A guerra pós-moderna (II)

“Casi inmediatamente, la realidad cedió en más de un punto. Lo cierto es que anhelaba ceder.”

Ficciones

Jorge Luiz Borges

(Continuação)

O princípio da realidade diz que a Grande Guerra é uma guerra de transição hegemónica. Em jogo está a hegemonia americana. Casus belli profundo que é a fraqueza dos Estados Unidos, percebida (e explorada), por enquanto, pelos russos e iranianos. Amanhã, talvez pelos chineses.

O princípio da irrealidade diz que a Grande Guerra não é um conflito sistémico. O que está em jogo é a resiliência das democracias e dos valores ocidentais. Casus belli é a loucura de líderes autoritários como Putin (mas também Netanyahu), o antissemitismo e o ressurgimento do terrorismo islâmico (Hamas), bem como a violência ontológica do regime iraniano. Solução de acordo com o princípio da irrealidade é a derrota total da Rússia na Ucrânia (retirada do Donbas) sem intervenção directa da NATO e entrada de Kiev na família democrática europeia; libertação de Gaza do Hamas, afastamento de Netanyahu do governo de Israel e prosseguimento da solução dos dois Estados; mudança de regime em Teerão, com o derrube dos aiatolas pelos movimentos de contestação (primavera iraniana).

Este breve esboço ilustra o hiato entre as palavras e as coisas. Resulta de um erro metodológico fundamental, nomeadamente a incapacidade de nos colocarmos no lugar do inimigo e de compreendermos o ponto de vista do outro. Sem isso, não há estratégia. E as histórias tomam conta da realidade, destruindo também qualquer raciocínio baseado em factos e condições objectivas. Dois exemplos, um centrado nas questões materiais e outro no desrespeito pela opinião dos outros. Primeiro, o de acordo com o princípio da irrealidade, a guerra na Ucrânia deve ser resolvida com a retirada da Rússia do Donbas sem intervenção atlântica. Isto é considerado um imperativo moral, decorrente da violação do “direito internacional” por Putin. Por conseguinte, deve ser oferecido a Kiev todo o apoio de guerra necessário, tanto em termos de armas como de munições. À luz do princípio da realidade, esta solução parece improvável.

Não tanto porque faltem armas aos ucranianos. Mas porque há falta de homens capazes de as utilizar. A narrativa valorativa e moralista sobre a guerra segundo a qual esta é, antes de mais, um conflito de visão do mundo fez-nos esquecer um simples facto da realidade e de que para combater, são necessários seres humanos dispostos a morrer em combate. São estes que estão a faltar em Kiev. E não porque os ucranianos não queiram combater, mas porque os que já estão a combater e são cada vez menos devido à dinâmica de fricção da guerra. Resultado e de acordo com os factos, o objectivo fixado pelo princípio da irrealidade implicaria a entrada dos países da NATO no conflito. Uma hipotética contraofensiva levantada de novo por Zelensky só poderia ser uma contraofensiva atlântica. Realidade versus narrativa. Estamos preparados para lidar com ela? Segundo exemplo, a solução de dois Estados na Terra Santa. Uma “solução” histórica, frequentemente repetida pelas elites ocidentais.

Uma posição aparentemente equilibrada que tem também em conta o ponto de vista dos palestinianos. Mas será que é mesmo assim? Ou será mais uma história que nos estão a contar? Se virmos bem, estes últimos tão exasperados com os abusos de que são alvo por parte do Estado judaico prefeririam tornar-se cidadãos israelitas (como a minoria árabe), para terem pelo menos alguns direitos reconhecidos. E isto aplica-se aos palestinianos da Cisjordânia. Os de Gaza viveram de facto num outro Estado, governado pelo Hamas, até 7 de Outubro de 2023. Como é que isso aconteceu? Além disso, a narrativa dos dois Estados dá como certo não se sabe bem em virtude de quê, que estes dois Estados não se guerreiam, que o Estado palestiniano confia no Estado judeu (e vice-versa) e que, de repente, surge uma tal amizade entre os dois povos que as provocações, os atentados terroristas e as tensões de vária ordem são impossíveis. Como se as nossas histórias pudessem apagar setenta anos de história com um só golpe. Por fim, uma pequena experiência de pensamento e imaginem pedir a um palestiniano e a um israelita que desenhem as fronteiras do seu Estado.

É muito provável que produzam o mesmo mapa. Assim, a solução dos dois Estados é irreal porque é impossível de traçar, a não ser que se queira deixar de fora os desejos de um ou de outro lado. Mas, nesse caso, voltaríamos à estaca zero. Isto no que respeita a alguns casos específicos. Mas voltemos à Grande Guerra enquanto tal. Por que razão insistimos no seu carácter sistémico? Simples, porque se trata de actores não ocidentais. Os russos, os chineses e os iranianos depois de um esforço para penetrar na alma americana e através da observação de certas tendências históricas de curto e longo prazo concluíram que os Estados Unidos já não têm força nem vontade de manter o seu posto mundial, extremamente dispendioso.

Isto não significa que estes actores não recorram a narrativas retóricas. Pensemos no mito do “Sul Global”. Uma expressão oximorónica de como pode o Sul ser global? Um vazio sem sentido, comparável a tantas construções de tipo ocidental. Mas a diferença reside no facto de esta narrativa se enquadrar numa estratégia revisionista mais vasta, que se baseia em factos incontestáveis, como o cansaço americano, a fraqueza europeia e as tendências demográficas inexoráveis. É um significante vazio, é certo, mas capaz de gerar consensos, porque é capaz de coagular em torno de si aspirações e lutas que decorrem de questões reais e não imaginárias, conseguindo assim gerar alguma forma de consenso e hegemonia cultural. Tal como, após a II Guerra Mundial, a narrativa do “american way of life” pareceu irresistível no Ocidente europeu. Em termos práticos, o Ocidente não tem estratégia porque se perde nas histórias, e perde-se nas histórias porque não tem estratégia. Um círculo vicioso do qual é difícil sair.

Ao dividirmos o mundo em bons e maus e ao insistirmos no carácter dos líderes inimigos, criámos para nós próprios um universo fictício que não só nos torna vulneráveis, como também nos impossibilita de abordar o caos do novo mundo. Em conclusão, aplica-se a parábola contada por Marx no início de “A Ideologia Alemã” de que era uma vez um orador que imaginava que os homens se afogavam na água apenas porque estavam obcecados com o pensamento da gravidade. Se tivessem tirado essa ideia da cabeça, mostrando, por exemplo, que era uma ideia supersticiosa, uma ideia religiosa, ter-se-iam libertado do perigo de se afogarem. Durante toda a sua vida, lutou contra a ilusão da gravidade, de cujas consequências nefastas cada estatística lhe oferecia novas e abundantes provas.

Tal como o aluno do liceu descrito pelo filósofo de Trier, o Ocidente pensa que só pode tratar da Grande Guerra com base nas suas próprias histórias e narrativas, marcando qualquer análise que tome o seu ponto de vista como conspiratório ou conivente com o inimigo. Mas não basta libertar-se do pensamento da gravidade ou da natureza sistémica da Grande Guerra para evitar os seus efeitos. A solução deve ser outra. Para Marx, tratava-se de voltar a fazer assentar a dialéctica sobre os pés e não sobre a cabeça, como fizera Hegel. Nós, parcialmente inoculados contra os argumentos metafísicos, contentar-nos-íamos com um resultado mais modesto, o de fazer com que a geopolítica se apoie de novo nos pés do princípio da realidade e não na cabeça do princípio da irrealidade. Um ponto de partida para repensar o fim da Grande Guerra. Assim, o seu fim.

24 Out 2024

A guerra pós-moderna (II)

“Casi inmediatamente, la realidad cedió en más de un punto. Lo cierto es que anhelaba ceder.”

Ficciones – Jorge Luiz Borges

No chamado momento unipolar, não havia necessidade de criar estratégias. A história ou melhor, o seu fim tinha decretado a vitória da América. Assim, não havia necessidade de estabelecer objectivos. Bastava concentrarmo-nos no desenvolvimento dos meios tecnológicos, bélicos e de comunicação para eternizar o presente. No entanto, quase numa inversão dialéctica, a ausência de narrativas estratégicas abriu a porta ao desenvolvimento de um número infinito de narrativas sem fundamento e sem relação com o princípio da realidade. A narrativa estratégica está, por definição, presa aos factos. Até porque a estratégia implica cartografia, uma actividade que se prende à realidade e não deixa espaço para a lucubração. A distinção geopolítica entre a narrativa estratégica autêntica e a retórica esfumada reside precisamente na possibilidade da cartografia. Uma estratégia, por mais ornamentada que seja em termos narrativos, deve poder ser desenhada num mapa.

Uma narrativa por si só, por outro lado, não o pode ser. Nem mesmo o mais hábil cartógrafo seria capaz de desenhar os objectivos da “guerra global contra o terrorismo” (que não pode existir) ou a realidade concreta da “era da paz democrática” (que, querendo ser eterna e universal, abole o espaço e o tempo). Quando as palavras não podem ser mapeadas, isso significa que estão em contradição com as coisas. E quando a relação entre significante e significado é quebrada, então as narrativas podem multiplicar-se precisamente porque perdem toda a referência à realidade. Para os romancistas, isto pode ser uma proeza e pense-se na estrutura gótica e labiríntica de “If One Winter’s Night a Traveller”, de Italo Calvino. Mas para aqueles que se dedicam à geopolítica, significa nadar no mar do nada. Significa renunciar à realidade para se perder nas histórias, transformando-se num leitor ingénuo da irrealidade. Perigosamente convencidos de que estão a lidar com a verdade. Esquecendo que para uma consciência à mercê da falsidade e da irrealidade nada de verdadeiro e real pode aparecer.

E é precisamente aqui que reside o paradoxo da era dita “pós-moderna”. Ao rejeitar e desconstruir o próprio conceito de grande narração, deixa o campo aberto à explosão de um número infinito de micro-narrativas e jogos linguísticos que não comunicam entre si. A explosão de histórias e narrativas é um sintoma da ausência de história e de grandes narrativas, pois hoje, toda a gente fala de narrativas. E, no entanto, paradoxalmente, o próprio facto de as narrativas serem utilizadas em todas as esferas é um sinal de uma crise da experiência narrativa. A enxurrada de narrativas totalmente alheias à realidade gera confusão e caos e ninguém fala todas estas linguagens, elas não admitem uma metalinguagem universal.

É o asilo na Babilónia descrito em “The Man Without Qualities” por Robert Musil, do qual se ressalta que “A vida à nossa volta é desprovida de conceitos ordenadores. Os factos do passado, os factos das ciências individuais, os factos da vida elevam-se sobre nós desordenadamente (…). É um manicómio babilónico; de mil janelas que gritam simultaneamente ao transeunte mil vozes, mil pensamentos, mil músicas diferentes, e é claro que o indivíduo em tudo isto se torna o cadinho de motivos anárquicos e a moral dissolve-se juntamente com o espírito”. A nossa vida quotidiana, os nossos devaneios, o nosso sentido de nós próprios são todos construídos como histórias e encontramo-nos, portanto, inundados por uma multidão de mini-narrativas, individuais ou colectivas, e, em muitos casos e predominantemente, narcísicas e para nosso próprio uso.

As palavras enterram as coisas, a retórica ultrapassa a dialéctica, as histórias obliteram a realidade, e as narrativas autistas e idiotas no sentido grego, tomam o lugar das narrativas fundacionais e estratégicas. Estamos em plena geopolítica pós-moderna; um pensamento fraco que, privado de qualquer acesso à coisa em si, tem de se mover no oceano das narrativas. Reina o princípio da irrealidade. Procuramos uma síntese. O princípio da realidade não foi morto sic et simpliciter pela narração. Pelo contrário, foi precisamente o desaparecimento das grandes narrativas que o deixou à mercê das micro-narrativas individuais e retóricas, em si mesmas incapazes de gerar laços sociais e perspectivas estratégicas. Não há nenhum assassino do princípio de realidade. Tal como no “Assassinato no Expresso do Oriente” de Agatha Christie, o princípio da realidade caiu sob os golpes da multiplicidade de narrativas que se desenvolveram na sequência do colapso das grandes narrativas. Por isso, é difícil apontar um culpado.

E talvez seja também inútil. Depois de termos feito o diagnóstico, é altura de nos concentrarmos no prognóstico. O que é que acontece quando a guerra deixa de ser travada ao nível do princípio da realidade e passa a ser travada com base no princípio da irrealidade? Ou, para ser mais preciso, que tipo de guerra é a guerra pós-moderna, desprovida de estratégia e travada apenas em nome de (micro) narrativas? Poderá afirmar-se que a guerra pós-moderna não tem regras predefinidas nem um código de conduta. É um espectáculo. Na historilândia, a guerra perde a sua natureza clássica, Clausewitziana. Já não é um meio para um fim politicamente definido (certo ou errado). Torna-se pura narrativa, desvinculada de qualquer estratégia. Sem a causa final pela qual é travada, a guerra torna-se guerra pela guerra. Ou melhor, a guerra pela narração e a narração pela guerra, num círculo vicioso e tautológico em o carácter fundamentalmente tautológico do espectáculo deriva do simples facto de os seus meios serem ao mesmo tempo também os seus fins.

Neste contexto espectacularizado, o espectáculo é uma mera narração, uma narração pela guerra. Neste contexto espectacularizado, não havendo estratégias, o objectivo da guerra pós-moderna passa a ser o de usar o poder para definir o que pode ser conhecido. Na prática, já não se trata de obter resultados concretos, mas sim de narrar e legitimar decisões tomadas não com base numa análise da realidade, mas, mais uma vez, com base numa história. Que, pelo facto de ser repetida, se tornou verdade. Depois de ter enterrado a realidade, o espectáculo afirma-se como uma enorme positividade inquestionável e inacessível. Não diz mais de o que aparece é bom, e o que é bom aparece. Um exemplo escolar disto é o espectáculo do conflito no Afeganistão produzido pelo general americano David Petraeus. Dada a natureza astronómica das guerras do Médio Oriente na altura, os Estados Unidos tinham de encontrar uma forma de as narrar. Mas como fazê-lo, dado que a vitória na ausência de estratégia é impossível de definir? A solução para este dilema foi o próprio Petraeus, que montou uma estratégia de comunicação extremamente peculiar. Uma vez que não existia um objectivo final, enfatizou os “avanços” individuais que estavam a ser feitos pelos militares americanos.

Obviamente, amplificando-os e apresentando-os como mais difíceis de alcançar do que eram na realidade, de acordo com a táctica de “under promise and over deliver”. Petraeus, sempre rodeado de jornalistas, utilizou assim conscientemente o princípio da irrealidade para esconder a ausência de estratégia. Perante a impossibilidade de vitória, preferiu narrar uma guerra sem fim, ou seja, um conflito caracterizado exclusivamente por avanços espectaculares e nunca por um momento decisivo. O exemplo de Petraeus é instrutivo porque mostra claramente como, na ausência de estratégia, surge a necessidade de desenvolver narrativas, úteis para legitimar a guerra mas totalmente desligadas do princípio da realidade. Neste sentido, o avanço das histórias e do espectáculo deve ser considerado, antes de mais, como um sintoma da ausência de estratégia, pois a inflação dos modelos narrativos trai a necessidade de lidar com a contingência. Estamos perante uma tentativa, talvez inconsciente, de fuga à realidade e de refúgio num horóscopo coerente e tranquilizador, em que a mudança súbita das coisas não obriga os decisores a repensar as suas palavras de ordem. O espectáculo está no coração do irrealismo da sociedade real.

Reflecte a ausência de realidade, ao mesmo tempo que a produz, num processo diaclético de mistificação em que omitida qualquer referência às coisas a relação entre o que é e o que é dito é literalmente subvertida pois no mundo verdadeiramente desorganizado, o verdadeiro é um momento do falso. O que é dito como “verdadeiro” só o é contra o pano de fundo de uma narrativa que, transcendendo a realidade, é, no entanto, intimamente falsa. No mundo “verdadeiramente invertido” da historilândia, para ser breve e brutal, a resolução de problemas é de facto impossível. Todas as questões já estão mal colocadas. Parte-se de dados errados. Ou melhor, parte-se da história que se quer confirmar. A guerra pós-moderna, como Petraeus demonstrou magistralmente, é, portanto, um exercício de irrealidade, uma tentativa de ganhar a guerra sem a ganhar e apenas contando-a. É um exercício retórico, não dialéctico, porque impõe a coerência com a minha história e recusa o confronto.

Mas a realidade tende a morrer duramente. Mais cedo ou mais tarde, volta para desferir os seus golpes. Ao minar as narrativas baseadas em nada. Esta deveria, talvez, ter sido a principal lição afegã a ser aprendida. Mas os Estados Unidos e o Ocidente não a aprenderam. E hoje encontram-se a combater a Grande Guerra, a mais moderna das guerras de transição, com as armas da guerra pós-moderna. Arriscando-se a perder tudo sem sequer se aperceberem. Como um sapo a ferver na água.

17 Out 2024

A guerra pós-moderna (I)

“Nobody reaches through here, least of all with a message from one who is dead”

Franz Kafka

O Ocidente sem estratégia acredita mais em histórias do que em factos. Enquanto os inimigos elaboram planos para o derrubar. Histórias infundadas entre a América, a Ucrânia e a Terra Santa. O método Petraeus em que não é possível imaginar qualquer iniciativa que envolva o uso da força sem uma estratégia política precisa de um guia para o diálogo. Para acabar com os conflitos, é preciso redescobrir a realidade. Se, de pistola ao templo, nos pedissem para indicar a primeira grande derrota da Grande Guerra (a possível ou impossível que teria contornos de III Guerra Mundial) era de responder sem hesitar que seria o “Princípio da Realidade”. Não a realidade tout court. Mas a nossa forma de a abordar. Não deixámos simplesmente de “compreender o mundo”.

Privámo-nos das ferramentas necessárias para o fazer. E não é de hoje. Como muitas vezes acontece, o que parece extraordinário e totalmente imprevisível revela-se a um olhar mais atento implicado e anunciado pelo passado. Tempo decisivo, para o qual o rouxinol de Minerva olha ao cair da noite na tentativa de iluminar o presente. Regressemos à Terra. O princípio da realidade ditaria que se considerasse a Grande Guerra como uma potencial guerra de sucessão americana. Hoje, ela é travada na Ucrânia, na Terra Santa e no Mar Vermelho. O coup de théâtre seria a abertura de uma frente americana, caso a “Doença da América” se transformasse numa doença autoimune. Concretizando assim as previsões do filme (distópico?) “Guerra Civil”, de Alex Garland estreado nos cinemas americanos a 12 de Abril.

Se o princípio da realidade se confirmar, a Grande Guerra obrigaria os Estados Unidos e o que resta do Ocidente a pensar estrategicamente, isto é, a enfrentar uma tal conjuntura para compreender como se reorganizar. Tratar-se-ia de repensar o seu lugar no mundo, agora que para usar a expressão de um livro profético aparecido em 2008 “os sonhos acabaram”. Mas o princípio da realidade não se aplica. E assim a estratégia torna-se impossível. Prefere-se, na teoria e na prática, as simplificações políticas maniqueístas (democracias vs. autocracias) ou as especulações sobre a loucura dos líderes inimigos. E isto no melhor dos casos. Na pior das hipóteses, a existência da Grande Guerra é mesmo negada ou suprimida. É o caso da Europa, que gosta de se considerar em paz, armando os ucranianos, fornecendo aos americanos bases para operações contra os russos e combatendo os Hutis no Mar Vermelho, embora com um sucesso moderado. Recusando-nos a olhar para a “verdade dos factos” diria o nosso Maquiavel que tendemos a perder-nos nas “cláusulas-ampola” da retórica.

O resultado é que a Grande Guerra não tem fim. Nem masculino nem feminino. Uma vez que não compreendemos os objectivos dos nossos inimigos que preferimos rotular de loucos e violentos somos incapazes de criar os nossos próprios objectivos. Por isso, não podemos imaginar um fim para a guerra, porque não sabemos onde estamos e o que queremos. E enquanto os chineses, os russos e os iranianos raciocinam sobre a forma de derrubar o “Ocidente colectivo”, este último prefere eliminar este simples facto do seu raciocínio. Na esperança de que as suas palavras ditas ou pensadas sejam mais poderosas do que as coisas. Mas quem matou o princípio da realidade e, consequentemente, a nossa capacidade de processamento estratégico?

Já temos um suspeito. Passemos ao seu interrogatório. Comecemos pela acusação. O princípio da realidade foi assassinado pelo advento do “storytelling” e do conceito de “narração”. A progressiva perda de sentido histórico nas sociedades ocidentais é acompanhada por uma superabundância de histórias anti-históricas, de narrativas destinadas apenas a condicionar e orientar a praxis do homo economicus ou a satisfazer a “curiosidade” no sentido heideggeriano do que resta da chamada classe média reflexiva. Segundo o crítico literário americano Jonathan Gottschall, vivemos actualmente num “historioverse”, ou seja, num mundo em que já não existe qualquer análise da realidade. Em vez disso, cada um escolhe a narrativa que prefere, independentemente da sua aderência aos factos.

A “historilândia” é, paradoxalmente, “um mundo com mais certezas em que, independentemente da história absurda em que se acredita, pode-se apoiar essa história com muita informação que se assemelha a provas reais”. Corroborando essa tese está o maior crítico literário vivo, Peter Brooks, emérito de Literatura Comparada em Yale. Num livro recente, icasticamente intitulado “Seduced by Stories”, ele atribui a importância do contemporâneo à “historicização da realidade”. Esta importância revela uma contradição, enraizada no homo occidentalis desde o seu nascimento de que o “universo não corresponde às nossas histórias sobre o mesmo, embora estas sejam tudo o que temos”. Em suma, movemo-nos em narrativas. Não temos outras possibilidades. Mas estas não são a realidade. O risco de nos extraviarmos e de confundirmos o mapa com o território é, por isso, elevado submergidos em histórias, como parece que estamos, podemos mesmo deixar de ser capazes de reconhecer a diferença entre o que aconteceu e o relato do que aconteceu, dando às realidades que inventamos a primazia sobre a verdadeira realidade.

Sorte para o escritor, drama para quem trafica na geopolítica. O processo de historicização, de facto, tem um impacto directo no pensamento estratégico. E fá-lo de três formas diferentes. Assim, talvez, matando o princípio da realidade. Afinal de contas, três pistas fazem uma prova. Primeira pista, a nossa época caracteriza-se por uma narrativa individualista. A “historilândia” é habitada por indivíduos sejam eles políticos, influenciadores ou cidadãos comuns que fazem da marca pessoal a sua imagem de marca. Todos têm de contar a melhor história possível sobre si próprios com o objectivo de serem apreciados, estimados ou, pelo menos, conhecidos. Não importa o que se faz, porque hoje em dia os factos concretos não são de todo conhecíveis enquanto não os transformarmos numa narrativa.

A realidade só surge quando encapsulada em uma narrativa coerente, apaixonada e, acima de tudo, singular. Possivelmente única e irrepetível. Essa abordagem existencial também coloniza a dinâmica política e geopolítica. Os chamados “líderes” são transformados em personagens de um romance. Ao contar e construir as suas histórias, estrategicamente tentam retratar-se como dotados de certas peculiaridades caracterológicas, bem como sujeitos absolutos dos assuntos humanos. Há o populista raivoso, o moderado, o agressivo e o competente. Pouco importa se todos fazem as mesmas coisas. São as palavras que os distinguem. O problema, no entanto, é que essa comunicação com base na personalidade gera a imagem de um mundo semelhante a um cenário de filme.

Assim como a trama dos filmes é desvendada pelas acções dos indivíduos que invariavelmente derivam do carácter e das histórias dos personagens, da mesma forma, em questões geopolíticas, acredita-se que é possível a) deduzir as acções das colectividades a partir de uma análise parapsicológica e caracterológica (quase lombrosiana) das almas dos líderes e b) dividir o mundo em bons e maus justamente com base nessa análise. Em consequência, aqueles que são maus com base na história que me contaram terão um comportamento ruim. Mas como posso saber quem é ruim? Fácil, ver como se comporta. E por que faz isso? Obviamente, porque é ruim. Para ser rigoroso, isso seria uma petição de princípio. Mas no mundo da “historilândia”, a coerência narrativa é mais importante do que a lógica pois os factos são moldados pelas nossas expectativas de significado e coerência narrativa.

Traçar estratégias a partir dessa premissa é simplesmente um absurdo. Se tudo é derivado das histórias dos que estão no comando, então que se enfrentem! Até porque, em uma boa história, os meninos sempre vencem no final. Então, por que fazer esse esforço? É uma pena que, nesse romance que é a geopolítica, todos acreditem que são os meninos. E com isso passamos para a segunda pista. Na “historilândia”, aplica-se a lei de Schmitt. Amigo/inimigo é a regra de platina. Uma história que se preze deve ter um protagonista e um antagonista. E não pode haver diálogo entre os dois. O demónio e a água benta. O historiador não deve unir as histórias dos inimigos. Pelo contrário, cada lado deve criar a sua própria. E o que divide os diferentes “historioversos” é uma cortina de diamante, tanto por ser mais dura do que a cortina de ferro quanto por permitir que os protagonistas contemplem a sua pureza e beleza, em um autodesfrute hegeliano. A repetição do idêntico gera um senso de identidade e uma falta de curiosidade em relação ao que é diferente.

O resultado, de acordo com Gottschall é de que hoje estamos todos dentro das nossas próprias pequenas histórias e, em vez de nos tornar mais semelhantes, as histórias nos transformam em versões extremas de nós mesmos. Elas permitem-nos viver em mundos narrativos que reforçam os nossos preconceitos em vez de desafiá-los. O resultado final é que tudo o que é consumido nas nossas histórias faz com que eu seja mais eu e outro mais outro. Em um contexto como esse, não há estratégia porque não há amor pelo inimigo. Um imperativo categórico da geopolítica, resumido por George Friedman é de que “você deve tornar-se o seu inimigo. Deve ver da forma que ele vê, ter medo do que ele tem medo, desejar o que ele deseja. Somente assim poderá entender o que ele fará e como fará”. Pense no amor de Kissinger pela China ou no amor de Kennan pela Rússia. O que tornou essas figuras tão importantes e eficazes na história da geopolítica foi sua paixão pelo inimigo da época. Isso é muito para a “historilândia”. Amor pelo inimigo. E pela realidade.

Terceira e última pista. O que são essas histórias senão propaganda e retórica? É claro que a propaganda é parte integrante da estratégia. Ela serve para fazer com que a população a digira e a mobilize. E a retórica é a sua valiosa aliada. O problema é quando, na ausência de estratégia, a retórica e a propaganda tomam o seu lugar. Ou quando elas se tornam tão poderosas que se transformam em estratégia. O exemplo escolar é a ideia do fim da história, patenteada mas não inventada por Francis Fukuyama. Após o colapso da União Soviética, os americanos realmente pensaram que poderiam tornar universal e eterno um momento particular e contingente, ou seja, o unipolar. Depois descobriram, para seu desânimo, que o mundo não queria ser americano e que decretar o fim da história não era suficiente para realmente detê-lo.

Em suma, os Estados Unidos acreditaram no seu próprio poder e na sua capacidade de se tornar um país de mercado. Em resumo, os Estados Unidos acreditaram na sua própria propaganda. Graças à ideologia do fim da história, “inimigos e aliados seriam dissuadidos de concentrar grandes forças em regiões estrategicamente importantes”. Diante do extraordinário poder americano, um círculo vicioso teria sido gerado de que a supremacia mundial dos Estados Unidos estava destinada a durar para sempre. Foi uma pena que esse silogismo não fosse o mesmo usado pelos Estados Unidos. É uma pena que esse silogismo tivesse que convencer os inimigos, não os americanos! Eles deveriam ter-se mantido atentos e desenvolvido uma sensibilidade trágica necessária para enfrentar os desafios que se apresentam a qualquer império que queira durar para sempre.

Isso não aconteceu porque, acreditando ser superiores ao mundo e transcender a realidade, os Estados Unidos decidiram ignorar ambos, o mundo e a realidade. A propaganda, a narrativa das narrativas, substituiu a estratégia. E também porque, convenhamos, o fim da história foi uma história muito boa. Por que arruiná-lo com a verdade? Poderíamos continuar, mas é bom parar. De facto, encontramos as três pistas necessárias para condenar o conceito de contar histórias pelo assassinato do princípio da realidade. Mas, pelo menos na Europa, ninguém é culpado até que se prove a sua inocência. Portanto, deve-se conceder à narrativa um último grau de julgamento. Será difícil absolvê-la, mas, talvez, possa apresentar algumas circunstâncias atenuantes. Afinal de contas, quando introduzimos a metáfora do julgamento, também começamos a contar uma história.

E que história seria essa sem uma reviravolta? Se a narrativa tivesse um bom advogado, ele levantar-se-ia e declamaria: “Excelências, estão esquecendo-se de uma questão fundamental. Antes de condenar o meu cliente por assassinato do princípio da realidade e raciocínio estratégico, deveriam ter em mente que, afinal de contas, a estratégia também é uma narrativa”. É verdade. Toda estratégia deve ser narrada. E deve basear-se em um passado às vezes mítico e não necessariamente real. A estratégia não é exclusivamente prescritiva. Não se trata de uma receita ou de uma lista de tarefas. É, antes de mais, uma história, certamente orientada para o futuro, enraizada no passado a partir das necessidades do presente. Uma estratégia sem história (tanto no sentido de conto como de história) está condenada ao fracasso, se não for contada, não encontra consenso entre a população; se for estranha à memória colectiva, é sentida como estrangeira.

A estratégia é, portanto, uma grande narrativa. Precisamente no sentido de Jean-François Lyotard é uma meta-narrativa que dá legitimidade aos factos, ordenando-os com vista à realização de um objectivo final. A estratégia tem um fim precisamente. É uma narração dirigida a um objectivo que, partindo de um estado de coisas, procura produzir um outro, considerado melhor. Mas aqui está o problema decisivo. Como afirma Lyotard, na nossa época “a grande narrativa perdeu a credibilidade”. Por razões endógenas e exógenas. Concentremo-nos nas últimas. O declínio das grandes narrativas, mesmo das estratégicas pode, de facto, ser considerado “um efeito da descolagem das técnicas e das tecnologias que colocou a ênfase nos meios e não nos fins”. Este facto é evidente no caso americano. O “factor superpotência”, que já se tinha desenvolvido no rescaldo da II Guerra Mundial, ascendeu a primum mobile da (não) estratégia americana após a vitória na Guerra Fria.

10 Out 2024

O uso ilimitado da força (I)

“A ideia mais extravagante que pode surgir na cabeça de um político é acreditar que basta a um povo ir armado a uma nação estrangeira para a fazer adoptar as suas leis e a sua constituição”

General François Lecointre

Em outro tempo houve uma guerra política contínua por outros meios. O que resta sem a política? A guerra autónoma, dirigida a si própria. Violência ilimitada. Irracional. Chamar-lhe-íamos besta se nas espécies animais não existissem hierarquias de dominação, de modo que a competição pela superioridade é geralmente resolvida por ameaças e não pelo exercício da força. Em rigor, deveríamos deixar de chamar guerra ao que há muito deixou de corresponder ao cânone estabelecido em 1832 por Carl von Clausewitz.

O seu tratado sobre a guerra, um tratado de antropologia e de arte da política em que as armas são apenas o seu instrumento, foi utilizado por gerações de oficiais, de tal forma que passa por um manual técnico de combate. É digno de figurar ao lado da “Fenomenologia do Espírito” do seu contemporâneo igualmente prussiano, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, só que lhe subverte o sentido porque não expõe a realização da história como um projecto divino, mas anuncia talvez inconscientemente a sua subversão.

A fractura que diante dos nossos olhos liquida a dimensão política da guerra, emancipando-a da primeira, reduzida a um estado larvar, produziu-se a partir da época napoleónica. O fim da “guerre en dentelles”, dos torneios em tributo regidos por uma etiqueta cavalheiresca de costumes, o início das mobilizações de massa e dos movimentos revolucionários que culminam no triplo suicídio das hegemonias europeias (1914-1945-1991). Hegel e Clausewitz estavam ambos em Jena, a 14 de Outubro de 1806, quando Napoleão derrotou o exército prussiano.

Clausewitz ficou prisioneiro daquele Bonaparte em quem Hegel, olhando pela janela, queria ver a alma do mundo a cavalo. Duas perspectivas fisicamente opostas, a do oficial que caiu nas mãos do inimigo experimentou o clima e os modos de um grandioso exército do povo, e depois passou de cobaia a investigador dessa revolução, que não era apenas militar; o filósofo demasiado sistemático para admitir as aporias que o impediriam de encerrar a sua dialéctica trinitária, viu em Napoleão o anúncio simbólico do desígnio de Deus ao afirmar “É uma sensação maravilhosa ver um indivíduo que concentrado num ponto, irradia sobre o mundo e o domina”.

Clausewitz rejeita, na introdução, a necessidade de reduzir as suas observações a um sistema, um sinal do destino, dado que não poderá terminar de corrigir a sua obra-prima: “Em vez de uma doutrina abrangente, temos apenas fragmentos para oferecer. Tal como muitas plantas não dão frutos se os seus caules forem demasiado altos, é necessário que, nas artes práticas, as folhas e as flores teóricas não se desenvolvam demasiado. É preciso não se afastar muito do terreno que lhes convém, isto é, da experiência. Talvez surja em breve um espírito mais esclarecido, que substitua estes grãos isolados por um todo fundido num só molde como um metal sem escória”. Clausewitz acabaria então por ser desviado pelas ciências militares e políticas. Até que um antropólogo e crítico literário muito original, René Girard, revelou o seu núcleo oculto. Uma fórmula que torna o seu pensamento actual, ou seja, a cisão entre política e a guerra. Clausewitz já a tinha, de facto, intuído, só que recuou quase temeroso perante a descoberta e assumiu o papel de técnico de armamento, decididamente diminuto. Eis a passagem-chave, que no texto precede o postulado, agora ultrapassado, sobre a relação política/guerra: “Confirmemos, portanto – a guerra é um acto de força, cujo uso não tem limites – os beligerantes impõem a lei uns aos outros; o resultado é uma acção recíproca que logicamente deve levar ao extremo”.

Girard lê neste fragmento a confirmação da sua tese sobre o mimetismo, retirada do estudo dos clássicos da literatura, de Cervantes a Proust e Dostoievski em que a imitação é o motor das relações entre os humanos na medida em que se reconhecem como semelhantes. Leva-nos a aprender, mas também a lutar pelo desejo do objecto do outro. Mais radicalmente, pelo desejo do desejo do outro. Daí a dinâmica da violência como um jogo de espelhos que torna os inimigos cada vez mais semelhantes. O uso ilimitado da força é um sintoma da “tendência ao extremo” que acelerou o curso da história desde o final do século XVIII. E determina uma continuidade do confronto bélico através da “acção recíproca” impulsionada pelo desejo mimético dos contendores. “Bump and grind”. Extensível ao infinito, por imitação na qual a violência chama a violência. Ao ponto de se perder o próprio sentido de defesa e de ataque, de agressor e de vítima. Exemplo, o “ódio misterioso” entre a França e a Alemanha que constitui “o alfa e o ómega da Europa”. Neste sentido, a Guerra é apocalíptica. Pois estamos sempre em guerra, uma vez que a guerra enquanto instituição capaz de produzir sentido e determinar equilíbrios de paz já não existe. Um fenómeno que, segundo Girard, afecta todas as instituições.

O que resta da política persegue a guerra como Aquiles, a tartaruga. A abolição determinativa da guerra é intencional. Aqui estamos interessados tanto no fim da guerra como no fim da paz. A ausência do primeiro exclui a paz. Para a conseguirmos, temos de saber porque lutamos e, sobretudo, com que objectivos os nossos adversários nos confrontam. É para isso que serve a geopolítica. Obriga-nos a contemplar o conflito a partir do alto (perspectiva de arbitragem) e, a partir daí, a descer por graus e escalas crescentes até ao terreno em disputa (olhar conflitual), medindo o que está em jogo – o objecto do desejo mimético – as intenções e os recursos dos protagonistas. O exercício geopolítico educa até ao limite. Refreia os impulsos mais imprudentes dos contendores, incluindo-os mimeticamente na mesma equação, em respeito pelo princípio da realidade. Prepara a paz. Exercício fora de tempo? Não pensamos assim. Pelo contrário, pensamos que compensa a “tendência para os extremos”.

Entusiasmado com o teatro de papel machê que pinta efectivamente o mundo inexistente das regras universais, eleva o não-direito internacional a direito. Uma receita para acabar com a guerra, sim, mas através de uma colisão definitiva capaz de erradicar a humanidade deste planeta. Quem tranquiliza não cura. Contribui para a catástrofe. Traduzamos a tendência para o extremo em geopolítica. O que é que ela nos diz, senão da ocidentalização do mundo, filha da Revolução Francesa? Desencadeadas pelas campanhas de Napoleão, desenvolvidas com as guerras do ópio britânicas, as empresas coloniais das potências europeias vestiram-se de civilização das raças inferiores, culminando na formação de um mercado mundial de bens e capitais sob a égide americana. Previamente antecipado em 1848 por Karl Marx e Friedrich Engels como o estigma da sociedade burguesa no “Manifesto do Partido Comunista” em que “A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, logo as relações de produção, portanto o conjunto das relações sociais.

A incerteza e o eterno movimento distinguem a época burguesa de todas as anteriores. A necessidade de um escoamento cada vez mais vasto dos seus produtos impele a burguesia para o outro lado do mundo. Em todo o lado tem de se impor, estabelecer, constituir relações”. Se substituirmos “burguesia” por “Ocidente”, descobrimos a dinâmica geopolítica que se mantém desde então e cuja crise vivemos actualmente. A tendência para o extremo que deveria ter acabado com a história descarrilou das pistas economicistas engenhosamente traçadas pelos dois jovens renanos. Os estudos antropológico-culturais que se seguiriam à expansão colonial estavam a dar os primeiros passos. As raízes e as múltiplas funções das guerras modernas, estimuladas pela tecnologia, começavam a alargar o seu alcance. Para investir todas as dimensões competitivas das relações entre grupos humanos, o comércio como cultura, a força militar como esfera do direito, as finanças como desporto. Um processo do qual emana a miragem da ocidentalização do mundo como o fim (masculino e feminino) da história humana.

Descarrilamento da teleologia hegeliana. A ideia um tanto bizarra de universalizar o Ocidente, uma ofensa ao princípio de não-contradição, expõe os limites da tendência ao extremo que se pretende ilimitada. Síndroma de Clausewitz-Girard em que a ocidentalização da humanidade é tanto filha da imitação dos não ocidentais, consciente ou não, como do nosso beligerante impulso ecuménico. Não se trata de um movimento unilateral do centro do poder para as periferias impotentes, mas de um duplo movimento. Aproximação mútua em vista do duelo. As periferias procuram o centro, sobretudo quando não o admitem a si próprias, oferecendo alternativas a um paradigma que introduziram, tal como o centro visa as periferias. Dialéctica sem síntese possível, em aceleração contínua. Desalinhada. Se, em vez de avançar para o triunfo, a história marcha ao acaso ou em círculos, a tendência para o extremo radicaliza-se até ao paroxismo. E produz guerras potencialmente intermináveis. Num duplo sentido, sem objectivo e sem fim. Dançamos à beira do vulcão.

Estamos na era da proliferação das armas de destruição maciça, não apenas nucleares. É preciso um formidável acto de fé para nos convencermos de que milhares de bombas atómicas na posse de actores cada vez mais imprevisíveis e numerosos, lançadas a partir de vectores hipersónicos capazes de atingir o alvo em minutos e de tornar inabitáveis continentes inteiros são produzidas para os respectivos stocks. E o que dizer da fábula segundo a qual a inteligência artificial nunca será autónoma dos seus criadores? A tendência para o extremo perturba o cartesianismo dos estrategas de gabinete. Viúva da dissuasão, o “Ancien Régime” desmoronou-se com a demolição do Muro. Os historiadores, uma espécie em vias de extinção devido à abolição progressiva da disciplina, não estão muito melhor, pois o desporto do século é a marcha frenética a partir de um impasse. Sem passado, sem futuro, sem nada para fazer senão para consumo imediato. A improvável ocidentalização do mundo expande-se para a desocidentalização do Ocidente. Sobretudo, para a desocidentalização da América.

À força de exportar a liberdade e a democracia com guerras preventivas-educativas regularmente mal sucedidas e sofridas, se nalgum canto da nossa memória prezamos o princípio de que lutamos para vencer, quantos restam em casa? Se muitas democracias residuais são menos populares do que várias autocracias, porque é que os chineses ou os russos nos hão-de imitar? Talvez pensemos que uma campanha para libertar um povo de um tirano, ao estilo da invasão estrelada da Mesopotâmia, transformará de um momento para o outro o sujeito num fanático do modelo de Westminster? Prestemos homenagem a Thomas Friedman, o ideólogo do terrapianismo, a quem, num suspiro inconscientemente autocrítico, escapou a pergunta proibida: “O Iraque é como é hoje porque Saddam é como é, ou Saddam é como é porque o Iraque é como é?”. Por fim, quanto à globalização consensual de Washington, paradigma económico do Ocidente americano, o que fazer se uma grande parte do mundo discorda e se dedica cada um a acercar o seu próprio estilo de produção e de troca, para adaptações posteriores?

No entanto, no Ocidente, continuamos a conceber as guerras como o recurso último do progresso de que reclamámos a exclusividade. Cada vez mais fracos e menos convencidos, somos ainda prisioneiros de um síndroma do membro fantasma. Colaterais da tendência para o extremo, por definição avessos à reflexão. De medir a realidade e o lugar que provisoriamente ocupamos nela. Quase como se o Ocidente fosse uma categoria meta-histórica. E a guerra a parteira da história, dixit Marx, ocidentalizador não convencido. O hiato entre a ideologia e a correlação global de forças induz a depressão na América, que se identifica com o Ocidente como protectorado de confiança divina e comunidade de valores. Mas a profundidade da sua própria crise impede-a de abjurar a ideia universal de progresso que justifica a sua existência e promove o seu poder superior. A história não pode acabar em glória, é certo, mas a auto consciência fundadora sem a qual a América não existe pode confrontá-la com a alternativa do diabo que é a guerra civil ou a guerra mundial. Ou ambas. Em nome dos direitos humanos, mais vale suicidar-se com todo o planeta.

A aproximação à encruzilhada faz-se por um conflito sem objectivo nem conclusão. Alimentado pelo ilimitismo americano. E demarca os Estados Unidos e os seus associados das potências não ocidentais, onde persiste alguma forma de racionalidade, ainda que peculiar. A anti-estratégia em esteróides praticada dentro e à volta da Casa Branca exprime a “geopolítica para as classes médias” que o “Estado Profundo” em confusão postula inspirar-se. Anátema aos olhos dos hiper-capitalistas estrelados, para quem nem o céu é o limite. Pensemos em Elon Musk e Jeff Bezos, o segundo e o terceiro homens mais ricos da Terra, que imaginam exportar a humanidade para além deste planeta, um lugar demasiado estreito para nós. Podemos acabar de o destruir e começar a colonizar o universo. Musk quer-nos em Marte. Bezos eleva a fasquia pois triliões de seres humanos flutuarão em enormes estações espaciais no espaço interplanetário. Tudo se pode esperar do homem (Musk) que foi castigado pela História por ter gerado uma filha comunista e do seu rival que, em criança, treinou o seu talento tecnológico instalando um alarme eléctrico para impedir os irmãos mais novos de entrarem no seu quarto.

Visões proféticas do futuro? Como bons vetero-europeus, preferimos a receita do social-democrata vienense Franz Vranitzky, antigo chanceler austríaco que disse “Quem tem visões deve consultar um médico”. Mas quanto mais velhos ficamos, nós, ocidentais, mais sofremos de mimetismo diacrónico. Imitamos os nossos grandes líderes de outrora, sem medo do ridículo. É o caso de Emmanuel Macron, com o seu manto napoleónico, pronto para uma campanha militar contra a Rússia. E dos dirigentes polacos, bálticos e escandinavos que gostariam de riscar a Federação Russa do mapa, para dar origem a um colorido festival de miudezas “pós-coloniais”. Um clima de higiene mundial neo-futurista, exclusivamente bélico, que enevoa tanto os comentadores “mainstream” insuspeitos como os militares no activo e no passivo. Assim, Janan Ganesh, colunista do Financial Times, estabelece a equação paz=estagnação e convida-nos a saborear a guerra como um “estimulante”.

Uma droga poderosa, cujos efeitos Ganesh descreve em três fases; “Primeiro, o trauma obriga-nos a imaginar lugares novos e estranhos. Em segundo lugar, as ideias resultantes vendem-se mais facilmente porque as ideias dominantes estão agora manchadas de sangue. Em terceiro lugar, a violência provoca muitas vezes alguma inovação técnica”. Faz eco do general François Lecointre, antigo chefe do Estado-Maior das Forças Armadas francesas, certo de que dentro de dez anos nós, europeus, teremos de recolonizar África porque não podemos continuar a aceitar “fazer fronteira com o caos”. Em todo o caso, “só podemos matar pela França, não pela democracia”. Aqui Lecointre imita o Robespierre aprendido na escola de que “A ideia mais extravagante que pode surgir na cabeça de um político é acreditar que basta a um povo ir armado a uma nação estrangeira para a fazer adoptar as suas leis e a sua constituição”. O ilimitismo do limitado que somos gera monstros.

20 Jun 2024

Sun Zi e a Arte da Guerra

Não se conhece a data de nascimento nem da morte de Sun Wu, cujo nome de cortesia por si dado era Changqing e ficou conhecido por Sun Zi (Mestre Sun), ou Sun Tzu em cantonense. Sun Wu (c.535-c.480 a.E.C./544-496 a.E.C.) nasceu durante o Período Primavera-Outono (770-476 a.E.C.) de uma família nobre em Le An (乐安) (hoje no concelho Huimin em Shandong) então no reino Qi.

O pai Sun Ping (孙凭) era um oficial bem colocado na hierarquia Qi, que por discordâncias com os governantes locais se refugiou nas montanhas de Luofu, levando consigo o filho pequeno. Sun Wu vivendo num ambiente de eremita terá assimilado os conhecimentos e inteligência do progenitor, apreendendo com e na Natureza, e assim se formou como grande estratega militar. Escreveu a Arte da Guerra, (Bingfa, 兵法) um tratado militar, que hoje se apresenta com treze capítulos de táctica e estratégia, de filosofia e de governação, ainda actualmente estudado nas Academias Militares do mundo inteiro.

Procurando a localização da montanha de Luofu (罗浮山) inicialmente aparece-nos na parte Sudoeste do reino Wu, o que faz sentido pois mais tarde Sun Wu foi general comandante desse reino e segundo fontes chinesas era a montanha Qionglong, próximo de Suzhou em Jiangsu. No entanto, na geografia da China a montanha Luofu encontra-se na prefeitura de Huizhou província de Guangdong e local sagrado para os daoístas onde na dinastia Jin do Leste (317-420) o alquimista Ge Hong trabalhou na procura de elixires e em 343, com 80 anos alcançou a imortalidade através da técnica do Shi Je, libertação do cadáver.

PERÍODO PRIMAVERA-OUTONO

O reino de Qi (1046-221 a.E.C.) fundado na província de Shandong no início da dinastia Zhou do Oeste (1046-771 a.E.C.) por volta de 1046 a.E.C. era um dos seus vassalos pois, quando Jiang Shang (Jiang Ziya ou Lu Shang), general da dinastia Shang, se exilou e passou para as hostes do reino Zhou, então governado por o Rei Wen, tornou-se professor deste e conselheiro do filho, o Rei Wu, servindo assim como Duque Zhou os primeiros três reis da dinastia Zhou.

A Jiang Shang é atribuída a redacção de um livro de estratégia militar, o Liutao, As Seis Estratégias (六韬). Mais tarde com 88 anos criou o reino Qi oferecido ainda pelo Rei Wen e passou como primeiro governante a ser o Duque Tai de Qi. O reino Qi desde 859 a.E.C. tinha como capital Linzi (hoje Zibo) que se manteve até 221 a.E.C. quando o reino Qin o anexou.

A casa dos Jiang (姜) manteve o poder do reino até à morte em 643 a.E.C. do duque Huan (685-643 a.E.C.) e após breves problemas de sucessão, as famílias Guo, Gao, Luan, Bao, Cui, Qing, Yan e Tian tomaram o comando do reino Qi. Historicamente pouco se sabe do final da vida de Sun Wu, mas quando faleceu o reino Qi era governado por Chujiu, duque Jing (547-490 a.E.C.). Em 489 a.E.C., um membro da família Tian matou o novo duque Qi, Tu, (Yan Ruzi) tal como ocorreu oito anos depois com o duque Jian dos Qi (484-481 a.E.C.). Em 386 a.E.C. a família Tian usando a intriga e a força bruta passou a dominar o reino Qi.

Já o reino Chu, contra quem Sun Wu a comandar as tropas de Wu combateu, iniciara-se um pouco antes do reino Qi, sendo também proveniente da dissidência na dinastia Shang. Os Chu, pertencentes à tribo Jin, partiram para Oeste e aliaram-se aos do reino de Zhou, então a dar início às conquistas para criar uma nova dinastia e substituir a governante Shang. Sabendo da intenção dos Zhou em enviar tropas para ocupar o Sul do país, seguiram como parte do exército e quando o general dos Zhou foi ferido, foi ele tratado no acampamento dos Chu. Tal levou o Rei Wen do reino Zhou a oferecer a região de Hubei para território dos Chu ao seu professor Yu Xiong (鬻熊), que formou o reino Chu e ficou sendo o primeiro governante.

Em 656 a.E.C., o duque Huan do reino Qi atacou os Chu, obrigando-o a pagar tributo à dinastia Zhou de Leste. Após a morte em 643 a.E.C. do duque Huan, a hegemonia passa para o reino Jin.

Em 636 a.E.C. chegou ao poder do reino Jin o duque Wen e aliando-se ao duque Mu de Qin, assumiu uma posição de liderança, sendo reconhecido por o Rei Xiangwang (Ji Zheng, 651-619 a.E.C.) da dinastia Zhou de Leste, como o primeiro entre os senhores feudais.

Em 632 a.E.C. o reino Chu sofreu a primeira grande derrota em Chengpu (hoje Linpu, em Shandong) contra os Jin, aliados com os Qi e Qin, travando a sua progressão para Norte a absorver os reinos mais pequenos. Esta foi a primeira grande batalha entre os reinos do vale do rio Amarelo e os do vale do rio Yangtzé, promovendo o duque Wen dos Jin em 631 a.E.C. um encontro entre os reinos onde se fez um pacto de aliança para apoio à família real Zhou. Ficava assim o poder do reino Chu restringido, mas não por muito tempo pois nos oitenta anos seguintes as batalhas entre os Jin e os Chu sucederam-se com vitórias e derrotas de ambas as partes.

No ano de 597 a.E.C., em Bi (actual Zhengzhou), o exército dos Jin foi derrotado pelo de Chu e o duque Zhuang do Reino Chu tornou-se o Grande Senhor.

Em 579 a.E.C. na China havia quatro poderosos reinos com grande poder, os Qin a Oeste, os Jin no centro, os Qi a Leste e os Chu a Sul. Entre os muitos pequenos reinos existentes na altura, oito, os Song, Lu, Zheng, Wei, Cao, Xu, Chen, e Cai, pagavam tributo aos reinos de Jin e de Chu, enquanto os outros dois reinos, os Qi e os Qin se aliaram.

Em 546 a.E.C., numa conferência entre reinos conseguiu-se realizar um tratado de paz. O Reino Qi aliou-se com o reino Jin e os Qin com os Chu, o que pôs um fim temporário às guerras. Nessa época nascia Sun Wu (c.544-496 a.E.C.)

ENSINAR AS MULHERES A SEREM SOLDADOS

Sun Wu serviu como general o Rei Helü (515-496 a.E.C.), descrito nas “Memórias Históricas” (Shi Ji, 史记) de Sima Qian (司马迁) como apreciador de pessoas de talento e após ler a conselho de Wu Zixu os treze artigos sobre estratégia e tácticas militares do filósofo Sun Wu, pediu para este comparecer à sua presença.

No Período Primavera-Outono (770-476 a.E.C.) o reino Wu era um pequeno reino em Jiangnan (Sul do rio Yangtzé) em torno de Wuxi, quando o Rei Helü fez a capital em Suzhou. Guerreando com os Chu, tornou-se forte e em 506 a.E.C., conseguiu vencer o poderoso reino Chu, conquistando-lhe a capital Yingdu.

Para dar início à sua estratégia militar, o Rei Helü decidiu contractar os préstimos de Sun Wu como general comandante do exército Wu, mas antes resolveu pôr à prova e questionou-o se os seus métodos de treino eram bons também para as mulheres. Pedindo consentimento a Helü, Sun Wu reuniu 180 concubinas do rei com quem formou duas companhias, elegendo para chefiar cada uma, as preferidas deste.

Tendo como uma das chaves do sucesso da estratégia a disciplina, Sun Wu primeiro perguntou se as recrutas sabiam qual era a mão direita e a esquerda e depois instruiu-as como cumprir as ordens ao som do tambor. Ensinou-lhes qual o movimento a fazer mediante os diferentes toques no tambor e deu ordem para começar. Mas ao som do tambor estas, em vez de seguirem a ordem, começam a rir.

Então Sun Wu questionou-as se as tinha esclarecido bem e voltou a repetir pacientemente as correspondências de sons e os movimentos a fazer. De novo mandou tocar o tambor e de novo as mulheres, sem ligarem nada às ordens, voltaram a rir.

Sereno, Sun Wu disse-lhes: “se na primeira vez a culpa foi minha, agora a responsabilidade é vossa, pois após repetir as instruções e dizerem terem entendido, voltaram a não obedecer”. Logo ali mandou decapitar as duas chefes de companhia. O rei aflito pediu-lhe para perdoar as suas favoritas, mas Sun Wu replicou ter sido por o rei nomeado como general das tropas, sendo por isso obrigado a exercer a sua autoridade e assim se fez. De seguida colocou as duas seguintes concubinas favoritas na chefia de cada uma das companhias e de novo a ordem foi dada.

Desta vez, tomadas de pânico, as mulheres obedeceram na perfeição e então o estratega entregou o exército feminino ao rei dizendo-lhe estarem elas preparadas. O Rei Helü chocado e triste pela morte das favoritas, mandou embora Sun Wu, mas este replicou dizendo parecer ter o rei apenas admiração por as palavras da sua estratégia militar e não, de as passar à prática. Ouvindo-o, o rei confirmou a autoridade de Sun Wu como general do exército. E não se arrependeu, pois as grandes vitórias que Sun Wu deu ao estado Wu transformaram-no num dos estados fortes da região. História contada por Wei Tang na revista China em Construção de 1983.

VITÓRIAS DE SUNZI

O reino Wu, no terceiro ano do reinado de Helü em 512 a.E.C. com o general Sun Wu à frente de um exército de trinta mil soldados derrotou um exército de 200 mil homens, conquistando assim o poderoso reino Chu. Três anos depois, os Chu invadiram o reino Wu, situado a Leste, e o general Sun Wu, comandante do exército Wu, secundado por Wu Yuan, conseguiu uma retumbante vitória.

No Inverno de 506 a.E.C., foi a vez do reino Wu invadir Chu e num ataque surpresa, trinta mil soldados Wu penetraram mil li (500 km) em território Chu, vencendo as cinco batalhas contra um exército de 200 mil homens, capturando a capital Yingdu (a Noroeste de Jiangling, Hubei) aos Chu. Mas o estratega Sun Wu, após as campanhas totalmente vitoriosas, sem aceitar os cargos e as ofertas do rei Helü, voltou apenas com algumas carroças de brocados que foi distribuindo ao longo do seu regresso para Luofu (罗浮).

Um ano depois, o reino Chu reorganizou um novo exército e retomou o seu original território.

Com a vitória contra os Chu na batalha de Boju (柏举之战), o reino Wu mantive em respeito os seus vizinhos do Norte, como os reinos Jin e Qi, contra quem o filho do rei Helü, Fuchai (496-473 a.E.C.) continuou a lutar. Em 484 a.E.C., no décimo segundo ano do reinado de Fuchai, os Wu derrotaram na batalha de Ailing os Qi e dois anos depois, numa reunião de reis de reinos, Fuchai tornou-se o governante com maior poder. No entanto, o vizinho reino Yue, aproveitando encontrar-se o reino Wu a lutar contra os Jin e Qi, invadiu-o em 473 a.E.C. e assim Fuchai perdeu a guerra, sendo exilado no monte Nanyang em Suzhou, onde se suicidou.

Descendente de Sun Wu apareceu Sun Bin (c.382-316 a.E.C.) igualmente grande estratega, crendo-se durante algum tempo serem a mesma pessoa pois também escreveu uma Arte da Guerra, traduzido por Rui Cascais como As Leis da Guerra e editado por Livros do Meio em 2020.

16 Mai 2024

O Ocidente está a perder a guerra?

“Much of our planet is dominated by tyrants, and even in the most liberal countries many citizens suffer from poverty, violence and oppression. But at least we know what we need to do in order to overcome these problems: give people more liberty. We need to protect human rights, to grant everybody the vote, to establish free markets, and to let individuals, ideas and goods move throughout the world as easily as possible.”
21 Lessons For The 21st Century
Yuval Noah Harari

 

Trata-se de uma questão complexa e multifacetada que tem implicações de grande alcance para a política, segurança e equilíbrio de poderes globais. Ao longo da história, o Ocidente tem sido uma força dominante na definição dos acontecimentos mundiais, mas as tendências recentes sugerem uma mudança na dinâmica do poder que levanta questões sobre o futuro da influência ocidental. O Ocidente, muitas vezes referido como os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), é desde há muito uma força dominante nos assuntos mundiais. Desde a era colonial até à Guerra Fria, as potências ocidentais têm desempenhado um papel central na definição da política, da economia e da segurança internacional.

Durante o período colonial, as potências europeias estabeleceram impérios em todo o mundo, explorando recursos e exercendo controlo sobre vastos territórios. Este legado imperial lançou as bases para o domínio ocidental na era moderna, uma vez que os países europeus ganharam influência económica, militar e política à escala global. A Revolução Industrial do século XIX solidificou ainda mais o poder ocidental, uma vez que países como a Grã-Bretanha, a França e a Alemanha se tornaram potências económicas e militares. As duas guerras mundiais reformularam a ordem internacional e reforçaram o domínio das potências ocidentais. Os Estados Unidos emergiram como uma superpotência após a II Guerra Mundial, liderando o Ocidente na luta contra o comunismo durante a Guerra Fria.

O colapso da União Soviética em 1991 parecia solidificar a hegemonia ocidental, com os Estados Unidos como líder incontestado do mundo livre. No entanto, a era pós-Guerra Fria trouxe novos desafios ao Ocidente, uma vez que potências emergentes como a China, a Rússia e a Índia se ergueram para desafiar o domínio ocidental. A globalização, os avanços tecnológicos e as mudanças na dinâmica geopolítica têm vindo a minar a posição do Ocidente como líder inquestionável da comunidade internacional. Esta situação tem levado muitos observadores a questionar se o Ocidente está a perder a guerra pela influência global no século XXI. Vários acontecimentos importantes moldaram a actual narrativa sobre o declínio do Ocidente.

A crise financeira mundial de 2008 expôs as vulnerabilidades das economias ocidentais e pôs em evidência o crescente poder económico dos mercados emergentes. A ascensão de movimentos populistas nos países ocidentais, o Brexit no Reino Unido e a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, reflectiu uma insatisfação crescente com as elites e instituições políticas tradicionais. As guerras no Iraque e no Afeganistão sublinharam os limites do poder militar ocidental e os desafios da construção de nações em regiões complexas e voláteis.

As revoltas da primavera Árabe no Médio Oriente e no Norte de África puseram em evidência a fragilidade dos regimes apoiados pelo Ocidente e os limites da influência ocidental na região.

A crise dos refugiados na Europa tem vindo a afectar a unidade do Ocidente e a expor as divisões entre os países europeus quanto à forma de lidar com o afluxo de migrantes. A ascensão de líderes autoritários como Vladimir Putin, na Rússia, pôs em causa os valores ocidentais da democracia, dos direitos humanos e do Estado de direito. O ressurgimento do nacionalismo, do proteccionismo e do sentimento anti-globalização nos países ocidentais suscitou preocupações quanto ao futuro da ordem internacional liberal que o Ocidente tem defendido desde a II Guerra Mundial. Várias personalidades desempenharam um papel importante na definição da mensagem do declínio do Ocidente como Barack Obama, enquanto primeiro Presidente afro-americano dos Estados Unidos, que procurou restaurar a imagem da América no estrangeiro e reafirmar a liderança americana no mundo.

No entanto, a sua administração enfrentou desafios no Médio Oriente, na Rússia e na Ásia que puseram em evidência os limites do poder americano. Angela Merkel, enquanto Chanceler da Alemanha, emergiu como uma líder fundamental na Europa durante as crises dos refugiados e da dívida da zona euro. A sua abordagem pragmática da governação e o seu compromisso com os valores democráticos liberais contrastaram com a ascensão de líderes populistas noutros países ocidentais. No entanto, a sua decisão de abrir as fronteiras da Alemanha aos refugiados provocou uma reacção negativa dos partidos de direita e dos grupos anti-imigração.

Emmanuel Macron, enquanto Presidente de França, posicionou-se como um defensor da democracia liberal e da unidade europeia. Os seus esforços para reformar a União Europeia e reforçar a cooperação entre os países ocidentais têm enfrentado a resistência das forças nacionalistas e dos movimentos eurocépticos. A visão de Macron de uma Europa mais integrada e coesa tem sido testada por desafios actuais como o Brexit e a ascensão de partidos populistas, em quem 32 por cento dos eleitores votaram até 2023, e desses, metade votou em países da extrema-direita (mesmo acontecerá a 10 de Março em Portugal onde segundo as sondagens o “Chega” leva já 16 por cento de intenções de voto). A percepção do declínio do Ocidente tem tido implicações de grande alcance para a política, segurança e equilíbrio de poderes a nível mundial. Na esfera económica, a ascensão da China como grande potência económica tem desafiado o domínio ocidental no comércio, no investimento e na tecnologia.

As empresas chinesas como a Huawei, a Alibaba e a Tencent emergiram como líderes mundiais nas telecomunicações, no comércio electrónico e na inteligência artificial, constituindo uma ameaça competitiva para as empresas ocidentais. No domínio militar, a Rússia tem exercido a sua influência na Europa Oriental, no Médio Oriente e no Árctico, desafiando as garantias de segurança da OTAN e minando a unidade ocidental. A interferência russa nas eleições americanas de 2016, os ciberataques e as campanhas de desinformação suscitaram preocupações quanto à vulnerabilidade das democracias ocidentais à influência estrangeira. O comportamento assertivo da China no Mar do Sul da China, em África e na América Latina levantou questões sobre o futuro das alianças de segurança lideradas pelos Estados Unidos na região da Ásia-Pacífico.

Na arena diplomática, a percepção do declínio do Ocidente tem vindo a afectar as relações transatlânticas e a enfraquecer a solidariedade ocidental em questões fundamentais como as alterações climáticas, a proliferação nuclear e os direitos humanos. A política externa “America First” da administração Trump alienou os aliados tradicionais na Europa, Ásia e América Latina, lançando dúvidas sobre a durabilidade das alianças ocidentais e a credibilidade da liderança ocidental. No domínio cultural, a ascensão do populismo, do nacionalismo e da xenofobia nos países ocidentais pôs em causa os valores da tolerância, da diversidade e da inclusão que têm sido fundamentais para a identidade ocidental. O sentimento anti-imigrante, os crimes de ódio e a polarização política corroeram a coesão social e alimentaram a agitação social em países como a Alemanha, a França e os Estados Unidos.

A ascensão de grupos extremistas como o ISIS, a Al-Qaeda e as organizações de supremacia branca constituiu uma ameaça à segurança das sociedades ocidentais e testou a resiliência das instituições ocidentais. Diversas personalidades influentes contribuíram para o campo da percepção do declínio do Ocidente. Thomas Piketty, um economista francês, escreveu extensivamente sobre a desigualdade de rendimentos, a concentração de riqueza e a mobilidade social nos países ocidentais. O seu livro “Capital in the Twenty-First Century” desencadeou um debate global sobre a desigualdade económica e o papel do governo na resolução das disparidades sociais. Yuval Noah Harari, um historiador israelita, explorou o impacto da tecnologia, da inteligência artificial e da biotecnologia na sociedade humana nos seus livros “Sapiens: A Brief History of Humankind “, “Homo Deus” e “21 Lessons For The 21st Century”.

As ideias de Harari sobre o futuro do trabalho, da guerra e do poder desafiaram a sabedoria convencional e suscitaram debates sobre as implicações do avanço tecnológico para o Ocidente e o resto do mundo. Greta Thunberg, uma ativista ambiental sueca, tem mobilizado jovens de todo o mundo para exigir acções em matéria de alterações climáticas e sustentabilidade ambiental. O seu movimento “Fridays for Future” inspirou milhões de jovens a saírem à rua e a apelarem à acção dos governos para resolver a crise climática. Os discursos de Thunberg nas Nações Unidas, em Davos e noutros fóruns internacionais chamaram a atenção para a urgência do desafio climático e para a necessidade de uma acção colectiva para proteger o planeta.

A percepção do declínio do Ocidente é uma questão complexa e contestada que tem suscitado debates entre decisores políticos, académicos e cidadãos. Alguns defendem que o Ocidente está a perder a guerra pela influência global devido à ascensão de potências como a China, a Rússia e a Índia, que desafiam a hegemonia ocidental em termos económicos, militares e diplomáticos. Outros defendem que os valores ocidentais da democracia, dos direitos humanos e do Estado de direito são duradouros e podem resistir às pressões externas de regimes autoritários e movimentos populistas. O aumento do nacionalismo, do proteccionismo e do sentimento anti-globalização nos países ocidentais levantou questões sobre o futuro da ordem internacional liberal que o Ocidente tem defendido desde a II Guerra Mundial.

A erosão da confiança nas instituições, o declínio da coesão social e a polarização do discurso político enfraqueceram as democracias ocidentais e expuseram as vulnerabilidades à manipulação e interferência externas. A pandemia da COVID-19, a guerra da Ucrânia e na Faixa de Gaza pôs ainda mais em evidência a fragilidade dos governos e sociedades ocidentais e a necessidade de uma acção colectiva para enfrentar os desafios globais.

Olhando para o futuro do Ocidente e o seu papel no mundo dependerão da forma como os países ocidentais responderem às pressões internas e externas, se adaptarem à evolução da dinâmica geopolítica e defenderem os seus valores de democracia, direitos humanos e Estado de direito. O reforço das alianças, a promoção da inovação económica, a resolução das desigualdades sociais e o investimento na educação e nas infra-estruturas serão fundamentais para revitalizar o poder e a influência do Ocidente no século XXI. O Ocidente pode estar a perder a guerra pela influência global, mas não é demasiado tarde para inverter a maré e criar um mundo mais inclusivo, sustentável e pacífico para as gerações futuras.

16 Mar 2024

A vitória da guerra

Mais uma vez, a guerra está a ganhar: o exército e os poderes da Rússia não quiseram deixar dúvidas sobre a brutalidade da invasão do território da Ucrânia, que vão ocupando com sistemática precisão: são dois países com dimensões, populações e capacidade económica absolutamente desequilibradas, com a super-potência militar e nuclear a instalar-se alarvemente no território de um país de limitados recursos bélicos, com as suas magníficas caravanas de dezenas de quilómetros com veículos e material de guerra, aviões e espectaculares paraquedistas para as ocasiões necessárias, e arsenal nuclear de prevenção para qualquer eventualidade.

A guerra instalou-se na Ucrânia e no mundo, ocupando o espaço mediático e fazendo até esquecer a pandemia que continua a ameaçar grande parte da humanidade. Condicionou discursos políticos e políticas económicas e passou, enfim, a comandar a agenda política e mediática do planeta. Na imprensa pouco se fala de outros assuntos, os mercados (das finanças, produtos ou serviços) reajustam-se em função de boicotes e outras alianças, as geo-estratégias assumem de repente novas configurações. Em particular, abrem-se de par em par para quem foge da guerra portas europeias que estiveram pouco mais que entreabertas quando se tratou de guerras noutras paragens, enquanto se acena com processos de adesão ultra-rápida à União Europeia a países que até agora estavam longe de ser sequer candidatos.

Há aqui um quase unanimismo que as imagens de guerra ajudam a criar, de solidariedade para com as vítimas destas vontades imperialistas de grandes potências com orgulho ferido. Populações em massa, pequenas e grandes empresas ou figuras do universo empresarial, desportistas com público e notório reconhecimento, formações políticas de todo o espectro, alinharam-se rapidamente em torno da importância de se proteger o povo ucraniano, vítima indefesa de uma guerra que provavelmente nem é a sua. Ainda bem.

Este unanimismo traz no entanto outras formas de violência, em nome das boas vontades e boas intenções dos consensos hegemónicos: por exemplo, a censura e a negação do direito às fontes de informação do lado “inimigo” revelam a insegurança e a dificuldade em lidar com outros pontos de vista, com a tal liberdade de que se fala quando se enuncia o direito à auto-determinação, mas que se nega a oponentes em caso de conflito. O oponente não é só o Estado russo: são também os grupos, organizações ou partidos que contextualizam esta guerra num processo mais longo de desnecessária, injusta e catastrófica militarização do planeta.

A violência da guerra impõe também um olhar unilateral sobre os problemas, um consenso imposto, impermeável a discussões, profundamente autoritário e anti-democrático, sem qualquer espaço para o diálogo, para a negociação, para a paz. Esta força bruta não se limita às discussões em redes ditas sociais: ela alastra às ruas, às manifestações, às sedes de partidos, a tudo o que questione a guerra, o seu contexto e as suas consequências ainda mais bélicas.

Na realidade, esta ocupação traz ainda mais guerras e essa é a sua vitória: o ambiente bélico das discussões entre grupos e pessoas é notório e facilita a legitimação do reforço da capacidade beligerante que se vai desenhando, ou pelo menos discutindo, em vários países: desde logo na Ucrânia e restantes países na vizinhança da Rússia, alegadamente potenciais próximas vítimas da barbárie do regime de Putin, mas também outros países no continente Europeu, como a Alemanha (modesta neste campo desde a segunda guerra mundial) ou a própria União Europeia, que começa a reivindicar com mais insistência a necessidade das suas próprias forças armadas, enquanto reafirma o papel da NATO na segurança do continente.

O assunto chegou mesmo ao Japão, onde Shinzu Abe, anterior primeiro-ministro, veio a público defender que o alojamento em território japonês de armas nucleares dos Estados Unidos, no âmbito da NATO, deve ser discutido. Dá-se a coincidência, no entanto, de o actual primeiro-ministro, Fumio Kishida, ser natural de Hiroshima, uma das cidades mártir das bombas atómicas da segunda guerra mundial, que certamente não abrirá a discussão sobre um dos raros temas – senão o único – capaz de levar manifestantes às ruas das cidades japonesas.

Enquanto emerge como solução militar para a pacificação, juntando mais guerra à guerra, a NATO escapa à discussão pública das suas próprias responsabilidades. Terminada a Guerra Fria e dissolvido o Pacto de Varsóvia no bloco de Leste, que sentido faz a NATO, afinal? Desde os anos 1990, nunca a NATO foi chamada a defender um dos seus países membros de um qualquer ataque. Pelo contrário, a NATO tem fomentado e protagonizado guerras e ocupações diversas, sobretudo no Médio Oriente. Em nenhum caso resultou destas ocupações uma solução melhor do que a que existia: resultou destruição, morte, miséria, corrupção, refugiados e mais autoritarismo em vez de mais democracia.

No caso particular da Europa, a deliberada e sistemática expansão da organização para Leste, até isolar e cercar a Rússia, está certamente no centro da guerra que vivemos hoje. A esta guerra que a NATO foi alimentando, respondemos com mais guerra e com mais NATO. Em nome dessa paz militarizada, quem tenta discutir pacificação, desmilitarização e diálogo tem sido atacado com violência, verbal e física. É o pensamento possível em tempos de guerra e suas manipulações mediáticas, quando afinal as sanções económicas parecem constituir formas bastante eficazes para exercer a pressão suficiente. Afinal, os povos da Rússia, da Ucrânia ou da Europa, perdem todos com esta guerra.

4 Mar 2022

Sinais implodidos

01/03/22

 

Eu ainda andava desvairado pela Jane Fonda. Tinha trinta anos, estava desempregado de amores, e deslocava-me todos os fins de semana a Coimbra, onde colaborava com o grupo de teatro A Escola da Noite. Ao cabo de oito meses constatei que a cidade me resistia. As suas mulheres, novas, velhas, viúvas, divorciadas, estudantes ou trintonas, as actrizes, os travestis, as coxas ou mesmo as barbudas, como a do Ribera; a cidade havia-me riscado do seu leito.

Em oito meses, só me tocava conversar sobre o Grotowski, o tango argentino que vitimara um amigo de Manuel Bandeira ou as nuances do adultério do Heidegger com a Hanna Arendt, amanhos do espírito, enquanto o esperma se me coavalha, em espesso glaciar.

Nesse sábado desci à baixa para ir buscar à Valentim de Carvalho um disco do Keith Jarrett, que encomendara. E entrei descontraidamente no Santa Cruz, desarmado por dentro e por fora. Tencionava comer um prego e beber duas cervejas e apanhar um táxi para casa, onde passaria uma tarde plácida a ler e a ouvir o cd.

Sentei-me na única mesa que estava livre. Ao lado de três belíssimas estudantes de direito, uma delas uma mulata com olhos verdes que era a irmã bonita da Sade Adu. Riam a bandeiras despregadas porque ao balcão havia um toureiro em traje de luces a tomar uma bica. Era uma figura caricata, o que a sua excelsa concentração no café que bebia de lábios em bico e o seu mindinho levantado acentuavam. Mas o melhor é que isso nos permitiu três relances e a partilha de um sorriso.

Dez minutos depois, ouço a bonita mulata contar às suas divertidas mas estupefactas amigas que tinha chegado à Europa para o desejo maior de encontrar e conhecer (biblícamente?) um vampiro e pude então lançar a deixa:
Ó cara doutora, mas se é por isso eu levo-a aos Carpátos.

Tudo corria sobre rodas, os olhos verdes dela cravejavam-se nos meus, os seus lábios seguiam o fio da minha voz, o riso dela, o riso dela, meu deus, refrigerava como um leque valenciano o calor dos corpos, enquanto a dança dos dedos nos precipitava no enlace. Só estranhava que ela, que bebera o mesmo, aguentasse de tal modo o álcool – a minha euforia já roçava o patético.

Em casa, fui brevemente à casa de banho molhar a cara, a nuca, e enfiamo-nos no quarto. Fui à cozinha buscar uma derradeira garrafa de vinho, que abri com esmero e delicadeza, servia-a, bebericámos no cálice, e pus o disco. Entreolhamo-nos longamente, já não havia nada a dizer e nos olhos verdes dela acendiam-se néones. Um longo beijo aplacou as disputas, desapertando de rajada todos os botões.
E é tudo o que me lembro desse inglório apagão.

No dia seguinte, acordei sozinho, às onze da manhã. Havia um bilhete em cima da minha secretária, em que se lia, Adorei a música, obrigado. Um beijo da tua Rainha de Sabá. Nem número de telefone, nem qualquer referência. O Keith Jarrett voara com ela.

Na sexta seguinte, assim que depositei a mala no quarto, apanhei um táxi para o Santa Cruz. As duas amigas lá estavam, estudando, na mesma mesa, e foram amistosas. Ela é que não, pois, contaram-me, fora de urgência para Moçambique por causa da morte súbita do pai, e nenhuma delas tinha o contacto de Maputo.

Só a voltei a ver dez anos depois, na televisão, num debate sobre política africana. Era Secretária de Estado do governo de Moçambique.

Vinte anos depois, em Maputo, assistia em casa a um telejornal da RTP/África e passam uma reportagem sobre o Café Santa Cruz, em Coimbra – e vejo-a aperaltada ao balcão (que missão a fizera deslocar à cidade onde estudara?), no exactíssimo sítio onde estivera o toureiro, a beber um café, o indicador levemente levantado, em asa delta.

A culpa disto tudo, creio, é da Jane Fonda.

03/03/2022

CELEBRAR A GUERRA? AGAIN?

«arde a minha alma como um jornal», Hugo Claus

A guerra é o pasto em que arde a soldadesca/ enxameada de vermes, línguas roxas, pus,// enquanto de olhos reboludos as vacas, / extraviadas da lembrança da mãe Ío, ruminam,// alheadas, entre cadáveres. É um éden só de puros / (só aos nossos as nozes, aos outros os ossos), //que provém dos lençóis freáticos de países imaginários./ Na guerra o tempo tem o tique-taque de uma véspera // que já escalda e por isso supura a linha do amor / nas palmas e anseia-se pelo errante ladrão-de-orvalho // que rapine à eternidade um lampejo de cruel felicidade./ Era já assim no tempo dos meus avós na II Guerra Mundial.// Os bombardeios circuncidavam as cidades /e enchiam-se baldes de maçãs, salvo-condutos e tripas gordas,// enquanto o noivo desapanhava a noiva sob os escombros / e a criança adivinhava no relógio esfacelado // da mãe a sua pungente ausência. / Será assim na época dos meus filhos, já pretérita // nas cabeças que faz rolar como se de cravinho fossem, / e no cerne da qual se esfuma a razão, // escarnecida pela fé dos tolos; carecas de saber / que é medieval o costume de coser a bainha // do sol com fios de sangue. A guerra reacende-se / quando o justo e o ímpio desentronizam // os prazos e trocam de posições, confundindo / o ritmo do escalpe com o do tango. //Até que um deles inventa o éden. E eu, tão feliz / no meu inferno, tão em paz que encadernei // com esperma o Novo Testamento, discretamento tusso, / perguntando-me: e a nós, por quanto tempo // nos será autorizado esquecer, como Orfeu? Por quanto / tempo sobreviverá um homem aos 400 mercenários?

4 Mar 2022

A rosa selvagem

«Con cua nằm yên trên thớt
Không biết khi nào con dao sẽ rơi.»*

“[dropcap]V[/dropcap]iemos ver se estavas intacto”, foi o que disseram, enquanto um deles colocava as mãos nos meus ombros, como se quisesse cravar-me no chão. “Saber como evoluíste. Quem és”. No limiar do milésimo avaliavam a minha robustez, mas também a minha cognição. Quase que não tive tempo para falar, nem sabia o que dizer, o resultado da minha existência não tinha sido para além do satisfatório. Mas eles tomavam-me apenas como um exemplar, não me queriam apontar valor menos comensurável. A ideia nunca terá sido fazer de mim um líder, nem a espinha dorsal de um povo. Deixaram-me estar. Hoje, sei que em situações de apuro, não foram muitas, me deram a mão. Mas ao longo dos anos, não se intrometeram na minha vida e deixaram-me ao deus dará.

Se não fosse comigo, se estivesse a falar de outra pessoa, seria fácil colocar este assunto no papel sem indignar o próximo. Sempre que o faço, ouço logo uma série de palavrões para que pare de inventar, porque o que digo não corresponde à verdade. “Lá estás tu!”, é a expressão que usam. Ninguém tem de acreditar. Cada um vive na sua psicosfera, maios ou menos amedrontados pelos seus temores. E daí não se sai. Cada um com o seu mambo. Apesar do limite difuso, considero que é melhor pôr a cabeça fora da toca e ficar sujeito aos temporais, aventurando-nos pela brecha que encontrarmos, ou na graça de uma linha invisível, do que ficar quietinho receosos do desconhecido. Por isso, vou continuar a contá-lo. Saltou o fim primeiro. Não faltarão mais intermissões.

Preciso de me socorrer da Internet para reportar o dia certo em que ocorreu. A relevância em saber o dia, a hora ou o mês é menor. A importância de determinada ocorrência tem sempre uma condição redutora quando amarrada à memória. Vale o que vale. Tivesse ocorrido uma catástrofe natural ou um jogo de futebol, teria sido mais notado. Seja como for, não sou capaz de contá-lo de maneira a que faça sentido. Nunca soube.

Tinha 18 anos e saía do Cinema Condes, em Lisboa, onde acabara de ver o filme ‘Platoon’ com o meu avô. O último filme que vi com ele. Enaltecido pelos Óscares, tinha estreado há pouco em todo o país. Ele queria ver a História a acontecer, crua e imbecil, o comportamento humano, a voracidade dos americanos, perdidos e sem freio, a reacção vietcongue, a crueldade do campo, das famílias indefesas e de como, no meio de toda aquela iguaria, era retratado o comunismo. Eu quis ir porque gostava do realizador no seu fato de argumentista e porque era o filme mais badalado da altura, um filme duro. Oliver Stone realizava o seu primeiro grande projecto cinematográfico. Duas horas cheias de carnificina e explosões no escuro, era o que nos esperava.

Qualquer filme sobre a Guerra do Vietname tinha como termo de comparação ‘The Deer Hunter’ – não sei se ainda tem – que tinha visto anos antes no prolongamento de uma noite de passagem de ano. Em Portugal intitulou-se ‘O Caçador’. Um filme interminável, que nunca termina na nossa cabeça, com as suas frentes, a guerra e a paz, e nada pelo meio. O sangue-frio que preludia a luta desumana com uma caçada ao veado; concluída na paz podre do regresso à vida mundana, deixando o espírito em fervura para sempre. Só há uma vida quando alguém se vê acolhido numa guerra. Esgotam-se, uma coisa na outra. Não há espaço para mais. Quem sobra, fica apenas com o corpo como contento. Um dos caçadores era John Savage, ídolo de miúdo. Entrava também no enredo sobre a guerra civil em El Salvador, filmado por Stone no ano anterior. Savage interpretava aí um fotojornalista destemido que acaba por morrer sob fogo cruzado, agarrado à sua câmara. “You got to get close to get the truth. You got too close you die.”

Embora tentassem, no Platoon os actores não eram tão carismáticos como no Caçador; ali era mais a acção, a câmara em cima das personagens, a correr a seu lado, sem complacência, como mais um companheiro de batalha, ou a face do inimigo. A virtude de estar vivo perante o sacrifício de uma luta que não era a deles, em nome de um ideal de pátria, que se escondia debaixo das unhas, sem significado aparente. “We didn’t fight the enemy, we fought ourselves… and the enemy was in us!”, confessava o protagonista destroçado. Não eram os bravos do pelotão, epíteto que se colou ao rótulo da versão portuguesa, eles tentavam apenas safar a pele, levando o corpo como salvação ao regressar a casa. Ou o que restasse dele. A morte crua em todo o alcance da razão. A câmara a transportar os corpos trucidados para dentro dos choppers Huey, que se avantajavam para permanecer incólumes no ar. Tudo isso às escuras no Cinema Condes, que já tinha sido cave para sociedades secretas onde, entre meninas e conspirações contra a pátria, se cozinharam outros vietnames. Sob o olhar vesgo das hordas de cinéfilos locais, o Condes seria tomado pelos americanos mais tarde. Não há nota de que algum helicóptero o tivesse acudido.

Se no Caçador, a hipertrofia mental era simbolizada por Robert De Niro como alicerce para uma exacerbada tragédia fílmica; no hiper-realismo caricatural de Oliver Stone, originalmente escrito a pensar em Jim Morrison como o herói, o apogeu e queda revelam-se com a morte de Willem Dafoe, o messias do Vietname, que não teve tempo para ser pregado à cruz. Em ambos, a linha para a realidade é delicada e a tensão é glorificante. Actores que se transformam em máquinas de guerra sem discórdia. O sargento De Niro, o mais bravo da matilha, a usar balas reais na rodagem na famosa cena da roleta russa. Não esquecer a banda sonora, que nos ficou também a circundar as sinetas da emoção. Avô e neto. Cada um para seu lado, em tempos de vida diferentes, em conhecimento díspar. O bíblico Dafoe de braços no ar, num ressalvar dos céus para a Quinta Sinfonia de Mahler, que não o era, mas que tanto fazia, porque a conhecíamos melhor, num pequeno adágio que já tinha surgido no ‘Homem Elefante’, erigido no início dessa mesma década por David Lynch e em mais uns quantos filmes. Eu sei, o Valério Romão, colega de carteira e de apelido, diz sempre que me perco. É verdade. Aqui, os pregos da memória colam-se com cuspo.

Samuel Barber, um génio que aos dois anos já dedilhava as teclas de um piano e aos seis era a coqueluche dos saraus familiares, escreveu, aos 26 anos, o adágio mais triste que as cordas podem fustigar. Um tormento. Em Lynch, picotado ao definhar de Joseph Merrick; em Stone, à firmeza de Charlie Sheen de nunca voltar para casa. A obra expressa a coragem do compositor para sair do seu covil, ostentando na arte o verdadeiro sentir. Misantrópico. “No doubt many wonderful souls have shrunk and refused to put their real emotions into art for others to know”. A transcendência confessional do seu talento traduzida em absoluta tristeza por não ousar análoga veracidade no batalhão familiar. Perde-se o corpo fica a alma.

Mas não foi o filme que importou nesse dia. Nem o facto de conversar com o meu avô sobre ele. que não sobreviveu à sua traiçoeira guerra, “the smell of napalm in the morning”, meses depois. Foi, sim, o chamamento que se lhe seguiu. A verificação do estatuto. O último check-out, que se prolongou num longa metragem, até ao dia em que escrevo.

Já os tinha notado quando fui à casa-de-banho no Condes. Fizeram-me sinal, era inconfundível. Não eram seres com antenas ou luzinhas a brilhar no olhar, nem vinham vestidos de negro, era gente comum. Pessoas banais: arrumadores de carros, vendedores de fruta, rapariguinhas perfumadas de lanterna no escuro do cinema. Passavam despercebidos, mas existiam para recolocar as linhas do espaço; para que o desenho que tinham elaborado, em recorrentes abduções infantis, não sofresse quebras. Seguindo o argumento de que todos fazíamos parte.

Viver é sofrer, dizem os veteranos do Vietname. Somos como o caranguejo que aguarda o cair da faca. Sobrevive-se encontrando sentido no sofrimento, uma luta de mentiras e propaganda levada pelos tecnocratas e fazedores de armas. Todos os homens são criados iguais. Acreditamos no mesmo. Vida, liberdade e busca da felicidade. Espírito aberto. Tudo se passou enquanto o meu avô fumava o seu último cigarro. Ficara tudo como estava. “Quem eram aqueles?”, terá pensado sem perguntar, antes de entrarmos num “carro de praça”, como ele chamava aos táxis. Achou que não seria importante. Não lhe disse que os bravos do seu pelotão tinham perdido a guerra. Quem haveria de supor que o desfecho seria esse? A luta é sempre desigual. Não faz sentido. Não é preciso ser maior de idade para chegar a essa conclusão.


* «O caranguejo fica quieto na tábua de cortar. Sem saber quando a faca vai cair.»

Escrito por um soldado vietcongue desmoralizado, após a sangrenta batalha de Ia Drang, em 1965; lugar onde o Vietname não é Norte nem Sul, mas apenas terreno perdido em mata densa e traiçoeira.

30 Mai 2019

Guerra santa

[dropcap]D[/dropcap]epois de assistirmos incautos à “matança da Páscoa” em vários locais do mundo durante o tempo litúrgico desta, a nossa atenção volta-se também para o efeito do ciclo de terror que julgáramos sanado. A grande noite da História das Guerras Santas, voltou como um tecido híbrido, é certo, todo ele deslocado, mas suficientemente emblemático para não esquecermos o que lhe está subjacente. Mesmo durante a Segunda Guerra Mundial foi questão que nunca colheu adeptos, o Governo alemão, laico, enaltecido com práticas mágicas que pareceu até retirar-lhe o efeito de culpa, gravitava em torno de uma brutalidade instintiva por onde não passou, talvez, complexas tradições humanas. Ou seja, a atenção para com elas era mínima, o desrespeito absoluto, e todos estavam em Guerra não pelas práticas religiosas, mas por causa da supremacia maníaca de um povo. Até aqui não se nos afigurava nada do género que pudesse de novo fazer reviver a prática já ultrapassada do sangue, a morte tinha então contornos novos, tão novos, que ainda agora nos emudecem, mas eis senão quando, o mais antigo efeito se nos impõe: a guerra sangrenta, as matanças que jorram sangue, as religiões que sangram e fazem sangrar.

Este estado recente das coisas é tão velho que julgáramos já esquecido.

Recordo-me então de René Daumel e da sua «A Guerra Santa», um texto gnóstico, ele que começou por ser um poeta surrealista amigo de Breton e de toda uma herança de vanguarda, escreve este texto com a parcimónia dos que quase renegam a causa primeira, descrevendo áreas absolutamente iluminadas sobre o grau de transcendência de uma revolta (se tal possa ser assim descrito) pois que para alcançar o pleno aspecto da definição poética ele terá necessariamente de visitar o texto sagrado. É portanto avesso ao chamado código literário e às faíscas soporíferas das fantasias de cada um, abeirado na essência primeira, busca o ser, a nossa Humanidade, no vazio silencioso das coisas. É um superlativo anunciador que se intui no extremo de uma condição e que não tem medo das palavras e dos diversos códigos que elas transmitem. Procura a limpidez, austero, é no entanto sensível e raro, contido e forte, quer a brancura de um entendimento;

«Falarei para me chamar a mim à guerra santa. Falarei para denunciar os traidores que eu próprio alimentei. Falarei para que, aquilo que eu disser, envergonhe as minhas ações, até que um dia, uma paz blindada de trovoada reinará nos aposentos do eterno vencedor. E porque empregarei a palavra de guerra, e esta palavra de guerra não passa hoje de um simples ruído que as pessoas instruídas fazem com as suas bocas, porque agora, ao empregá-la, é uma palavra séria e carregada de sentido, saber-se-á que falo a sério e que não são vãos ruídos que faço com a minha boca».

Parece-nos uma demonstração demasiado críptica para um entendimento simples ou uma manifesta indignação por tudo o que sobra de bem estar perante os que a olham sentados nos seus delírios e que insistem em nada entender que os comprometa. Mas estamos talvez bem mais amuralhados do que alguma vez supuséramos. Nós, que não vamos aos Templos, morremos agora por causas desconhecidas às mãos dos motes de poemas fatais?! Em todo o caso são os homens que matam: e que temos nós todos a ver com a poesia? Também já nada. E qual?

Também não sabemos. Entendemos vagamente que os interesses geram revoltas, mas, quem está já interessado em nós? Presumimos que muitos, mas pode não ser assim. Ignorámos todos na nossa marcha vitoriosa de forma vária e há um dia em que um deus ou um demónio, surge para nos falar, e neste caso as respostas ainda não estão prontas porque sem nos darmos conta fomos ficando sem elementos de versificação. Há sempre um lado morto que ressuscita, uma antecâmara fechada que vem pedir resgate, e a nossa culpa continua a ser, nenhuma, pois que os que agora caem em nada contribuíram para tais fins. A expressão contra, é agora arbitrária, Mesquitas, Igrejas, Sinagogas, uma demonstração de insanidade talvez só comparada às invasões de Tito, são atacadas como peça única. Por incrível que nos possa parecer é mais ou menos aqui que estamos, e, o que os últimos séculos lutaram para desviar a rota do sangue, atribuindo novos ciclos de conquistas não menos mortais é certo, aqui, rejuvenesce o espectro da velha “santidade” mote e acção para a chacina. Seja o que for, ninguém está preparado para isto, para um discurso entendível, uma compenetração capaz. – O quê, Deus outra vez? – Talvez. Convém não nos desvincularmos do circuito da Civilização que fomos sendo, não havendo no entanto Civilizações profanas, quanto muito, mais animistas. Ainda a abstracção para nos alongar o espectro da memória e da lembrança, já que no ponto incognoscível ainda arde em nós palavras que dizem ter gerado o Homem, ou caminharemos para uma incomunicação plausível tornando-nos o mais conseguido dos paradoxos.

E ainda diz Daumal: «Das outras guerras não falarei – as que se suportam- não falarei. Fala de sacrifício quem, por motivo nenhum cortaria o dedo mínimo, fala de conhecimento quem, se disfarça perante si próprio, tal como a grande doença é tapar de palavras para não ver».

Muito deixámos de ver por força das «Luzes» e das iluminações a vapor que fez a cegueira avançar como uma conquista que todos tinham de seguir, porém, aqui chegados, é bom lembrar que há aspectos que nos acordam para ver. «Porque num verdadeiro poema as palavras transportam as suas coisas». É duro lembrar. É duro esquecer.

14 Mai 2019

Índia anuncia que também abateu um avião paquistanês

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] Índia anunciou ontem que derrubou um avião paquistanês durante um confronto aéreo em que um dos seus aviões foi abatido pelo Paquistão.

No dia posterior a uma operação apresentada por Nova Deli como um “ataque preventivo” contra um campo de treino no Paquistão, a força aérea paquistanesa “visou instalações militares” na Caxemira indiana, declarou Raveesh Kumar, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Índia numa conferência de imprensa.

Kumar referiu que as “tentativas do Paquistão fracassaram”.

No confronto, segundo o porta-voz, “um avião de combate da força aérea do Paquistão foi abatido por um Mig-21 Bison da força aérea da Índia”.

“O avião paquistanês foi visto por tropas de terra a cair no lado paquistanês. Neste confronto, infelizmente, perdemos um MiG-21. O piloto desse caça desapareceu em combate. O Paquistão afirma que o tem detido”, afirmou, acrescentando que esta última informação estava a ser verificada.

O exército indiano assegurou, na terça-feira, ter liderado um ataque contra um campo de treino no Paquistão do grupo islâmico Jaish-e-Mohammed (JEM), muito activo na luta armada contra a Nova Deli, no Vale do Srinagar, dizendo ter matado “um grande número” de combatentes.

Islamabad denunciou imediatamente essa “agressão prematura” e prometeu responder aos ataques.

 

Ao ataque

Na manhã de ontem, o Paquistão anunciou que havia realizado “ataques” à Caxemira contra alvos “não militares”. O exército paquistanês alegou ter derrubado dois aviões indianos no seu espaço aéreo e ter detido um piloto indiano.

Um dos aviões teria caído na Caxemira indiana e o outro na Caxemira paquistanesa”, indicou o general Asif Ghafoor, na rede social twitter.

Uma rebelião separatista mortífera destabiliza a Caxemira indiana desde 1989.

A Índia acusa o Paquistão de apoiar de forma dissimulada as infiltrações na sua parte do território e a própria revolta armada, o que Islamabad sempre negou.

Na terça-feira, pelo menos seis pessoas foram mortas durante confrontos entre militares indianos e paquistaneses, perto da linha de demarcação das partes da Caxemira sob controlo da Índia e do Paquistão, no setor controlado por este, em Nakyal, de acordo com as autoridades paquistanesas.

28 Fev 2019

Índia | Tribunal ordena fim dos ataques contra pessoas de Caxemira

O ataque da semana passada que matou 41 paramilitares provocou uma onda de violência indiscriminada contra os nativos de Caxemira

 

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] Supremo Tribunal da Índia ordenou sexta-feira às autoridades do Estado que parem com ameaças, agressões e boicotes sociais a milhares de pessoas, numa aparente retaliação pela morte de 41 paramilitares num atentado na semana passada, na Caxemira indiana.

Segundo a agência de notícias Associated Press, o Supremo Tribunal actuou numa petição apresentada pelos advogados Colin Gansalves e Tariq Adeeb que relataram que estudantes da Caxemira ficaram retidos em várias cidades e vilas para escapar da violência da multidão após o ataque de 14 de Fevereiro.

O ministro do Interior da Índia, Rajnath Singh, prometeu sexta-feira tomar medidas para garantir protecção e segurança.

Também a Comissão Nacional de Direitos Humanos da Índia referiu que procurou informações de Estados conflituosos sobre os maus-tratos a pessoas da Caxemira.

“Este tipo de violência do povo contra os seus concidadãos não pode ser aceite numa sociedade civilizada”, salientou.

Yasin Khan, empresário da Caxemira e líder do sindicato dos trabalhadores, explicou que pelo menos 600 estudantes e mais de 100 empresários regressaram às suas casas na Caxemira de várias partes do país, após ataques e ameaças de grupos principalmente hindus.

 

Zona quente

O gabinete das Nações Unidas (ONU) para os Direitos Humanos expressou na terça-feira a sua preocupação com o aumento das tensões entre o Paquistão e a Índia após um ataque que matou 41 paramilitares na Caxemira indiana.

“Esperamos que o aumento das tensões entre os dois países vizinhos, equipados com armas nucleares, não signifique uma subida da insegurança na região”, assinalou Rupert Colville, porta-voz do gabinete, em conferência de imprensa, em Genebra, na Suíça.

No mesmo dia, a Índia pediu uma “acção credível e visível” do Paquistão contra os responsáveis pelo atentado suicida.

Em comunicado, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Índia solicitou que o “Paquistão pare de enganar a comunidade internacional e tome acções credíveis e visíveis contra os responsáveis pelo ataque terrorista em Pulwama”.

Por seu turno, o primeiro-ministro paquistanês, Imran Khan, mostrou-se disposto a cooperar com a Índia após o ataque, mas prometeu “ripostar” caso o seu país seja atacado.

“O Paquistão vai ripostar” no caso de ser atacado, afirmou Khan durante um discurso na televisão, pedindo que Nova Deli forneça “evidências” do envolvimento paquistanês no ataque que exacerbou as tensões indo-paquistanesas nos últimos dias.

Estas declarações foram feitas no momento em que o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, prometeu “fazer pagar” um preço alto aos responsáveis pelo atentado suicida, que provocou uma onda de revolta em toda a Índia e provocou apelos de vingança.

Este ataque, o mais mortífero desde o início da insurgência separatista contra Nova Deli em 1989, foi reivindicado pelo grupo islâmico Jaish-e-Mohammed (JeM), baseado no Paquistão.

A região de Caxemira é reivindicada tanto pela Índia como pelo Paquistão desde o fim da colonização britânica, em 1947.

25 Fev 2019

Esperança e memória

[dropcap]É[/dropcap] difícil evitar esta onda de optimismo sazonal que nos invade no início de cada ano. O clima é tão forte e a pressão social tão intensa que mesmo velhos pessimistas antropológicos como este vosso escravo são compelidos a sorrir e a acreditar que o que aí vem será melhor. Não faz mal: é uma ilusão doce e inofensiva que, se formos a ver, até sabe bem. E há sempre a risível probabilidade de ser verdade, pelo menos durante algum tempo. É bom pensar que por algum misterioso motivo tudo se regenera para melhor a partir do primeiro dia do calendário gregoriano, como se os factos mais desagradáveis da vida ficassem suspensos por um instante num território remoto e inacessível. Para quem duvida mas despreza determinismos, como é o meu caso, é uma oportunidade perfeita para utilizar a nossa palavra preferida: “talvez”.

Mesmo assim sentimo-nos desconfortáveis neste universo paralelo momentâneo. Não queremos ser desmancha-prazeres mas também não conseguimos embarcar de boa vontade nas promessas e esperanças desmedidas que muitas vezes apenas reflectem os falhanços passados que gostaríamos de mudar. Mas há muito que é assim e, suspeito, assim será durante os próximos tempos – quanto mais não seja porque disso precisamos.

Tive a oportunidade recente de voltar a confrontar toda essa desmesurada e maravilhosa carga de esperança e confiança no futuro ao assistir a um extraordinário milagre documental: chama-se They Shall Not Grow Old e é realizado por Peter Jackson (sim, o mesmo da trilogia de O Senhor dos Anéis). A partir de filme e depoimentos de época, Jackson mostra-nos o que foi ser um soldado britânico a combater nas trincheiras da I Guerra Mundial. O impacto é imenso, tanto em termos de narrativa como na parte visual. O trabalho do realizador neo-zelandês – com a essencial cumplicidade do Imperial War Museum, que colocou à disposição todos os seus arquivos – foi seleccionar, restaurar, colorir e sonorizar filmagens de época. Para isso, para além da tecnologia que domina como ninguém, Jackson contou com a colaboração de leitores labiais para recriarem o que era dito nesses filmes para depois o entregar a actores que se encarregaram de dar voz ao que vemos. Além disso alterou a velocidade dos filmes de então para os familiares 24 fotogramas por segundo, evitando assim a pátina do tempo que passou e consequentemente envolvendo o espectador de hoje numa narrativa contemporânea.

Mas apesar de todos estes prodígios o que de facto faz a força deste documentário são os depoimentos não identificados de cerca de 120 veteranos que viveram e sobreviveram ao conflito. Ouvimo-los em off, sobre as imagens; percebemos quem são os oficiais e os soldados. Acompanhamo-los desde o entusiasmo patriótico do pré-guerra até ao final, onde apenas sobrevive uma profunda indiferença sobre o desfecho dos combates. Existe um cansaço nos dois lados beligerantes e acreditamos que o primeiro a ceder será o derrotado. São homens perdidos, abandonados numa guerra que não compreendem. Apenas conhecem o que vêem e sentem: devastação, paisagens lunares cheias de morte, condições de sobrevivência infra-humanas. Mesmo quando chegou às trincheiras o boato – e é disso que falam, do “Mr. Rumour” – de que a guerra iria acabar não houve festejos – só apatia e desconfiança. Mais do que a luta contra um inimigo, o que a I Guerra Mundial trouxe aos que nela participaram foi um combate constante e duro contra a sua desumanização. E muitos perderam.

É muito o que nos dá este They Shall Never Grow Old. Mais do que honrar a memória, faz-nos vivê-la através dos olhos e das vozes de quem lá esteve. Para nós, portugueses, não nos deve ser indiferente: foi o único conflito global em que participámos, mal armados, mal preparados e não desejados, arrastados apenas por uma criminosa vontade de um regime que almejava ser legitimado internacionalmente.

E depois, depois de tudo acabado, a esperança. Que a humanidade nunca mais iria ver semelhante carnificina; de que a Europa iria enfim ficar em paz. Como se de repente fosse Ano Novo para o planeta. Mas o diktat do Tratado de Versalhes, com as terríveis condições que impôs à Alemanha, fazia temer o pior. Churchill alertou; o marechal Foch, herói francês, foi mais longe e acertou em cheio ao dizer: «Isto não é um Armistício – é um cessar-fogo com a duração de vinte anos».

Em 1933 um antigo combatente da I Guerra, forte opositor do Tratado de Versalhes, foi eleito Chanceler da Alemanha. O que se seguiu já o sabemos.

Que a esperança não morra mas que a memória nunca a deixe sozinha.

4 Jan 2019

Salva Dut, activista e sobrevivente da Guerra Civil do Sudão: “Corri na direcção oposta ao som das balas…”

Era só mais um dia de escola quando os tiros romperam pela aldeia onde vivia Salva Dut, à altura com 11 anos. Depois de perder o contacto com a família, a luta pela sobrevivência deu-lhe forças para caminhar centenas de quilómetros no deserto até chegar a um campo de refugiados. Hoje, com 44 anos, leva água potável ao país de origem e conta a sua história na primeira pessoa

[dropcap]Q[/dropcap]ue memórias guarda do dia em que foi obrigado a fugir da sua aldeia devido à guerra?
É um dia que tenho muito presente. Eram 10h da manhã e estava na escola. De repente, começámos a ouvir o barulho dos tiros e tivemos de fugir. O nosso professor apenas nos disse para fugir… E corri na direcção oposta ao som das balas…

Que cenário viu quando fugiu da escola?
Foi um momento muito assustador. Lembro-me de ver pessoas perdidas a correrem em todas as direcções. Muitas já estavam cobertas por sangue, havia sangue por todo o lado.

Entre esse momento, em 1985, até 2002 esteve 16 anos sem saber da sua família. Pensou neles quando fugia?
Não. Num momento daqueles não se pensa em quase nada. O nosso objectivo é fugir, evitar o perigo e chegar a um lugar seguro. Quando o professor nos disse para fugir, deixei tudo para trás, até o livro de exercícios. Só queria fugir para longe do barulho das balas e nem pensei na minha família.

Quando se lembrou deles?
Quando me senti mais seguro, comecei a pensar neles, a perguntar-me como ia regressar a casa, a pensar se eles estariam vivos. Foi um pensamento que me perseguiu durante quase 17 anos…

FOTO: Escola Internacional de Macau

Após a fuga, em conjunto com 1500 rapazes, passou a fronteira para a Etiópia e mais tarde para o Quénia, com uma nova passagem pelo Sudão. Temeu morrer durante a fuga?
Sem dúvida, o medo estava sempre muito presente. Não estávamos num lugar seguro, não tínhamos como arranjar água nem comida, e depois havia os ataques das tribos e dos animais selvagens… Nessa altura, um dos meus melhores amigos morreu devido a um ataque de um animal.

Foi atacado por leão?
Não sei dizer, talvez tenha sido um leão ou uma hiena. Aconteceu tudo à noite, quando estávamos entre a vegetação e não vimos como aconteceu. Só começámos a ouvir os gritos dele e percebemos que estava a ser atacado. Mas era de noite e não conseguimos ver nada, por isso também não pudemos fazer nada… Fomos ouvindo os gritos até que eles chegaram ao fim…

A caminhada foi feita principalmente à noite?
Tinha de ser, até porque tínhamos de passar por outras tribos. Se nos vissem, o normal era que nos atacasse porque nos consideravam o inimigo. Assim, à noite caminhávamos para tentar passar sem ser vistos, e durante o dia tínhamos de manter-nos escondidos. Eram alturas em que não se descansava.

O que passa pela cabeça de um rapaz de 11 anos que vive uma experiência destas?
Sobreviver. Estamos tão assustados que só pensamos em fazer tudo para chegar a um lugar seguro. Não pensamos em mais nada que não seja, para onde vamos ou como vamos arranjar água ou comida. Também há sempre o medo de sermos encontramos pelo inimigo, que nos quer matar. São dias em que o único pensamento é a sobrevivência.

Neste tipo de conflitos, há tendência para os militares matarem as crianças, que se podem tornar soldados do inimigo. Vocês tinham noção disso?
Sim, nós sabíamos que as crianças eram alvos preferenciais e, como é óbvio, isso contribuía para que tivéssemos mais medo.

Como é que uma criança com 11 anos lida com esta situação e com o facto de ter perdido o contacto com a família?
Eu estava tão focado em sobreviver que o meu cérebro não pensava em mais nada. Só às vezes, nos momentos de descanso, é que pensava no que estava a acontecer e na minha família… Mas o que é que eu podia fazer? Não havia correios, não havia telefones, não havia transportes para regressar… Tive de aceitar que o que não tem remédio, remediado está…

O Salva Dut é cristão. Alguma vez pensou que Deus não existisse nesta fase?
(Pausa) Acho que nunca tive esse sentimento. Eu rezava sempre à noite e de manhã. Rezar e estabelecer uma ligação com Deus foi um grande apoio, uma grande motivação nessa fase. Até porque quando uma porta se fecha, há sempre a possibilidade de Deus abrir outra. Considero que foi isso que aconteceu.

Esteve no campo de refugiados de Lodawar, no Quénia, seis anos. Como era a vida nesse local?
Foi uma altura em que estava por minha conta. Não tinha familiares e no campo, que é gerido pelas Nações Unidas, davam-nos comida e roupas. De resto, não havia muito mais nada para fazer. O objectivo era estar num lugar seguro.

Em 1996, é escolhido num programa norte-americano para ser adoptado por um família em Rochester, Nova Iorque. Foi uma mudança radical?
Foi muito difícil. O choque cultural foi tremendo e lembro-me que achava que estava sempre frio. Também não falava a língua, mas tinha de ir à escola, trabalhar… Foi difícil, mas sabia que tinha de me adaptar, porque poderia melhorar muito a minha vida.

Vinha de uma aldeia onde não havia água nem electricidade. Sentiu uma grande diferença no estilo de vida?
Sim. Na casa onde vivia no Sudão do Sul não existiam lâmpadas nem água. Quando cheguei ao EUA há todas estas coisas que tornam a nossa vida muito confortável e que utilizamos de forma automática. Por exemplo, eu não sabia acender uma luz. Este tipo de coisas que as pessoas nos países mais desenvolvidos fazem de forma natural, porque sempre viveram com elas, eu tive de aprendê-las.

Como se sentiu por ir para os EUA?
Sinto-me abençoado por Deus, que me guiou e me deu algo de positivo, apesar de todas as situações difíceis. Estive numa situação de guerra com 11 anos, tive toda aquela caminhada de centenas de quilómetros até chegar a um lugar seguro, foram condições em que muitos morreram. Eu sobrevivi e ainda tive a oportunidade de ir para os EUA. Também pude regressar ao Sudão do Sul, ajudar as pessoas lá, e reencontrei os meus pais. É algo fantástico.

Em 2002, um ex-companheiro do campo de refugiados informa-o que o seu pai está a ser tratado numa clínica das Nações Unidas… Como foi o reencontro?
Foi uma emoção tremenda. Quando me aproximei dele, ele não me reconheceu. Eu, primeiro, disse: “Olá, pai”, e ele respondeu: “Quem és tu?”. Tive de dizer: “Sou eu, o Salva” e ficámos ambos muito emocionados. Durante esses anos todos tinha muitas dúvidas de que o voltaria a ver vivo.

É também a partir desse momento que decide criar a Water for South Sudan, fundação que tem como objectivo levar água potável às várias aldeias do Sudão do Sul…
Ele estava a receber tratamento devido a uma doença causada pela ingestão de água que não é potável. Nessa altura, decidi que tinha de fazer alguma coisa para ajudar as pessoas como o meu pai.

E o reencontro com a sua mãe, quando ocorreu?
O meu pai teve de caminhar mais de 480 quilómetros para chegar à clínica e ela ficou na nossa aldeia a tomar conta do resto da família. Por isso, só estive com ela depois de regressar aos EUA e voltar novamente ao Sudão do Sul.

Ela reconheceu-o?
Não, fui eu que a reconheci. Estava sentado numa mesa numa sala, quando ela entrou. Nessa altura não a vi logo, porque estava a falar com o meu tio. Até que ela entra e pergunta ao meu tio: “Onde é que ele está?”. E ele disse “é este rapaz aqui”. Foi fantástico o reencontro.

Como se sente por ter estado tanto tempo afastado da sua família?
Sinto-me muito mal com isso. É algo que desejava que nunca tivesse acontecido. E é isto que é a guerra. Sempre que há guerra quem sofre são os inocentes.

Este tipo de injustiça motiva-o para tentar melhorar a situação no Sudão do Sul?
Talvez seja uma das razões…

Uma das ideia que defende é que o acesso a água pode pacificar os conflitos entre as diferentes tribos do Sudão do Sul. Porquê?
Quando as pessoas têm acesso à água não precisam de se deslocar à procura deste bem-essencial. Esta busca é uma das causas dos conflitos entre as tribos. É frequente no Sudão do Sul, ver as pessoas mais novas a matarem-se umas às outras devido ao acesso à água. Neste sentido, trazer água para as diferentes aldeias também é contribuir para a paz.

E isso não cria um sentimento de inveja?
Não é a isso que temos assistido, pelo contrário. É comum que pessoas de tribos diferentes se ajudem a abrir novos poços. Nessas situações é comum ouvirmos as pessoas de tribos diferentes a dizerem somos todos o mesmo povo.

Qual é o maior desafio nos trabalhos de escavação de poços de água?
Há muitos. O principal é a falta de infra-estruturas, não temos estradas, fábricas com capacidade para produzir tubos que utilizamos, ou as bombas de água. Todos os materiais que utilizamos são importados.

O Sudão do Sul está em guerra civil desde 2013. Na semana passada houve um acordo de paz entre o Governo e as forças rebeldes. Acredita que é desta que a guerra termina?
No passado houve acordos semelhantes que foram violados. Não sei o que vai acontecer desta vez. Mas espero que seja diferente, que haja paz. As pessoas do Sudão do Sul já sofreram demasiado com as guerras e só com a paz e estabilidade poderá haver prosperidade.


Perfil

Nascido em 1974, Salva Dut nasceu na tribo Dinka e aos onze anos, em 1985, viu-se obrigado a fugir da aldeia onde vivia, no Sul do Sudão, devido à Segunda Guerra Civil. É um dos 40 mil “Lost Boys” [crianças perdidas em português], nome para os menores que se perderam dos pais devido ao conflito armado. Em fuga, com um grupo de várias crianças, Salva teve de percorrer centenas de quilómetros, para encontrar abrigo, primeiro, num campo de refugiados na Etiópia e, depois, no Quénia. Em 1996, ao abrigo de um programa das Nações Unidas foi adoptado por uma família de Nova Iorque. Actualmente, é cidadão norte-americano e licenciou-se em Negócios Internacionais no Colégio Comunitário de Monroe, que pertence à Universidade Estadual de Nova Iorque. Em 2003, fundou com um grupo de amigos a associação sem fins lucrativos Water for South Sudan [Água para o Sudão do Sul], que tem como objectivo levar água potável a um dos mais novos países do mundo.

Conflitos armados desde 1955

Em 2011, a República do Sudão do Sul tornou-se oficialmente um país. Porém, encontra-se em guerra civil desde 2013. Na semana passada, foi assinado um acordo de paz entre o Governo e as forças rebeldes, mas há bastantes dúvidas quanto ao sucesso da resolução, uma vez que no passado, por várias vezes, acordos deste género não foram cumpridos. Desde 1955, altura em que o território que agora constitui a República do Sudão do Sul pertencia ao Sudão, que a História do país está marcada pela guerra. Nos períodos 1955-1972 e 1983-2005, o Sudão do Sul, maioritariamente cristão, lutou com o Sudão, maioritariamente muçulmano, por maior representatividade e mais tarde por independência. O objectivo foi alcançado em 2011, após um referendo. Porém, dois anos depois, conflito armado regressou à região. Agora, Salva Kiir, presidente do país, e Riek Machar, líder dos rebeldes, dizem que vão partilhar o poder. Resta saber se vão efectivamente conseguir entender-se e terminar a guerra.

Convite da Escola Internacional de Macau

Salva Dut esteve em Macau a convite da Escola Internacional de Macau [The International School, em inglês], onde teve a oportunidade de partilhar a sua história e falar das actividades da Water for South Sudan com os alunos da instituição. Além disso, houve actividades promovidas pela escola de recolha de fundos para financiar a escavação de mais poços no Sudão do Sul. “Até hoje, já cavámos 349 poços e treinámos uma equipa especializada para auxiliar as diferentes aldeias em questões de higiene e manutenção desses poços”, disse Salva Dut, ao HM. “Os efeitos da escavação de um poço são fantásticos para as comunidades. A menina que antes tinha de andar quilómetros para ir buscar água para a família passa a ter tempo para poder ir à escola. E isso é uma semente para um futuro melhor para o Sudão do Sul e para a sua população”, acrescentou.

• Ajude a Water for South Sudan
5 Nov 2018

Ex-chefe militar dos EUA admite guerra com China dentro de 15 anos

[dropcap]O[/dropcap] antigo comandante das forças militares dos Estados Unidos da América (EUA) na Europa admitiu, na quarta-feira, que é muito provável que os norte-americanos e a China estejam em guerra dentro de 15 anos.

O tenente-general retirado Ben Hodges afirmou que os aliados europeus terão de fazer mais para garantirem a sua própria defesa, perante uma ressurgente Rússia, porque os EUA vão precisar de dar mais atenção à defesa dos seus interesses no Pacífico.

“Os EUA precisam de um pilar europeu muito forte. Penso que dentro de 15 anos – o que não é inevitável –, é muito provável que estejamos em guerra com a China”, declarou Ben Hodges, numa sala cheia durante o Fórum de Segurança de Varsóvia, Polónia, um encontro de líderes e analistas políticos e militares da Europa Central.

“Os EUA não têm a capacidade para fazer tudo o que têm de fazer na Europa e no Pacífico para lidarem com a ameaça chinesa”, disse Hodges.

Este militar norte-americano chefiou as forças dos EUA na Europa entre 2014 e o ano passado.

Agora, é analista de estratégia no Centro de Análise da Política Europeia (Center for European Policy Analysis), um instituto de investigação baseado em Washington, nos EUA.

Apesar da mudança de prioridades geopolíticas, Ben Hodges considerou que o compromisso dos EUA com a NATO é “inabalável”, apesar das declarações de Trump.

Hodges disse à The Associated Press que um recente quase choque entre um ‘destroyer’ norte-americano e um vaso de guerra chinês foi apenas um sinal que aponta para “uma relação crescentemente tensa e uma concorrência cada vez mais forte em todos os domínios”.

Outros sinais são “os constantes roubos de tecnologia” por parte da China e a forma como a China está a ganhar o controlo das infra-estruturas através do financiamento de projectos em África e na Europa, acrescentou, detalhando que na Europa a China já possui mais de 10% dos portos.

25 Out 2018

A Coreia na Guerra do Japão à China

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]e todos os consulados de Portugal na China, o de Shanghai é indubitavelmente o que tem mais elevado grau de importância, e quer porque revista os seus titulares de carácter e funções de juízes, quer pela numerosa comunidade que está sob a sua jurisdição e pelos magnos interesses que naquele tribunal se debatem e ventilam, exige que só seja confiado a um cônsul de carreira, ou a um homem suficientemente habilitado e que dê todas as garantias do bom desempenho de tão transcendente missão”, segundo O Independente de 1 de Agosto de 1891.

De 1891 a 1893 os capitalistas europeus e sobretudo os de Londres retiraram uma imensa quantia de dinheiro do giro comercial da China por eles empregado em Hong Kong, pois estava em curso a desvalorização do preço da prata.

Regressado a Shanghai vindo da Metrópole, o cônsul geral de Portugal e Sénior cônsul, Joaquim Maria Travassos Valdez, de 1893 a 1895 como Doyen (decano do corpo consular) geriu as questões de Shanghai, “muitas, importantes como, a proibição da importação de máquinas, a de medidas preventivas por ocasião da peste bubónica, a do jubileu de Shanghae, a da dragagem de Vonsung, a da supressão da loteria e outros jogos, a queima e destruição de pagodes, e finalmente a da neutralidade de Shanghae por ocasião da guerra entre a China e o Japão.” No início o Daily Press de Shanghae mostrara-se contra o Sr. Valdez para decano do corpo consular, mas escolhido pelos seus colegas, o facto desmentia as asserções desse jornal.

Como Doyen da Concessão Internacional, o Sr. Valdez presidia ao Shanghai Municipal Council, eleito pela elite económica dos proprietários estrangeiros e nesse cargo conviveu com três tao-taes e com esses governadores da cidade chinesa manteve cordiais relações de amizade. Quando rebenta a guerra entre a China e o Japão, o tao-tae de Shanghae procura amiudadas vezes o Sr. Valdez para ouvir a sua autorizada opinião sobre várias questões, algumas delas estranhas ao seu cargo, mostrando não só confiança no Sr. Valdez, como lhe reconhece competência. Informações do jornal O Provir de Hong Kong.

Parecer do Doyen

Camilo Pessanha ainda viaja para Macau quando a 28 de Março de 1894 em Shanghai ocorre o assassinato de um refugiado político da Coreia, Kim Ok Kiun, a residir no Japão, morto por Hung, também coreano. “Como a Coreia não é uma potência que tivesse tratado com a China, pois considerada como um seu Estado tributário, é difícil decidir qual deve ser a lei, e qual o juiz para julgar o caso” e aqui entra o Sr. Travassos Valdez, cônsul geral de Portugal e Sénior cônsul, na sua qualidade de Doyen do corpo consular em Shanghae. “Mostra que os cônsules e o conselho municipal reunidos possuem os poderes legislativo, executivo e judicial – tudo quanto constitui uma verdadeira soberania. Prova que o pagamento de um pequeno foro ao imperador da China, (que, pela lei chinesa, é proprietário de todo o terreno no Império e só o afora aos seus súbditos) não afecta a questão de soberania dentro dos Estabelecimentos, do mesmo modo como o pagamento de um tributo, feito por um Estado tributário, não diminui os seus direitos de soberania dentro das suas fronteiras. Demonstra ser a autoridade do magistrado chinês pelos regulamentos do tribunal misto quem tem a menor alçada e é limitada pela presença de um assessor estrangeiro. Conclui que o caso deve ser julgado por um membro do corpo consular, e conforme as leis de seu país. A oposição que houve no corpo consular impediu a adopção dessa conclusão e Hung foi entregue às autoridades chinesas e libertado na Coreia. Para o Sr. Valdez um ultraje às bandeiras estrangeiras que defendiam os Estabelecimentos, como uma violação dos sagrados direitos de asilo, e com um perigoso precedente que poderia conduzir a crimes sem fim.

Guerra da Coreia

Quatro meses em Macau e Camilo Pessanha toma conhecimento ter o Japão, incitado pelos britânicos e com ajuda americana, a 1 de Agosto de 1894 invadido a Coreia, país ainda tributário da China e por isso sobre sua protecção. “Tudo começa na Primavera de 1894 com uma revolta de camponeses, tendo os senhores feudais coreanos pedido ajuda ao Governo Qing para enviar tropas. Quando em Junho chegam as 1500 tropas chinesas a Asan, está já a revolta controlada, encontrando-se quase toda a força naval e dez mil soldados da infantaria japonesa em Seul e ao redor de Inchun. A China propõe ao Japão deixarem ambos os países de ter tropas na Península da Coreia. O Japão recusa, dizendo ser para ajudar a Coreia nas suas internas reformas”, segundo Bai Shouyi, em Outline History of China. E nesse livro em tradução livre continuamos, “Nos finais de Julho, os vasos de guerra chineses encontram-se em Asan, quando de repente uma frota japonesa os ataca, causando a morte a mais de 700 soldados, levando a armada chinesa a retirar para Pyongyang, onde a 15 de Setembro ocorre a batalha, que as tropas chinesas ajudadas pelos coreanos conseguem repelir. Dois dias depois da Batalha de Pyongyang, a armada chinesa Beiyang comandada pelo Almirante Ding Ruchang, inexperiente em batalhas navais, encontra-se no Mar Amarelo quando é cercada pela japonesa. A batalha dura cinco horas e os chineses perdem cinco navios. Em finais de Outubro, as tropas japonesas invadem o Nordeste da China, capturando a Península de Liaodong e no Rio Yalu, Jiulian e Andong (hoje Dandong, Liaoning). Em meados de Janeiro de 1895, os japoneses vão à Província de Shandong e assaltam o porto Weihaiwei, onde o que restara da frota Beiyang é completamente destruída em Fevereiro. Passam as tropas japonesas à península coreana e rapidamente ocupam muito território, levando o Governo Qing a pedir a paz.

A astuciosa inteligência comercial estimula atritos que sabe levarem à guerra e assim mais uma vez resulta. A Inglaterra apoia o Japão e não a Rússia, sua oponente em Xinjiang, no Oeste da China, onde os britânicos para Norte e os russos para Sul tentam expandir os seus impérios, levando entre ambos à assinatura de um tratado em 1895.

A Guerra da Coreia (1894-95) dá ao Japão asas no sonho de construir um império na Ásia. Guerra que marca um novo estado de agressão estrangeira à China, a ter de permitir aos poderes ocidentais investir aí em fábricas a satisfazer as suas necessidades urgentes para exportar capital. O status da China como semi-colónia fica confirmadíssimo, segundo Bai Shouyi. Ainda em 1893 começara um movimento reformista de chineses ricos ligados aos Qing a investirem largas somas de dinheiro na modernização tecnológica das suas fábricas. A maioria dos negócios desses milionários acaba em bancarrota devido à competição dos comerciantes estrangeiros, já na Era do capitalismo industrial.

Controlam os transportes, as matérias-primas e a produção, e sem rivais no comércio entram por todos os países. O mercado tem que ser livre, nem que seja pela força. Ou ocorre como com a planta do chá.

A Rainha Vitória impera no mundo, cujo jubileu de diamante será em 1897.

7 Set 2018

Síria | Pequim diz que ataque viola carta da ONU e dificulta solução para a guerra

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] China criticou no fim-de-semana o ataque conjunto dos Estados Unidos, França e Reino Unido contra a Síria, por considerar que viola a Carta das Nações Unidas e complica as negociações de uma solução para o conflito

“Qualquer acção militar unilateral sem o aval do Conselho de Segurança é contrária aos propósitos e princípios da Carta da ONU e viola os princípios e normas básicas do direito internacional”, afirmou em comunicado uma porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, Hua Chunying. Este ataque “também acrescenta factores novos e complicados para a solução da questão síria”, acrescentou a porta-voz. “Nós opomo-nos ao uso da força nas relações internacionais e apoiamos o respeito pela soberania, a independência e a integridade territorial de todos os países”, disse.

A China “apela a todas as partes para que ajam no quadro do direito internacional e para que resolvam a crise através do diálogo e da negociação”, referiu a porta-voz.

Os Estados Unidos, a França e o Reino Unido realizaram uma série de ataques com mísseis contra alvos associados à produção de armamento químico na Síria, em resposta a um alegado ataque com armas químicas na cidade de Douma, Ghouta Oriental, por parte do Governo de Bashar al-Assad.

A ofensiva consistiu em três ataques, com uma centena de mísseis, contra instalações utilizadas para produzir e armazenar armas químicas, informou o Pentágono.

 

Última Ghouta

O Presidente dos EUA justificou o ataque como uma resposta à “acção monstruosa” realizada pelo regime de Damasco contra a oposição e prometeu que a operação irá durar “o tempo que for necessário”.

A Rússia anunciou, entretanto, que vai pedir uma reunião de urgência do Conselho de Segurança da ONU após os ataques ocidentais contra alvos na Síria. “A Rússia convoca uma reunião de urgência do Conselho de Segurança da ONU para discutir as acções agressivas dos Estados Unidos e seus aliados”, refere Moscovo em comunicado.

Peritos da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) tinham previsto iniciar uma investigação sobre o alegado ataque com armas químicas. A missão recebeu um convite do Governo sírio, sob pressão da comunidade internacional.

Mais de 40 pessoas morreram e 500 foram afectadas no ataque de 7 de Abril contra a cidade rebelde de Douma, em Ghouta Oriental, que, segundo organizações não-governamentais no terreno, foi realizado com armas químicas.

A oposição síria e vários países acusam o regime de Al-Assad da autoria do ataque, mas Damasco nega e o seu principal aliado, a Rússia, afirmou que o ataque foi encenado com a ajuda de serviços especiais estrangeiros.

16 Abr 2018

Literatura | Arturo Pérez-Reverte acaba de lançar “Falcó”

O mais recente romance de Arturo Pérez-Reverte, “Falcó”, levou o autor a reviver as experiências de “crueldade e estupidez” do ser humano, de dor e morte que presenciou durante os 21 anos em que foi repórter de guerra

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte acaba de lançar “Falcó”, que conta a história de um espião e ex-contrabandista de armas sem escrúpulos, que se encontra a mando dos serviços de inteligência franquistas, durante a Guerra Civil Espanhola, em 1936, com a missão de libertar um detido da prisão.

“Os anos 1930 foram uma época muito interessante na História da Europa, lugar de espionagem, fascismo, comunismo, de lutas revolucionárias, mas por outro lado, de roupas muito elegantes, de maneiras, era um mundo muito interessante, não tão inglório como agora, era um mundo fascinante”, disse o escritor, em entrevista à Lusa, justificando a escolha do tema para o romance.

A personagem que criou para se movimentar nesse meio é Lorenzo Falcó e, apesar de já ter escrito vários livros sobre guerras, nesta história a Guerra Civil Espanhola não é o objectivo, “é o fundo decorativo”, explicou.

Arturo Pérez-Reverte assume que um dos grandes desafios deste livro foi conseguir que “o leitor adoptasse como companheiro de leitura um torturador, assassino, sem escrúpulos, amoral por completo”, e para isso teve que apresentar como contrapartida virtudes que o compensassem: “elegante, simpático, encantador, sedutor, um homem que gosta muito das mulheres e de quem as mulheres gostam”.

O escritor admite que se identifica com a personagem de Falcó, indiferente às causas e ideologias e até à humanidade, devido às duas décadas que viveu em países em guerra.

“Partilhamos os mesmos pontos de vista sobre o mundo, sobretudo (Falcó) partilha da minha fé indestrutível na capacidade de crueldade e estupidez do ser humano e esse é o território em que ele se move”, afirmou.

A ambivalência da personagem – entre o mau e o bom – está igualmente presente na corrente da história, que retrata acções de fascistas, comunistas, socialistas e anarquistas, sem deixar transparecer simpatia por nenhuma das facções.

Arturo Pérez-Reverte explica que das reportagens de guerra que fez, na maioria guerras civis, aprendeu que entre duas facções há uma “declaradamente dos bons e outra dos maus” – sendo que na Guerra Civil Espanhola, “os bons eram os da República e os maus eram os Franquistas” -, mas que quando se convive com os protagonistas das guerras, “a linha já não está tão clara, é tudo mais confuso”.

“Falcó beneficia desse conhecimento, vive num mundo em que os bons e os maus não estão nada claros, às vezes são bons outras vezes são maus, e ele não tem uma ideologia, uma simpatia politica concreta, é um mercenário, um amoral, um homem para quem a aventura, a adrenalina, as mulheres, o luxo e a acção são os valores fundamentais”, diz.

Para descrever as acções da personagem, na sua faceta mais cruel e violenta, bem como as cenas de morte e tortura, com todas as descrições de expressões faciais e sintomas físicos, Reverte socorreu-se da sua própria memória, usando “artefactos literários narrativos que beneficiam” da sua “experiência pessoal”.

“Quando escrevo estas aventuras sobre violência tortura e morte, não me contaram, não é teoria nem imaginação, não aprendi numa conversa de bar nem numa conferência, nem num livro ou num filme, eu vivi-o, durante 21 anos vi muita gente como o Falcó, eu vi torturar, vi matar, por isso eu sei como é um cadáver, como é a pele de um homem sob tortura, os suores frios, eu toquei-lhes”, recorda.

Para escrever os seus romances, Arturo Pérez-Reverte viaja até aos lugares onde as histórias se passam, frequenta os restaurantes, lê, tira fotografias e sobretudo respira o ambiente que respiram as suas personagens, conta.

Foi o que aconteceu com este livro, cuja história termina no Estoril, onde o escritor esteve três semanas a trabalhar, porque Portugal era, na altura, “um lugar importante, de tráfico, de espionagem, de conspirações”.

Lisboa no próximo livro

E é em Portugal, na cidade de Lisboa, que começa o seu próximo romance, “Eva”, que sai em Espanha nos próximos dias, que recupera o espião Falcó e uma das suas companheiras de missão, uma personagem feminina “muito forte”.

Aliás, o escritor sublinha a importância que dá à personagem feminina que não é a clássica “esposa” ou “mãe”, como Anna Karenina ou Madame Bovary.

“A mulher é um tema muito interessante, as minhas mulheres são muito poderosas, perigosas, duras, cruéis também, de uma grande força intelectual e de personalidade, mulheres lutadoras, comunistas, franquistas, activistas, esse tipo de mulher combativa interessa-me muito na vida real e nos romances”, declara.

11 Out 2017

Coreia do Norte | Sul reafirma a vontade de paz. Estados Unidos tentam acabar com exportações

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]eul não quer a guerra, reiterou ontem o Presidente da Coreia do Sul, que garante que tudo fará para que as ameaças entre Pyongyang e Washington não aterrem no seu país. Os Estados Unidos lançaram outra batalha, ao procurarem o isolamento económico total do regime de Kim Jong-un. Num momento de aparente acalmia, a questão reside em saber o que vem a seguir

Não vai haver guerra na Península Coreana, afirmou ontem o Presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-In, apesar da grande tensão em torno de Pyongyang e do programa de mísseis que tem vindo a testar nos últimos meses, cada vez com maior intensidade.

“Todos os sul-coreanos trabalharam arduamente para reconstruir o país das ruínas deixadas pela Guerra da Coreia”, afirmou Moon Jae-In numa conferência de imprensa que assinalou os primeiros 100 dias no cargo. “Vou evitar a guerra a todo o custo”, prometeu. “Por isso, quero que todos os sul-coreanos acreditem, com confiança, que não haverá guerra.”

O Presidente da Coreia do Sul revelou que está a colocar a possibilidade de destacar um enviado especial para Pyongyang.

Na terça-feira passada, durante um discurso transmitido pela televisão, Moon Jae-In tinha já dito que não haverá acção militar na Península da Coreia sem o consentimento de Seul, garantindo que o Governo do Sul irá fazer tudo para evitar um conflito armado.

A tensão na península tem aumentado nos últimos meses, sendo que estas semanas foram particularmente difíceis, com a Coreia do Norte e os Estados Unidos a ameaçarem-se mutuamente com intenções militares. Pyongyang tem dado sinais de que não pretende desistir do desenvolvimento do programa nuclear, estando aparentemente a trabalhar em armamento com capacidade para atingir os Estados Unidos.

Na semana passada, a Coreia do Norte avisou que estava a preparar um plano para um ataque a Guam. Uns dias depois, na terça-feira, o regime de Kim Jon-un disse ter mudado de ideias, com Pyongyang a explicar que vai “observar” os Estados Unidos antes de avançar com a ofensiva. Já o Governo de Guam garantiu que se mantém alerta relativamente a um possível ataque norte-coreano com mísseis.

Recorde-se que o anúncio do ataque a Guam surgiu depois de Donald Trump ter prometido atingir a Coreia do Norte com “fogo e fúria” se o país não reduzisse o tom das ameaças.

Cortar com os aliados

Na Coreia do Sul, país que teria uma situação muito complicada para resolver com um eventual conflito armado, os líderes políticos tentam desdramatizar um cenário com contornos difíceis; noutro ponto do planeta, os Estados Unidos procuraram isolar, ainda mais, a Coreia do Norte.

Mike Pence, vice-presidente norte-americano, pediu esta semana ao Brasil, ao México e a outros países da América Latina que acabem de vez com os laços diplomáticos e económicos com Pyongyang, recordando as ameaças que foram feitas nas últimas semanas por Kim Jong-un.

“Pedimos veementemente ao Chile, ao Brasil, ao México e ao Peru que cortem todos os laços com a Coreia do Norte”, declarou Pence, numa conferência de imprensa em que esteve acompanhado pela Presidente chilena, Michelle Bachelet. O vice-presidente dos Estados Unidos pediu ao Chile que reclassifique produtos exportados para a Coreia do Norte, de modo a que passem a ser abrangidos pelas sanções impostas ao regime.

A pretensão de Mike Pence não será, por agora, atendida. O chefe da diplomacia chilena disse, mais tarde, respeitar o pedido dos Estados Unidos, mas acrescentou que não existem intenções de mudar o modo como o país lida com Pyongyang. “São já relações distantes porque aplicamos com rigor todas as sanções do Conselho de Segurança das Nações Unidas” contra a Coreia do Norte, declarou Heraldo Munoz.

Em 2015, o regime de Kim Jong-un importou vinho chileno no valor de 65 milhões de dólares. Já o México vendeu petróleo avaliado em 45 milhões e o Peru exportou 22 milhões de dólares em cobre.

A Presidente Michelle Bachelet faz parte dos líderes que acham que a diplomacia é a chave para resolver o problema, tendo defendido que é necessário um esforço adicional de todas as partes envolvidas para garantir a desnuclearização da Península Coreana.

Em açambarcamento?

Os esforços de Mike Pence para isolar Pyongyang surgem numa altura em que se acredita que a Coreia do Norte tem estado a preparar-se para resistir à progressiva perda de parceiros económicos. Números avançados esta semana pelo South China Morning Post demonstram que a importação de bens alimentares da China aumentou drasticamente no último ano, um sinal de que Pequim será mesmo o último aliado do regime.

Dados oficiais da alfândega chinesa apontam para um aumento das exportações em quase 30 produtos. A quantidade de milho enviada para a Coreia do Norte aumentou 32 vezes, ultrapassando as 12.700 toneladas, sendo o bem alimentar mais procurado. Seguem-se as bananas e a farinha.

As bebidas alcoólicas mais do que quadruplicaram, chegando aos 9,5 milhões de litros. Entre os alimentos mais importados pelo país estão ainda o chocolate, o pão e os biscoitos. As estatísticas sobre o arroz exportado pela China no ano passado não estão ainda completas, mas a Coreia do Norte recebeu, no segundo trimestre deste ano, mais de 11 milhões de toneladas de arroz, bastante mais do que os 3,5 milhões que importou no mesmo período do ano passado.

Os recentes lançamentos de mísseis levados a cabo por Kim Jong-un levaram a comunidade internacional a aumentar as sanções ao regime, mas os bens alimentares não fazem parte do pacote de sanções, na esperança de que seja possível manter um padrão de vida mínimo para os cidadãos de um país onde a fome é a realidade da maioria. No entanto, a Coreia do Norte viu serem impostos limites nas exportações. Na passada segunda-feira, a China deixou de comprar marisco ao vizinho, acabando assim com uma fonte de rendimento que, no ano passado, deu a Pyongyang 190 milhões de dólares norte-americanos.

Especialistas analisam dificuldades bélicas de Pyongyang

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] a grande incógnita do momento para os observadores da Coreia do Norte e especialistas em armamento. Existe a convicção de que Pyongyang está efectivamente a preparar armamento nuclear capaz de atingir os Estados Unidos. A retórica de Kim Jong-un tem sido acompanhada por testes a mísseis balísticos que demonstram capacidades militares norte-coreanas que surpreenderam muitos analistas.

Constatado que está o facto de que existe uma ameaça que vai além da propaganda, tenta-se perceber a verdadeira dimensão do poder bélico do regime. Presume-me que os norte-coreanos estão a tentar produzir um dispositivo nuclear com uma dimensão suficientemente pequena e com pouco peso para que possa ser utilizado num míssil, sem prejuízo do seu alcance.

Os especialistas contactados pela Agência Reuters acreditam que, para atingir este objectivo, o regime terá de fazer pelo menos mais um teste nuclear – o sexto – e levar a cabo mais testes com mísseis de longo alcance. No mês passado, a Coreia do Norte testou dois mísseis balísticos intercontinentais (ICBM, na sigla inglesa) com uma carga explosiva mais leve do que qualquer ogiva nuclear que conseguirá produzir neste momento, indicam os analistas.

Uma forma de conseguir fazer uma ogiva mais leve é apostar no hidrogénio, explicam ainda os peritos, recordando que Pyongyang alega ter conseguido testar um engenho do género. O feito está por provar, recorda o director do Programa de Informação Nuclear da Federação Americana de Cientistas, Hans Kristensen. “Fazer algo deste tipo implicará mais testes nucleares”, diz. “A vantagem de uma ogiva termonuclear é que tem maior poder destrutivo com menor peso.”

Choi Jin-wook, especialista sul-coreano, também acredita que será necessário um sexto teste nuclear para que seja possível desenvolver um ICBM com capacidades nucleares. “A ogiva terá de ser pequena e leve, mas a Coreia do Norte não parece ter a tecnologia necessária”, afirma.

Apesar de prometer que tudo fará para a manutenção da paz na península, a Coreia do Sul avisou que a colocação, pelo Norte, de uma ogiva nuclear num ICBM será “pisar uma linha vermelha”. Os Estados Unidos foram mais gráficos na ameaça que fizeram a um eventual ataque do regime de Kim Jong-un.

Sem movimentações

Tratando-se de um regime muito isolado do qual pouco se sabe, as respostas à pergunta “o que vem a seguir” são, por norma, pouco mais do que hipóteses. Ainda assim, poder-se-á dizer que o tempo que Kim Jong-un procura agora ganhar, depois da violência verbal da semana passada com Washington, estará relacionado com a necessidade de não antagonizar totalmente a China. As últimas sanções das Nações Unidas também não terão deixado Pyongyang com desejos de mais punições.

Fonte do exército norte-americano, que pediu à Reuters para não ser identificada, contou que costuma ser observada, com alguma regularidade, actividade em Punggye-ri, o local dos testes nucleares da Coreia do Norte. Mas há já mais de um mês que não se registam movimentos e não há sinais da iminência de um teste.

Além de ter de fazer uma bomba de hidrogénio em miniatura, alguns peritos indicam que os cientistas de Kim Jong-un precisam ainda de desenvolver tecnologia que proteja a ogiva do imenso calor e pressão à reentrada na atmosfera, depois de um lançamento intercontinental.

A Coreia do Sul acredita que os vizinhos do Norte precisam, pelo menos, de mais um ou dois anos para obterem este tipo de tecnologia. Especialistas dos Estados Unidos subscrevem este prazo.

20 Ago 2017

Joaquim Furtado | Jornalista de visita a Macau no âmbito do mês de Portugal

A autoria da série documental que retrata os conflitos coloniais portugueses foi um marco na comunicação portuguesa que permitiu fazer a catarse de um dos maiores traumas históricos do passado século: as guerras coloniais. Com esse trabalho em perspectiva, Joaquim Furtado fala hoje num seminário no Consulado-Geral de Macau, no âmbito da comemoração do mês de Portugal
Joaquim Furtado

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] psique portuguesa lida mal com os traumas que vai enfrentando, tende a recalcá-los para um plano invisível. Como dizia José Gil em “Portugal, Hoje – O Medo de Existir”, há uma auto-repressão dos factos históricos de difícil digestão, que os agiganta.

A catarse nacional é um feito que a série documental “A Guerra”, da autoria de Joaquim Furtado, trouxe à consciência colectiva portuguesa.

A série documental, transmitida pela RTP e que foi publicada este ano em DVD, conta ao longo de 42 episódios a história das várias guerras coloniais que Portugal travou antes da chegada da democracia. “A Guerra” é um documento histórico que colocou o país no divã de psicanálise para, finalmente, escalpelizar os conflitos em África. Como diria José Gil, para registar a história.

“É bom que as pessoas tenham memória daquilo que foi o seu passado. Até 2007, a guerra ficou numa espécie de limbo, não se discutia, era um trauma”, contextualiza Joaquim Furtado. Há uma enorme dificuldade em verbalizar o que se tinha passado nas antigas colónias portuguesas, em processar os excessos e a barbárie que se passou. “Houve um espectador que me mandou um email a dizer que a série estava a permitir que fizesse um luto, que não tinha sido possível fazer até àquela data”, acrescentou o jornalista.

Também lhe aconteceu em conversas com ex-combatentes aparecerem-lhe militares que confessavam que “iam falar, pela primeira vez”, sobre as suas experiências na guerra. Ver outros combatentes a discorrer abertamente, no ecrã, sobre episódios da luta armada, estimulou outros a fazê-lo, a enfrentarem o passado.

Apesar de haver literatura sobre o assunto, o tema nunca tinha sido tratado em televisão com a profundidade e o contexto da série de Joaquim Furtado.

O processo

A guerra colonial foi um dos maiores acontecimentos da história portuguesa recente. O jornalista deparou-se com magnitude dos conflitos em termos de importância, uma dimensão histórica que não era acompanhada de conhecimento dos portugueses. Outro dos factores que o fez pegar no assunto foi a percepção de que a sua “geração tinha de fazer um trabalho sobre a guerra”.

Guerra do Ultramar

A luta armada no Ultramar teve implicações enormes para o destino de Portugal. “Desde logo, deu origem ao 25 de Abril, por outro lado teve muita importância para as famílias, vitimando muitas delas”, comenta o repórter. A guerra teve, portanto, repercussões que se sentem ainda hoje e essa foi a razão pela qual Joaquim Furtado decidiu abraçar este projecto, dando-lhe a capacidade de difusão que só o poder da televisão consegue alcançar.

Obviamente que um trabalho desta envergadura demorou anos a ser preparado, com mais de três centenas de entrevistas, muitas delas não gravadas, e o visionamento de incontáveis horas de imagens de arquivo. Apesar do volume de trabalho, o projecto foi “extremamente estimulante do ponto de vista estritamente profissional”, conta Joaquim Furtado, que venceu com “A Guerra” o Prémio Gazeta 2007, atribuído pelo Clube de Jornalistas.

Como tal, foi fundamental a “compreensão da RTP que deu margem de espaço e tempo” para a realização da série. O repórter acrescenta que este tipo de trabalho só poderia ser feito no âmbito do serviço público, o que não significa que tenha tido ao seu dispor uma vasta equipa técnica. Porém, apesar dos recursos escassos, o jornalista teve durante vários anos um editor de imagem disponível para acompanhar o trabalho.

Ainda assim, a série cresceu muito em torno do seu autor. Havia muitas pessoas para encontrar a partir de imagens de arquivo visionadas, assim como tentar encontrar nesse acervo de vídeo pessoas que tinham sido por si entrevistadas. Essa foi uma das partes apaixonantes do projecto, mas também mais morosa.

Além disso, o jornalista foi meticuloso no momento de ilustrar as histórias que se propunha contar. “Foi difícil fazer a identificação real de cada imagem, perceber o que cada pedaço de filme representava no contexto da guerra”, conta. Essa foi uma das preocupações de Joaquim Furtado, usar as imagens do lugar e do tempo que correspondiam à narrativa contada. “Nunca usei imagens de Guiné em Angola, nem de Angola em Moçambique, também não usei imagens captadas em 1962 para ilustrar uma informação sobre do ano posterior”, revela. O jornalista procurou sempre manter uma relação de fidelidade entre a história e as imagens que a pintavam, até porque com o desenrolar da guerra as armas passaram a ser outras, os uniformes mudaram e o rigor jornalístico tinha de acompanhar esta evolução histórica.

Outras das preocupações de Joaquim Furtado foi não repetir planos e não dar demasiada ênfase à sonoplastia.

Várias guerras

Um dos desafios iniciais foi encontrar um conceito para a série, uma vez que os conflitos armados nas ex-colónias portuguesas se revestem de características diferentes consoante quem conta a história. Daí a divisão das séries em “Guerra do Ultramar”, “Guerra Colonial” e “Guerra de Libertação”.

“O universo das pessoas que ouvi e das pessoas que estiveram ligadas à guerra utilizavam designações diferentes”, adianta o repórter. “Guerra do Ultramar era a designação política oficial do Governo português e da maioria dos militares que eram mobilizados”, conta. Esta era a expressão usada pelo regime de Salazar junto da comunidade internacional para transmitir a ideia de que estas zonas eram províncias ultramarinas, parte integrante do território português, ou seja, que não eram colónias.

“Guerra de Libertação” era o termo usado pelos guerrilheiros. A expressão “Guerra Colonial era a expressão usada por aqueles que eram politicamente contra a guerra, por quem desertava”, adianta.

Esta não é a primeira vez que o jornalista visita Macau. Joaquim Furtado esteve no território pela primeira vez em 1979, a fim de fazer uma reportagem sobre Macau para a RTP. Porém, essa reportagem não resultou em nada, uma vez que “as imagens recolhidas, na altura em filme, chegaram a Portugal deterioradas”. Uma pena, uma vez que, de acordo com o jornalista, Macau era muito pouco conhecido pelos portugueses. “Ainda hoje penso que é”, acrescenta o repórter que voltaria ao território em 1994 para fazer uma acção de formação aos jornalistas da TDM.

“Se perguntar a um português médio o que é Macau, ele tem dificuldade em dizer, em fazer um retrato mínimo do território”, acrescenta Joaquim Furtado. O repórter não acredita que isso signifique que as pessoas estejam, necessariamente, de costas voltadas para os territórios com ligações históricas a Portugal, nem que seja, tampouco, um fenómeno exclusivamente português.

“Se calhar, se formos a Inglaterra fazer perguntas sobre Gibraltar as pessoas podem também não saber grande coisa”, explica. É uma questão de informação, neste caso de falta dela. Aliás, Joaquim Furtado acrescenta mesmo que em Portugal, no continente, “as pessoas estão muito mal informadas sobre o que se passa nos Açores”.

Para já, o jornalista pretende voltar a pegar no fio onde terminou a meada de “A Guerra”. Joaquim Furtado prepara-se para deitar unhas ao período imediatamente após o 25 de Abril, até à independência das colónias.

“Esse período é curto, mas riquíssimo em história e em episódios que estão testemunhados em livros, mas em televisão esse trabalho não foi feito”, explica.

Joaquim Furtado pretende relatar a forma como a guerra continuou, o fenómeno dos retornados “que tiveram de sair desses territórios em condições muito difíceis”, assim como retratar as negociações das independências.

“Gostava de dar forma a estes acontecimentos, dar-lhes contexto e fazer o quadro do que se passou”, comenta o jornalista, após uma sessão de esclarecimentos sobre a guerra perante uma plateia de alunos da Escola Portuguesa de Macau.

O jornalista respondeu às dúvidas dos estudantes, com a mesma voz serena com que leu um comunicado, aos microfones do Rádio Clube, de um grupo de militares revoltosos numa madrugada de Abril de 1974.

13 Jun 2017

José Manuel Rosendo, repórter: “O jornalista não é um vendedor de sabonetes”

Porque não se trata de oferecer às pessoas os aromas que elas querem, os jornalistas não estão hoje a fazer o que devem. Faltam recursos, investimento, opções editoriais que permitam os caminhos certos a quem tem a informação como profissão. José Manuel Rosendo, jornalista da Antena 1, tem a carreira marcada pelos cenários de conflito, pelo Médio Oriente que aprendeu a conhecer nas piores circunstâncias. Uma conversa sobre a guerra, as ideias feitas que é preciso combater e a atenção que não se dá ao mundo

[dropcap]C[/dropcap]omo é que aconteceu fazer reportagem de guerra? Como é que a oportunidade surgiu?
Lembro-me muito bem. O nosso saudoso Luís Ochoa passou por mim na redacção e perguntou-me se eu queria ir até ao Afeganistão. Não estava minimamente à espera, mas disse que sim. Acabei por não ir dessa vez. Isto foi em 2001, logo a seguir ao 11 de Setembro. A oportunidade voltou a surgir em 2003, com a invasão do Iraque. Aí, a Antena 1 enviou um jornalista para o Iraque e havia a possibilidade de entrarem tropas no país através da fronteira com a Turquia. E eu fui, nessa perspectiva, que acabou por não se concretizar, porque a Turquia não abriu a fronteira e, portanto, por ali não houve invasão terrestre, apenas permitiram que o espaço aéreo fosse utilizado. Confesso que fiquei um bocado frustrado. Ninguém passou, ficámos todos na zona turca. Acabei por ir lá quando soube que a GNR ia para o Iraque. Fiz a proposta de ir ver para onde é que a GNR ia, fomos lá fazer reportagem, em Nassíria. Depois, como já lá tinha estado, quando a GNR foi mesmo para o Iraque, fui eu também. A partir daí, fica aquele bichinho, não pela guerra, mas por tratar aquele tipo de informação, aquela área do mundo. Tinha uma noção da importância do Médio Oriente, mas essa noção cresceu muito a partir do momento em que comecei a acompanhar e a perceber que é uma coisa central em termos de política internacional, e é uma zona permanentemente em conflito.

“Quem vai fazer este tipo de reportagem não se pode queixar. E dormir no chão também não é nada do outro mundo. Já sabemos como é.”

É uma zona também complicada de compreender. Há o obstáculo da língua, as características culturais e políticas são muito diferentes das nossas. Como é que se ultrapassa tudo isto?
É curioso e, às vezes não temos noção disso, que o chamado Ocidente começou por ser ali. O Ocidente, há uns milhares de anos, era ali, na zona do Crescente Fértil, aquela zona que vai do Líbano, passa pelo norte do Iraque, pela Síria, pelo sudeste da Turquia, até pelo Irão. Aí era o Ocidente, em contraponto ao Oriente, que era na China, na zona do Rio Amarelo. Os povos começaram a deslocar-se para a Europa e o Ocidente é aquilo que hoje sabemos. Acho que é preciso ler muito, estudar muito. Para entender o Médio Oriente é preciso, sobretudo, tentar escapar a alguns conceitos que estão enraizados e que não correspondem à realidade. À medida que vamos conhecendo o terreno, percebemos que há conceitos que interiorizámos – não todos, obviamente – que são retratos distorcidos da realidade. A realidade é diferente.

Nomeadamente na relação com a religião.
Sim. Na maior parte daqueles países, o Islão é um pilar central da vida das pessoas. Mas não faz delas radicais, nem extremistas – não tem nada que ver uma coisa com a outra. Os povos árabes são como outros povos quaisquer, onde há pessoas más e pessoas boas, onde há pessoas radicais e outras mais ponderadas. Agora, como é uma região em permanente ebulição, que tem fronteiras artificiais, rica em recursos, onde meia dúzia de décadas em termos históricos não é nada – portanto, até há pouco tempo estava uma região colonizada –, tudo isso contribui para que haja até agora um conflito quase permanente naquela zona. E depois há a interferência externa que dificulta ainda mais as coisas.

Para o Ocidente mais a Ocidente, até há poucos anos o Médio Oriente era um problema que não lhe dizia respeito. De repente, com as alterações políticas, a guerra, as vagas de refugiados, o Médio Oriente foi bater à porta das pessoas de outra maneira. O desconhecimento é o principal problema em relação à integração de refugiados?
Acho que sim. É uma parte do problema que, se calhar, é potenciada pela situação financeira que a Europa atravessa. Mas, se os refugiados estão agora a bater à porta da Europa, a Europa bateu durante muito tempo à porta dos países onde estas pessoas viviam. Essa é que é a questão. O Médio Oriente era uma questão de segunda linha em termos de actualidade. Era lá longe. De repente, percebemos que não é bem assim. Aliás, sobretudo os países do Sul da Europa deviam olhar com mais atenção para todo o Mediterrâneo. Neste momento, a política externa da União Europeia (UE) é uma coisa que ninguém sabe muito bem o que é, não se dá a devida atenção à questão do Mediterrâneo mas, de facto, é a nossa vizinhança próxima. Estamos mais próximos dos nossos vizinhos africanos do que do Norte da Europa. Também entendo que os países do Norte da Europa não tenham grande apetência por discutir os assuntos do Mediterrâneo. Isto é um dilema no qual a UE está envolvida, não sei como se poderá resolvê-lo, e é mau que tenham de se tomar decisões sobre pressão – nomeadamente por causa dos refugiados – não havendo uma política externa já definida para estabelecer uma relação com estes países que são a nossa vizinhança. A geografia é uma coisa à qual não se pode fugir: por muito que nós queiramos, não mudamos isso. Portanto, há que encontrar formas de estabelecer um relacionamento que seja bom para todas as partes. Tem de se encontrar esse ponto comum.

Até que ponto deverá ser uma preocupação dos jornalistas, e de quem tem um conhecimento maior em relação ao Médio Oriente, ter um papel de sensibilização – diria até pedagógico, se quisermos – para que a integração dos refugiados em Portugal seja bem-sucedida? O jornalismo deve ter este papel de garantir que as pessoas têm acesso ao quadro todo.
Sim. Mesmo que não seja com o objectivo pedagógico, o facto de divulgarmos informação correcta, de aprofundarmos os problemas, de darmos contexto às pessoas, isso faz com que, de facto, resulte numa atitude pedagógica em relação aos problemas. E acho que devemos fazer isso, dar a conhecer, informar, relatar com o máximo rigor, fugindo aos tais conceitos, aos lugares-comuns. Mas é preciso ter espaço para isso.

“Tento fazer sempre reportagem com pessoas lá dentro. Não é aquela reportagem que recorra muito a fontes políticas ou militares.”

E há espaço?
Não há espaço suficiente, sobretudo em Portugal, o que tenho dificuldade em perceber. Temos três canais nacionais de televisão, 24 sobre 24 horas. Temos rádios nacionais. Perdemos horas e horas e horas a falar sobre futebol. Debates de gente sentada, a discutir se foi penálti ou fora de jogo, e com as imagens do respectivo jogo a andarem para trás, para a frente, para trás, para a frente. Perdemos horas. Bastava que se desse uma horinha por semana a estas questões – e não digo para falar apenas do Médio Oriente, estamos completamente afastados daquilo que se passa na Ucrânia, que é à porta da Europa. Se, neste momento, fizéssemos um inquérito e perguntássemos o que é que se passa, por exemplo, na Holanda, em termos de eleições, ou o que se passa na Alemanha, as pessoas não sabem. Pura e simplesmente não sabem, porque nós temos uma informação que mantém em agenda determinados assuntos – e não digo que não sejam assunto, continuam a ser, mas são mastigados e remastigados. Se há uma coisinha nova, para se dar esse acrescento de informação vai buscar-se tudo o resto, constrói-se ali uma novela e lá vão dez minutos ou um quarto de hora de telejornal com aquilo. No dia seguinte, a história repete-se. Isto é muito complicado. Não sei como é que se dá a volta a isto. Dá-se a volta havendo vontade editorial, mas depois não há pessoas. Estamos numa situação complicadíssima.

Voltando à guerra. Vários países percorridos, muitas situações complicadas. Para quem não é jornalista, como é chegar de repente, com uma equipa pequena – ou sozinho – a um cenário de guerra, recolher informação e passá-la de uma forma que, ainda por cima, não é visível, atendendo a que trabalha sobretudo na rádio? Como é que se conta essa guerra?
A maior parte das vezes vou sozinho, sem mais ninguém. Só para ter uma ideia, recordo-me, por exemplo, de ver a CNN alugar um piso de hotel. Chegam lá e alugam um piso inteiro: produtores, jornalistas, câmaras, motoristas, segurança, tradutor. Em 2011, Kadhafi foge de Trípoli, entrámos na cidade e os hotéis estavam fechados, porque a maior parte dos trabalhadores eram imigrantes dos países ali à volta e tinham fugido. Como caíram lá os jornalistas todos, reabriram à pressa dois ou três hotéis. Esperámos na recepção, deitados no chão, que nos dessem a chave do quarto. Esse hotel tinha um jardinzinho que era o único sítio onde se conseguia ligar o satélite. Recordo-me de ver a equipa da Al Jazeera, de manhã, a fazer os briefings, e eram mais de 20 pessoas. E isto só em Trípoli, não contando com os que já estavam na rua. Isto dá uma ideia da dimensão. Quem vai sozinho faz passo a passo. Somam-se contactos, conhecem-se fixers [locais que ajudam os correspondentes estrangeiros], vai-se tendo referências, e é com isso que se consegue trabalhar. Depois, tento fazer sempre reportagem com pessoas lá dentro. Não é aquela reportagem que recorra muito a fontes políticas ou militares, sobretudo em termos de informação pura e dura – acho que a maior parte das vezes somos enganados nesse tipo de coisas. Aquilo é de uma riqueza informativa tal que as histórias quase que vêm ter connosco, muitas vezes. Temos de ter os sentidos despertos para perceber, quando vamos a passar, onde é que está a história, e para perceber o ângulo. Depois, tem de se cuidar de tudo: os países em guerra funcionam de uma forma anárquica, os serviços não funcionam, a maior parte das vezes é preciso recorrer ao mercado negro para arranjar combustível, tenho de me preocupar com o carro, com o guia, com o tradutor, com as comunicações, com a alimentação, com o sítio onde vou dormir. Mas quem vai fazer este tipo de reportagem não se pode queixar, isto não é uma lamúria. E dormir no chão também não é nada do outro mundo. Já sabemos como é.

Das muitas histórias que guardou, alguma que o tenha marcado particularmente?
Há histórias. Há a de um camarada que depois morreu, e isso mexe um bocadinho connosco. Mas há histórias… Lembro-me que, no Líbano, tinha estado em Beirute e depois houve um dia em que decidimos ir para a sul, para a zona mais Hezbollah. Telefonaram-me da rádio a dizer que Israel tinha acabado de bombardear Qana e as agências estavam a dizer que foi um morticínio. Íamos a meio do caminho, fizemos um desvio e fomos para Qana. Israel bombardeou e atingiu um edifício que abateu, as pessoas tinham-se refugiado na cave, morreram lá em baixo, e muitas eram crianças. Quando cheguei lá, parámos e uma série de pessoas apareceu à volta do carro. Agarraram-me e percebi que me queriam mostrar qualquer coisa. Levaram-me para junto de uma carrinha, abriram as portas de trás e eram só corpos de crianças. Estavam as equipas de socorro a tirar as crianças lá de baixo, e adultos também. É uma imagem que fica.

Como é que se lida com esse contacto com a morte? Presumo que a primeira vez seja muito complicada.
É. Mas às vezes nem é preciso chegar à morte. Aconteceu-me agora no Iraque, da última vez que lá estive. A minha primeira preocupação é o som, obviamente, mas também faço fotografia, mas para mim. Quando percebo que tenho ali um espaço faço umas fotografias. Estava numa zona, à entrada de Mossul, que era o primeiro posto da frente para onde eram transportadas as pessoas feridas nos combates. Era um corrupio brutal. Uns chegavam mortos, crianças, adultos, velhos. E eu estava ali a fazer fotografias daquele movimento. As pessoas que estavam ali, os militares, não tinham meios. Não se podia chamar hospital àquilo – era uma vivenda, com umas macas. Quando enchia – o fluxo era grande –, começavam a pôr as macas cá fora, na rua, no meio do pó. Às tantas chega um miúdo, que devia ter uns nove ou 10 anos, que vinha ferido, ensanguentado. Deitam o miúdo na maca, o médico põe-lhe a faca nas calças e abre. Quando vou a fazer a fotografia, vi que o joelho praticamente tinha desaparecido. Acho que foi a primeira vez que não fui capaz. Talvez por ter um filho daquela idade, naquele momento houve ali um clique, virei a cara e fui embora. Não sei porquê. Sabemos que na guerra morrem pessoas, que há bombardeamentos e que vamos encontrar pessoas mortas, inconscientemente até já vamos preparados para isso, mas, de facto, naquele momento, virei a cara. Se calhar fui mau jornalista na altura, não faço ideia. Passado um bocado voltei, mas aquela imagem daquele miúdo, ferido daquela forma… Não consegui.

“Para entender o Médio Oriente é preciso, sobretudo, tentar escapar a alguns conceitos que estão enraizados e que não correspondem à realidade.”

E voltar ao dia-a-dia de uma redacção, dos assuntos que, de repente, perdem toda a importância?
Isso é que é uma chatice, porque voltas, chegas à redacção e dizes “não se passa nada”. Começas a olhar para os assuntos e pensas “mas que importância é que isto tem?”. Essa é a parte mais difícil, retomar o ritmo da informação diária, corriqueira, ainda por cima porque valorizamos muito a trica política. Gosto muito de política, a grande política – as políticas de desenvolvimento, de educação, esses temas fortes que devem ser debatidos com profundidade e agarrados com unhas e dentes – mas detesto a trica política, que não leva a lado algum. Passamos a vida com um que diz que o outro acordou mal disposto e depois vamos ouvir o que foi acusado de ter acordado mal disposto. Chegamos ao fim do dia, esprememos esta informação e vemos o que tivemos aqui: nada, na maior parte dos casos. Essa trica política faz parte do marketing político e deixamo-nos ir atrás dela. Se calhar é por isso que as pessoas se afastam um bocadinho de nós, e deixam de ler, de ouvir e de ver televisão, porque estão fartas. Não estamos a ser capazes de dar às pessoas aquilo que é realmente importante.

Há vontade de voltar à guerra?
Não digo voltar à guerra, mas vontade de voltar ao Médio Oriente, sim. Ninguém sabe muito bem o que vai por ali acontecer, há muito tempo que se fala na necessidade ou até na inevitabilidade de se redesenharem as fronteiras no Médio Oriente. No Iraque, vamos ver o que vai acontecer em Mossul. Não sei até que ponto continuará a ser como o conhecemos até 2003. Não sei se a Síria vai continuar a ser com as fronteiras que tinha até agora, há ali um problema entre xiitas e sunitas que não sei como vai acabar. Temos a Rússia agora metida em força na região, os Estados Unidos dão sinais de querer regressar, depois de Obama ter tido uma política em que passou a questão do Médio Oriente para segundo plano. É um tempo de expectativa e é preciso voltar lá, perceber o que está acontecer. Mas enquanto tivermos estas opções editoriais e esta falta de recursos… É preciso investimento na informação porque, se não há recursos, não há retorno financeiro, e então corta-se. Passado um tempo, os recursos são ainda menos, o retorno é ainda menos, e corta-se de novo. É o caminho para o abismo. Também é importante que quem invista na informação não veja nela um pote de rebuçados ou de sabonetes. A informação não é isso, é outra coisa. Houve alguém que disse, aqui há uns tempos, que deixámos de dar às pessoas o que é importante e passámos a dar aquilo que elas querem. Pronto, acabou. Isto é o inverso do que devia ser o jornalismo; é o vendedor de sabonetes, que dá à pessoa o sabonete com o aroma que ela quer.

16 Mar 2017

Índice Global da Paz mostra que mundo está cada vez menos pacífico

O planeta é um sítio cada vez menos pacífico. O Índice Global da Paz demonstra que não vamos pelo melhor caminho. O terrorismo e a instabilidade política são os grandes culpados da deterioração do panorama geral

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] mundo não vai bem. É esta a principal conclusão a retirar do Índice Global da Paz (IGP) de 2016, divulgado agora pelo Instituto para a Economia e Paz, um think-tank independente que analisa a situação mundial há uma década. “Os níveis globais de paz continuam a deteriorar-se, com um fosso cada vez maior entre os países mais e menos pacíficos”, escrevem os autores do relatório.

“Enquanto as nações mais pacíficas atingiram níveis históricos de paz, aquelas que não o eram tornaram-se ainda menos”, aponta o think-tank.

A internacionalização dos conflitos no Norte de África levou ao envolvimento de um número cada vez maior de países financiadores de operações da manutenção da paz. O IGP de 2016 conclui ainda que as operações levadas a cabo pelas Nações Unidas têm vindo a melhorar e, nos últimos três anos, os gastos militares desceram ao nível mundial.

No entanto, a situação no Norte de África “coloca em destaque a internacionalização dos conflitos modernos”, uma vez que “países a milhares de quilómetros de distância são afectados pelas vagas de refugiados que fogem da guerra”.

Em termos quantitativos, o estudo vinca que, em relação a 2015, o mundo tornou-se 0,53 por cento menos pacífico. Traduzindo a desigualdade entre países, 81 nações obtiveram melhores classificações nos critérios estudados, com 79 países a mostrarem piores notas nos indicadores em análise. “Como a dimensão da deterioração foi maior do que as melhorias, assistiu-se a uma diminuição da média destes países”, contextualiza o relatório.

A resistência europeia

O IPG é composto por 23 indicadores qualitativos e quantitativos, e as fontes utilizadas são “altamente respeitáveis”, garante a entidade responsável pela análise. Ao todo, foram avaliados 163 estados independentes e territórios, ou seja, 99,7 por cento da população mundial.

Dois dos principais indicadores pioraram, e muito, no ano passado: o impacto do terrorismo e a instabilidade política. As mortes causadas por actos extremistas aumentaram 80 por cento em relação a 2015 e apenas 69 países não foram palco de atentados terroristas. Houve 11 nações em que estas acções fizeram mais de 500 mortos – no ano anterior, tinham sido apenas seis as jurisdições a ultrapassar este número.

Quanto à instabilidade política, sentiu-se um pouco por todas as regiões. O IPG dá como exemplos os lusófonos Guiné-Bissau e Brasil, a Polónia, o Djibuti, o Burundi e o Cazaquistão.

A Islândia é, de novo, o país com a paz mais consolidada, seguindo-se a Dinamarca, a Áustria e a Nova Zelândia. Portugal encontra-se em quinto lugar, tendo subido nove posições desde 2015. No extremo da tabela, encontra-se, sem surpresa, a Síria. A lista das cinco nações onde os conflitos são mais difíceis completa-se com o Sudão do Sul, o Iraque, o Afeganistão e a Somália.

A Europa continua a ser a região mais pacífica do mundo, mas a média dos indicadores registou uma ligeira descida. Esta quebra é justificada com o impacto do terrorismo no continente – os ataques em Paris e em Bruxelas –, bem como a escalada da violência e a instabilidade política na Turquia, com relações difíceis com os seus vizinhos.

As melhorias mais significativas verificaram-se na América Central e nas Caraíbas. Tanto a América do Norte, como a América do Sul também apresentaram resultados mais positivos no ano passado. Por outro lado, o Norte de África é o ponto do planeta que mais preocupa. A África Subsariana também piorou em termos de paz.

Por aqui tudo na mesma

A China é apresentada no IGP no lugar 120 da tabela, apresentando um “estado de paz médio”. Fica muito aquém do Japão, que se encontra na nona posição, ou de Singapura, que surge no 20.o posto.

A Ásia-Pacífico obteve a terceira posição no ranking das regiões. “O nível de paz manteve-se, em termos gerais, o mesmo de 2015”, lê-se no relatório. Alguns países estão, no entanto, melhor: Indonésia, Timor-Leste, Myanmar e Tailândia.

“As tensões no Mar do Sul da China vão continuar a ter impacto nas relações externas das três nações envolvidas, a China, o Vietname e as Filipinas. No entanto, apesar de ser elevada a hipótese de escaramuças nas águas disputadas, continua a ser improvável um conflito militar de grande escala”, indica o IGP.

No plano negativo, o relatório destaca a situação política no Camboja, com o desentendimento entre os dois principais partidos, prevendo um ano complicado em Phnom Penh. O think-tank não tem dúvidas de que “vai continuar a subir o número de pessoas detidas sem qualquer justificação”.

As modestas melhorias assinaladas na Tailândia têm quer ver com os esforços feitos sobretudo com o Camboja, um rival de longa data. A paz doméstica permanece instável, uma vez que se trata de uma condição forçada pela junta militar no poder.

Nota ainda para o Myanmar, onde se alcançaram progressos significativos em termos de estabilidade política, “o que faz com que o risco de conflito esteja agora restringido a pequenas partes das zonas fronteiriças do país”. O relatório não faz referência à situação da minoria étnica muçulmana rohingya.

A Nova Zelândia, o Japão e a Austrália são os países com melhores indicadores de paz.

O exemplo Portugal

Dos sete países onde a paz está mais enraizada, seis são europeus. O IGP faz uma referência especial a Portugal que, no contexto europeu, foi a nação que mais evoluiu nesta matéria. Os autores do documento explicam que Lisboa obteve bons resultados no regresso gradual à normalidade política, depois do processo de ajustamento financeiro e económico do Fundo Monetário Internacional e da União Europeia.

“Não obstante as dificuldades encontradas pelo Governo de esquerda eleito em 2015, Portugal registou o segundo ano de melhorias em várias dimensões, especialmente em indicadores como a probabilidade de manifestações violentas, na instabilidade política e na escala do terror político”, aponta-se. A situação em Lisboa é, para o IGP, bastante melhor do que a verificada noutros países europeus que também foram alvo de resgates.

No grupo dos maus alunos sobressai a Turquia, país da Europa onde se registou o maior nível de deterioração em 2016.

Em França, o ano passado decorreu no rescaldo dos ataques terroristas de Novembro de 2015, encontrando-se agora na 46.a posição, um posto abaixo do ranking anterior. A Bélgica caiu três lugares (18.o), consequência da degradação dos indicadores que medem o impacto do terrorismo e o nível de percepção da criminalidade na sociedade.

As médias de dois dos maiores países europeus – França e Reino Unido – são ainda prejudicadas por obterem classificações muito baixas nos indicadores relativos à paz externa, “em linha com a estratégia militar adoptada nos últimos anos”.

O que está pior

A situação no Médio Oriente e no Norte de África já era má, mas no ano passado conseguiu ser ainda pior, com os conflitos na Síria e no Iémen a tornarem-se cada vez mais complicados.

Sobre o Iémen, o IGP explica que a guerra civil, que teve início em 2015, agravou-se de forma significativa, com um maior número de mortes, um enorme aumento de refugiados e pessoas deslocadas interinamente, e ataques terroristas de vários grupos extremistas. O quadro do país tem tido repercussões nos estados vizinhos.

Quanto à Síria, o documento faz referência à presença cada vez maior de poderes estrangeiros no conflito que fez milhares de mortos – entre 250 mil a 470 mil.

Apesar deste cenário complicado, há jurisdições da região que têm conseguido escapar à tendência negativa: o Sudão, o Irão e Omã conseguiram resultados melhores do que em 2015.

7 Fev 2017

Para que serve um exército

29/11/2016

[dropcap]T[/dropcap]itula-se, no matutino O País, de Maputo: «Nakume (o Ministro da Defesa) ameaça de demissão comandantes que falharem metas», e lê-se no seguimento: «Ministro da Defesa quer que todos os ramos e unidades militares produzam comida para fazer face à crise que o país atravessa. Os comandantes que falharem estas metas devem colocar o seu lugar à disposição». Vejo por uma vez que os militares podem ser realmente úteis, num país esfacelado por uma guerra civil estúpida e cretina.

Raras vezes percebi a utilidade e a necessidade absoluta dos exércitos.

Quando Xerxes invadiu a Grécia com um exército tão grande que secava os rios à passagem (e é indubitavelmente uma coisa que assombra: um exército tão grande que sorva os rios por inteiro), Esparta mandou contra ele um primeiro (pequeno) contingente de 300 homens, que travaram os persas em Termópilas – aí percebe-se a absoluta necessidade de um exército. O mundo de hoje seria muito pior e mais triste se Xerxes tivesse vencido; os déspotas demoram sempre mais tempo a morrer que os liberais, é uma verdade dramática.

A existência de Hitler tornou evidentemente obrigatória a existência de exércitos, ou nacionais ou em coligação, que degolassem o perigo do fascismo.

Portanto, há causas e causas. Mas em setenta por cento dos casos não é assim.

Agora, para que quer Portugal um exército, com aquele “volume”? Para se defender de quê? Que proveito tem um país tão pequeno e dependente em ter um exército que lhe devora uma fatia substancial do bolo que devia ser gasto em cultura, em bibliotecas, em educação, numa melhor distribuição social? Claro que há compromissos internacionais a respeitar, mas à tal Europa cínica e estritamente económica não deviam os pequenos países entregar a factura pela obrigação de estarem envolvidos em compromissos que lhes exigem um dispêndio desproporcional em relação às suas pequenas economias?

E a questão é:

Quantas consultas em oncologia custa uma bazuca?

Quantos ginásios custa um submarino?

Quantas bolsas de estudo se pagavam com um tanque?

Quantos carros de bombeiros se pagavam com um avião de combate?

Quantas peças de teatro custa um simples Tatoo Militar?

Não quero ser mal interpretado, mas constato que ou as mulheres portuguesas e moçambicanas não sabem onde têm a cabeça, ou não têm lido muito. Pelo menos não têm lido a Lisístrata, do Aristófanes.

É uma simples história de mobilização das mulheres contra o prolongamento da guerra do Peloponeso, que, face à teimosia dos homens em mantê-la, impulsionadas pela lucidez de Lisístrata, fazem uma letal greve de sexo. A guerra não durou muito mais!

Aí está uma forma clara de atenuar as dívidas portuguesa e moçambicana: enquanto Portugal e Moçambique mantiverem um exército desproporcionado para as suas reais necessidades, as mulheres deviam vestir as calças quando fossem para a cama. Convictamente: calças sem fecho-éclair.

Ao fim de três meses julgo que teríamos os militares de gatas, voluntariamente, a pedir demissão.

Isto também vale para a posse das armas. PISTOLA EM CASA: PERNAS CRUZADAS!

Se a boa metade da humanidade, tomando o exemplo de Lisístrata, fizesse o seu trabalho e não caísse na ladainha de um mundo congeminado pelo imaginário masculino haveria menos escolas ameaçadas por fanáticos.

Eia as palavras de ordem que escolheria para uma campanhia anti-bélica: « Minha amiga: acorde a Lisístrata que há em si! Time out: pernas cruzadas, mulheres do meu país. É o futuro que está em jogo, não o engravide!». Mas nunca me perguntam a opinião! E as mulheres, de facto, não têm feito o seu trabalho.

As mulheres na Líbia eram mais voluntárias. Só que em sentido contrário. Ao Kadhafi, sempre invejei os penteados e a guarda-pessoal de moçoilas. E elas disputavam a primazia de fazerem parte da Guarda de Honra de Kadhafi.

Depois do Kadhafi ter sido despachado como foi, acidentalmente (nunca soube como se produziu esta maravilha), recebi este mail:

«Saheera Mohamed Jamila, de 26 anos, virgem, 1,85 m, versada nas técnicas de tortura suava e mandarim, cinturão negro quarto dan em karaté-suc, especialista em estrangulamentos com arame, c/ nano pistola-metralhadora hk mp5 dissimulada nas axilas, carta para pesados e para merkava 3, patton M47, m-60, Leopard, domínio de quatro línguas europeias, para além do árabe, do swaali e do chinês, expert em amaciar detractores com uma culinária alucinogénica, ex-membro do body guard de Kadhafi, a quem partia as nozes; com carta de recomendação de Berlusconi, amiga de Mugabe, procura emprego compatível, de preferência a sul do Sahara, em país laico e firme em aplicar as leis e a sua defesa e dá desconto nos primeiros três meses de serviço».

Virgem? Hum. Mas, confesso que fiquei agitado. E por quê a mim, confessado pacifista? Com um remorso antecipado reencaminhei o mail para o Ministério da Defesa, espero que tenham dado provimento, é sempre triste ver alguém tão competente de mãos a abanar.

Porém ficam as perguntas: Quanto custa manter um exército? Desmantelar um exército sai mais caro que mantê-lo? É prioritário para Portugal, neste momento, manter um exército? Não é possível reconverter a indústria do armamento? De que dívidas se fala se não se tem a força moral de se abater nas balas para se injectar no crédito às pequenas e médias empresas? E em nome de quê as tão judicativas instâncias do mercado internacional, quando avaliam em recessão a economia de um país, não preconizam de imediato: querem crédito, abatam primeiro o exército?

Está para além do meu entendimento que depois de escolher a entropia um país peça emprestado para pagar o diligente serviço das carpideiras.

Todos os anos, pelo ano novo, cresce-me nas costas um bocado de asa e tenho de a meter para dentro, deve ser disso.

15 Dez 2016

Direitos Humanos | Crianças detidas às centenas em países com conflitos armados

São aos milhares e estão presas em diversos países, como o Afeganistão, a Síria, o Iraque e os EUA. Mas também as Filipinas e a Tailândia. Um relatório da Human Rights Watch dá conta de crianças detidas por serem consideradas ameaças à segurança nacional, serem suspeitas de participarem em actividades violentas ou por pertencerem a grupos armados

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]hama-se “Extreme Measures: Abuses against Children Detained as National Security Threats”. É o relatório mais recente da Human Rights Watch, foi ontem apresentado, e aponta para a existência de milhares de crianças presas em diversos países por serem consideradas ameaças à segurança nacional, serem suspeitas de participarem em actividades violentas ou por pertencerem a grupos armados. Afeganistão, Síria, Iraque e os EUA estão na lista, mas também as Filipinas e a Tailândia.
Grupos extremistas como o Boko Haram e o Estado Islâmico são parcialmente responsáveis pela situação. As crianças não escapam às mãos dos fanáticos, sendo vítimas de abusos, ou ocupando o papel de militantes. E o problema não pára aqui. “A preocupação e assistência que os governos dão às vítimas de abuso não se estende àquelas crianças apanhadas no lado errado da lei, ou na linha da frente”, nota o relatório. Especialmente em países em guerra ou em conflito armado, os mais novos são detidos e marcados com o carimbo de “ameaça à segurança nacional”. Muitas vezes com a ajuda da lei.
“Devido à ascensão das leis anti-terrorismo, as crianças são apreendidas, desde que estejam ligadas a grupos armados ou que sejam vistas como uma ameaça. São muitas vezes detidas sem qualquer acusação ou julgamento, durante meses ou anos.”
E a forma como são tratados não respeita os direitos humanos. A maioria das vezes não têm direito a advogados ou sequer a ver a família, não sendo presentes a um juiz em muitos dos casos. “Muitas foram sujeitas a interrogatórios e tortura e, em lugares como a Síria, muitas morreram enquanto detidas.”
As condições das detenções pioram com a falta de alimentos ou cuidados médicos. Muitas delas partilham celas demasiado cheias com adultos, correndo o risco de serem violentadas física e sexualmente.

Alertas que não chegam

A situação não é esquecida pelas Nações Unidas, com o secretário-geral, Ban Ki-moon a relembrar, pelo menos desde 2011, que o problema tem persistido e aumentado. Em 2014, entre 23 países em conflito armado, 17 reportaram detenções de crianças. Do Afeganistão ao Iraque, de Israel à Nigéria, da Somália à Síria, centenas de crianças são, diariamente, presas. Muitas delas, nota a Human Rights Watch, “são detidas sem qualquer base para suspeição, ou com provas muito ténues ou por estarem no meio de grupos terroristas que têm membros da sua família como soldados.”
O Comité para os Direitos das Crianças tem vindo a pedir aos países que evitem levar crianças à justiça, mas alguns países permitem que isso continue a acontecer até em tribunais marciais – onde, geralmente, não existe a separação de ofensores juvenis e adultos.
O relatório aponta para casos de tortura “outros actos cruéis e inumanos contra as crianças para que estas confessem crimes”, mas também para que possam ser extraídas informações secretas. Os testemunhos de crianças apontam para violência, choques eléctricos, nudez forçada, violação e execução. “Em algumas circunstâncias, as forças de segurança tendem a torturar mais facilmente crianças do que adultos.”

Síria

Desde o início de conflito em 2011 que as autoridades sírias detiveram “dezenas de milhares” de pessoas em dezenas de centros em todo o país. Um documento lançado pelo Violations Documentation Center in Syria aponta para que, pelo menos, 1433 sejam crianças. Crianças com idades entre os 13 e os 17, mas também de oito anos.
“Desertores do exército sírio disseram à Human Rights Watch que qualquer pessoa com mais de 14 anos poderia ser preso. Em 2011, um tenente-coronel da Brigada Presidencial disse [ao grupo] que tinha detido 50 pessoas depois de uma manifestação, todos homens entre os 15 e os 50 anos. Mas as forças de segurança também tinham na mira determinados activistas – se estes não estivessem em casa, então prendiam a família, incluindo as crianças.”

Nigéria

Desde que começaram os ataques do grupo extremista Boko Haram, em 2009, que centenas de crianças estão envolvidas – à força – nas actividades do grupo. A Human Rights Watch aponta mesmo para milhares de rapazes e raparigas que foram utilizados pelo grupo como bombistas suicidas.
O Boko Haram já destruiu quase mil escolas em seis anos, tendo forçado outras tantas a fechar. Os raptos de mulheres e crianças do sexo feminino são o prato do dia. E a forma como o governo do país tenta contornar a situação não ajuda a proteger os mais novos.
“Faz rusgas e prende dezenas de pessoas, a maioria das vezes homens e rapazes suspeitos de fazerem parte do grupo. Mas as detenções são feitas sem provas ou com informações de pessoas que não são de confiança, havendo casos em que são fornecidas simplesmente a troco de dinheiro. As detenções são feitas em massa e incluem crianças. Segundo a Amnistia Internacional, algumas delas têm apenas nove anos.”
Os relatos sucedem-se: uma criança de dez anos levada por soldados, depois destes terem entrado em sua casa, o terem espancado e prendido. Sete jovens, dos 12 aos 30, todos irmãos, são levados pelos soldados depois de terem sido apanhados a rezar no jardim de casa.
A Amnistia Internacional estima que, desde Maio deste ano, pelo menos vinte crianças estejam detidas num dos centros da Nigéria, sendo 10% do total dos presos. Mas “centenas continuam detidas há anos”.
As condições “horríveis” a que estas crianças e adolescentes estão sujeitas levam à morte por desidratação, doenças, fome e tortura. “Entre Fevereiro e Maio, 11 crianças com menos de seis anos, incluindo quatro bebés, morreram em Giwa (um dos centros de detenção). Uma testemunha relatou mesmo ter visto os corpos de oito crianças”, nota o relatório. crianças guerra
Em Fevereiro, os militares soltaram 275 pessoas que terão sido “erradamente detidas”. Dessas, 72 eram crianças. Cinquenta delas foram presas com as mães.

Afeganistão

Perpetradores de ataques suicidas, talibãs, colocadores de bombas. No Afeganistão, são centenas as crianças acusadas e pertencer a grupos extremistas. Só ano passado, o Ministério da Segurança diz ter detidos 215 rapazes, mas o número “pode ser significativamente maior”.
Exemplo disso são as crianças detidas nas diversas prisões do país: 166 estão em Parwan desde 2015, 53 delas têm menos de 18 anos. Estima-se ainda que mais de 900 outros menores tenham menos de 18 anos.
“Os detidos relatam dezenas de métodos de tortura, incluindo espancamentos com cabos, canos, mangueiras e madeira, arranque dos órgãos genitais e saltos em cima dos corpos, além de violação sexual. As forças de segurança afegãs torturam mais as crianças do que os adultos, em cerca de 7%. Mas a norma é impunidade para estes soldados.”

Congo, Iraque e Israel

Os relatos e os números sucedem-se. No Congo, de 2013 a 2014, pelo menos 257 crianças foram dadas como detidas, 40% sujeitas a tortura. No Iraque, pelo menos 314 crianças, 58 delas com menos de 15 anos, estão detidas acusadas de terrorismo. Algumas estão detidas há mais de três anos, sem acesso à família ou advogados.
A maioria é detida pela ligação familiar a um qualquer membro de grupos extremistas: “são torturadas, com sacos na cabeça ou choques eléctricos” para prestar informações que não sabem.
“Em Setembro de 2012, a polícia federal iraquiana prendeu uma mulher com três filhos, de quatro, seis anos e cinco meses. O filho mais velho contou à tia que viu as autoridades vendar os olhos à mãe, bater-lhe e electrocutá-la, para que esta dissesse onde estava o pai. As crianças ficaram presas longe da mãe durante 40 dias. No mesmo mês, detiveram um casal com uma filha deficiente, de 14 anos, um filho de dez anos e um de 17. Puseram a cabeça do mais novo perto de um pneu de um carro e ameaçaram passar-lhe por cima se não dissesse que tinha armas escondidas. O pai morreu enquanto preso, mas a mãe e as crianças ficaram presas por três meses em Bagdade. A menina de 14 anos, paralítica, disse à avó que sempre que havia visitas de activistas dos direitos humanos à prisão, as crianças eram escondidas na casa de banho.” As forças iraquianas são também conhecidas por violentarem sexualmente as mulheres e meninas que detêm.
Em Israel as coisas não são diferentes, mas os números falam mais alto: entre 500 a 700 crianças são acusadas em tribunais militares. Os crimes? Atirar pedras a soldados israelitas que ocuparam as cidades onde vivem. Em 2015, Israel manteve 220 crianças palestinianas sob custódia por mês. Um total de 422 crianças foram condenadas em 2015 – 116 delas tinham entre 12 e 15 anos. Entre 2012 e 2015 66 crianças foram sujeitas a cela solitária.

EUA

Os Estados Unidos também não escapam à negra lista de abusos contra crianças, entre outros tantos países, como as Filipinas e a Tailândia. Durante operações no Iraque e Afeganistão, militares norte-americanos detiveram “milhares de rapazes suspeitos de participarem” no conflito armado. Só entre 2003 e 2008, como o próprio país confirma, foram presas 2400 crianças por terem sido usados como espiões para os insurgentes ou por serem incumbidas de plantar bombas. Adolescentes de 16 e 17 anos são detidos com adultos em celas que chegam a ter 34 pessoas. crianças guerra
Depois dos ataques do 11 de Setembro, 15 crianças foram levadas para Guantanamo Bay – lá ficaram, alguns até dez anos. Muitas queixam-se de tortura e violações. Alguns são simplesmente soltos, anos depois da detenção.

Actuação urgente

A ONU tem muitas vezes desempenhado um papel importante na protecção das crianças, realça o relatório da Human Rights Watch, tendo em algumas situações conseguido com sucesso a libertação de crianças ou protocolos para garantir a sua transferência de centros de detenção para agências de protecção à criança, que podem ajudar na sua reabilitação e reintegração na sociedade. Em demasiados casos em todo o mundo, no entanto, a prisão continua a ser a norma.
A Human Rights Watch alerta para um problema óbvio: o impacto da detenção pode ser profundo. As crianças são separadas da família e comunidade e é-lhes normalmente negado o acesso à educação. Além de injusta, a situação faz com que as crianças se tornem alienadas e procurem a retaliação aderindo, agora de verdade, a grupos armados.
“Aprender com o comportamento criminoso dos mais velhos e casos de depressão e suicídio” são também consequências.
Ban-ki Moon deixa, por isso, um alerta: privar as crianças da sua liberdade por causa de uma alegada associação com grupos armados “é contrário não só aos melhores interesses da criança, mas também aos interesses da sociedade como um todo”.
O direito internacional reconhece o recrutamento de menores de 18 anos por grupos armados como uma violação dos direitos das crianças e indica que as crianças-soldados devem ser tratadas principalmente como vítimas, com as autoridades a dever focar-se na sua reabilitação e reintegração na vida civil. Mas os governos de diversos países têm expandido as leis de combate ao terrorismo, criando maior margem de manobra para deter suspeitos, incluindo crianças, por tempo indeterminado e sem acusação.

29 Jul 2016