
Estou a ouvir…
Gonçalo
[acanhado]
… e… eles estão para lá a fazer as tais medições e cálculos e a trocarem informações… números complexos e tal… e não vêem que ele está deitado no chão, a um canto… andam de um lado para o outro…
Valério começa a rir e engasga-se com o fumo do cigarro que tinha acabado de puxar. Tem um ataque de tosse que se agudiza ainda mais com o riso.
Gonçalo
[contrariado]
Pronto… esquece!
Valério
[tossindo]
Desculpa… mas eu [tosse ainda mais]… eu estou a ouvir.
Gonçalo
[amuado]
Oh…!
Valério
[recuperando]
É que estás a contar uma história interessante… uma estufa, a reversão da entropia… um beberete, os dois que se foram comer lá para dentro… mas porquê um neo-nazi? [desata a rir] É que eu estou atento, mas estou sempre a pensar nisso… Porquê!… Um neo-nazi entra num bar… se começas assim, estás à espera que ele parta aquilo tudo!… ainda por cima português! Quê, tem as quinas tatuadas na testa?!.. Não estás é à espera que ele acenda um cachimbo e peça um whiskey de malte… [pausa] Pronto… desculpa.
Gonçalo
[irritado]
E se ele se sentar no balcão, acender um cachimbo e pedir um whiskey de malte…?
Valério
[rindo]
Porque é físico teórico? [pausa] Olha, agora vais fazer birra…
Gonçalo
Não vou nada! [pausa] Mas o que é que tem ele ser…?
Valério
[interrompendo]
À partida, nada… mas então é só um gajo que entra num bar… e que, por acaso, é neo-nazi! Se dizes “o Gandhi entra num bar”, imaginas logo o gajo pequenino, careca, óculozinhos redondos… e ficas à espera de quê?… de cenas à Gandhi!
3
Gonçalo
Cenas à Gandhi!? Mas, então…
Valério
[interrompendo]
Claro que podes começar com “quem-quer-que-seja entra num bar”, mas tens de contar com a expectativa da malta!… “Aquiles entra num bar”… Mas Aquiles porquê?… Está coxo?! É só um tipo vulgaríssimo a quem lhe deram o nome de um semi-deus?… Vou sempre pensar no nome e no porquê do nome e às tantas ele até pode estar a comer caracóis com os pés que eu vou estar sempre a pensar no mesmo…
Gonçalo
Pensas muito, tu…! [irrita-se] E eu não comecei a história assim, na altura! Não foi “um neo-nazi entra numa estufa do tempo”…
Valério
Então não foi por isso que ta recusaram! [desatam-se os dois a rir] Vá, continua… Gonçalo
Agora esperas…
Gonçalo levanta-se e vai direito à porta da direita alta. Entra e fecha a porta atrás de si, deixando Valério sozinho na pequena sala.
4

18 Fev 2021