Quem é o salvador?

A Igreja Católica diz que o mês de Dezembro é “o mês do advento”, um período de quatro semanas, durante as quais se prepara a celebração do nascimento de Jesus Cristo.

O “Messias”, por quem os Judeus esperavam há muitos anos, foi enviado ao Governador romano que o mandou crucificar, quando tinha 33 anos, por ter cometido o crime de blasfémia ao considerar-se “Rei dos Judeus”. Durante a crucificação, Jesus foi escarnecido pelos soldados romanos: “Ele salvou os outros, disseram, porque é que não se salva a si próprio!

Sobre esse dia já passaram quase 2.000 anos e há 400 anos a Igreja Católica criou a Diocese de Macau. No mundo inteiro, existem cerca de 2,2 mil milhões de cristãos. Ao longo dos séculos, o mundo não se tornou melhor por causa de Cristo e o Reino de Deus nunca desceu à Terra. Pelo contrário, a par do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, a humanidade enfrenta a ameaça de um conflito nuclear, do aquecimento global e da pandemia de COVID-19. Quem poderá vir a ser o salvador do mundo contemporâneo, numa altura em que a Morte lança sobre nós a sua sombra?

Passaram três anos sobre o surgimento da pandemia de COVID-19. Há pouco tempo, vinha a atravessar a Ponte da Amizade, no sentido Taipa-Macau e vi à distância Porto Exterior completamente deserto. Embora os seis operadores de jogo tenham recebido a prorrogação dos contratos de exploração de jogos de fortuna ou azar em casinos por mais 10 anos, as receitas continuam muito baixas devido aos surtos recentes de COVID-19 no continente.

Embora a China possa vir a aliviar as medidas de prevenção da pandemia num futuro próximo e o Governo da RAEM tenha recentemente feito ajustes nos seus esforços de controlo da pandemia*, os “danos secundários” causados à sociedade, no processo de dar resposta aos surtos de COVID-19, far-se-ão seguramente sentir a curto prazo, ao passo que as medidas implementadas para os remediar tiveram um resultado que ficou aquém do esperado.

Os desastres naturais podem ser superados, mas os desastres criados pelos homens são difíceis de compensar. Jesus nasceu para salvar o mundo e o seu sacrifício destinou-se a expiar os pecados da Humanidade. Sun Yat-sen foi um revolucionário disposto a sacrificar-se, para salvar a nação do jugo das potências estrangeiras e para derrubar a corrupta dinastia Qing. Sun quase caiu na emboscada montada pelos funcionários da embaixada do Governo Qing em Londres.

Hoje em dia, “Os Três Princípios do Povo” defendidos por Sun tornaram-se os princípios orientadores de Taiwan. Na China continental existe uma canção muito famosa chamada “Dongfanghong” (O Oriente é Vermelho), cuja letra começa assim: O Oriente é vermelho, é aqui que o Sol nasce. Na China surge Mao Tsé-Tung. Ele luta pela felicidade do povo, ele é o grande salvador do povo!

Servir o povo e procurar a sua felicidade deveria ser a ambição de todos os homens de estado. No entanto, o poder corrompe e quantos podem permanecer fiéis a si próprios perante o dinheiro e o poder?

A História continua a repetir-se. Aqueles que estão determinados em salvar o mundo acabam por ser mortos, enquanto os seus assassinos passam por salvadores. Hitler, Mussolini e outros declararam que queriam restaurar a glória dos seus respectivos países, mas acabaram por conduzi-los para o abismo. Uns versos do famoso hino “A Internacional”, dizem o seguinte: Il n’a pas de sauveurs suprêmes, Ni dieu, ni César, ni tribun, Producteurs, sauvons-nous nous-mêmes !

Acredito que a felicidade deve ser procurada por cada um de nós. Mas como católico, acredito piamente que Jesus é o nosso Salvador. Jesus quis salvar os povos de todo o mundo, mas as pessoas rejeitaram a salvação.
Se a humanidade não se arrepender sinceramente dos seus pecados e não aprender com os seus erros, mesmo que o salvador venha novamente, já nada poderá voltar a ser como era.

• *Artigo escrito a 7 de Dezembro

16 Dez 2022

Pessoa, o Oriente e a Sociedade Teosófica

A palavra de ordem dos românticos alemães: “É no Oriente que devemos procurar o romantismo supremo” (F. Schlegel). Mas nunca conseguimos sair do plano das representações. Seria preciso esperar pelas vagas de emigração de proveniência dos países do mundo árabe e da Ásia, a partir dos anos 60, na Europa, e em Portugal nos anos 90, para termos acesso não a textos sufocados por traduções, mas a pessoas reais, com práticas e contextos reais. Mas já de antes o Oriente do budismo, do Hinduísmo, numa espiritualidade muito diluída e mal traduzida, exerciam um verdadeiro fascínio na Europa, ainda que sempre separado e alheio do contexto religioso, social, doutrinal em que nasceram. Acresce a isto o Esoterismo, que tantas vezes se misturou com muitas destas tradições, mas que tem uma linha europeia própria: tradição hermética, alquímica, maçónica, cabala, simbolismo cristão.

Um dos movimentos que mais fama teve, e logo na segunda metade do século XIX, foi a Sociedade Teosófica, cuja principal força motriz foi fazer essa ponte entre Ocidente e Oriente, daí o seu resultado textual ser fortemente orientalizado. Esse movimento propôs uma fortíssima e sincera revalorização das espiritualidades orientais. Com efeito, a fase madura da doutrina de Helena Blavatsky (1831-1891) foi influenciada pelo Hinduísmo e, mais tarde, pelo Budismo, sobretudo depois da sua viagem à Índia, em 1878, que deu origem à esmagadora obra em seis volumes A Doutrina Secreta (1888). É de notar que, instalada na Índia desde 1883, a Sociedade deu apoio ao combate anti-colonial contra os ingleses.

Fernando Pessoa descobriu a Teosofia em 1915, tendo traduzido para Português várias obras teosóficas como a da Voz do Silêncio, de Helena Blavatsky, datada de 1916. Mas a sua relação com o movimento e com a Sociedade não ultrapassa o papel de estudioso e tradutor, nem consta que tenha sido filiado. De qualquer modo, a espiritualidade tradicional indiana, e asiática em geral (ou uma certa imagem dela), passa a ser um objeto de pesquisa de Pessoa e entra na formação do pensamento esotérico pessoano. Não por acaso o poeta Ricardo Reis e o filosofo António Mora sentem a necessidade de serem dois acérrimos críticos do Esoterismo, pois também no ensaio e na reflexão sobre estas questões a autoria heteronímica entra em cena. As posições da côterie heteronímica sobre esta questão são, como seria de esperar, diversas e contraditórias.

O inicial respeito e fascínio conduz a um progressivo desconforto que o poeta e intelectual vai experienciando com esta tradição. Tal implica um repúdio face ao Oriente reciclado que a Teosofia apresentava, o que é visível neste apontamento inédito, datável da década de dez [c. 1917], onde se opõe a perspetiva teosófica ao Rosacrucianismo: “A Rosicrucian is a kind of occultist a man <† to> of <†> /our/ mind can understand. He cannot understand a neo-buddhist. The detestable indian sub-jugglery, called Theosophy, so despicably, taken far from the great, though diseased beauty of the Buddhism of the East, by its □ mixture with /western/ modernities” (BNP/E3, 26B-8r).
Mas a crítica pessoana à Sociedade Teosófica visa não apenas as suas roupagens orientalizadas. Outro dos incómodos, para Pessoa, consistiria na vulgarização dos princípios do Esoterismo, que defendia não deverem ser massificados, ao contrário do que a Teosofia propunha, bem como no seu “humanitarismo” militante, visto pelo autor como uma espécie de novo supracristianismo, incompatível com o projeto do anti-cristianismo neo-pagão que estava a desenvolver. Confessa numa importante carta a Mário de Sá-Carneiro, datada de 6 de Dezembro de 1915, e que pode ser conferida pelo primeiro volume da edição de Manuela Parreira da Silva da Correspondência: “A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pela sua grandeza ocultista, repugna-me pelo seu humanitarismo e apostolismo (…), repugna-me por se parecer tanto com o cristianismo, que não admito”. Por isso, o caminho do esoterismo pessoano vai divergir para o Rosicrucianismo, a Alquimia, a astrologia ocidental. Mas certas ambições pessoanas de criar um sistema totalizante, que unisse as religiões, as filosofias, a ciência e da literatura, é da Teosofia que recebem o seu primeiro modelo e impulso de escrita.

9 Jun 2021

O Oriente dói

[dropcap]M[/dropcap]esmo os mais distraídos (o que por vezes inclui a crítica) terão notado a obsessão arqueológica presente em vários livros de poesia publicados sobre o Oriente por portugueses, desde o século XIX até hoje. Eles parecem estar sempre à procura (e por tanto que procurem é fácil encontrar) dos lugares, monumentos e inscrições da presença de Portugal na Ásia, mesmo tendo que escavar não só por entre a vegetação tropical que entretanto engoliu as igrejas jesuíticas, mas também por entre os resquícios mais visíveis de feitorias holandesas e de empresas britânicas que tomaram conta do nosso empório. Couto Viana disse-o em No Oriente do Oriente (1987): “O português no Oriente/ Encontra sempre sugestões, sinais” (p. 35).

Mas não só de ruínas vive esta poesia. Os próprios poetas portugueses que calcorrearam a Ásia são também recuperados como elos desse chamado Oriente Português. E assim Camões, Mendes Pinto, Bocage comparecem como personagens literárias sem as quais não é possível entender a Ásia, em poemas e outros textos de Camilo Pessanha, Alberto Osório de Castro e, mais recentemente, de Ruy Cinatti, Armando Martins Janeira, António Manuel Couto Viana, José Augusto Seabra, Carlos Morais José e de Luís Filipe Castro Mendes, formando uma linhagem de autores com uma ligação simultaneamente vivencial e estética ao chamado Oriente Português. Esta tem vindo a depender sobretudo de funções representativas do Estado, desde o próprio Camões, que em Macau terá sido (para quem esterilmente busca provar a veracidade histórica do mito) “provedor-mor de defuntos e ausentes” até aos diplomatas Seabra e Castro Mendes.

Mas não é apenas a profissão e a vivência directa de um espaço comum que os une. Trata-se de uma tradição com os seus tópicos particulares, directamente relacionados com as biografias dos autores, que como que performatizam a sua errância pela Ásia, mitificando-a à luz dos seus antepassados prediletos, quase sempre Camões e Mendes Pinto, de que sentem repetir os passos. Assim, uma das características desta poesia tem sido a constante mediação de referências literárias portuguesas para entender o próprio Oriente. Ao afeto pelas coisas asiáticas interseciona-se uma obsessão por encontrar Portugal e as marcas da sua cultura necessariamente imperial.

Muitas vezes a inscrição de Camões e de Pessanha como âncoras familiares contra a inalienável estranheza da Ásia são também problemáticas, por que podem trazer consigo construtos discursivos a que alguns chamam orientalistas. Este tipo de intertextualidade facilmente é lida à luz do mecanismo, apontado por Edward Said em 1978, de legitimação do discurso orientalista pela referência à autoridade de outros plumitivos. Mesmo que não seja esse o caso, é um tanto ou quanto irresistível, para um poeta português que habite na Índia e em Macau e que sobre ela escreva, falar de Camões e até mesmo de Pessanha. Homenagear ou repetir Camões e Pessanha não é, em si mesmo, um gesto orientalista, mas arrasta fortes implicações provindas da tradição onde tal homenagem acontece.

De qualquer das maneiras, e para quem tende a observar a Ásia com uma lente portuguesa, exige-se prudência nas experiências exóticas. Essa prudência está sobretudo nos que aqui mais tempo passaram. Ela está – tanto que sobre ela escreveram – em Wenceslau, em Pessanha, em Cinatti, e menos em outros.

Quando se vê o Oriente por aquela lente é como se ele doesse menos, pois a ignorância do europeu perante o “misterioso” Oriente (afinal também ela um conhecido tópico) é por vezes cansaço, como no poema de Castro Mendes «Um orientalista confessa-se», de Lendas da Índia (2012): “O Oriente dói,/ Alheio aos nossos conceitos estafados,/Desfeitos pelas chuvas da monção/ Ou dispersos pelos ventos do deserto” (p. 36).

Assim, junto com a prudência vem a ironia sobre o próprio olhar europeu sobre a Ásia, neste e noutros poetas mais recentes, o que modula este quadro. Mas afinal estamos sempre dentro do olhar europeu, e não nos são permitidas mais do que voltas concêntricas, que noutro lugar tocam o mesmo ponto.

8 Mai 2020

Coisas do Oriente

[dropcap]O[/dropcap]riente é o particípio presente do verbo latino orior que, embora depoente, significa tão-somente levantar-se. Oriente é, portanto, o lugar onde o sol se ergue, para iniciar o seu caminho aparente no céu.

Houve vários orientes para o europeu: primeiro a separação entre a Oikoumenè grega, o Mediterrâneo, e todo o resto do mundo, baptizado como Oriente, num primeiro momento que vai desde a afirmação militar perante os Persas, no séc. V antes de Cristo, até ao expansionismo de Alexandre.

O segundo, de maior fortuna, seria o Islão (e durante a Era Moderna o mundo otomano), esse Oriente que tivemos por largos anos dentro do território português.

Finalmente, houve e há ainda Bizâncio, sobrevivente do cisma religioso do século XIII. Na terminologia da Igreja, a palavra designa aqui as cristandades do Leste, sendo que os Balcãs e a própria Grécia, a raiz da racionalidade do Ocidente, fazem dele parte. Ou seja, não há quase lugar nenhum, nem mesmo as Américas, essas índias ocidentais, a que não tenha já sido dado ser Oriente. Como disse Raymond Schwab em A Renascença Oriental (1950), o Oriente tanta terra diferente designou que já bastou para dar a volta ao mundo. No imaginário europeu da Idade Média (e é de um imaginário que falo, não de um lugar), o Oriente tinha em si no início largas partes de África. Depois, com as expansões europeias, vai-se afastando, até ao Extremo da Eurásia, lançando o Preste João cada vez para mais longe.

Deixa de ser um obscuro papa núbio para se tornar um lama tibetano, um letrado confuciano ou até um pajé dos guarani. Mas quando dizemos Oriente, onde estamos ou, mais precisamente, onde achamos que estamos? Certamente, pelo menos é o que ficou marcado na linguagem, ainda nos entendemos na Grécia, pois é esse o ponto de referência ficcionado onde quisemos crer que se separaram as largas massas de terra do mundo, cindindo-se em duas: dum lado a razão, doutra a irrazão, lembrando Roger Pol-Droit.

Mas quem diz Oriente, pode realmente estar no Oriente, ou está apenas num ponto em que observa o sol a chegar desse Oriente que é sempre mais a oriente? É preciso não esquecer que o Oriente não é um lugar, é apenas uma direcção. O Oriente não existe.

Uma das palavras-chave da cultura portuguesa, de acordo com António Quadros, deu o verbo orientar. Talvez levado do português a outras línguas latinas, esse orientar-se trouxe consigo naus, impérios e quejandos. Isso está tudo muito bem, ou muito mal, pois tudo isto são úteis ou até perigosas fantasias, como sabemos, ainda que bem úteis para os Huntingtons deste mundo (ou do outro, o Ocidente, para ser mais preciso), que tudo dividem em grandes blocos, dum lado os cavaleiros de barretes brancos e do outro os pérfidos persas, de tez escura.

Como na recentemente estreada série Messiah, em streaming no canal Netflix, sobre a segunda vinda do Cristo (o primeiro já havia sido responsável por uma perigosa seita oriental) ao mundo. A funcionária da CIA, no café que costuma frequentar para tecer as teias do imperialismo, tem uma converseta amena com o empregado, por mero acaso um rapaz negro. Repara que ele lê para um exame The Clash of Civilizations, e diz-lhe: “Tudo o que você tem que saber é que ele estava certo. Huntington previu que o principal eixo do conflito mundial após a guerra fria seria de natureza cultural e religiosa. É exactamente o que está acontecendo na política mundial hoje”.

Tudo isto me leva a crer que talvez nós, aqui nesta Cidade do Santo Nome de RAEM, não vivamos de facto no Oriente. É possível que este seja ainda mais a oriente, nalguma ilha da Samoa ou do Corvo, algures a oriente do oriente.

17 Jan 2020

Palavras perdidas

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om limitado conhecimento da gastronomia japonesa e dos restaurantes locais, foi num restaurante de sushi que jantei na primeira noite que passei no Japão. Sentado ao balcão, fui escolhendo as peças que o chefe preparava, até que chegou o inevitável momento em que me perguntou de onde vinha. Disse-lhe que era português e a resposta foi imediata e surpreendente: Ah, Francisco Xavier! Habituado como estava, nos vários países por onde fui antes passando, a só ver reconhecidas figuras do universo futebolístico nacional – ou eventualmente Saramago e Pessoa, em contextos mais específicos – não pude evitar a surpresa de tal referência histórica, em conversa informal com o chefe que ia proporcionando deliciosas iguarias. Viria depois a perceber que é comum no Japão este conhecimento do jesuíta português que em 1549 desembarcou em Kagoshima (perto de Nagasaki) para se tornar o primeiro padre cristão em território japonês.

Tive mais tarde a oportunidade de visitar Nagasaki, hoje a cidade da paz, que os acasos climatéricos fizeram com que fosse bombardeada quando já a II Guerra Mundial parecia irremediavelmente perdida pelo exército japonês. Era Fukuoka o alvo da segunda bomba atómica que explodiu no Japão e foi o nevoeiro que cobria a cidade e prejudicava a visibilidade que levou à opção pelo plano alternativo, provocando a destruição de Nagasaki. Além dos impressionantes memoriais deste momento atroz na História da Humanidade, a cidade guarda ainda outras memórias, como a dos 26 mártires cristãos, entretanto feitos santos, mortos após a ilegalização do cristianismo, durante a perseguição aos cristãos recentemente mostrada no cinema com a adaptação por Martin Scorcese do magnífico romance “Silêncio”, escrito pelo japonês Shusako Endo. Apesar da proibição, o culto cristão havia de permanecer clandestinamente em pequenas povoações próximas de Nagasaki, o que é hoje assinalado em diversas igrejas e monumentos.

A importância religiosa de Nagasaki está naturalmente ligada ao porto, onde chegaram os mercadores portugueses, o primeiro povo europeu a pisar as terras do Sol Nascente. Ainda que tenha sido Fukuda a acolher as primeiras embarcações, o porto de Nagasaki viria a abrir em 1571 e a tornar-se desde então um ponto privilegiado para o comércio com a Europa. Hoje assinalado como um importante elemento histórico da cidade (e atração turística), o porto de Dejima (uma ilha artificial) foi construído em 1634 para acolher as mercadorias e os mercadores portugueses, incluindo as necessárias infraestruturas e também residências para comerciantes e comandantes dos navios. Não duraria muito, no entanto, esse privilégio atribuído a Portugal: com a intensificação da perseguição religiosa, os mercadores portugueses seriam banidos e a partir de 1639 o porto seria usado apenas por embarcações chinesas e holandesas, passando a Holanda a ter o privilégio do comércio com a Europa. Hoje, o porto de Dejima, reconstruído em parceria com uma Universidade holandesa, é um monumento nacional que recria uma aldeia dos Países Baixos, com a sua típica arquitectura e objectos decorativos.

Outro ilustre português – Wenceslau de Moraes, cônsul no Japão durante mais de vinte anos desde o final do século XIX e que haveria de aí morrer em 1929 – adianta uma explicação para a preferência dos japoneses para o comércio com a Holanda. Conhecedor da língua japonesa, Moraes dedicou grande parte da sua vida ao estudo da história do país e, segundo conta no seu “Relance da História do Japão”, um encontro entre um “shogun” (a figura nomeada pelo imperador japonês para administrar o país) e um mercador castelhano terá sido decisivo. Perguntado sobre a dimensão do reino de Castela, o mercador terá descrito as terras conquistadas na América Latina, levando o “shogun” a questionar como era possível a um só rei ter conquistado tão vastos territórios. Terá o mercador respondido que primeiro eram enviados os padres e só depois os exércitos, o que leva Moraes a especular que essa terá sido a principal razão para que no Japão se substituíssem os mercadores portugueses pelos holandeses, mais virados para o intercâmbio comercial do que para a exportação de religiões. Hoje é notória a presença holandesa em Nagasaki, com o porto de Dejima, lojas e restaurantes de nome holandês e até a reprodução de uma mini-cidade holandesa como parque temático para turistas nos arredores da cidade.

Já a presença histórica portuguesa é muito pouco visível nas cidades do Japão, apesar das discretas estátuas que homenageiam Francisco Xavier – na povoação de Hirado, onde terá feito várias missas – e Wenceslau de Moraes – em Tokushima, onde está sepultado com a esposa e a sobrinha, ambas japonesas. Sobram as palavras, que foram ficando, com mais ou menos felizes adaptações: botan (botão), kapitan (capitão), kappa (capa, que corresponde ao que é mais comum hoje designar como gabardina), koppu (copo) ombu (ombro), pan (pão) ou tabaku (tabaco) seguem de perto a fonética e o significado corrente em português; já Bidoru designa vitral, e não vidro, “tempura” designa as frituras de peixe e vegatais, inspirando-se nas têmporas, dias de jejum em que os cristãos não comiam carne, enquanto o popular doce que sabem ser de origem portuguesa e que no Japão é designado como “kasutera” corresponde ao que em Portugal chamamos pão-de-ló, para grande desgosto da população japonesa, que esperava estar a usar uma palavra genuinamente portuguesa. Pela minha parte, fico pelos confeitos, também comuns às línguas portuguesa e japonesa, para dar o tom a esta confeitaria.

12 Out 2018

Carlos Botão Alves, autor de “O Oriente na Literatura Portuguesa”: “Uma cultura procura na outra o que lhe falta”

 

“O Oriente na Literatura Portuguesa – Antero de Quental e Manuel da Silva Mendes” é o mais recente trabalho de Carlos Miguel Botão Alves, professor e investigador no Instituto Politécnico de Macau. É uma análise de textos dos autores portugueses com vidas e reconhecimentos diferentes mas, que em comum, têm uma forte influência da cultura oriental, e dos princípios budistas e taoistas

 

Como é que escolheu a temática deste livro?

Vem na linha de várias discussões que tive com professores de Portugal que me alertaram, desde a minha formação inicial na Universidade Católica, para a necessidade de explorar não tanto a filosofia, porque não é um saber racional autónomo no Oriente, mas antes a sabedoria oriental que tem vindo a ser aperfeiçoada. Depois, em Paris, quando fiz a minha formação específica em Tradução, o estudo foi melhorado com o diálogo muito próximo com a professora Helena Carvalhão Buesco. Apareceu uma área de estudo de Antero de Quental que teria que ver com o Budismo. Eram pesquisas do final de séc. XIX e tinham uma perspectiva assumidamente eurocêntrica. Quando fui leitor de português em Deli, de 1993 a 1995, tive ocasião de apurar ainda mais o campo de estudo da influência budista e pude delimitar mais concretamente o âmbito da minha análise. Foi um trabalho que esteve a marinar e a ser desenvolvido desde 2001/02 até 2014/15, quando acaba por ser redigido.

E porquê o paralelismo com Manuel da Silva Mendes, autor que viveu em Macau?

Tive contacto com os textos de Manuel da Silva Mendes já em Macau em 1990. Apercebi-me que o que se tinha escrito até à data sobre ele tinha muito que ver com a vertente da reflexão política e, sobretudo, com a análise que fazia pelo empenhamento que tinha na política portuguesa. Era republicano, do Norte, e com génese num proletariado que poderia existir na época. Explorava-se muito os seus escritos no sentido da análise de um socialismo utópico e mesmo anárquico. Mas muito pouca coisa, ou mesmo quase nada, apareceu relativamente aos textos que fez e a que chamo de ensaios. São artigos que publicava dedicados à exploração que fazia das temáticas da filosofia oriental. Quando comecei a colocar a par os textos de Antero de Quental e os de Manuel da Silva Mendes pensei que faria todo o sentido aproximá-los no sentido de criar linhas de leitura que pudessem ser exploradas por quem quisesse estar interessado pela sabedoria do Oriente. Esta parceria entre os autores pode parecer um pouco desequilibrada porque Antero de Quental tem um lugar mais que estabelecido no panorama literário português e Manuel da Silva Mendes nem tanto. Mas a literatura comparada tem também este objectivo, o de trazer para o palco autores não tão conhecidos por via de outros já reconhecidos. Pensei ainda que seria interessante fazer este paralelismo porque desenvolvi a minha vida em França e Portugal, e depois em Macau e na índia. Aqui tenho os dois mundos. Tive sorte por ter dedicado mais de dez anos a leituras para poder escrever o livro. Tive uma mulher que tomava conta de mim e das crianças, o que é muito importante. Pude analisar os textos em profundidade e dar uma visão cultural da segunda metade do séc. XIX e da primeira do séc. XX. O virar do século é fundamental na formação de consciências tanto a Oriente, como a Ocidente. São dois autores empenhados politicamente, ou seja, o que fazem não é uma mera reflexão filosófica, não é uma satisfação individual, quase egoísta. São autores que procuram precisamente, no aliar da tradição ocidental com a oriental, instrumentos de análise para poderem ter uma praxis. São homens extremamente activos, homens que escrevem, que insultam, que vão para os jornais. Mas, ao mesmo tempo, eram pessoas que percebiam que esta prática intensa só faria sentido se fosse bem grudada na realidade, e a realidade é reflexiva. Não se trata de uma mera erupção intelectual e é isso que está pouco estudado na literatura portuguesa. Em Portugal não temos muitos exemplos de autores que estejam no entrecruzamento dos registos literário e filosófico. Literariamente somos riquíssimos mas, do ponto de vista de uma reflexão metafísica e ético-moral, será bastante difícil encontrar nomes. O virar do século proporcionou alguns enquanto excepção: o Feijó, o Quental, o Silva Mendes em Macau e, mais tarde, o Luís Gonzaga Gomes. Os textos em que me baseei foram precisamente os da compilação de Luís Gonzaga Gomes. Era o principal discípulo de Manuel da Silva Mendes, no sentido de que é filho da terra e tinha a riqueza de poder ler e escrever a “outra língua”.

O livro começa precisamente com uma frase do Umberto Eco acerca da tradução de conceitos. Como é que estes autores, do final do séc. XIX, desenvolviam estes conceitos que, muitas vezes, não existiam na sua própria cultura?

O despertar dos estudos orientais acabou por ser um conceito abusado no sentido mais negativo de uma imposição europeia face ao outro, para o minimizar. Os estudos orientais eram uma tentativa de tornar o Oriente manejável e dominável aos olhos de um Ocidente que imperava. Muito além disso, os estudos orientais começam precisamente pela análise filológica, primeiro em França e depois nas universidades alemãs, no final do séc. XVIII, início do séc. XIX. Na viragem do séc. XIX para o séc. XX temos um retorno à filologia. Temos uma tentativa de procurar nos textos uma verdade, ou aspectos dessa verdade, percebida como o entendimento que o Homem pode ter de si na realidade, baseando-se na compreensão dos textos orientais por defeito da filosofia e do pensamento europeu. Digamos que é por deficiência, mas os contactos culturais são sempre assim, uma cultura procura na outra o que lhe falta. Institucional e politicamente, os impérios estendiam-se pelo Oriente mas, culturalmente, estes homens não tinham uma pretensão de domínio. Silva Mendes sentava-se nos templos de Macau a falar com os monges. Estes homens estavam numa tentativa de procurar, na cultura oriental, o que não era visível e podia colmatar deficiências que, naquele momento, a cultura europeia tinha – uma cultura muito marcada pela industrialização e pelo positivismo que também teve o despontar da procura do novo homem com Feuerbach e Nietzsche. Antero de Quental e Silva Mendes procuravam, aqui, um novo sopro de espiritualidade que a Europa não teria de forma tão vibrante. É essa confluência que quero mostrar quando falo de tradução cultural. Não é propriamente uma tradução de termos, mas sim a procura que uma cultura faz de elementos na outra cultura por deficiência e a capacidade que determinados autores têm de se apropriarem desses conhecimentos que observam na outra cultura, e de os trazerem e tornarem palavras na própria para que façam sentido. É o que me parece que estes dois autores fizeram: uma leitura do mundo e do percurso humano. São homens muito empenhados na renovação do ser humano com ideias de igualdade.

Um pensamento ainda muito actual?

Deveríamos voltar às línguas clássicas. A gritaria que se passou em França pela tentativa de tornar opcionais as línguas clássicas europeias, como o grego e o latim, é um exemplo dessa necessidade. Há uma urgência em voltar a encontrar a origem e o sentido de determinadas culturas num mundo que pode vir a perder sentido quando demasiadamente globalizado. Quando a ênfase da globalização reside na mera globalização – e a globalização não é propriamente uma troca ou um encontro, mas antes o esbater de características –, podemos correr um risco e, daí, a actualidade dos estudos deste tipo. Há a necessidade de procurar num mundo globalizado, não só as nossas raízes, mas também aquelas que temos através do confronto, do contraste e do diálogo com a alteridade. Para o fazer, é necessário estarmos conscientes daquilo que somos. Só há diálogo quando há troca e só há troca quando temos alguma coisa para dar. São autores que fazem uma reflexão própria e a tradução cultural que operam não é só de termos budistas e taoistas para análise metafísica mas, sobretudo, para orientações ético-morais. São autores de charneira e formativos da nossa cultura. O texto da não-acção, por exemplo, tem uma ressonância extremamente oriental, mas se lermos os textos pré-socráticos o conceito já lá está. Claro que os franceses vão de imediato dizer: “Pois, mas os textos pré-socráticos são da Ásia Menor”. A não-acção não tem a ênfase no não, mas sim na acção. Não é não fazer nada mas é, sobretudo, a promoção máxima do ser humano em reflexão. É isso que é o Oriente. A procura que o sujeito faz dentro de si e da sua própria natureza. Quando isso acontece, a acção exterior, a do fazer, deixa de ter sentido porque passa a ficar orientada por esse autoconhecimento. O “conhece-te a ti mesmo do Sócrates”, não é se não isto.

Os autores de Macau são muito pouco conhecidos internacionalmente e este é um livro que tenta promover um deles. Porque é que a literatura feita cá não chega a Portugal?

Macau tem autores diferentes. Tem pessoas que pensam sobre determinadas questões e fazem-no de uma forma diferente. Na Índia é a mesma coisa, existem vários autores que não são conhecidos de todo em Portugal, no Brasil, etc., porque as edições portuguesas não são feitas para serem publicadas nos lugares onde se fale o português. Se olharmos para a Oxford University Press e para a Cambridge University Press, promovem um mesmo título e uma edição aparece ao mesmo tempo nos vários centros do mundo anglófono. Nós não temos essa tradição, não temos a divulgação feita e agilizada de tal forma que permita que o mundo de língua portuguesa lhe aceda. É um mundo muito vasto, o que é bom, mas muito disperso geograficamente e sem essa ligação de editoras, de crítica textual e de academias. Outra questão é a da tradução. Os meus colegas, por exemplo da Universidade de Hong Kong, não conhecem as obras de autores portugueses porque não estão traduzidas. Se nos quisermos dar a conhecer, temos de dar o texto preparado com outras linguagens e não podemos fugir à tradução para as línguas principais: o inglês e o francês. A língua portuguesa tem um papel fundamental no diálogo entre Oriente e Ocidente. Foi a primeira a chegar e a última a ir embora, mas tem de saber traduzir-se para outras línguas. A língua, quando comunica, comunica também a cultura. A língua é sobretudo cultura, é uma visão do mundo. Ao se conhecer uma língua percebemos o mundo de uma forma diferente, mais rica.

19 Abr 2017