Boris Rýji – O último poeta do Império Soviético

Apresentação e tradução de Astier Basílio

In revistapiparote.com.br

Boris Borisovich Rýji nasceu em 1974, na então Sverdlovsk, como era chamada, na época da União Soviética, de Ecaterimburgo, cidade de operários do ramo metalúrgico. Filho de um geólogo e professor universitário, Rýji passou a infância no bairro de Vtorchemet, na periferia. Foi o poeta que melhor descreveu os escombros da queda do império soviético e cantou a tristeza e a desilusão de sua geração pela perda do prometido futuro glorioso.

Começou a escrever poesia aos 14 anos, mesma idade em que se consagrou campeão local de boxe, mas abandonou a atividade esportiva por não concordar com o rigor da preparação sugerido por seu treinador, com vistas a uma participação futura em outra competição. Profissionalmente, seguiu a profissão do pai. Para não ser convocado para o exército, seguiu nos estudos, vindo a concluir doutorado em geologia, em 2000.

No ano em que aconteceu o colapso da União Soviética, em 1991, Boris Rýji casou-se com Irina Knyazeva, colega de turma na época da escola. Em 1993, nasceu Artyem, único filho do casal. Em 1992, os poemas de Boris Rýji começaram a ser publicados na região dos Urais, onde morava. O poeta chegou, inclusive, a assinar uma coluna sobre poesia contemporânea. A consagração veio em 2000, quando Boris Rýji foi vencedor de um prêmio nacional, o Antibooker. Havia sido publicado em Moscou. O sucesso começava a bater na sua porta. Mas o poeta, que vinha enfrentando problemas de alcoolismo, suicidou-se. Tinha apenas 26 anos. Tombou como os “primeiros soldados da Perestroika”, conforme ele próprio descreveu em um dos seus mais conhecidos poemas.

Com o fim do regime, a Rússia engolfou-se numa avassaladora onda de violência e criminalidade. Sem perspectiva, a maioria dos amigos de infância de Boris entrou para o mundo do crime e morreu. Em outro famoso poema, Boris Rýji fala da “culpa por estar vivo”. No calor do momento, ao escrever sobre a morte do poeta, o crítico literário Aleksei Mashevski cunhou uma expressão que acompanha o Boris Rýji até hoje: a de último poeta soviético.

Em 2008, foi lançado Boris Ryzhy (grafia em inglês), com direção de Aliona van der Horst. A película ganhou os prémios de melhor documentário nos festivais internacionais de Edimburgo, na Alemanha, e em Montreal, no Canadá. No filme, vemos a tensa relação do filho adolescente Artyem com o legado do pai. Todavia, ao chegar à idade adulta, Artyem reconciliou-se com a memória do pai. Infelizmente, o jovem também teve um destino trágico. Morreu de parada cardíaca, em 2020, em Israel, onde trabalhava como vendedor em um mercadinho.

Ano passado, dois dos principais canais de televisão aberta da Rússia prepararam programas dedicados ao jubileu de 20 anos de morte do poeta. Rýji vem conquistando o público jovem. Poemas seus têm sido musicados por bandas de punk, declamados por rappers. E já está sendo rodado um filme de ficção sobre sua vida. A direção será de Semyon Serzin, encenador responsável por levar aos palcos “Como tão bem a gente viveu mal”, montagem baseada em poemas de Rýji, que cumpriu temporada em um dos mais importantes teatros de Moscou, o Gogol Center.

Aliona van der Horst mantém ainda um site em homenagem a Rýji (www.borisryzhy.com), em que estão traduções de poemas em inglês, francês, italiano, holandês. Em 2018, foi publicado na Itália “E così via…”, traduzido por Laura Salmon. Ano passado, saiu na França: “La neige couvrira tout”, com tradução de Jean-Baptiste Para. As primeiras traduções em português de sua poesia são de nossa autoria.

No prédio viviam ex-presos…

No prédio viviam ex-presos,

uma fábrica os aceitava…

Eu, bitucas poeirentas,

com meus amigos catava.

Tão carinhosa a amizade,

com toda força a valer

me batiam com vontade

era eu bom em bater

Nós ficávamos sentados

à entrada do quinto andar.

Sempre juntos,  lado a lado,

mas nos separamos já.

Lá jogamos carteado,

lá  bebemos vinho e

por nós eram desprezados

carteira e filme infantil.

Nós devíamos estar

com doze anos, mais ou menos.

não nos separar juramos,

apuro algum não tememos.

… mas apuros têm seus lados,

bem poucos nós  contornamos.

E um vizinho assassinado,

vão na escada carregando

Olhava no rosto deles,

havia medo em seus rostos

… O assassino não sou eu,

meu doce amigo, por pouco.

1996

 

Às noites por lá, Iessiênin se lia…

Às noites por lá, Iessiênin se lia

Dominó jogavam, de um Porto se enchiam.

Da delegacia um polícia desce

Retirando o quepe, sentou-se de lado

E por não ser um verme bebeu um bocado.

O ano é oitenta. URSS.

Fábrica de carne, a pracinha atrás,

Lembro e não preciso lembrar disso mais.

Daqui um mês escola, mas agora tudo

É luz e é ar. O vento. O verão.

“Compre um sorveti para você”. Na mão

Está a moeda e no olhar, as nuvens.

“Obrigadu”. E sai, para trás não olhei.

Dezessete anos passaram, e eu voltei

–Nem luz e nem ar. Muito embora

a pracinha há. Agora, cadê todo mundo?

Eu, tendo a fábrica de carne no fundo,

Ajusto o casaco, levantando a gola.

Nos anos oitenta, cheguei à conclusão

Vocês viveram bem, houve palavrão

Vinho e Iessiênin estimados foram.

Tornaram-se em sombras, os que faleceram.

Mas em minha alma vivem ainda Iessiênin,

URSS, dominó e os escombros.

1997

 

Fabulosos anos e neles a gente…

Fabulosos anos e neles a gente

O ar por cerveja substituía

E ela, como ar, desaparecia,

Mas acontecia de ocorrer às vezes

Por trás do mercado, quando anoitecia,

Conversa tranquila, em pé, no local.

E como tão bem a gente viveu mal,

Com cigarro aceso em meio à ventania.

E, sem ser privada de embelezamento,

Muito embora tenha rude tessitura,

A vida fez grades de uma forma burra,

com filas de caixas que há em nós, por dentro.

E tão somente o céu é quem, pode ser,

Mirou de uma forma doce e atentamente

Quem lidou de um jeito um tanto displicente

Com a maravilha do verbo VIVER.

1997

24 Mar 2022

O futuro radioso

Precisamos das contribuições de certos títulos para sair de um Ano cuja radiação foi catastrófica, Alexandre Zinoviev anteviu muito tempo antes a derrocada da U.R.S.S em várias sinopses que poriam fim ao slogan simbólico e triunfalista de um radioso futuro da Humanidade. Política à parte, trata-se sempre de saber ver que os grandes empreendimentos ideológicos se separam da realidade e que as pessoas não cabem em nenhuma estrutura socialmente modificável, eles avançam, e as pessoas ficam, tão iguais a si próprias como sempre foram, máquinas audazes de sobrevivência. Se trilhássemos todos os países veríamos sem dúvida nos movimentos sociais que estivessem em curso a mais intensa fé dos homens e o seu grande vigor antes dos regimes assentarem os seus dogmas como mortalhas.

Os ciclos extraordinários dão sempre mais do que tiram, e ainda atiram para as urtigas o ranço da estabilidade mórbida que deve ser coercivamente abalroada por uma nova ordem em marcha, nesse momento, soltam-se forças de uma extrema alegria de grupo que duram pouco, mas produzem o melhor. Devagar, voltam então os tiranos com novos emblemas e não se lhes pode exigir grande coisa, a menos que estejamos em Democracia, a qual se tem tornado uma ilusão mergulhada em grandes equívocos nestes últimos tempos em que os amanhãs que a cantam ficam já nas calendas dos radiosos futuros. Se Estaline fez um acordo secreto com Hitler, de pouco ou nada nos valerá para ajuizamento, mas diz o bom senso que nunca se deve confiar nos loucos. Mas também é certo que os negacionistas atravessam-se em todos os ciclos históricos; carregam a gratidão com tanta ferocidade que se torna difícil qualquer confronto lúcido. Longe vai o Gulag, longe parece estar tudo que a intransigência determinou, mas, será que sim? Em cada dia passado neste já longínquo outro regime sentimos a imponderabilidade da marcha, e quando nos levantamos para a complexa estrutura que implantou regras fundamentais, vacilamos perante a capacidade de reversão das massas.

«Beber do rio infectado da matança» também podia ser um título que se contrapusesse à audaz radiosidade da vitória, agora, e depois de laudatórias ovações, as sociedades tão extraordinárias como as do Norte Europeu, acabamos por descobrir a produção de seres vivos aos milhares para fazer casacos “fofinhos” para um mundo de pessoas e ideias mais “fofinhas” ainda. – É! – Putin ri-se, e muito bem, das avarias envenenatórias de que o culpam, o que está certo, um antigo director da K.G.B não anda a brincar aos espiões e muito menos a falhar os alvos, e as razões aparentemente metafísicas de ter ajudado ao desastre não devem ser expostas assim com aleivosidade ocidental que se baralha toda na labuta pela verdade. O futuro do seu país pode não ter sido radioso mas será sempre suficientemente imperial para não deixar de estar atento aos fluxos da radiação do mundo.

Foi um tempo que nos incita agora a pensar na travessia das coisas, e se as ordens de expulsão exercitaram as quedas, hoje mesmo, ninguém sabe para onde fugir, e o que se nota é que tudo cai sem recurso a uma exclusão. O futuro tem cintilações tais que podemos não saber ver o que para aí vem, e se fugirmos para a frente, mesmo assim ainda carregamos os espectros dos passados longínquos, e estas órbitas chegam a um ponto que regressam aos mesmos lugares. Só nós fomos caminhando loucamente na deriva de poder apanhar a nuvem, que era Juno, a modernidade que agora se esvai, e a inventividade que se cansa e produz efeitos cegos para a Cidade única em que se tornou o mundo.

O cientista russo da vacina acaba de cair de uma janela do décimo quarto andar – e voltamos ao soneto – que a poesia já não é prosa, e dela se deitam os cientistas antes de acabar as suas invenções. Com esta suposição de homicídio, o que estava a preparar o senhor para tão vertiginoso fim? O futuro pode até ser radioso, mas nunca transparente. Zinoviev, esse, continua a ser o nosso Pai Natal da Sibéria, o dissidente do passado que nos inspira a conhece-lo e também a saborear a ironia mais audaz como forma de manter viva a lucidez. E nada mais belo que «Ivan o Terrível»!

Sou mesmo Ivan. Até dá riso
Ficar para prá´qui a criar o paraíso,
Para que os nossos filhos se venham a queixar,
Que nome Levi não se possam chamar.
Mas para ser justo, digno, perfeito
Demos a Levi o que é por seu direito.
Já que foi Levi e não Ivan quem se lembrou
De criar o paraíso e a ideia executou.
Forjando um Éden para a sua descendência
E assim levando o pobre Ivan à demência.

5 Jan 2021