China-Brasil | 50 anos de relações diplomáticas e uma pedra no sapato

Este ano celebram-se os 50 anos das relações diplomáticas entre a China e Brasil, mas persiste uma lacuna: a não adesão do Brasil à iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”. Daniel Cardoso, da Universidade Autónoma de Lisboa, justifica a posição com o potencial custo em termos de política externa, mas salienta a boa relação com Pequim independentemente da força política prevalente em Brasília

 

Há muito que China e Brasil mantêm uma forte ligação comercial e até partilham muito do espaço internacional por pertencerem ao chamado grupo dos BRICs, o conjunto das economias emergentes com maior potencial de desenvolvimento. Contudo, no ano em que se celebram 50 anos das relações diplomáticas entre as duas nações, há uma lacuna: o Brasil continua sem aderir à iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, tida como fundamental na política externa chinesa.

Na sessão de segunda-feira das conferências da Primavera do Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM), o académico Daniel Cardoso, da Universidade Autónoma de Lisboa, deixou algumas pistas sobre o assunto: uma das razões para a não adesão poderá estar relacionada com factores políticos. As ideias foram abordadas na palestra “A iniciativa faixa e rota na América Latina: O caso do Brasil”.

“Por perceberem que este é um grande custo político em matéria de política externa, as autoridades brasileiras acabaram por não aderir. Parece-me que esta razão, aplicada ao Brasil, aplica-se também aos restantes países que não aderiram”, defendeu. “Assinar o memorando da iniciativa será, sobretudo, um acto político”, acrescentou.

“Como um memorando não tem um valor jurídico claro, pois não vincula países, por não ser um tratado, sendo meramente um gesto para as audiências internacionais, penso que as autoridades brasileiras não aderem à iniciativa porque não querem assumir o custo do alinhamento [com a China]. Quando há uma disputa hegemónica entre EUA e China, o Brasil, que se vê como grande potência, não quer dar o sinal de perda de autonomia, de flexibilidade”, frisou ainda o académico.

Uma certa pressão

Daniel Cardoso não deixou de denotar que, da parte das autoridades chinesas, parece existir “uma pressão” para que o Brasil adira à iniciativa que tem corrido o mundo. “Sendo um acto simbólico, para a China é algo importante. Parece ser algo incómodo nessa relação o facto de o Brasil não aderir.”

Colocando esta matéria como ponto de partida para uma futura investigação académica, pelo facto de a não adesão ter um lado “surpreendente”, o docente disse ainda que “é preciso perceber o que esse símbolo [a adesão à iniciativa] representa para a China”.

“Provavelmente, isso tem a ver com o facto de a adesão do Brasil, um país importante, trazer um novo fôlego. Passaram dez anos desde a sua implementação, já muitos países aderiram, alguns não o fizeram, e se isso não aconteceu pode haver uma nova vaga de adesões e um revigorar da iniciativa. Não sei se o Brasil está disposto a fazer isso, e duvido muito que tal aconteça.”

Daniel Cardoso destacou ainda que, depois de uma primeira fase de divulgação da política e de adesões de vários países, incluindo Portugal, a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” entrou agora numa fase de reflexão.

“Há que pensar a quem ‘Uma Faixa, Uma Rota’ se destina. Chegámos a um ponto de saturação da iniciativa, pois todos os países que poderiam aderir já o fizeram ou estão perto de o fazer. Esse factor poderá causar, junto das autoridades chinesas, algum tipo de apreensão. Estamos, assim, numa segunda fase, em que cabe à China a gestão de expectativas que foram iniciadas e que podem não ter sido cumpridas.”

Os sinais recentes

Muito recentemente, em Outubro de 2023, o Presidente chinês, Xi Jinping, deixou mais um sinal. O dirigente defendeu que a China e Brasil devem apoiar-se firmemente face à “situação turbulenta” que o mundo atravessa, durante um encontro em Pequim com o presidente da Câmara dos Deputados brasileira, Arthur Lira.

Xi Jinping garantiu ainda que “Uma Faixa, Uma Rota”, o gigantesco projecto internacional de investimento e construção de infraestruturas promovido por Pequim, é “altamente compatível com a reindustrialização e o programa de aceleração do crescimento do Brasil”, e propôs usar essa “sinergia” para facilitar o desenvolvimento brasileiro e o processo de modernização da China, segundo a agência noticiosa oficial Xinhua.

As autoridades brasileiras dizem ter um acordo de relações estratégicas com a China em vigor há 30 anos que já serve para todo o tipo de acordos bilaterais. De frisar que o Presidente brasileiro Lula da Silva defendeu o aprofundamento dos laços com o país “além do interesse comercial”, tendo aceitado o desafio de proteger o “verdadeiro multilateralismo” que a China apoia para apostar na ligação das economias e dos mercados brasileiros e chineses contra a dissociação defendida pelos Estados Unidos.

Esta ideia vem de encontro ao que Daniel Cardoso também afirmou na segunda-feira, em Lisboa: a ideia de que, independentemente dos partidos, todos os dirigentes brasileiros estão dispostos a dialogar com o seu homólogo chinês. “Poderemos apontar um factor ideológico [para que não haja adesão]. Mas vemos que, independentemente da cor política do Governo, todos estes líderes [brasileiros] têm uma característica comum: gostam de apertar a mão a Xi Jinping. Isso mostra que a questão ideológica não é a principal razão para o Brasil não ter ainda aderido formalmente à iniciativa.”

O académico destacou também alguns pontos que vão de encontro à posição oficial já assumida pelo Brasil. “Quando olhamos para dados concretos, percebemos que a relação do Brasil com a China, em termos comerciais, é muito significativa. A China é o principal parceiro comercial do Brasil desde 2009, mas o Brasil é cada vez mais um dos principais parceiros comerciais da China. Em 2022, o Brasil foi o quarto país do mundo com maior saldo comercial com a China.”

Por sua vez, “na relação económica e financeira vemos que se aprofunda cada vez mais, pois os investimentos chineses que, a partir de 2010, começaram a aumentar, muito concentrados na dimensão energética, têm-se vindo a diversificar nos últimos anos. Temos hoje as empresas chinesas a participar em vários sectores da economia brasileira. A China continua com uma forte presença na energia, mas temos também investimentos na indústria automóvel, no sector financeiro e área dos transportes”, rematou.

No contexto da América Latina, em que o Brasil é uma das principais economias, estranha-se esta não adesão. “A China ainda não é o principal parceiro comercial do continente, esse lugar está ainda reservado para os EUA, mas isso acontece pelo peso comercial que o México tem com este país. Tirando o México dessa equação, a China já é o principal parceiro comercial. Na sub-região da América do Sul, a China já aparece como a primeira parceira comercial. Fazia, assim, todo o sentido que a iniciativa se estendesse, também, à América Latina.”

Desta forma, o processo de adesões a “Uma Faixa, Uma Rota”, iniciado para todo o mundo em 2018, já chegou a 22 dos 33 países deste continente e também da região do Caribe. A “notória excepção” continua a ser o Brasil.

13 Mar 2024

China aguarda visita de “velho amigo” Lula da Silva o “mais cedo possível”

O Governo da China disse hoje à agência Lusa que aguarda a visita de Luiz Inácio Lula da Silva o “mais cedo possível”, considerando que o Presidente do Brasil é um “velho amigo” do povo chinês.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês respondeu assim a uma questão colocada pela Lusa sobre uma possível visita de Lula da Silva ao país, que órgãos estrangeiros afirmaram, no fim de semana, estar programada para o dia 28 de março.

O ministério chinês não confirmou aquela informação, mas disse que a China “dá as boas-vindas” a uma visita do Presidente brasileiro, assim que “seja conveniente para ambos os lados”.

“Iremos divulgar as informações relevantes quando for adequado”, afirmou a mesma fonte, numa resposta por escrito. Pequim “atribui grande importância à parceria estratégica abrangente entre China e Brasil”, acrescentou.

Durante os primeiros dois mandatos de Lula da Silva, entre 2003 e 2011, a relação comercial e política entre Brasil e China intensificou-se, marcada, em particular, pela constituição do bloco de economias emergentes BRICS, que inclui ainda Rússia, Índia e África do Sul.

Desde 2009, a China é o principal parceiro comercial do Brasil, com o comércio bilateral a passar de 9 mil milhões de dólares, em 2004, para 135 mil milhões, em 2021. Nos últimos anos, a participação da China nas exportações do Brasil superou os 30%, à boleia do apetite do país asiático por matérias-primas, sobretudo soja e minério de ferro. Entre 2007 e 2020, a China investiu, no total, 66 mil milhões de dólares no Brasil.

A relação entre Pequim e Brasília arrefeceu, no entanto, durante o mandato de Bolsonaro, que assumiu o poder com a promessa de reformular a política externa brasileira, com uma reaproximação aos Estados Unidos, e pondo em causa décadas de aliança com o mundo emergente. O ex-ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil Ernesto Araújo, que foi entretanto substituído, adotou mesmo uma retórica hostil face à China.

21 Fev 2023

Atlântico sul “é fundamental” na relação entre Brasil e China, mas pode ser factor de competição

O professor catedrático Daniel Cardoso defendeu esta segunda-feira que o Atlântico Sul “é fundamental” nas relações entre o Brasil e a China, mas pode ser factor de competição que, com os Estados Unidos da América (EUA) pelo meio, será “perigoso”.

Por vários motivos, um dos “mais relevantes” os recursos petrolíferos, mas também as trocas comerciais, o Atlântico Sul “é fundamental” na relação entre o Brasil e a China, mas também pode ser factor gerador de competição, se a China prosseguir o seu caminho para se tornar numa potência marítima, e com os EUA pelo meio será até “perigoso”, disse Daniel Cardoso.

O catedrático da Universidade Autónoma de Lisboa falava na 2.ª sessão das Conferências de Primavera 2022, que decorreram na Casa de Macau, em Lisboa, em que foi orador no painel sobre “Atlântico Sul nas relações entre China e Brasil: Competição, cooperação e desafios”.

“O Atlântico Sul é uma área que necessariamente é considerada estratégica pelo Brasil”, afirmou Cardoso. O Brasil “tem ambições de projectar o seu poder político, militar e económico para além do Atlântico Sul, chegando à África e à Antártica”. Por isso, esta zona é “fundamental para a política externa brasileira e também para a sua política comercial e para a sua estratégia militar”, sublinhou.

Na opinião de Daniel Cardoso “há razões muito fortes para que as autoridades brasileiras considerem este espaço geopolítico muito importante”.

O Brasil é já “um importante produtor e exportador de petróleo e grande parte do petróleo que extrai é desta região [Atlântico Sul], mais especificamente de uma área conhecida como o pré-sal”.

Um petróleo extraído a grande profundidade que requer “sofisticação tecnológica muito grande”, e que a Petrobras, empresa brasileira de petróleo, tem vindo a conseguir através de consórcios com empresas estrangeiras, “a maioria chinesas”, realçou, salientando que a China não só investiu como também financiou estes projectos, através do seu Banco de Desenvolvimento.

Cooperação e competição

Nas relações entre a China e o Brasil no Atlântico Sul, o professor não tem dúvidas em afirmar que o factor mais relevante “é o petróleo”. Mas em segundo lugar, vem o comércio. “Os dados são muito significativos, 99 por cento (…) das exportações do Brasil para a China vão por mar”, referiu. Até porque além das importações de soja, a China já é também o maior importador de petróleo brasileiro.

“Para enquadrarmos estes interesses da China no Atlântico Sul não se pode deixar de falar do grande projecto da Rota da Seda, que tem também uma dimensão marítima. Dos três corredores marítimos da nova Rota da Seda aquele que mais interessa ao Brasil é o que atravessa o Índico e pode ir para o Atlântico Sul, ou pode passar pelo Atlântico Norte e chegar ao país da América do Sul”, frisou.

Na opinião, de Daniel Cardoso, entre o Brasil e a China, hoje “há cooperação, mas também há espaço para competição” e, essa tem sido uma tendência.

“A competição pode-se materializar em primeiro lugar no que respeita à presença em África”, e em segundo lugar no que respeita á Antártica, regiões em relação aos quais os interesses dos dois países não estão alinhados, considerou.

Mas, para além disso, pode nascer ainda um novo factor de competição entre o Brasil e a China. “Se a China se quer tornar numa potência marítima vai ter de apostar no seu desenvolvimento tecnológico, e o Brasil, com a larga costa que tem e com o empenho que tem na sua industrialização, este desenvolvimento tecnológico pode ser também um dos objectivos dos governos brasileiros. Por isso,(…) pode vir a haver mais competição do que propriamente cooperação entre os dois países” neste domínio, considerou Daniel Cardoso.

Neste cenário, o professor realçou que é preciso não esquecer o factor Estados Unidos, que são um país “importantíssimo” naquela área, considerando o Atlântico Sul “como teoricamente a sua área de influência”.

Por isso, uma forte presença chinesa no Atlântico Sul, em cooperação ou em competição com o Brasil, “vai sempre suscitar alguma atenção e cautela da administração norte-americana”, sublinhou.

“O perigo é que à medida que a competição entre os EUA e China aumenta, essa competição em várias plataformas do mundo, pode ser projectada também para o Atlântico Sul”, concluiu.

30 Mar 2022