João Luz Manchete SociedadeRui Afonso | Macau de luto com a morte de advogado e antigo deputado Faleceu na sexta-feira um homem cuja história pessoal e profissional é fundamental nas últimas décadas de Macau. Rui Afonso é recordado como uma figura incontornável, de grande elegância no trato e com princípios de correcção e ética inabaláveis. Ajudou a modernizar a legislação do território e a preparar a abertura de Macau ao mundo Rui Afonso, “uma figura histórica de Macau” [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ificilmente se encontra uma pessoa que reúna consensos. É coisa rara, ao alcance de poucos. Porém, Rui Afonso é uma dessas pessoas, granjeando um respeito transversal mesmo entre aqueles com quem discordou politicamente. Faleceu na passada sexta-feira uma figura incontornável aos últimos 30 anos em Macau, em particular durante o período de transição para a Administração chinesa. De uma correcção e finura reconhecida por todos, foi pai da abordagem do modelo político-constitucional e jurídico-administrativo português importado para o ordenamento de leis do território. Em termos pessoais, José Luís Sales Marques destaca Rui Afonso como uma “pessoa que sempre mereceu o maior respeito da sociedade de Macau”. Pouco tempo depois de ter chegado ao território foi nomeado director dos Serviços de Administração e Função Pública, ajudando a reformular a máquina administrativa. Assumiu as funções de deputado entre 1984 e 1997 na Assembleia Legislativa (AL), onde participou no desenho do ordenamento jurídico do território que, em parte, perdura até hoje. Foi, ainda, membro do Conselho Consultivo da Lei Básica e do Conselho Superior de Justiça de Macau. “O contributo do Rui Afonso para a modernização legislativa do território é inestimável, algo que aconteceu dentro e fora da Assembleia”, conta Anabela Ritchie, ex-presidente da AL. Neste papel, destaca o carácter “trabalhador, incansável e rigoroso” do deputado. Fica na memória da ex-parlamentar como uma pessoa muito atenta, dialogante, estimado e respeitado por todos. O inteiro quadro legislativo que passou pela AL nos anos de transição foi “analisado por nós ao pormenor, a opinião de Rui Afonso era muito escutada”, recorda. Também no plano político foi alguém que ajudou a ex-presidente da AL a alcançar consensos, algo que era uma característica muito vincada na sua personalidade. Conseguia reunir harmonia naturalmente através da sua finura de trato e apurada argúcia. Rui Afonso foi uma das pessoas responsáveis pelo alargamento do sufrágio e imprimiu uma visão moderna a Macau, principalmente no que toca ao desenvolvimento de condições para a abertura do território ao mundo. Leonel Alves retrata a advogado como um “exímio parlamentar”. Neste detalhe, o histórico deputado na AL confessa não perceber porque Rui Afonso nunca seguiu a carreira política em Portugal. “Daria um bom deputado na Assembleia da República, e tinha perfil para fazer um percurso governativo de relevo”, completa. Finura na crítica Mesmo na discórdia política granjeou o respeito dos seus pares. “Quer se concorde, ou não, ele teve uma influência importante em tudo o que nós vemos no próprio sistema político que herdámos destas últimas décadas”, comenta Miguel de Senna Fernandes. O deputado que substituiu Rui Afonso, depois deste ter pedido a demissão das suas funções na AL, acrescenta que o advogado “é uma figura histórica de Macau”. Uma das fases mais marcantes da acção de Rui Afonso em prol da transparência política em Macau deu-se quando entrou em choque com a administração do, à altura, Governador Rocha Vieira, nomeadamente com posições que tomou enquanto deputado na AL. Sérgio de Almeida Correia, amigo e colega de Rui Afonso destaca o amor incondicional que este tinha à liberdade. Algo que o advogado sentiu na pele numa altura em que assinava artigos de opinião muito críticos em relação à Administração de Rocha Vieira. “Cheguei a dizer-lhe que ia deixar de escrever porque achava que estava a criar problemas ao escritório”, conta o amigo de Rui Afonso. A resposta que recebeu foi: “nem pense nisso, porque aquilo que está a fazer é muito importante para os portugueses e para a população de Macau”. Sérgio de Almeida Correia salienta o carácter de um homem que abominava “trafulhices e golpadas”. Neste registo, o advogado categoriza Rui Afonso como “um homem de palavra, dos mais sérios e honestos que conheceu” em toda a sua vida. Enquanto deputado, era alguém muito atento aos reais problemas de Macau, ao que era necessário ser feito. Nesse aspecto, Sérgio de Almeida Correia recorda que Rui Afonso era implacável com promiscuidades entre a produção legislativa e os casos de justiça que corriam nos tribunais. Quando apareciam propostas de alterações pontuais às leis para favorecer um tribuno, ou um interesse que este representasse, a resposta de Rui Afonso era implacável. “O que vemos hoje já acontecia de forma velada, seja quando é aprovada legislação que lhes dá jeito, ou quando não aprovam legislação para não serem prejudicados nos seus negócios”, explica o advogado. Sérgio de Almeida Correia salienta que “antigamente isso não acontecia como acontece hoje, porque havia gente na AL como o Rui Afonso, que não o permitia”. Apesar do lamaçal que a política sempre envolveu, ainda havia defensores da legalidade, com uma conduta “do ponto de vista moral e ético de grande integridade”, explica. Defensor da transparência Anabela Ritchie concorda com esta visão de rectidão, acrescentando que foi uma pessoa que “não levou os aspectos e interesses pessoais para dentro da AL”. Esta característica intrépida ficou vincada no seu papel aquando do relatório à Fundação Oriente, em que ficou patente que os fundos que eram recebidos da indústria do jogo, “eram pura e simplesmente canalizados, na íntegra, para Portugal”, conta Sérgio de Almeida Correia. Algo que não agradava, naturalmente, à população de Macau, em particular aos chineses. Nesse aspecto o advogado destaca o papel de Rui Afonso, que “foi a primeira pessoa a dizer que a única saída decente para aquilo era devolver o dinheiro a Macau”. De acordo com o amigo, uma das coisas que Rui Afonso mais abominava era a forma como os dinheiros públicos eram geridos na recta final da administração portuguesa do território. Aliás, este grau de integridade valerem-lhe o respeito por todos os sectores da sociedade. “Foi uma peça importante para o estabelecimento de pontes entre as diversas comunidades, aliás, a comunidade chinesa tinha por ele um grande apreço por ele”, explica Leonel Alves. Bombeiro de serviço A sua coragem não se ficou apenas na acção política, em particular num episódio digno de um filme de super-heróis. Uma vez, em viagem numa auto-estrada portuguesa, Rui Afonso deparou-se com um veículo a arder. “Diz que nem pensou e agiu por impulso”, conta Anabela Ritchie. Saiu do seu carro e socorreu a pessoa que se encontrava no veículo em chamas. “Quando nos contou isso, não o fez como quem relata um acto heróico”. O episódio deixou-lhe queimaduras na mão e no rosto. De acordo com a ex-presidente da AL, o seu amigo de 30 anos considerou o acontecimento como “algo que qualquer pessoa faria”. De resto, o advogado fica para a memória de quem privou com ele como uma pessoa de integridade inquestionável e afabilidade. Na esfera privada, era alguém que gostava de mimar os amigos, em especial à mesa, em torno de um bom queijo e uma garrafa de vinho. “Era um ‘bon vivant’, gostava de ter a casa cheia, apreciava e sabia receber, era uma pessoa com uma simpatia fora de série”, conta Sérgio de Almeida Correia. Além dos prazeres da conversa à mesa, não dispensava uma caminhada domingueira pelos trilhos de Coloane, e não conseguia viver sem livros, cinema e música. Aliás, neste aspecto o amigo e vizinho recorda um episódio em que depois de uma manhã em que exagerou no volume da aparelhagem, apanha Rui Afonso e a mulher no elevador. Começaram por elogiar o gosto musical do vizinho. Comentando, em seguida, que não era preciso preocupar-se uma vez que também gostavam muito “de Brel e da Carmina Burana”. Sérgio de Almeida Correia conta este episódio com ternura, salientando a personalidade de Rui Afonso que, além da correcção extrema, tinha uma personalidade que punha qualquer pessoa à vontade. Deixa-nos alguém que ganhou o respeito de Macau, que não recusava casos no seu escritório, mesmo quando, por vezes, os clientes não conseguissem pagar os seus honorários, ou em situações de contratos rescindidos, ou processos disciplinares injustos movidos pela antiga Administração portuguesa. Sérgio de Almeida Correia conta que quem recorria ao seu escritório sabia que “ali ninguém tinha medo do Poder, ninguém tinha medo da Administração de Macau, algo que não se via em todos os escritórios”. Parte como chegou e como viveu: em liberdade e sem medo.
Sérgio de Almeida Correia VozesO ardina viajou [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]u estava hospedado no central Metrópole. Já nos conhecíamos, mas naquele dia quente e húmido de Junho de 1993, ele veio buscar-me ao hotel para irmos jantar, no belíssimo Saab 900 turbo, azul escuro, com os estofos de cor creme, que me ficaria na retina e viria a ser o meu carro nos anos seguintes. Tratava-se de acertar os termos da minha contratação, qual mini-estrela do universo da advocacia lisboeta, com experiência anterior da Administração de Macau, referências de boa vizinhança nos anos em que cá residira, quando era apanhado logo pela manhã à porta do elevador com a sua mulher a dizer-me que a música era boa. E eu envergonhadíssimo pelo volume de som que saía das sinfónicas ou das vozes, então de Brel, Ferré e Brassens, que tomava conta do patamar de acesso aos elevadores, ali na Rodrigo Rodrigues. Sempre impecável na simpatia e na afabilidade do trato, acertámos o pouco que havia, verbalmente, como é timbre entre homens de bem, e passados dois meses eu desembarcava de novo em Macau para me atirar de corpo e alma ao escritório que nessa época ficava no edifício da Nam Kwong, na Almeida Ribeiro, onde éramos vizinhos do Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês. Macau dera o salto da pequena vilória colonial da era pré-Almeidista, com pretensões a cidade, para a metrópole consolidada do final do século XX que crescera fora do espaço que lhe estava destinado, espremida entre a zona de aterros do porto exterior, mais a dos novos aterros e os que haveriam de vir a sê-lo mais alguns anos volvidos. Nesse tempo, a Assembleia Legislativa (AL) era uma máquina de produção legislativa, atenta, rigorosa e eficiente que causava problemas à inércia governativa, aos amanuenses da Praia Grande e gelava os paninhos quentes com que alguns queriam tratar dos assuntos que interessavam a Macau e aos seus cidadãos. Aqui demandavam os melhores e mais pragmáticos homens do direito. Não havia tempo a perder, nem lugar para protagonismos. Era tempo de combate. Era preciso tomar conta das acções em curso, preparar novas petições, analisar contratos, acompanhar as questões do aeroporto e da AL, ler os pareceres, formular uma opinião sobre os caminhos a seguir. E depois começaram as escrituras e impunha-se tomar conta daquilo tudo. Não me perdi. Com o apoio de uma querida amiga, com o beneplácito do Rui, fui tratando de desempenhar as minhas tarefas com a competência e o brio de quem, acabado de chegar depois de um interregno de três anos, vinha disposto ao trabalho no escritório do parceiro contratante para que ele se pudesse dedicar por inteiro às questões da transição. Anos antes, depois de uma reunião no Palácio do Governo, onde também funcionava a AL, discutíramos as primeiras questões do bilinguismo e as perspectivas do Prof. Heuser (Heidelberg), e quando em Novembro de 1989 me predispusera a regressar à pátria, ele teve a gentileza de nos convidar – à saudosa Lurdes, ao meu amigo Pedro Horta e Costa e a mim, para almoçarmos na Galera, em jeito de despedida. Nesse primeiro interregno da minha vida macaense continuei a contactar com o Rui, com o Frederico e o com o Francisco, prestando alguns serviços avulsos para uma pequena sociedade que tinham em Portugal. Foi pouco no volume e no valor, muito na solidariedade e no apoio a quem queria ingressar, sozinho, no complicado mundo da advocacia lisboeta, respeitando escrupulosamente as regras deontológicas. Creio que nunca lhes agradeci devidamente o que então por mim fizeram. O regresso em 1993 foi, pois, mais fácil. Todas as questões se resolviam com uma aparente facilidade graças às referências que o Rui possuía e ao extenso conhecimento que tinha de leis, regulamentos, fontes e tudo o mais que era necessário num dia-a-dia onde não nos podíamos dar ao luxo de perder demasiado tempo com rodriguinhos. Havia o trabalho na AL, os actos notariais, os tribunais, o acompanhamento da imprensa, os contratos do aeroporto, as tertúlias e os tempos de descanso, que nisso o Rui tratava os trabalhadores como príncipes. Ninguém se queixava e ainda havia a sua eterna boa disposição. O pior era lá fora, na selva, onde o tráfico de influências, as negociatas, o compadrio, o clientelismo, os generais, os coronéis, os seus avençados e as seitas campeavam. Sabendo que o mundo não iria terminar no dia seguinte, e que a 1999 se seguiria 2000, a tudo isso o Rui resistiu. Com a maior das facilidades e sorrindo com desdém aos merceeiros que se deixavam vender por pataca e meia e uma quota num terreno. Depois, quando foi necessário assegurar informação credível e transparente lá surgiu o Futuro de Macau. Cumpriu a sua missão como seriedade. Outra coisa não seria de esperar. Preocupado como estava com esse mesmo futuro, o Rui não se poupou a esforços. Eram leis e relatórios, múltiplas reuniões, mais o Conselho Superior de Justiça e até, por pouco tempo, a presença no Conselho Superior de Advocacia. Durou pouco a sua presença em tal órgão, de onde se demitiu. Fazer de corpo presente não era com ele. Hoje, alguns do que lamentam o seu trágico e prematuro fim foram os mesmos que ao melhor jeito estalinista eliminaram as suas referências na AAM. Como se ele não tivesse sido um dos primeiros, como se não tivesse, também ali, dado o seu melhor e não tivesse sido fundamental para que a AAM tivesse adquirido o estatuto que teve e, entretanto, tem vindo a perder. O Rui nunca ligou a essa desfeita que lhe fizeram. Eu protestei, sem sucesso, com os vários pastores que por lá passaram, mas estes nunca me deram resposta, e aquele rebanho seguiu pastando para onde o mandavam. Por isso, hoje, os tribunais estão como estão e o português assume cabisbaixo, não fora o esforço de alguns magistrados na sua preservação, o estatuto de língua morta perante a horda de ruminantes que dele tomou conta. Chorai, pois, que lenços não faltarão e sempre sobrarão as mangas das camisas quando aqueles forem levados pela corrente. O agravo não ficará com quem já partiu. Como director dos SAFP deu o pontapé de saída para a reforma da administração, para dotar Macau de quadros capazes, competentes e bilingues. Foi acima de tudo um homem preocupado com os problemas da localização e autonomização jurídicas de Macau. Para o Rui, seria impensável deixar um sistema à mercê do que viesse de Cantão ou Fuquien, ou sujeito aos humores de um qualquer serventuário do poder ou do partido. Macau e as suas gentes, de qualquer origem ou etnia, e a dignidade de Portugal e dos portugueses que aqui vivem e trabalham deviam ser os únicos referentes, a marca indelével dos séculos e dos que aqui nos precederam entrando e saindo de cabeça erguida. A revisão de 1990 do Estatuto Orgânico, a lei de imprensa, toda a legislação penal avulsa, dos animais às associações criminosas, a defesa intransigente dos direitos e garantias dos cidadãos de Macau, que se dúvidas houvesse ficou plasmada no relatório do financiamento da Fundação Oriente e, pouco depois, em 2000, quando nos estúdios da TDM sugeriu a devolução do dinheiro da Fundação Jorge Álvares à RAEM como única saída decente para o esbulho feito às gentes de Macau. Da pouca vergonha do Instituto Internacional de Macau e do caminho seguido pela Escola Portuguesa é escusado falar agora. Também a Fundação D. Belchior Carneiro lhe deve hoje o belíssimo lar-residência de Oeiras, depois dele, do João Frazão e de eu próprio desbloquearmos o imbróglio do terreno que havia sido impingido aos irmãos da Santa Casa pelo belga, em leito de cheia e com o “aval”, como sempre, da Administração de Macau. É bom recordar tudo isto agora que o último figurante da administração portuguesa, o reservista ao serviço da EDP, aqui desembarcou, iniciando nova romaria para rever a sua pandilha local a pretexto da Escola Portuguesa. Já se adivinha, de novo, o cheiro a barbecue. Enfim, que hei-de eu dizer nesta hora triste em que vejo partir um amigo que me acompanhou ao logo de trinta anos, que me ajudou na vida e na carreira, que contribuiu com as suas ideias e achegas para o meu sucesso académico e que me abriu sempre as portas de sua casa como se fosse a minha. O legado de um homem cujo sentido da honra e da dignidade estão acima dos circunstancialismos de conjuntura é sempre de difícil avaliação. Mas foram esses mesmos valores que o impediram de dobrar a cerviz a troco de medalhas, de tostões ou de milhões, como fez quando recusou ser advogado em regime de avença dos interesses do jogo. O Rui não estava para aturar tipos que acham que os milhões que ganham lhes dão o direito de pedir favores e de telefonar às 3 ou 4 da manhã de um spa em Las Vegas para insultarem o advogado que não lhes reconheceu as assinaturas nuns contratos manhosos num inglês mal redigido e destinados a uma terra onde se fala em português e chinês. Negociatas de bordel, golpadas e moscambilhas nunca foi com ele. A gente anda na rua e fala com as pessoas. Quando se demitiu da AL, em ruptura com o soba colonial, estava preocupado com as questões da segurança, embora soubesse que Portugal se afundava em negociatas de sanitas, aquisições de quadros com dinheiros públicos por troca com facturas de livros e restauros de peças antigas que nunca regressaram, mas fê-lo com a lealdade de sempre. O Rui dispensava o comprometimento do seu nome e a reputação do escritório nos cambalachos de fim de ciclo do império. Por a CNN ou a imprensa estrangeira que vinha a Macau queriam conversar com ele. Da falta de alinhamento com as negociatas nos ressentimos todos lá no escritório, quando o trabalho escasseou à laia de represália. E também aí, nessa altura, não lhe foi ouvido um ai. Um senhor. Como também não foi ouvido quando numa auto-estrada, depois de um acidente, foi em auxílio dos outros, suportando a explosão de um outro carro em chamas para ver as mãos e a cara queimarem-se-lhe, sofrendo depois enxertos vários em Coimbra, para poder salvar uma mulher inconsciente que estava dentro de um veículo acidentado. Antes dos bombeiros chegarem. Ou agora, como ainda há dias o vi, lutando estoicamente, lutando como só um herói sabe fazer, mantendo sempre a compostura, a dignidade e o sorriso apesar de ver ali o seu próprio corpo ser corroído pela dor e a ingrata antecipação do fim a chegar. O Rui nunca foi de fazer fretes porque era um homem sério e honesto como poucos. Porque teve a consciência em todo o seu percurso da necessidade de se preservarem princípios e valores, porque sabia que estes, ao longo da vida, não necessitam de segurança pessoal, e dispensam a pertença a igrejas, a seitas, a partidos ou a associação discretas. Em rigor, o Rui comportava-se sempre como o verdadeiro anarquista que nunca foi mas que no íntimo lhe espreitava. Devo-lhe a amizade, a camaradagem, a confiança sem limite no meu trabalho, o estímulo e a palavra amiga na hora certa. E também o trabalho diário de ardina digital junto dos seus amigos, trabalho a que nem a doença retirava o humor após meses de sofrimento. Na primeira aberta, mesmo depois de doente e entre tratamentos, lá chegava o e-mail com o anexo e uma única frase: “o ardina está de volta”. Até ao fim, o Rui teve sentido de humor. O Rui foi um dos poucos duros que conheci em toda a vida, que sorria e inspirava qualquer que fosse o combate e o estado das tropas. Até a um céptico como eu. Três décadas de convívio depois, vendo-o partir assim, desta forma apressada, inacabada, sem jeito, com tantos livros para lermos e discutirmos (o último que aqui tenho é “O que resta da esquerda?”, do Nick Cohen), tantos filmes para comentarmos (irei ver o “Silêncio” logo que possa) sem tempo para ele poder assistir à discussão do trabalho que me consumiu, envelheceu e roubou horas ao nosso convívio dos últimos anos, torna-se mais imperioso do que nunca assegurar-lhe que iremos todos continuar a discutir os milhões que vão para a Universidade de Jinan, os que à custa do desinvestimento na saúde pública de Macau contribuem para dinamizar a incompetência grosseira, encher os bolsos de clínicas e hospitais privados de onde um dia começarão a nascer os cogumelos dos novos casinos. Esses e todos os outros. Enquanto os grilos locais tecem loas em seu nome e agitam a casaca negra entre missas, nós continuaremos a resistir. E a olhar por esse imenso legado. Na língua em que nos deixarem. Sem receio de perdermos alguns amendoins. Porque no fim, o que verdadeiramente importa, como sempre nos importou, são os nossos. Os nossos valores, os nossos princípios, a nossa gente, que são aqueles com quem nos cruzamos no dia-a-dia, os que nos vêm bater à porta com um pedido de ajuda, os injustiçados desta vida, os que todas as manhã nos dizem bom dia olhando-nos nos olhos. Até ao fim, sans Dieu ni maître, como cantou o Ferré, cá estaremos, Rui. Honrando a memória e o legado. Com os que estiverem connosco às sextas-feiras. E nos outros dias. À alvorada, se necessário. Continuando a percorrer os trilhos e as veredas incertas da vida com o mesmo à-vontade. Como homens livres que sempre fomos. Até ao fim. Resistindo sem quebrar. Como o bambu. Como tu fizeste, como só tu soubeste ser. O melhor dos ardinas. Até ao fim, sorrindo, sorrindo sempre.
Isabel Castro EventosDespedida | Morreu o músico Leonard Cohen É um ano negro para quem gosta de música – de música a sério. Leonard Cohen morreu na passada sexta-feira, aos 82 anos. Tinha músicas e poemas para acabar, mas dizia-se preparado para ir embora [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á menos de um mês contava que só pensava na família, nos amigos e no trabalho que tinha em mãos. “Tive uma família para alimentar. Nunca vendi o suficiente para ser capaz de deixar de pensar em dinheiro. Tive dois filhos e a mãe deles para apoiar durante toda a vida. Tornou-se um hábito”, explicava à New Yorker, numa longa entrevista publicada a 17 de Outubro. “Depois há a questão do tempo, que é poderoso, com o seu incentivo para acabar. Estou longe de conseguir acabar. Acabei algumas coisas. Não sei quantas mais conseguirei acabar, porque neste momento sinto uma grande fadiga… Há alturas em que tenho de me deitar”, desabafava. “Já não consigo tocar.” Leonard Cohen morreu aos 82 anos e a notícia chegou pelo Facebook. Na página oficial de Cohen alguém anunciou, “com profundo pesar, que morreu o legendário poeta, escritor de canções e artista”, para depois acrescentar que “perdemos um dos visionários mais prolíficos da música”. Não foram dados detalhes sobre o que aconteceu – apenas que estava planeada uma cerimónia em Los Angeles, onde o músico viveu durante muitos anos. No artigo de Outubro, a New Yorker contava que Cohen tinha poemas para terminar, letras de músicas que ainda não tinha acabado, outras que não tinha gravado e outras prontas mas ainda por lançar. Estava a pensar, na altura, fazer um pequeno livro de poemas. “A grande mudança é a proximidade com a morte”, dizia. “Eu sou o tipo de pessoa arrumada. Gosto de acabar as coisas que comecei. Se não puder, tudo bem. Mas a minha natureza é essa.” Leonard Cohen sabia que não seria capaz de acabar as canções que tinha a meio. “Acho que não vou conseguir. Talvez, quem sabe? Mas não me atrevo a ficar preso a uma estratégia espiritual. Jamais o faria. Tenho algum trabalho para fazer. Estou pronto para morrer. Espero que não seja muito desconfortável. Chegou a minha hora.” Uns dias depois, foi lançado o 14o. e último álbum do cantor, “You Want it Darker”. Na música que abre o disco – a música que dá o nome ao disco – ouve-se “I’m ready my Lord”. Cohen estava pronto. Da simplicidade O que é que tinha Cohen de especial? “Para mim tudo. As palavras que tocam no mais íntimo de nós, na esperança, no amor, na sua constante beleza. A voz que nos envolve como nenhum outro, que ecoa dentro do nosso corpo. A música que se eleva em arranjos de uma simplicidade espiritual tão difícil de conseguir.” José Drummond, artista plástico, recebeu a notícia do desaparecimento de Leonard Cohen com profunda tristeza. “É uma estupidez por certo mas, tal como com David Bowie, sinto-me órfão”, diz. “São aqueles que estiveram sempre ao meu lado. Em quem sempre me refugiei em momentos de dor ou de alegria. É tão difícil escolher uma música apenas”, admite. Cohen foi transversal – atravessou gerações, países, chegou à fama sem nunca ter sido o artista que mais discos vendeu. Educou os sentimentos de muitos, com letras em que se fundiram imagens religiosas, temas de redenção e desejo sexual. E o amor, pois, o amor. “Cohen foi sempre o meu preferido para sonhar, para namorar, para acordar, para adormecer”, diz Drummond, sobre este homem “enigmático, uma estrela que se ocultava, que deixava a música falar por ele, que embora nascido judeu se dedicou ao budismo zen e que, nos seus poemas, incorporava todo um sentido cristão”, resume. “Podemos falar tanto sobre ele e o que quer que digamos é sempre bom.” Natural do Quebeque, Leonard Cohen já era um poeta e um novelista conceituado quando, em 1966, se mudou para Nova Iorque. Tinha 31 anos quando entrou no mundo da música. Não foi preciso muito tempo para que a crítica começasse a comparar o seu trabalho ao de Bob Dylan, pela força lírica das canções que escrevia. Apesar de ter influenciado muitos músicos e de ter sido distinguido das mais diversas formas – celebrado pelo mundo do espectáculo, mas também pelas autoridades oficiais do Canadá, por exemplo – Cohen raras vezes atingiu os tops com o folk-rock (rótulo talvez curto) que foi gravando. Escreveu, no entanto, músicas que foram revisitadas por centenas de artistas. “Hallelujah”, lançada em 1984, é talvez o melhor exemplo do modo como o escritor de canções marcou gerações de cantores. Do sagrado ao profano Muitas das canções que Leonard Cohen escreveu tornaram-se famosas pela voz de outros músicos – no início dos anos 1960, Judy Collins ajudou à projecção do compositor ao gravar alguns dos seus primeiros temas. Os admiradores de Cohen comparam os seus trabalhos a uma espécie de profecia espiritual. Escreveu sobre religião, mas também sobre amor e sexo, política, arrependimento e acerca daquilo que um dia disse ser a procura por “uma espécie de equilíbrio no caos da existência”. As letras das suas músicas eram muito pessoais – e às vezes assemelhavam-se a preces, como “Bird on the Wire”, de 1969. Entre os temas mais conhecidos estão “Suzanne”, “So Long, Marianne”, “Famous Blue Raincoat” e “The Future”. “So Long, Marianne” nasce do relacionamento com Marianne Ihlen, uma mulher que foi namorada – e musa – de Cohen nos anos 1960, depois de se terem conhecido na Grécia. No artigo da New Yorker, depois de ter ficado a saber que Marianne teria poucos dias de vida, conta-se que Leonard Cohen lhe escreveu um email: “Bem Marianne, chegou a altura em que somos mesmo velhos e em que os nossos corpos já não aguentam, e eu acho que te vou seguir muito em breve”. Dois dias depois, o cantor ficou a saber que ela morreu depois de ter lido o email que lhe enviou. So Long, Marianne. Dos livros aos discos A voz anasalada e grave – muito grave – de Cohen nem sempre foi bem recebida pela crítica e por outros músicos, como o britânico Paul Weller, que chegou a considerar que se estava perante um estilo melancólico “de cortar os pulsos”. Mas a verdade é que o trabalho de Leonard Cohen também é marcado pela ironia e por um sentido de humor muito próprio. Nascido em 1934, filho de judeus, o poeta, novelista e escritor de canções cresceu em Montreal, num bairro onde se falava inglês. Na adolescência, leu Federico García Lorca, aprendeu a tocar guitarra e formou uma banda de country que se chamava “Buckskin Boys”. Frequentou a McGill University, em Montreal, tendo publicado o seu primeiro livro de poesia pouco depois de se ter formado. A viver com apoios do Governo do Canadá e com dinheiro que herdou da família, Cohen publicou, na década de 1960, as colecções de poesia “The Spice-Box of Earth” e “Flowers for Hitler”, e os romances “The Favourite Game” e “Beautiful Losers”. Mas, desiludido com o modo de vida que tinha, decidiu começar a escrever canções e acabou por fazer uma audição em 1967 com John Hammond. O produtor conseguiu um contrato com a Columbia Records, a discográfica com que Cohen viria a ter uma relação de cinco décadas. Deu centenas e centenas de concertos, mas também passou por períodos de isolamento, de meditação, longe dos públicos. Durante os anos 1990, esteve num mosteiro budista zen nas Montanhas de São Gabriel, perto de Los Angeles. Entre 2008 e 2013, voltou a palco com muita regularidade, depois de ter sido incapaz de recuperar grande parte dos nove milhões de dólares que dizia terem-lhe sido tirados por Kelley Lynch, antiga manager e companheira. Apesar da relação por Marianne – e das outras mulheres que fizeram parte da sua vida – Leonard Cohen não casou. Deixou dois filhos, milhares de fãs e uma obra para durar até ao fim do amor. LER AINDA: A alquimia de transformar a escuridão
Sofia Margarida Mota EventosA alquimia de transformar a escuridão O último álbum de Leonard Cohen [dropcap]U[/dropcap]m mês depois de completar 82 anos, Leonard Cohen ofereceu ao mundo o seu, agora confirmado, último álbum. “You Want it Darker” não é só mais uma viagem do compositor, poeta e cantor canadiano, à melancolia da existência. Agora, visto à luz da sua recente despedida, é o adeus sóbrio e sublime de um dos grandes nomes da canção dos últimos 50 anos. Leonard Cohen abre o disco com o tema que lhe dá nome e faz antever a morte, em que o “I´m ready my lord” não é só mais um verso, mas sim a assinatura da canção. A playlist que se segue, faixa a faixa, não é menos consciente. “Treaty” é uma verdadeira metáfora de amor e angústia perante a vida. Um tema de cansaço que, agora, se pode associar ao seu debilitado estado de saúde e à impotência perante o inevitável. O tão almejado “tratado” regressa na última faixa de “You Want it Darker”, agora num frenesim de cordas que marcam o abrir de portas do fim do disco e de 50 anos embalados pelos temas de Leonard Cohen. A voz grave, que mais parece vinda das entranhas da melancolia, continua pelo álbum fora. Limpa, como a verdade que Cohen aponta tema a tema, e cortante em cada palavra que entoa. “I´m travelling light, it´s au revoir” é só um verso que abre mais uma canção, já com “You Want it Darker” a meio. Uma canção entre bandolins e coros, que o cantor tanto honrou ao longo da carreira, num convite a uma dança harmoniosa com a despedida de um amor, de uma vida. Não é possível escolher o melhor tema dos nove que compõem o último disco de Cohen. Mas é imperativo um tirar de chapéu, grato e humilde, como também ele ensinou a fazer nos concertos que deu nos últimos anos de vida. “You Want it Darker” é mais um reflexo daquele que conseguiu dotar a escuridão da existência de uma beleza doce, capaz de fazer os outros entenderem melhor o que levam no coração. “You Want it Darker” é um álbum, como todos os outros de Leonard Cohen, de amor, esperança, desilusão e, agora, de um verdadeiro adeus. LER AINDA: Morreu o músico Leonard Cohen
Andreia Sofia Silva Manchete SociedadeÓbito | Faleceu engenheiro Novais Ferreira aos 94 anos de idade Trabalhou praticamente até morrer e corria mesmo por gosto nos meandros da engenharia civil, trabalhando, já com idade avançada, aos fins-de-semana. Rigoroso, boa pessoa, Henrique Novais Ferreira é visto como alguém a quem Macau deve muito [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]os 92 anos disse ao HM, após ser condecorado com a Ordem de Mérito portuguesa, que fazia questão de trabalhar todos os dias da semana. A idade já pesava, mas só para os outros, que lhe viam as rugas. Henrique Novais Ferreira sentia-se, afinal de contas, um jovem. “Trabalho aos sábados e aos domingos porque não sei fazer outra coisa. Não sei ir a um karaoke e não tenho idade para isso. Acha que sou assim tão velho para se falar em fim de carreira? Ainda estou à espera de continuar mais algum tempo.” Foi assim, cheio de sorrisos e mostrando uma imensa humildade, que Novais Ferreira aceitou a condecoração dada por Cavaco Silva, à época presidente da República Portuguesa. Engenheiro civil respeitado no território, que participou em obras tão emblemáticas como a construção do Aeroporto Internacional de Macau e cumpria ainda serviço no Laboratório de Engenharia Civil de Macau (LECM). Faleceu este sábado aos 94 anos e quem trabalhou com ele recorda o rigor com que fazia inspecções ou fiscalizações de projectos. António Trindade, CEO da CESL-Ásia, foi apanhado de surpresa com a notícia da sua morte e fala de uma “boa pessoa”, alguém “excepcional”, com quem trabalhou na altura em que se construía o aeroporto. Já André Ritchie, arquitecto, trabalhou com ele mais de dez anos, no tempo em que estava no Gabinete de Infra-estruturas de Transportes (GIT). “Era uma pessoa extremamente rigorosa no trabalho, no que concerne à parte técnica. Trabalhava connosco na área do controlo de qualidade e era uma garantia para nós tê-lo a trabalhar nos nossos projectos. Ao mesmo tempo era uma pessoa muito flexível, porque pese embora fosse rigoroso no cumprimento dos parâmetros, no processo de tomada de decisão compreendia que, do lado o Governo, do dono da obra, tínhamos de ter em conta não apenas os factores técnicos mas também factores políticos, ou outros. Ele cooperava muito e conseguia ser bastante flexível”, contou o arquitecto ao HM. Para André Ritchie, Macau e o sector das obras públicas ficam a dever-lhe muito. “Foi uma peça chave na construção do aeroporto. Tive uma relação muito próxima com ele no projecto do Metro Ligeiro e ele deu um grande contributo, ninguém pode questionar.” O ex-coordenador do GIT recorda ainda um ponto particular da personalidade de Novais Ferreira. Dava pareceres técnicos, mas não falava de política. “Trabalhei com ele durante dez anos e da parte dele nunca houve um comentário sobre as políticas ou decisões dele. Afastava-se disso tudo, não tecia comentários que não fossem técnicos. Às vezes quando estava com ele a sós, em reuniões, tentava colocar algumas armadilhas a ver se ele caía e se pronunciava. Mas era inteligente e esperto e percebia que era uma armadilha para dizer alguma coisa, e ria-se apenas. Claro que tinha opinião, mas era tão profissional que não se pronunciava. Era uma brincadeira que fazia com ele.” A segunda casa Manuel Geraldes, membro da direcção do Clube Militar, recorda os momentos de agradável convívio que passou com Novais Ferreira, que não prescindia da instituição para fazer as suas refeições e conviver com quem por lá passava. “Era a segunda casa dele. Habitava há 20 anos numa suite na pousada de Mong-Há, e o almoço e o seu convívio era no clube militar. Os nossos funcionários adoptaram-no com grande consideração e dedicação. E convivia com alguns dos seus melhores amigos”, recordou. Manuel Geraldes recorda-se de uma “pessoa muito agradável de se conviver, um homem muito sereno, que sabia estar com qualquer pessoa e que tinha sempre uma palavra de interesse, um assunto para discutir. Fico muito comovido com esta partida. Deixa uma lacuna enorme e um vazio na comunidade portuguesa. Para mim foi um privilégio conviver com ele”. Novais Ferreira tinha um “humor comedido, mas interessante” e ajudou a fundar não apenas o LECM como os laboratórios de engenharia civil em Luanda, Angola, e em Portugal. “Sempre se ouviu falar do engenheiro como um homem fundamental e de referência, que teve uma importância extraordinária para o prestígio que o LECM tem. Foi uma personalidade que o LECM nunca prescindiu”, disse ainda Manuel Geraldes, que destaca o facto do Executivo ter permitido que Novais Ferreira continuasse a desempenhar funções. “O Governo de Macau deu esta prova de grande consideração para com uma personalidade portuguesa, porque deu-lhe todas as condições para ele continuar a trabalhar, com habitação e motorista. Uma grande consideração para com um homem que era uma referência”, rematou um dos membros da direcção do Clube Militar.
Andreia Sofia Silva SociedadeMacaenses recordam Armindo Ferreira, fundador d’ “O Litoral” [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]os tempos em que havia rivalidade entre o Liceu de Macau e a Escola Comercial, Armindo Ferreira destacava-se nos bailes colegiais com a sua performance de bailarino. É assim que Luís Machado, presidente da Confraria da Gastronomia Macaense, recorda o fundador do restaurante “O Litoral”, célebre pela qualidade da comida macaense que confecciona para elites e turistas. “Conheci o Armindo nos anos 70, quando fazia parte de um grupo de danças e cantares de Macau. Encontrávamo-nos nessas festas. Tenho dele a imagem de um bom bailarino nas nossas danças folclóricas. É importante dizer ainda que ele e a sua mulher contribuíram para a divulgação da cultura portuguesa em Macau”, referiu Luís Machado ao HM. A partir daí, os afazeres da vida adulta afastaram os dois amigos de um contacto mais frequentes. “Encontrávamo-nos de vez em quando no ténis, mas isso há 30 anos. Sempre teve uma postura muito digna e correcta com todas as pessoas, sobretudo nas assembleias-gerais da Santa Casa da Misericórdia. Sempre foi um macaense disposto a ajudar os seus conterrâneos e um grande lutador dos direitos e garantias das pessoas de Macau”, acrescentou o presidente da Confraria da Gastronomia Macaense. Apesar da esposa, Manuela Ferreira, ser a alma d’ “O Litoral” em termos gastronómicos, Armindo Ferreira também contribuiu, com a sua capacidade administrativa, para o sucesso do espaço. “Recomenda-se sempre às pessoas para irem lá comer, qualquer prato macaense é muito bem feito lá. [O restaurante] vai ressentir-se um pouco, mas os filhos vão com certeza perpetuar a memória do pai, não vão deixar afundar o restaurante”, defendeu Luís Machado. O papel na SCM Armindo Ferreira foi funcionário público na Direcção dos Serviços de Turismo e chegou a ser director administrativo da Santa Casa da Misericórdia. António José de Freitas, provedor, não esquece “o amigo de todas as horas” em mais de 40 anos. “Posso dizer que a SCM perdeu um grande irmão e a comunidade perdeu um grande amigo. Com a transferência de soberania conseguimos levar a SCM para uma estratégia diferente e uma visão diferente. Mudou-se o contexto sociopolítico de Macau e ele deu a sua cara. Posso dizer que o Armindo deu um grande contributo para a imagem da SCM após [a transferência]”, concluiu o provedor da SCM.
Joana Freitas Manchete SociedadeÓbito | Morreu Elie Wiesel, escritor, Nobel da Paz e sobrevivente do Holocausto [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]izia que a indiferença era o “oposto do amor” e um dos maiores “perigos” de sempre, por isso o seu desaparecimento não pode ficar indiferente. Não pode, porque Elie Wiesel era mais do que um escritor. Era um sobrevivente de uma das épocas mais negras da história da humanidade e foi isso, e a sua auto-obrigação de contar a verdade, que o fez ser o escolhido para o Nobel da Paz em 1986. Era um adolescente de 15 anos quando foi deportado com a família para o campo de concentração nazi de Auschwitz. Foi aqui que ficou sem a mãe e a irmã, mas foi em Buchenwald que perdeu o pai. E foi em Buchenwald que foi apanhado numa das mais famosas imagens do Holocausto: a desse mesmo campo de concentração, onde dezenas de homens esqueléticos posam nus e que foi captada em 1945, aquando da sua libertação e fim da II Guerra Mundial. Desde que conseguiu escapar às garras da Alemanha nazi que sabia do seu potencial papel de testemunha, mas não escreveu sobre as experiências a que foi sujeito até 1955. Durante dez anos – anos em que estou na universidade em França e ponderou o suicídio – rejeitou relatar o que viu, sentiu e ouviu. O que quer que seja que o tenha impedido de escrever, contudo, não se conseguiu sobrepor à vergonha de ficar calado. E é com “Un di velt hot geshvign (E o Mundo Manteve-se em Silêncio, na tradução para Português) que rejeita o silêncio. Para sempre. Horrores É com “Noite”, onde descreve os horrores dos campos de concentração e da mutilação de judeus, que Wiesel se dá a conhecer à humanidade, depois de aos 19 anos começar a escrever como jornalista. A obra, publicada em 1960 em Francês, é uma versão mais curta do manuscrito “Un di velt hot geshvign”. Fazia parte de uma trilogia, onde se incluem ainda “Amanhecer” e “Dia”. Autor de mais de meia centena de livros, que versaram sobretudo sobre o Holocausto, foi com “Noite” que Elie Wiesel se obrigou a “nunca esquecer” o que passou – ele e milhões de judeus – “nem que vivesse tanto tempo quanto o próprio Deus”. Foi com esta obra que foi denominado pelo mundo como o mensageiro para a humanidade e tido como a consciência que falta no planeta. Mas, se o livro vendeu mais de dez milhões de cópias em todo o mundo e foi traduzido para mais de 30 línguas, nunca chegou ao cinema porque Wiesel não quis. O convite chegou pelas mãos do incrível realizador Orson Welles, mas o Nobel recusou porque “as memórias perderiam o sentido se fossem contadas sem o silêncio entre as suas palavras escritas”. Silêncio que, apesar de presente, Wiesel rejeitou novamente, desta vez ao se tornar activista pela humanidade. O Nobel e os outros Wiesel torna-se defensor dos direitos humanos e denuncia o racismo e a violência em todo o mundo, até porque “a acção é o único remédio contra a indiferença” e “tem sempre de se escolher um lado”. O Nobel escolheu o lado dos oprimidos: os que foram vítimas como ele. Os que sofreram com o Apartheid da África do Sul e os que eram vítimas da guerra do Camboja. Os que ainda hoje são alvo de genocídio e fome no continente africano. E os que ainda hoje estão presos por falarem de consciência. Foi após ter recebido o Nobel da Paz que o activista e escritor criou a Fundação Elie Wiesel para a Humanidade, dedicada a todas estas causas. E foi ele quem ainda recentemente saiu do hospital contra ordens dos médicos, numa cadeira de rodas que largou para discursar numa cerimónia em honra de Armando Valladares, preso político cubano. Na entrega do Nobel da Paz, que surgiu em conjunto com prémios como o Prémio Medalha da Liberdade, Wiesel voltou a recordar que lembrar o mal servirá de escudo contra o mal. E que relembrar os mortos é algo tão importante como celebrar a vida. Até porque o oposto da vida “é a indiferença perante a morte”. Morte aos 87 Nascido em Sighet, na actual Roménia, em 1928, Wiesel tornou-se cidadão americano em 1963, depois de se ter mudado para os EUA. Casa com Marion Erster Rose, austríaca, em 1969, com quem tem um filho. Dez anos depois, e vários livros e prémios literários por romances e livros não-ficcionais, lança “The Trial of God”, outra das famosas obras de Wiesel que lança polémica ao descrever a história de três judeus que, perto da morte, conduzem uma audiência contra Deus, acusado de ser opressor para com o povo judaico. O mesmo Deus em quem Wiesel dizia não acreditar – apesar de todas as suas crenças, o Nobel auto-intitulava-se como agnóstico. Publica mais dois livros de memórias – “Todos os rios vão dar ao mar” (que cobria a sua vida até 1969) e “E o mar nunca está cheio” (de 1969 a 1999). Amigo do ex-Presidente francês François Mitterrand, escreve as memórias deste em 1995. Em Maio de 2014 o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanhayu, propõe o seu nome para suceder a Shimon Peres como Presidente do Estado de Israel, mas Wiesel não tinha nacionalidade israelita para poder ocupar o cargo. Ao longo dos anos, manteve-se ligado à sua Fundação, tal como a tatuagem A7713 se mantém colada à sua pele. Elise Wiesel morreu este sábado, ao fim de 87 anos, em casa e com a família. Resta, agora a sua memória. Mas, no fim, é ela que interessa. “As suas proveniências e magnitude e, claro, as suas consequências”. Positivas ou negativas.
Manuel Nunes SociedadeÓbito | Danilo Antunes Faleceu esta madrugada o “Filho de Macau”, Danilo Antunes, personagem incontornável na vida da cidade e um dos fundadores do popular grupo do Facebook “Conversa entre a Malta” [dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Sou dos mais novos do grupo dos mais velhos”, dizia ele para se enquadrar na sociedade local, numa das suas muitas formas de brincar com as palavras e com as ideias. Danilo gostava da vida e de a viver. Sem intensidade nada valia a pena para ele e essa energia sentia-se sempre que estávamos na sua presença. Apaixonado pelos filmes e pela fotografia, o Danilo é uma personagem inesquecível para os que o que o conheceram e que ficará para sempre na memória dos que o virem imortalizado no excelente filme de Márcio Loureiro “Oumundzai” (https://bit.ly/daniantunes); um retrato que vai bem para além da pessoa pela capacidade do Danilo em revelar a cidade que o viu crescer, a cidade que ele viu crescer, um guia fundamental para quem pretender entender que história é esta, Macau. Recentemente, Danilo andava especialmente vocacionado para vasculhar os baús da memória de onde saíam histórias passadas, umas sobre as outras, expressas num trepidar infindável. Talvez o inconsciente lhe dissesse, sorrateiramente e sem mesmo ele perceber, que o fim chegaria cedo e por isso era importante recordar, dar sentido às coisas. O tempo, as memórias, as ligações simbólicas e sincronistas da vida faziam parte dos seus grandes interesses. As histórias jorravam-lhe num verbatim incessante apenas suplantado pelo imenso brilho do olhar, sinal inequívoco da sua permanente capacidade de sonhar, dos desejos e das vontades que lhe explodiam na mente a cada instante. As emoções vinham sempre em catadupa, num débito avassalador que nenhuma língua de um ser humano normal consegue dar vazão, como a dele às vezes não conseguia. Danilo acreditava, sempre, e imaginava constantemente. Idealizava um mundo melhor a cada instante, um cosmos de imagens e de cores em constante expansão. Ou o prazer simples de amigos à volta da mesa com doses maciças de gargalhadas. Danilo deixa duas filhas, o resto da família, e uma cidade enlutada. As causas da sua morte ainda não são conhecidas. Até ao momento sabe-se apenas, nas palavras de um amigo próximo, “que foi dormir e não acordou mais”. Antes assim. O Hoje Macau deseja à família enlutada e a todos os seus (muitos) amigos os sinceros parabéns por o terem tido no seu seio e um profundo voto de pesar pelo seu desaparecimento. A hora é triste, porque a sua ausência vai ser difícil de superar, mas também é tempo de sonhar, de fazer e de celebrar pois era assim que Danilo entendia a vida e, seguramente, era assim que nos quereria ver a reagir à sua ausência ou o seu percurso neste planeta terá sido em vão. P.S. – A esta hora o Danilo deve estar a pensar: “Porra! Foi preciso morrer para aparecer a cores no jornal”
Joana Freitas Eventos MancheteCamaleão excelentíssimo Ambíguo, heteronímico, multifacetado, David Bowie foi a figura da cultura pop que melhor interpretou a segunda metade do século XX [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]avid Bowie, que morreu no domingo, aos 69 anos, conjugou magistralmente talento, ‘gancho’ comercial e ambiguidade, tornando-se num dos músicos mais influentes de sempre, com um estilo ímpar que nunca deixou de reinventar. Provocador, enigmático e inovador, construiu uma das carreiras mais veneradas e imitadas da indústria do espectáculo, que o colocou no pedestal das lendas da música. Nascido David Robert Jones, a 8 de Janeiro de 1947, no seio de uma família modesta de Brixton, um bairro popular do sul de Londres, a lenda do rock viu o primeiro sucesso chegar em 1969, com “Space Oddity”, uma música que se tornou mítica sobre a história de Major Tom, um astronauta que se perde no espaço. Nessa altura, já tinha operado a primeira de muitas reinvenções, ao “batizar-se” David Bowie quatro anos antes, para evitar confusões com Davy Jones, vocalista dos The Monkees, banda rival dos Beatles. Os anos 1970 viram-no dominar o panorama musical britânico e conquistar os Estados Unidos da América com uma série de álbuns de sucesso. Bowie, que estudou budismo e mímica, traçou o caminho para vingar como uma das figuras de maior relevância durante mais de cinco décadas. Multifacetado, também foi actor, produtor discográfico e venerado como ícone de moda pela tendência para provocar por via da indumentária. Autor de álbuns aclamados como “Heroes” (1977), “Lodger” (1979) e “Scary Monsters” (1980), o artista, radicado em Nova Iorque há anos, chegou ao topo da indústria a 06 de junho de 1972 com “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spider From Mars”. Este disco, em que relata a inverosímil história da personagem Ziggy Stardust, um extraterrestre bissexual e andrógino transformado em estrela de rock, reuniu duas das obsessões do cantor: o teatro japonês kabuki e a ficção científica. Contudo, essa excêntrica personagem foi apenas uma das muitas personalidades que adotou ao longo da carreira, como os outros “alter egos” da sua produção criativa: Aladdin Sane ou Duque Branco. Em 1975, chegou o primeiro êxito nos Estados Unidos, com o ‘single’ “Fame”, que co-escreveu com John Lennon, e também graças ao disco “Young Americans”. Mais tarde, em 1977, chegou o minimalista “Low”, a primeira de três colaborações com Brian Eno, conhecidas como a “Trilogia de Berlim”, que entraram no top 5 britânico. Ao lugar cimeiro da tabela musical no seu país chegou ainda com “Ashes to Ashes”, do álbum “Scary Monsters (and Super Creeps)”; colaborou com os Queen no êxito “Under Pressure” e voltou a triunfar em 1983 com “Let’s Dance”. Em 2006, anunciou um ano sabático e desde então muitos fãs choraram a prolongada ausência que deu azo a todo o tipo de rumores sobre a sua saúde. Após anos de silêncio, David Bowie “ressuscitou” em 2013, aos 66 anos, com “The Next Day”, um disco produzido pelo veterano Tony Viscontti, o seu homem de confiança que enamorou a crítica com típicos elementos ‘bowinianos’. Um ano depois, pôs no mercado a antologia “Nothing Has Changed”, com a qual celebrou meio século de carreira. O seu mais recente álbum foi “Blackstar”, em que surge como um ‘rocker’ ainda apostado em surpreender ao enveredar por alguma experimentação jazz, o qual foi posto à venda na passada sexta-feira, coincidindo com a data do seu 69.º aniversário. O seu 25.º álbum, surgido sob o signo de uma misteriosa estrela negra (“Blackstar”), é atravessado por baterias epilépticas, por correntes e explosões de saxofones (o primeiro instrumento de Bowie) e por uma voz de veludo que transmite ora doçura, ora inquietação em surdina. David Bowie, que lutava há 18 meses contra um cancro, era casado desde 1992 com a modelo somali Iam, com a qual teve uma filha, Alexandria Zahra “Lexi” Jones. Tem outro filho, Duncan Jones, fruto de um primeiro casamento com Angela Bowie. Blackstar, a última partida O novo disco é sombrio e desafiador. Gravado ao lado de um quarteto de jazz (o Donny McCaslin Quartet), traz ecos do disco Outside, que Bowie lançou em 1995, em que conspirava com a ficção científica e o início da era digital, além de forte influência de música electrónica. Também é influenciado pelas distopias da nossa época actual – o saxofonista McCaslin disse que a faixa-título teve o Estado Islâmico como inspiração – e pelo disco mais recente do rapper Kendrick Lamar, To Pimp a Butterfly e tem uma música (“Girl Loves Me”) composta no inglês torto inventado por Anthony Burguess em Laranja Mecânica. É um disco que fala de morte de uma forma estranha e sem pessimismo, como se o cantor e compositor estivesse a preparar a forma como quer ficar conhecido. Músicos locais lamentam morte de ídolo “Uma gigante perda” A morte do artista David Bowie, aos 69 anos, vítima de cancro, apanhou o mundo de surpresa. Depois de pulos de alegria, por parte dos seus seguidores, com o lançamento do novo álbum “Blackstar”, na semana passada, é tempo de chorar a morte do cantor. “Estou chocado, fui apanhado completamente de surpresa. É uma perda enorme para o mundo da música, para os músicos, para o mundo”, reagiu Luís Bento, empresário e músico, residente em Macau. “Os anos 80 e 90 foram marcados pelo Bowie, nem acredito que isto aconteceu”, apontou ao HM. David Bowie era, conta, um artista de mão cheia que fez o que muitos não conseguem fazer. “Os músicos a sério são-no até morrer. Não tenho dúvida disso e Bowie é só mais um exemplo da qualidade e trabalho que sempre o distinguiu”, frisou. Para Darrren Kopas, membro da banda local Music Boxx, esta é claramente “uma gigante perda”. “O mundo conhece o David Bowie, é uma referência para qualquer músico de pop rock. Perdemos um grande artista”, frisou. O músico Ladislau Monteiro, mais conhecido por Zico, relembrou os tempos em que os discos do artista inundavam a casa dos pais. “Claro que David Bowie é uma influência. É um ídolo. Qualquer músico da nossa geração tem o Bowie como referência. Fico muito triste, muito triste mesmo, com esta notícia”, apontou. “É uma enorme perda para o mundo musical”, refere Vincent Cheong, proprietário do Live Music Association (LMA). Bowie, diz, conquistou o mundo e agora deixa-o mais pobre. O trabalho “Blackstar” fecha a história de uma vida. David Bowie despediu-se assim dos fãs. “Esta foi a melhor prenda que David Bowie nos podia deixar, um álbum”, refere Tatiana Lages, uma assumida seguidora do trabalho do artista. Quais são os teus direitos como ser humano? Bowie, sendo inglês, não partilha da visão anglo-saxónica do mundo, que é pragmática. Nasce numa Londres parcialmente destruída pelos raides aéreos alemães e sujeita a um racionamento até 1954. Bowie fez uma audição para o musical Hair, a primeira peça com nudez integral a estrear em Londres depois do fim da censura. Mas não foi aceite. A chave está nos anos 70, quando Bowie surge como Ziggy Stardust. O seu interesse pelo teatro musical era de tal forma que, em 1973, Bowie solicitou à viúva de George Orwell autorização para adaptar o romance 1984 para palco, mas não foi aceite. E foi daí que nasceu o álbum Diamond Dogs (1974), que é um concerto completamente encenado. Bowie tinha visitado a Factory, de Andy Warhol, em Nova Iorque, onde o seu agente tinha comprado, em 1966, uma gravação de um álbum de Lou Reed and the Velvet Underground que era, também, uma forma completamente diferente de fazer teatro musical. O que é interessante de analisar são as formas que Bowie encontrou para se fechar do mundo, como quando decidiu ir para Berlim nos anos 70. Na verdade, para ele tudo é representação e essa ideia está já no início da sua carreira. Bowie foi aluno de Lindsey Kemp, um actor que foi também mimo e não se sabe se tiveram ou não um caso. Mas foi Kemp quem o levou para uma série de filmes onde era sempre type-casted. A grande diferença de Bowie é que, ao contrário de outros grupos, nos anos 1980, como os Pet Shop Boys, ou agora a Lady Gaga, não teve que preencher qualquer vazio. Ou pelo menos, não o mesmo vazio. Marcel Duchamp fez o mesmo quando, nos anos 1920, deixou de produzir e considerou que o grande gesto criativo era jogar xadrez [publicou, mais tarde, o livro The Art of Chess]. Se o Ziggy Stardust andasse nas ruas de Londres ou de Lisboa, duvido que alguém lhe desse importância. Mas há muitas cidades no mundo em que se o fizesse, teria uma reacção hostil e possivelmente violenta, ou pior. A influência de Bowie percebe-se na linha da frente de uma das maiores divisões do mundo, que já não é política ou religiosa, mas na verdade, é muito mais fundamental: quais são os teus direitos como ser humano? Bowie não tem um programa político, mas disse: “eu decido ser isto, e tu decides o que queres”. A grande fractura, hoje, está na diferença entre o indivíduo e os seus direitos. Entre o indivíduo e a liberdade de escolha. Há uma frase de William Blake que me parece ser adequada para explicar Bowie: alguém que não teve um predecessor, que não vive a par dos seus contemporâneos e não pode ser substituído por qualquer sucessor.
Andreia Sofia Silva Manchete SociedadeÓbito | Maria Barroso faleceu ontem aos 90 anos. “Não era só a mulher de Mário Soares” Depois de semanas em coma profundo, morreu a mulher do ex-presidente da República e primeiro-ministro português Mário Soares. Maria Barroso acompanhou o marido em várias viagens oficiais a Macau, sempre com uma personalidade própria. Fernando Sales Lopes, Arnaldo Gonçalves e o líder do PS em Macau lembram a mulher forte por detrás do presidente [dropcap style=’circle’]F[/dropcap]oi mulher e primeira-dama, mas também mais do que isso. Ajudou a fundar o Partido Socialista (PS), dirigiu o Colégio Moderno durante a ditadura de Salazar, lidou com o exílio do marido, foi actriz. Todas as vidas couberam na vida de Maria Barroso, esposa do antigo presidente da República Portuguesa e primeiro-ministro Mário Soares. Maria Barroso faleceu ontem aos 90 anos depois de ter estado em coma profundo durante várias semanas, após uma queda. Em Macau, Maria Barroso esteve várias vezes, quer a acompanhar o marido quer como convidada do Festival Internacional de Música, onde falou publicamente sobre a importância de divulgação da Língua e cultura portuguesas. Mas nem por isso teve um papel secundário. “Era uma pessoa discreta mas sempre presente, tinha uma personalidade tão forte que ela estava lá. Não veio só acompanhar o marido, ela também foi convidada muitas vezes para vir ao festival e depois fazia as suas visitas”, recorda ao HM o historiador Fernando Sales Lopes, que com ela travou conhecimento em Portugal. Para Sales Lopes, Maria Barroso era uma pessoa culta e uma mulher que lutava na sua componente política e social contra a ditadura. “Mas a Maria Barroso é a mulher de Mário Soares mas não é a mulher do Mário Soares. Ela, por si, vale muito”, acrescenta. A personalidade vincada saltava à vista, tanto que um mestre chinês, aquando de uma das visitas de Soares a Macau, chegou a dizer-lhe, enquanto lhe lia a sina, que este só tinha chegado aos altos cargos políticos por ter uma forte mulher ao seu lado. Carisma e cidadania “A impressão pessoal que tinha dela é que era uma pessoa com uma presença pessoal muito forte, com um grande carisma, uma enorme capacidade do uso da palavra” – Arnaldo Gonçalves, académico Arnaldo Gonçalves, académico, diz recordar-se mais de Maria Barroso na qualidade de estudante da Universidade Católica Portuguesa (UCP), onde foi aluno. Em Macau, das poucas visitas oficiais que acompanhou, recorda-se de uma mulher que “se apagava um bocado na presença (de Mário Soares)”. “Era a maneira de estar dela, porque o Dr. Mário Soares é aquela pessoa pró-activa que se conhece”, contou ao HM. Maria Barroso passou a estar ligada à UCP depois do filho ter sobrevivido a um grave acidente em Angola. Foi então que se converteu ao catolicismo. “A impressão pessoal que tinha dela é que era uma pessoa com uma presença pessoal muito forte, com um grande carisma, uma enorme capacidade do uso da palavra. Várias vezes a ouvi falar da importância de uma educação para a cidadania, que era uma coisa que ela dizia muito”, disse Arnaldo Gonçalves. Para Fernando Sales Lopes, essa ligação à religião mostra bem como Maria Barroso nunca fugiu aos seus ideais. “A Maria Barroso foi uma pessoa íntegra, que defendeu sempre as suas ideias sem se curvar, uma lutadora em todos os aspectos. Toda a gente sabe que Mário Soares é ateu e quando o filho teve um acidente em Angola, ela converteu-se ao catolicismo. A partir daí passou a ser uma mulher crente, sem se afrontar com Mário Soares.” À Rádio Macau, Jorge Neto Valente, presidente da Associação dos Advogados de Macau (AAM), recordou uma viagem oficial feita pelo casal a Macau, no final dos anos 70, inícios de 80. Neto Valente foi com Soares e a mulher até Cantão, de carro, em dia de tufão. “Mesmo assim houve aqui um encontro de pessoas que os estimavam”, lembra o advogado, recordando uma mulher “sempre muito coerente, sempre com muita dignidade”. Tiago Bonucci Pereira, líder da secção do PS em Macau, frisou que “faleceu uma grande mulher que deixa um legado muito importante, com uma vida marcada pela democracia e causas sociais. Estará sempre ligada à luta contra o fascismo e a fundação do PS. É um exemplo de cidadania e humanismo”.