Amêijoas à bulhão patos-bravos

Os patos-bravos criminosos ganham milhões de euros com o tráfico humano para a apanha de bivalves nas lamas dos rios Tejo e Sado, mesmo em frente aos ministérios do Terreiro do Paço, de Lisboa. Uma mafia bem organizada que sem ninguém conseguir explicar, fecharam os olhos durante anos às autoridades competentes (neste caso, muito incompetentes). Os patos-bravos criminosos estendiam a sua rede de traficar pobres seres humanos, especialmente, de países asiáticos ou do terceiro mundo, nomeadamente da Tailândia e Roménia. A apanha de amêijoas-japónicas tem sido feita por cerca de 1700 mariscadores ilegais. A amêijoa-japónica foi introduzida nas águas portuguesas do Tejo e do Sado como uma experiência ambiental para purificar mercúrio, chumbo e cádmio. Actualmente, esta espécie invasora, tóxica para os humanos, chega aos consumidores em Portugal e Espanha através de redes de caça furtiva. A amêijoa-japónica absorve as biotoxinas das águas dos rios lisboetas, um vestígio de um passado industrial que se tornou agora num problema de saúde pública. Apesar da sua elevada toxicidade, pode ser consumida caso tenha sido sujeita a níveis adequados de purificação, mas, na sua maioria, é obtida furtivamente, é frequentemente mal descontaminada e intoxica o consumidor, causando graves consequências que podem até levar à morte, segundo afirmou ao HojeMacau um médico especialista.

O problema tem crescido nos últimos anos. As redes clandestinas que traficam a amêijoa-japónica chegam a capturar até 14 toneladas por dia. Após um processo de limpeza insuficiente e documentos falsos, as amêijoas podem acabar em supermercados dos dois países ibéricos, apesar de não estarem aptas para consumo. Em Maio passado, foram apreendidas 1,5 toneladas de amêijoa-japónica impróprias para consumir.

Agora, as autoridades levaram a efeito uma operação relâmpago na vila do Samouco, Alcochete, onde existe um armazém que estava repleto de centenas de imigrantes ilegais e que eram explorados para a apanha dos bivalves. As autoridades depararam-se com um cenário de horror: cerca de 300 homens e mulheres, asiáticos, em condições absolutamente deploráveis, nojentas mesmo. Até foi difícil de entrar ou ainda menos permanecer no interior devido ao mau cheiro. Estava tudo no chão e pelo número de fatos de mergulho encontrado pelas autoridades, a conclusão é de que estão em Portugal muito mais imigrantes para a apanha ilegal. Quatro cabecilhas da rede criminosa foram detidos, três portugueses e um tailandês, indiciados de associação criminosa e exploração de mão de obra ilegal. A mega operação da Unidade Central de Investigação Criminal (UCIC) da Polícia Marítima estava a ser preparada há meses e já se sabia que numa rua do Montijo viviam dezenas de imigrantes asiáticos, explorados na apanha dos bivalves. Chegam a Portugal com a promessa de trabalho, mas acabam por ficar presos a intermediários e sofrem ameaças. Em média, os mariscadores vendem a amêijoa-japónica a três euros o quilo e os intermediários, depois de ensacados os bivalves, vendem a 18 euros, num negócio ilegal que pode render até 30 milhões de euros por ano. Deslocámo-nos ao Montijo para obter mais informação e ninguém quis falar sobre o assunto. Impera o medo. Apenas nos disseram que estão envolvidos indivíduos muito poderosos e perigosos. Falar sobre a apanha das amêijoas-japónicas é o mesmo do que se passava no tempo da PIDE sob a alçada do ditador Salazar.

Sob a ponte Vasco da Gama, as águas do Tejo têm um elevado nível de toxicidade, de acordo com o instituto meteorológico português. Uma prática comum dos caçadores furtivos é adulterar a origem das amêijoas, ou seja, apanhá-las no Tejo e certificar que são do rio Sado, por este ter muito menos toxicidade. A maior parte das capturas é transportada por intermediários para Espanha, principalmente para os portos de Vigo e Pontevedra, onde é entregue em estabelecimentos de aquacultura. Muitos destes estabelecimentos conhecem a origem dos bivalves, os quais também podem ser acusados da prática de crime contra a saúde pública. Uma das informações que recolhemos diz respeito à manobra do transporte. As redes criminosas falsificam os documentos de registo e as amêijoas partem para Espanha em carrinhas preparadas que fazem movimentos quase diários. E o mais grave é que de Espanha são comercializadas para toda a Europa.

Este perigoso e letal negócio que se inicia em Portugal com o tráfico humano vindo de países normalmente asiáticos, está a constituir um grave problema para as autoridades policiais, pois, os mafiosos não brincam em serviço, e têm ameaçado de morte quem se intrometa no negócio. Os responsáveis pela saúde pública também estão deveras preocupados com as negociatas porque uma grande quantidade de bivalves fica em Portugal.

3 Jul 2023

Ó raparigas do meu bairro!…

Curioso inquérito realizado há algum tempo na Universidade de Macau às raparigas: o sonho de quase todas é casar, ter filhos e tomar conta do lar. Portanto, estas candidatas a fadas (do lar), se puderem, não tencionam seguir uma carreira, dedicar-se a uma profissão, no fundo, ter uma individualidade social. Convenhamos que este tipo de desejos não parece estar muito de acordo com o espírito do tempo. Ou será que está?

No Ocidente, desde o século XX que a mulher tem vindo a ocupar um lugar importante no plano da produção. Há mesmo quem diga que a superioridade ocidental passou, em grande parte, por ter aproveitado a força de trabalho feminina ao invés de as deixar em casa a tomar conta dos filhos e outras actividades domésticas. O escritor marroquino Tahar ben Jalloun diz que o seu país conhecerá um desenvolvimento sem precedentes no dia em que as mulheres ocuparem o espaço público, na medida em que lhes reconhece uma capacidade de trabalho, de organização e seriedade que não encontram na sua contraparte masculina.

Contudo, a saída da “casca” das mulheres não deixou de ter efeitos que alguns consideram negativos, nomeadamente na educação das crianças, cuja emotividade se desenvolverá de modo bem diferente sem a constante presença das mães. O curto tempo de amamentação provoca também, segundo a psicanálise, o aumento de carências orais, que se reflecte mais tarde em numerosos vícios, adicções e comportamentos violentos. Seja como for, não passa quase pela cabeça de ninguém inverter o actual estado das coisas. Ninguém (ou muito poucos) pensará em remeter as mulheres à vida que levavam no passado e ninguém ousaria imaginar que seriam as próprias mulheres a prescindir do seu actual estatuto e desempenho para se remeterem ao remanso do lar.

Pois em Macau, pelos vistos, a coisa não funciona como se esperaria. O mulherio, longe de pretender dedicar-se à política, às finanças, ao ensino ou ao comércio, parece mais inclinado a deitar fora as conquistas do seu sexo e voltar à vidinha doméstica que durante tantos séculos foi seu apanágio e destino. Por quê? É caso para perguntar.

Estarão as raparigas da universidade muito à frente ou muito atrás? Serão estas moçoilas de Macau uma vanguarda conservadora no mundo contemporâneo ou umas atrasadas mentais, preguiçosas e fúteis? Terão as mulheres de hoje chegado à conclusão que a vida de antes era melhor e mais eficiente, no cômputo geral, ou não estão simplesmente para a agarrar pelos cornos, preferindo agarrar os do marido, afinal mais manso que a vida? Pois não sei. Mas é caso para reflexão. E devia ser mais ainda por parte dos responsáveis políticos por esta terra, na medida em que assistem ao produto da educação que lhes proporcionaram e do ambiente cultural e social de que as rodearam. Numa palavra: são estas as mulheres que queremos?

É certo que o modelo tai-tai (mulheres casadas com um marido rico, viciadas em compras e beauty care) tem grande projecção em Hong Kong e por extensão em Macau. Mas estas senhoras têm, em geral, muito pouca educação e são, afinal, gozadas um pouco por toda a sociedade que lhes reconhece os ultrajantes tiques de futilidade. As tai-tai, sobre as quais existem dezenas de anedotas, não deveriam ser invejadas, mas constituir um modelo daquilo que as raparigas de hoje não querem ser. Não é que eu considere que o trabalho dá dignidade, mas a independência sim e ser dependente de um outro ser humano, nomeadamente do ponto de vista financeiro é, no mínimo, confrangedor.

Não chega por isso utilizar o modelo tai-tai para explicar as respostas das moças de Macau. Existe, isso sim, aqui um culto da preguiça e do dolce far niente que este regime casinodependente tem vindo a reforçar. As consequências não tardam em chegar. Elas são profundas, são mentais, duram gerações. Se o governo não implementar políticas de dignificação do ser humano em breve terá nos seus braços uma sociedade de inúteis e atrasados mentais. Desde o tempo dos portugueses que venho avisando neste sentido, agora o resultado começa a estar à vista.

Ó raparigas do meu bairro! Vamos lá a ter outro tipo de atitude! Deixem lá os cornos do gajo e agarrem os da vida! No fim, no finzinho, garanto que vale a pena. Se a vossa alma não for pequena. Se for, OK; regridam que daí não virá um mal especial ao mundo.

2 Jul 2023

Plume

Há sempre aqueles que parecem de vento e são artífices laboriosos da transparência. Este extremo refinamento é talvez a mais conseguida capacidade humana para uma transfiguração, que este saber em dimensões aperfeiçoadas, pode passar incólume aos pesados seres das sombras por causa de toda uma sujeição que elas imprimem.
Claro! Estamos num mundo pouco depurado, e não se sabe bem porquê, agora que as tecnologias permitiram avanços prodigiosos nessa matéria, também vieram com ela os pesos mais agrestes da nossa truculenta condição: a inteligência pode vir a ser artificial, que o ser natural é concreto demais para ser já às portas de um futuro breve, contemplado. Essa leveza que faz o cérebro fazer as melhores ligações, possuem-nos alguns poetas como ninguém, e também será por isso que lhes testemunhamos semblantes esguios e finos como se fossem catedrais. Revisamos as suas anatomias! Por incrível que pareça, há ali elementos de éter puro.
Henri Michaux. Se há beleza, que o vento a traga, sinalize a forma, e seja ” lointain intérieur” que a lonjura a que nos mantém destila pródiga maravilha. Essa lonjura será ainda um propósito severamente poético ( que para proximidade temos os narradores, e a descritiva composição, que não sendo artificial inteligência, deve ser considerada por vezes aberrante função naturalista). E a voluptuosidade também deverá esconder-se de vergonha ensimesmada perante a mais impressionante construção de beleza “gasosa” deste outro instante a que passamos a chamar, poema

Le Malheur, mon grand labourer,
Le Malheur, assois-toi,
Repose-toi,
Reposons-nous un peut toi et moi,
Tu me trouves, tu m´éprouves, tu me le
prouves.
Je suis ta ruine.

Mon grand théâtre, mon havre, mon âtre,
Ma cave d´or,
…………
Dans ta lumière, dans ton ampleur, dans mon horreur,
Je m´abandonne.

Não há muito a dizer acerca deste magnífico poema oxigénio que se respira mas que não se vê. Nós deciframos os signos linguísticos, damos reformulações aos enxames de associações comparativas…mas chega o vento, e perante o domínio do leve, calamos. Creio que interrompemos estes seres para que se escutasse o defeito generalista, e isso abriu feridas gigantescas, grotescas, no domínio da linguagem, que deve sempre servir para muito mais do que debitar ideias e estados sensoriais. Em última instância, poder-se-ia concluir que não tarda, seremos traduzidos até para esferas telepáticas, outras linguagens, portanto. Devemos somente, e doravante, dizer como Michaux aqui, o que descobrimos, que isso será futuramente o maior dom saído da palavra ” on veut trop être quelqu´un. Il n´est pas un moi… MOi n´est qu´une position d´équilibre”
Se formos para a sua obra gráfica, vamos ainda olhar para o desenho do vento, e não dissociamos as linguagens que formam um acordo onde tudo se lê, contempla, e ganha dimensão estranha e espacial. Olhamos a sustentabilidade de uma impressão que nunca se fixa, como a chuva e a sombra, e quando contempladas nos parecem diáfano nos seus impressionantes efeitos ideográficos. O autor de « Um bárbaro na Ásia» deseja o que a este lhe fascina, saber como pode penetrar na sua espiritualidade. Que ele de facto não quer descrever coisa nenhuma em termos factuais, romanceiros: é um poeta, e quer a rota daquilo que a sua natureza impele para o símbolo. Nunca deixou de percorrer os « Paraísos Artificiais» mas ao invés de um Baudelaire, vai bastante mais longe. Se a alucinação for tudo isto, então quem se deve sentir alucinado são aqueles que não sabem afinal de contas aquilo de que um cérebro é capaz. Escrever e desenhar o vento.

28 Jun 2023

Os métodos da Cathay Pacific Airways (I)

A Cathay Pacific Airways teve problemas recentemente. Foi anunciado que um piloto tinha conduzido o avião na pista lentamente e logo a seguir ocorreu o incidente do cobertor relacionado com os assistentes de bordo, o que deixou a administração em maus lençóis. A condução lenta leva a empresa a pagar mais aos pilotos, visto que são pagos à hora, e provoca uma demora na chegada dos passageiros aos seus destinos, prejudicando a empresa e aqueles que viajam. Os assistentes de bordo lidam directamente com os passageiros e se existir algum problema que os deixe insatisfeitos, a imagem da Cathay Pacific Airways será afectada. O piloto é responsável pela segurança do voo e o assistente de bordo pelo trabalho de cabine e ambos prestam serviços aos passageiros. Portanto, se quer uns quer outros prejudicarem de alguma forma os passageiros isso vai reflectir-se na venda de bilhetes e nas receitas da Cathay Pacific Airways. Provavelmente, para tentar manter as suas receitas, a Cathay Pacific poderá tratar os dois incidentes como um só. Desta forma não só concentra os problemas, como também fará com que as pessoas sintam que a administração da empresa dá importância à situação, o que vai melhorar ainda mais a sua imagem.

Estes incidentes de condução lenta nas pistas ocorrem porque o salário dos pilotos é calculado com base nas horas de voo efectuadas. Ao prolongar o tempo da viagem os pilotos recebem mais. Por isso vemos por vezes na comunicação social a seguinte frase: “Se andarmos mais depressa reduzimos o nosso salário, então porque é que havemos de o fazer?”

A Cathay Pacific Airways declarou que não vai responsabilizar criminalmente os pilotos pela condução lenta, mas lembrou que este procedimento pode conduzir a um processo disciplinar. Recentemente, as medidas actualizadas que se aplicam a esta situação foram finalmente publicadas na comunicação social. A Cathay Pacific vai optimizar o método de cálculo do salário dos pilotos. Estes salários têm três componentes: o salário base, subsídios e horas de voo. Em 2023, a Cathay Pacific Airways aumentou o vencimento base dos pilotos em 3.3por cento. Além disso, a empresa vai comparar as horas de voo estimadas com as horas de voo efectuadas e usará o valor mais elevado para calcular o pagamento. Em resumo, os pilotos vão beneficiar com esta medida. Uma vez que o novo regime implica a actualização dos sistemas informáticos, estas medidas só vão ser implementadas só no próximo mês de Outubro.

Por estas medidas, podemos ver que a Cathay Pacific planeia solucionar o problema da condução lenta aumentando o salário dos pilotos. Mas se este aumento salarial não for o que os pilotos estão à espera, como é que se vai resolver o problema?

O Governo de Hong Kong aplicou 19.5 mil milhões de dólares de Hong Kong em acções preferenciais da Cathay Pacific Airways em Junho de 2020, e adiantou 7.8 mil milhões em empréstimos provisórios. Esta divida colocou pressão nas finanças da Cathay Pacific o que lhe torna impossível aumentar os salários dos pilotos a curto prazo.

Por motivos de gestão, por vezes, as empresas exigem que os directores comprem acções, ou então oferecem-nas. Como atrás foi dito, quando as empresas geram lucros distribuem os dividendos consoante o número de acções vendidas. Quem possuir mais acções recebe mais dividendos. Se os directores possuirem acções da empresa, quando existem lucros, para além dos seus salários recebem os dividendos. A estratégia não só permite que quando estes executivos tomam decisões considerem os interesses da empresa como seus, mas também permite que recebam dividendos. A prática de alinhamento de interesses torna a política anual de bónus mais flexível, o que beneficia o funcionamento da empresa. Li Ka-shing, magnata de Hong Kong que fundou a Enterprise Holdings Co., Ltd., recebeu apenas um salário anual de 5.000 dólares durante 46 anos enquanto director da empresa. Quando a economia de Hong Kong estava em recessão, um jornalista perguntou-lhe se ele ia reduzir o seu salário e Li Ka-shing respondeu: “Eu só tenho um salário anual de 5.000 dólares, como é que posso reduzi-lo?” Mas por causa das acções que detinha, Li Ka-shing recebia milhares de milhões de dólares em dividendos. Li Ka-shing afirmou que esta abordagem protegia os interesses da empresa, dos directores e dos accionistas.

A Cathay Pacific Airways está actualmente a passar um mau período. Agora que já vendeu acções ao Governo será que pode considerar vendê-las também aos pilotos? Ou mesmo doá-las? Uma vez que detenham acções, os pilotos para além de empregados da empresa passam também a ser accionistas. Quando a empresa tem lucros, os accionistas recebem naturalmente os seus dividendos. Mesmo que o piloto pense que o seu salário está abaixo dos padrões do mercado, depois de receber os dividendos vai pensar de outra forma. Com a melhoria da situação epidémica, a indústria da aviação vai gradualmente melhorar e os lucros da empresa vão certamente aumentar. Acredita-se que os dividendos a distribuir irão aumentar gradualmente.

Para a próxima semana vamos analisar a resposta da CathayPacificAirways ao incidente do cobertor.

27 Jun 2023

O povo não está cansado

Um amigo meu tem uma pequena fábrica de placas de contraplacados. Há dias, encontrámo-nos e a conversa percorreu vários continentes desde aquela loucura de irem ver os destroços do ‘Titanic’ a 3.800 metros de profundidade até às empregadas domésticas que cada vez são mais abusadas sexualmente para que possam obter um pecúlio extra dos patrões. No entanto, o principal da conversa situou-se na ideia peregrina que está em estudo nas hostes governamentais de se trabalhar apenas quatro dias por cada semana. O povo está cansado? Qual quê, qual carapuça. O meu amigo transmitiu-me que para o país andar para a frente, as fábricas e outras empresas até deviam trabalhar ao domingo. Aliás, algumas já o fazem, tal como hipermercados e centros comerciais. Antes, trabalhar aos domingos era um crime. Depois começaram a ficar de boca aberta ao verem as lojas dos chineses abertas ao domingo e agora uma grande parte de comerciantes já trabalham no “dia santo”…
O meu interlocutor explicou-me que a possível medida de trabalhar apenas quatro dias por semana, deve ser um caso para países ricos, muito desenvolvidos e que não tenham dívida externa. Se o pessoal começa a ter descanso três dias: sexta, sábado e domingo, a sua opinião é que o país regressa à bancarrota. Para alguns patrões trata-se da sorte grande porque ao parar tudo, a despesa da água e da luz diminui substancialmente. E os trabalhadores? Passam a receber o mesmo salário? Esses, estão muito enganados com o tri-descanso. O dia em que não trabalham será para dormir até ao meio-dia, depois têm de limpar a casa, pôr a roupa a lavar, passar a ferro, limpar os vidros e as varandas, cortar a relva, arranjar o jardim, lavar o carro e por aí adiante. Não haverá descanso nenhum, e irão trabalhar muito mais do que se estivessem no escritório ou na fábrica.
A medida dos quatro dias de trabalho por semana tem os seus apoiantes, mas também existe um grande número de trabalhadores que acha não haver qualquer vantagem. E alguns até já me salientaram: “É pá, mas o que é que eu estou a fazer em casa ou no café? A olhar para a televisão e a engordar com o sedentarismo ou no café a aturar bêbedos?”. A opinião varia. A medida poderá ser implementada, mas quer-nos parecer que ao fim de um ano tudo voltará ao princípio. O pessoal está habituado a um certo ritmo de vida e não está interessado em nenhum tipo de pasmaceira ou de trabalho caseiro de borla.
Para os que apoiam trabalhar só quatro dias por semana, segundo estatísticas confidenciais a que tivemos acesso, a maioria dos apoiantes tem dinheiro, é classe média alta. Pode pegar no carro com a cara-metade e passar três dias no ripanço numa praia ao longo da costa plantada. Mas, essa maioria tem um problema: se tiver filhos, já não haverá passeio para um turismo rural ou hotel de cinco estrelas porque a miudagem tem aulas à sexta-feira. Ou então, as escolas (professores, assistentes sociais, cozinheiros e funcionários da limpeza) também encerram porque só passam a abrir quatro dias por semana? Tudo isto, é muito confuso e perplexo. Não será fácil agradar a todos, como tudo na vida, mas o Governo terá de pensar muito bem, contactar patrões e comissões de trabalhadores antes de decidir pelo decreto. Não é fácil e sobre esta matéria muita água irá correr por baixo da ponte.
O que nós pensamos é que o país tem mais de dois milhões de cidadãos no limite da pobreza. Muitos desempregados, outros que fazem biscates durante todo o dia, outros dedicam-se à prostituição e ainda outros “inscrevem-se” nos gangues e a nessa vida fácil cometem um vasto número de crimes, que na maior parte das vezes, leva-os a ir ver o sol aos quadradinhos. Semana com quatro dias de trabalho? Hum… cheira-me que os pobres que trabalham (a maioria) não vão gostar da decisão e ainda vamos ter, pela primeira vez, uma manifestação sob o slogan “Somos pobres, queremos trabalhar!”. Uma verdade é certa: o povo não está cansado de trabalhar, o povo está é cansado de ganhar mal…

26 Jun 2023

Saúde mental

Num antigo livro chinês intitulado “Lie-Tzu” , podemos ler a seguinte história: Um homem perdeu o machado e suspeitou que o filho do vizinho o tinha roubado. Ficou a observar a forma como o rapaz andava – mesmo como um ladrão. Observava a expressão do rapaz – era a expressão de um ladrão. Observava o seu modo de falar –tal e qual como um ladrão. Resumidamente, todo o seu ser proclamava a culpa do roubo. Mas mais tarde, o homem encontrou o machado quando foi cavar a terra. E depois disso, os gestos e as atitudes do filho do vizinho deixaram de lhe parecer os de um ladrão.
Continuamos a encontrar este tipo de atitude nos nossos dias. Quando a suspeita, o sentimento de insegurança, o medo e o ódio tomam conta de uma pessoa, ela pode passar a agir como o homem do machado. Nos casos mais moderados, deixa de confiar nos outros, mas nos casos mais graves passa a ter comportamentos agressivos. Nos casos moderados, as vítimas sofrem de neurastenia, enquanto nos casos mais graves passam a sofrer de distúrbios do foro psiquiátrico. Estas perturbações mentais têm causas sociais, genéticas e hereditárias. A salvaguarda da saúde mental dos cidadãos e a prevenção de tragédias sociais é da responsabilidade de todos, mas sobretudo do Governo.
De acordo com a monitorização efectuada pelos Serviços de Saúde às causas de morte relacionadas com suicídio e registadas em Macau revelam que no primeiro trimestre deste ano foram cometidos 23 suicídios (16 do sexo masculino e 7 do sexo feminino), o que representa um aumento de 8 casos quando comparado com o trimestre anterior (Outubro a Dezembro de 2022). Se o leitor estiver a par das notícias, saberá que é provável que o número de suicídios volte a subir no segundo trimestre de 2023.
O aumento do número de turistas em Macau depois da pandemia não aliviou a atmosfera de depressão social. Basta ouvir o programa da manhã da rádio TDM para nos apercebermos da quantidade de desgostos e frustrações da população. Muitas das lojas localizadas nas zonas turísticas fecharam para sempre. A política de plena abertura à circulação dos veículos de Macau para o Interior da China via Posto Fronteiriço de Zhuhai da Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau (adiante designada por “Circulação de veículos de Macau na província de Guangdong”) tem vantagens para os residentes de Macau, mas o negócio da restauração da zona Norte de Macau abrandou. Os representantes do sector manifestaram as suas preocupações na televisão e acredita-se que o Governo tenha reparado. No entanto, não se sabe ainda se o Governo vai reactivar o “Plano de Subsídio de Consumo” no segundo semestre de 2023, que se destinava a encorajar o consumo local dos residentes.
E, em vez de se focar na Revisão da Lei Eleitoral para o Chefe do Executivo e da Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa da Região Administrativa Especial de Macau e na sua respectiva promoção, o Governo da RAEM devia concentrar os seus esforços para modernizar a sua capacidade administrativa e para melhorar a qualidade de vida dos residentes de Macau. As pessoas que estão emocionalmente perturbadas e que ligam para a Linha Aberta de aconselhamento psicológico da Cáritas de Macau ou para a Linha Aberta de 24 horas de Aconselhamento do Instituto de Acção Social podem ser ajudadas. Mas o que importa verdadeiramente é eliminar as causas que prejudicam a saúde mental da população de Macau.

Durante o último Dia do Pai, a polícia de Hong Kong reforçou as patrulhas nos maiores centros comerciais para evitar que voltassem a ocorrer actos de violência gratuita. Acredito também que o Governo da RAEHK não irá negligenciar a necessidade de dar mais importância às comunidades étnicas do Sul da Ásia que residem em Hong Kong e oferecer-lhes apoio. Embora a segurança nacional seja sem dúvida um assunto de grande importância, se a sociedade não estiver em paz e não se sentir segura, como é que a Nação poderá desfrutar de segurança?
Só as pessoas que adoecem precisam de medicação. Nenhum médico vai receitar quimioterapia para prevenir o cancro. Se desinfectarmos tudo à nossa volta só faremos com que as pessoas percam as suas respostas imunitárias. As questões de saúde mental podem levantar pequenos ou grandes problemas. Quando alguém tem um problema de foro psiquiátrico, o sofrimento recai sobre si e sobre os que o rodeiam. No entanto, quando a saúde mental de uma nação está comprometida, incidentes como o genocídio no Ruanda em 1994 podem voltar a acontecer, quando perto de um milhão de ruandeses foram brutalmente assassinados por compatriotas num genocídio liderado pelo Estado contra o grupo étnico Tutsi. Para restabelecer plenamente a normalidade social, o Governo não pode apostar apenas na economia, mas também no “amor e no perdão” entre os indivíduos.

25 Jun 2023

Campo de flores

Os grandes poetas amadureceram no tempo e tornaram-se iguais às lendas. Ao falarmos deles não o fazemos com a linguagem devida, isto porque ao aludirmos a debutantes costumes de poemáticos desfiles, nos iludimos também quando pronunciamos a mesma língua por eles trabalhada. Aqui falamos de Drummond de Andrade a quem a língua deve momentos verdadeiramente abençoados. Herdeiro do modernismo brasileiro que irrompeu com o verso livre e se dividiu em duas correntes, a primeira mais lírica, a segunda mais factual e concreta à qual aderiu Drummond; porém, pareceu não marcar território em nenhuma parte onde a poesia se quisesse explicar, formatar, alinhar. Pessoal ou socialmente «a poesia é incomunicável», definição que não deixará de seguir. No longo exercício da escrita, não esqueceu, como era apanágio da sua época e dos melhores, ser um elemento activo do Partido Comunista, mas era um poeta e isso nenhuma estrutura, poder, regime ou força, sabe ainda exactamente o que seja.
Este título alude a um poema que se insere inteiro na Primavera; porém, não são primaveras contadas, mas desfeitas em tempo e longos anos por onde os Invernos foram acontecendo, e não será demais lembrar que entre toda a beleza estilística da sua obra, ele é ainda de uma concentração de forças que nos prende e sustém como a mais bela lucidez da alma. É um poema não muito longo, que nos interpela e relembra do dom do merecimento: fala então no amor no tempo da madureza, nesse assombro que já não é esperado nem acontece de forma calculada. Por ser tão tarde, as coisas tornam-se diferentes, raras, exatas, como um último presente de Deus, ou quem sabe do Diabo, mas sem dúvida uma conquista recebida por méritos que a vida desejou consagrar.
Quando analisado em seus componentes estilísticos reconhecemos como a sua embarcação na vanguarda dos sonhos foi importante para produzir semelhante compreensão: ele fala do que tece a vida, e o poema vai com ela como se desfia-se o conteúdo da sua melhor essência; temo-lo intensamente poético, sem suor, lágrimas e vontades extemporâneas, seguindo a marcha quase profética do acontecimento que tinha de ser manifestado, que o tempo que já não ambunda, é agora proporcional ao espaçoso exercício de o poder contemplar sem a dúvida que outrora fora tão presente, sendo por isso mesmo imagem de terror convertida agora em jubilação perante a visão de muitos amores desgovernados que o tardio amor olha e sente como um (talvez) agradecimento para ter chegado até aqui.
Será certamente um campo de flores a análise de um poema tão contido, total, e ferozmente crepuscular, instado no tempo numa reflexão sobre o amor e sua jornada, mas que em nós se adentra como mistério, e para resolver a questão, o poeta alude ao justíssimo merecimento. E ele agradece em forma de poema esse inusitado amor que tudo clareia como um raio de lucidez e vida de quem não foi esquecido. Há reserva e humildade nesta conduta, e bom trato com forças antagónicas, o que supera em muito o que podemos achar que amor seja, que ele, é voltado então para os “mitos pretéritos onde acrescenta aos que amor já criou” que o amante se torna “o mito mais radioso/ e talhado e penumbra sou e não sou/ mas sou”.
São campos que não esperávamos saudar no tempo da Flor onde o poeta consegue dar a entender como são diferentes as Primaveras, ladrilhando suas mãos na terra fecunda de um momento diferente. Que o vigor deixado talvez seja agora a lembrança dos despojos que procura arrastar para fora do tempo, para aceitar a bela luz que baixa e o confunde. Pode bem ser um dos mais belos poemas em língua portuguesa, reconstruída em acordos, só que talhá-la vale tudo o que não acorde em nós o esquecimento de quem tão bem assim a trabalha, que a ironia dilacera a melhor doação, e por isso há que a amar e calar.

22 Jun 2023

Cópia judicial

Um caso extremamente raro ocorreu em Hong Kong a semana passada. Quando um juiz do Tribunal de Primeira Instância do Supremo Tribunal julgou um processo de responsabilidade civil, preencheu 98 por cento do acórdão escrito com as alegações do queixoso, o que constituiu o que é vulgarmente conhecido como “cópia judicial”.

Depois da comunicação social ter noticiado o caso, surgiram várias opiniões na sociedade de Hong Kong. De um modo geral, levantaram-se dúvidas quanto ao veredicto.

Este caso envolve o produto Huang Dao Yi Huo Luo Oil, muito conhecido em Hong Kong. O queixoso, entrou com uma acção por violação de marca registada. Em Abril de 2014, o tribunal proferiu uma sentença escrita a seu favor. O réu recorreu ao Tribunal de Recurso, alegando que tinha havido “cópia judicial”, ganhou o recurso e o processo foi enviado ao Tribunal de Primeira Instância para novo julgamento.

O Presidente do Tribunal de Última Instância, Zhang Juneng, afirmou que a cópia judicial tinha causado injustiças a ambas as partes do litígio e que tinha afectado a confiança do público no poder judicial, o que é inaceitável. Por isso, emitiu um sério aviso juiz competente sobre o incidente.

No sistema jurídico de Hong Kong, o Tribunal de Primeira Instância, o Tribunal de Recurso e o Tribunal de Última Instância são todos tribunais superiores que devem proferir acórdãos escritos após a apreciação dos processos. Esta abordagem não só permite ao tribunal esclarecer os argumentos da sentença escrita, mas também permite que tanto o queixoso como o réu conheçam o ponto de vista jurídico do juiz e ajuda-os a decidir se devem ou não recorrer da sentença. Também ajuda os estudantes de Direito a conhecerem melhor a lei. De acordo com a Lei Básica de Hong Kong, a cidade pode implementar o sistema jurídico da common law (direito consuetudinário), cuja essência é a jurisprudência. A jurisprudência faz parte do direito de Hong Kong. Trata-se de um princípio jurídico formulado por um juiz quando confrontado com um processo. Além de resolver o litígio entre o queixoso e o réu no caso presente, este princípio será igualmente aplicável a casos semelhantes no futuro, pelo que este método resulta num desenvolvimento da lei. Por conseguinte, a sentença escrita é muito importante. A Lei Básica de Hong Kong estipula ainda que, ao julgar um caso, os tribunais de Hong Kong podem referir-se a precedentes de outros países ou regiões que implementam este sistema jurídico. Esta disposição sublinha a importância das sentenças escritas no sistema de direito consuetudinário.

Depois de o tribunal apreciar o processo, precisa escrever uma sentença, que frequentemente cita o queixoso e o réu para demonstrar que o juiz analisou os argumentos de ambas as partes. Portanto, não é surpreendente que as alegações do queixoso e do réu sejam citadas na sentença escrita. No entanto, neste caso, 98 por cento do conteúdo da sentença escrita era preenchido com as alegações do queixoso, o que, de facto, é relativamente raro. É a primeira vez desde que Hong Kong regressou à soberania chinesa, que se ouviu falar de um tal caso.

Redigir uma sentença é importante, mas se uma tarefa tão importante é completada citando um grande número de palavras do queixoso vai inevitavelmente suscitar dúvidas em ambos os lados do processo. Naturalmente, o que mais preocupa as partes é a forma como o juiz tira conclusões a partir de diferentes pontos de vista jurídicos e toma a sua decisão. Um grande número de citações de uma parte no processo pode facilmente fazer com que a outra parte duvide se o juiz estudou cuidadosamente os seus próprios argumentos e, portanto, recorra com este fundamento. Do ponto de vista do público, a função dos juízes é apreciar os processos e as sentenças escritas exprimem os resultados da análise jurídica. É mais difícil mostrar ao público o processo dos juízes que analisam as leis e produzem sentenças escritas, afectando assim a sua confiança na justiça judicial.

É claro que também precisamos considerar a questão do ponto de vista do juiz. Em qualquer sociedade, o número de juízes é pequeno e não pode haver muitos mais. Os incidentes sociais de 2018 exigiram que a polícia realizasse investigações aprofundadas em muitos casos, e, por conseguinte, os tribunais tinham um grande número de processos pendentes de julgamento. Os juízes precisam de muito tempo para preparar os processos com antecedência, mas a acumulação de processos em atraso e os prazos apertados exercem, sem dúvida, uma forte pressão sobre os magistrados. No sistema de common law, os advogados são eloquentes e os argumentos e opiniões jurídicas baseados no comportamento das pessoas são muitas vezes estranhos e complicados. Se o juiz não passar por uma reflexão e análise aprofundadas, não pode pronunciar-se sobre o caso. É por isso que vemos frequentemente o tribunal adiar o julgamento depois de ouvir as declarações de ambas as partes. Num julgamento, não importa se o juiz concorda com as opiniões do queixoso ou do réu, ao redigir a sentença, deve usar suas próprias palavras para expressar e analisar as opiniões jurídicas de ambas as partes, o que é uma tarefa muito difícil. É realmente muito complicado para os juízes correrem contra o tempo e concluírem rapidamente o seu trabalho sob pressão, quando a situação que exige muita reflexão.

Esta “cópia judicial”, para além de abrir portas a um recurso, também desencadeou muita controvérsia pública. Se circunstâncias semelhantes surgirem noutros casos, tal constituirá muito provavelmente um motivo para recurso para ambas as partes. Com base no julgamento deste caso, outros casos semelhantes têm maior probabilidade de serem reencaminhados para novo julgamento.

O Presidente do Supremo alertou o juiz competente para evitar este comportamento de forma a impedir que situações semelhantes voltem a acontecer. A longo prazo, o poder judicial pode ponderar a necessidade de rever o Código de Conduta dos Juízes, e identificar a “cópia judicial” como uma acção a que os juízes devem estar atentos. Acredita-se que esta alteração pode aumentar a confiança do público e de ambas as partes em litígio no sistema jurídico de Hong Kong. Além disso, uma vez que ainda existe uma grande acumulação de processos penais, o poder judicial pode considerar a possibilidade de aumentar o número de juízes-adjuntos, a fim de julgar o número de processos em atraso o mais rapidamente possível. Desta forma, o juiz pode ter mais tempo para preparar e redigir a sentença, o que pode evitar a recorrência da cópia judicial.

20 Jun 2023

Seis meses de inquérito à TAP

Seis meses, meus amigos. Seis meses de inquirições na Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP. Aproximadamente 60 sessões de audições das mais variadas personalidades que terminaram na passada sexta-feira. Podemos concluir que se tratou de uma maratona parlamentar repleta de confusões, mentiras, deturpações, corrupção, desvios do tema principal, confrontos partidários, inquiridos a deturparem factos verdadeiros. Um sumário de assuntos que deveriam ser apenas relacionados com a TAP e assistimos a dada altura à ocupação das inquirições a um escândalo de um adjunto do ministro João Galamba que foi demitido após a chefe de Gabinete do ministro Galamba que recebeu ordens governamentais para contactar o SIS (Secretas), a fim de reter o computador de trabalho do referido adjunto ministerial ao bom estilo da antiga PIDE/DGS, quando se tratava de um assunto unicamente relacionado com a Polícia Judiciária. Este tema deu água pela barba e o povo acabou por ficar sem qualquer confiança nos SIS, por esta instituição não estar provida estatutariamente de qualquer acção do foro policial ou judicial.

A Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP abordou ao longo dos seis meses os mais diferentes acontecimentos relacionados com a TAP, tais como privatização da empresa, nacionalização, indemnizações absurdas e investimento estatal de mais de três mil milhões na empresa num total desrespeito pelo dinheiro dos portugueses. A dada altura, o tema principal foi verdadeiramente ligado às indemnizações ilógicas e ilegais, como os 55 milhões a um fulano que era accionista da empresa enquanto privada, 500 mil euros à engenheira Alexandra Reis e apenas porque a CEO francesa da TAP entrou em discordância com a administradora portuguesa. A mesma Alexandra Reis haveria passado pouco tempo de ingressar como presidente da NAV, uma empresa igualmente pública e da área da aviação civil e logo de seguida “roubada” à tutela do Ministério das Infraestruturas para o Ministério das Finanças, por sinal, ministérios tutelados por dois rivais políticos, Fernando Medina e Pedro Nuno Santos. As audições conseguiram ser tão maçadoras e nada esclarecedoras que o país inteiro estava desejoso que terminasse o desiderato indicado.

As contradições e mentiras foram de tal ordem que podemos adiantar que a pior presença na sala de audições foi a do actual ministro das Infraestruturas, João Galamba, que simplesmente demonstrou incompetência, má preparação para a inquirição mentindo sobre factos que já estavam provados e a melhor presença foi efectivamente a de Pedro Nuno Santos, ex-ministro das Infraestruturas e Habitação que haveria de se demitir devido ao caso relacionado com Alexandra Reis. Pedro Nuno Santos mostrou ser um “lobo” político que se iniciou nestas andanças aos 14 anos de idade e que se apresentou aos deputados bem preparado, com seriedade, assumindo os erros cometidos e as responsabilidades que lhe coubera. É na verdade, o grande candidato a ser o futuro líder do Partido socialista.

As audições para as pessoas mais distraídas tiveram um número surpreendente de presenças que nos deixa perplexos ao imaginarmos as incongruências que ali foram ditadas. Para que tenham uma ideia real do que teria acontecido foram ouvidos pela Comissão algumas personalidades tais como: Eugénia Correia, chefe de Gabinete do ministro João Galamba; presidente da Comissão de Vencimentos da TAP; Fernando Pinto, ex-presidente executivo da TAP; Sindicato dos Técnicos de Manutenção de Aeronaves (SITEMA); Sindicato Independente de Pilotos de Linhas Aéreas (SIPLA); Sindicato dos Aeroportos de Manutenção e Aviação (STAMA); Plataforma de Sindicatos de Terra do Grupo TAP; Cristina Carrilho, coordenadora da Comissão de Trabalhadores da TAP; Tiago Faria Lopes; Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil (SPAC); Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Aviação Civil (SINTAC); Paulo Duarte, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Aviação e Aeroportos (SITAVA); Ricardo Penarróias, dirigente do Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC); Mário Lobo, Parpública; Carlos Durães de Conceição, Parpública; José Gato, Direção Geral do Tesouro e Finanças; Maria João Araújo, Direção Geral do Tesouro e Finanças; Representante da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados responsável pela representação de Alexandra Reis nas negociações com a TAP; César Sá Esteves, jurista da SRS Advogados; António Manuel Ferreira dos Santos, Inspector-geral da Inspeção-Geral de Finanças; Manuel Teixeira Rolo, ex-Presidente do Conselho de Administração da NAV; Jaime Serrão Andrez, presidente da Parpública; Luís Ribeiro, ex-presidente da ANAC; José Luís Arnaut, presidente do conselho de administração da ANA; Violeta Bulc, comissária Europeia que avalizou a privatização da TAP em 2015; Margrethe Vestager, comissária Europeia que tratou da reestruturação da TAP; Sérgio Monteiro, secretário de Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações entre 2011 e 2015; António Pires de Lima, ministro da Economia entre 2013 e 2015; Pedro Marques, ministro das Infraestruturas entre 2015 e 2019; Luís Laginha de Sousa, presidente da CMVM; Responsáveis da DGComp com o acompanhamento do plano de reestruturação da TAP; Carlos Elavai, Managing Director e Partner da BCG; Auditores da TAP (PWC); Maria de Fátima Castanheira Cortês Geada, ex-Presidente do Conselho Fiscal da TAP; Luís Manuel Martins, Comissão Vencimentos TAP; Responsável pelo departamento jurídico da TAP na ausência de Stéphanie Sá Silva; Stéphanie Sá Silva, ex-diretora jurídica da TAP; Abílio Martins, ex-vice presidente do Marketing and Sales, da TAP; João Weber Gameiro, ex-administrador financeiro da TAP; António Macedo Vitorino, presidente da Assembleia Geral da TAP; David Neeleman, ex-accionista e administrador da TAP; Diogo Lacerda Machado, ex-Administrador Não-Executivo da TAP; Miguel Frasquilho, ex-presidente do conselho de administração da TAP; Rafael Quintas, ex-administrador financeiro da TAP; Antonoaldo Neves, Ex-CEO da TAP; Ramiro Sequeira, ex-CEO e atual Chief Operating Officer da TAP; Humberto Pedrosa, ex-accionista e administrador da TAP; Gonçalo Pires, administrador financeiro da TAP; Manuel Beja, presidente do conselho de administração da TAP; Christine Ourmières-Widener, CEO da TAP; Alexandra Reis, ex-administradora executiva da TAP, ex-Presidente do CA da NAV e ex-Secretária de Estado do Tesouro; João Galamba, ministro das Infraestruturas; Maria Antónia Barbosa de Araújo, ex-chefe do Gabinete do Ministro das Infraestruturas e da Habitação e actual chefe do Gabinete do Secretário de Estado das Infraestruturas; Hugo Santos Mendes, ex-secretário de Estado das Infraestruturas; João Nunes Mendes, ex-secretário de Estado das Finanças de João Leão e ex-secretário de Estado do Tesouro de Fernando Medina; Miguel Cruz, ex-secretário de Estado do Tesouro; Mário Centeno, ex-ministro das Finanças; João Leão, ex-ministro das Finanças; Pedro Nuno Santos, ex-ministro das Infraestruturas e da Habitação (período 2019 e 2023) e Fernando Medina, ministro das Finanças. É inacreditável e fantástico. Tanta personalidade ouvida, e ao fim e ao cabo, as contradições foram tantas que ninguém entendeu nada de nada.

19 Jun 2023

A temperatura e os crepúsculos

COMEÇOU na segunda-feira o maior exercício militar aéreo da história da NATO, o “Air Defender 23”. Coordenado pela Alemanha, onde o ‘kaiser’ e o ‘führer’ deixaram certas ambições antigas e recalcadas, o objetivo destas manobras é demonstrar a conformidade e a prontidão de todos os membros da aliança, face a potenciais ameaças, venham elas da Rússia ou da China, mancomunadas estas ou não, e vai decorrer até dia 23. Aliás, o chanceler Scholz, social-democrata em modo Kautsky, afirmou hoje mesmo que a China é uma ameaça para a Alemanha.

Assim, aumenta seriamente a temperatura que já é tórrida na presente II Guerra Fria. Nos céus atlânticos, mediterrânicos, bálticos, nórdicos e polares já voam 250 aeronaves de 25 países natistas, além do Japão, que alegam querer fortalecer a resposta ao ar, ao mar e à terra, em caso de confronto que pode incluir drones e mísseis.

Em jeito de rodapé, apetece-me pôr aqui o que certamente não aconteceria na martirizada Ucrânia e Donbass, se o Pentágono, a NATO, a União Europeia e o Presidente Zelensky obedecessem ao que ficou plasmado na Ata Final dos Acordos Internacionais de Helsínquia e no Acordo de Minsk.

Sem contar os mortos de ambos os lados, que já são muitos milhares (militares e de civis), a ofensiva bélica da Rússia causou até agora, segundo a ONU, a fuga de 14,7 de pessoas, ou seja, 6,5 milhões de deslocados internos e mais de 8,2 milhões de ucranianos para países europeus.

Leopardices

ENCONTREI quarta-feira, na Régua, com o longo canhão apontado às vinhas de Loureiro, um Leopard 2, o ultramoderno carro de combate que dá, quase todos dias, histórias com deliciosos temperos aos gulosos que comem tudo o que chegue da guerra da Ucrânia.

Veio de Lamego para a celebração, hoje, do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, à beirinha do Rio Douro, e, a meio da descida da A24, teve ser salvo do fogo que desatou a queimar as 16 rodas do reboque. Foi um vê se te avias de carros de bombeiros a rolar no asfalto, mas só ali passei dois dias depois, pelo que não ouvi o concerto de sirenes alarmadas que, compreensivelmente, revoou pelas encostas.

Salvou-se o leopardo guerreiro, mas eu, a 400 quilómetros de distância, vou, se tiver pachorra para tanto, ouvir o Marcelo na televisão.

É bem possível que ele aproveite a circunstância para deitar mais umas pitadas de veneno de efeito lento no prato do Costa.

Crepúsculos

CHOVEU esta noite, forte e feio. A meio da manhã, em todo o Douro, o céu ainda era um dossel total em tons de chumbo que impunha uma espécie de crepúsculo matinal. Tudo continuava molhado nesta varanda, nestas vinhas em cascata e em toda a paisagem apreensível.

Aí pela hora do almoço, já não chovia nem disso se notava ameaça. Depois de Lamego, o sol começava a bater em pontos vários das serranias frontais, porque o dossel estava a sofrer grandes rasgões e as massas escuras de nuvens densas, fragmentando-se, formavam enormes rebanhos de nimbos zoomórficos que arranhavam impunemente o azul celeste.

EU tinha pela frente 400 quilómetros de asfalto molhado e um tráfego nervoso que não me assustou, porque apenas se adensou a partir de Viseu. Começou a molhifar na zona de Coimbra, passando a chuviscos intermitentes em poucos minutos, porque o dossel se refez e até o ar escureceu, ficando baço e pardacento.

À passagem pela zona de Santarém, a chuva tornou-se tão intensa e barulhenta que só os farolins vermelhos das constantes travagens à minha frente eram discerníveis, como se a depressão “Óscar”, que anteontem fustigou a Madeira e estava prevista a tarde de amanhã no Continente, houvesse antecipado a sua chegada para hoje.

Aliás, de madrugada, quando acordei e fui ver a água teimosa que escorria oblíqua do céu, não percebi a situação e pareceu-me urgente voltar a adormecer e em nada pensar. Só que o meu pensamento é rebelde, mesmo quando não deve, e mantém tiques de mergulhador – entre outros desvarios, foi cair em Tordesilhas e por lá navegou durante alguns minutos.

Felizmente adormeci de novo já no crepúsculo matinal, ainda com chuva, mas depois, nas quase cinco horas da tormentosa viagem do meu regresso à beira-Tejo, voltei a matutar nas manobras de D. João II.

Num dia anómalo como este, a primeira coisa que fiz quando cheguei a casa foi escabichar nos meus livros o que havia sobre o Tratado de Tordesilhas.

Aconteceu, de facto, num dia 7 como o de hoje, a assinatura de um acordo internacional que ficou para a História com o título de “Tratado de Tordesilhas”. Foi em junho, no ano de 1494, que os altos representantes do Reino de Portugal e da Coroa de Castela firmaram um compromisso que atribuía a propriedade das terras “descobertas e a descobrir” de um lado e do outro do Atlântico, tendo como linha de demarcação o meridiano 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão, no arquipélago de Cabo Verde. Por isso é que os idiomas dominantes, ainda hoje, no Brasil e no Chile, respetivamente, são o português e o castelhano, enquanto no país da morna predomina o crioulo.

É bom recordar tudo isto, porque o incumprimento de acordos e tratados está a fazer uma guerra fratricida na Ucrânia e, aqui para nós que ninguém nos ouve, até o caudilho Franco chegou a arquitetar uma grande operação de conquista de Portugal ainda antes de iniciar a Guerra Civil de Espanha, em 1936.

O Tratado de Tordesilhas foi ratificado por Castela a 2 de julho e por Portugal a 5 de setembro de 1494. Do lado português estiveram presentes na cerimónia Rui de Sousa, senhor de Sagres e Beringel, o seu filho João Rodrigues de Sousa, almotacém-mor, e Aires de Almada, corregedor dos feitos civis na corte e do desembargo real.

A nossa embaixada foi secretariada por Estêvão Vaz e teve como testemunhas João Soares de Siqueira, Rui Leme e Duarte Pacheco Pereira. Por parte de Castela e Aragão, o mordomo-mor D. Henrique Henríquez, D. Guterre de Cárdenas, comendador-mor, e o doutor Rodrigo Maldonado, secretariados por Fernando Álvarez de Toledo, que levaram consigo três testemunhas, Pêro de Leão, Fernando de Torres e Fernando Gamarra, nomes agora nada nos dizem, mas que talvez se arrependessem hoje de grande parte do que impuseram uns aos outros.

Os originais encontram-se depositados no Archivo General de Indias, na Espanha, e no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal, onde são consultáveis, mas deixaram de vigorar a partir de 1750, quando ambas as coroas estabeleceram novos limites fronteiriços para a divisão territorial nas colónias sul-americanas, concordando que rios e montanhas seriam usados para demarcação dos limites.

Portugal, buscando proteger o seu investimento, já tinha negociado com Castela em 1479 o Tratado de Alcáçovas, obtendo em 1481, do Papa Sisto VI a bula Æterni regis, que dividia as terras descobertas e a descobrir de ambos os lados do paralelo que passa pelas Canárias.

Foi como dividir o mundo em dois hemisférios e deixar o do norte para a Castela e o do sul para Portugal, resultado a que se somavam o efeitos das duas outras bulas anteriores a Dum Diversas, de 1452, e a Romanus Pontifex, de 1455, do Papa Nicolau V, que concedia à Ordem de Cristo todas as terras conquistadas e a conquistar a sul do cabo Bojador e da Gran Canária. Gentes e bichos que lá vivessem eram bons para o tráfico de escravos e para a caça grossa, que dava muito jeito a conquistadores e missionários. Claro que as negociatas não acabaram aqui, mas já chega de curiosidades pouco edificantes.

15 Jun 2023

Um conto de sexo e cancro

Há um cancro que é fácil de prevenir se as pessoas tiverem acesso a uma boa educação sexual e a um bom plano de vacinação.

Este cancro é provocado por um vírus transmitido sexualmente, vírus do papiloma humano, conhecido pelo acrónimo inglês HPV. É um vírus tão comum que cerca de 90 por cento das pessoas terá tido contacto com ele durante a sua vida sexual. São 150 estirpes do vírus, muitos deles não perigosos, que o corpo descarta no espaço de dois anos. A infecção é considerada a constipação do sexo, uma inevitabilidade de quem tem sexo, independentemente do número de parceiros. Os preservativos ou oral dams até podem reduzir um pouco o risco de transmissão, mas não são muito eficazes. Basta o contacto de pele com pele. A infecção é normalmente assintomática, mas podem surgir verrugas genitais, ou condilomas genitais, um dos sintomas mais comuns de fácil tratamento.

Contudo, existem duas estirpes do vírus que estão muito associadas ao desenvolvimento do cancro: o 16 e o 18. Embora associado ao cancro do colo do útero, este vírus pode ser também responsável pelo cancro da vulva, da vagina, do pénis, do ânus ou da garganta.

Infelizmente, a vacina tem sido anunciada como a vacina do cancro do colo do útero, e por isso aconselhada a pessoas com um útero. Nas políticas ainda binárias, as meninas ainda jovens podem levar a vacina dentro do plano nacional de saúde de muitos países. Recentemente começaram a incluir a vacinação nos meninos. Esta (lenta) inclusão não tem sido muito eficaz na conscientização das tantas outras formas sexuais e cancros que podem surgir. Ao não vacinar homens, estamos a deixá-los mais vulneráveis. Isso incluiu homens que fazem sexo com homens e/ou com mulheres.

Em 2013, numa entrevista ao The Guardian, Michael Douglas revelou que o seu cancro da garganta tinha sido provocado por cunnilingus. Para além da histeria inicial, foram poucos os que quiseram desdramatizar de forma informada. A verdade é que tem havido um crescimento de cancros da garganta provocados por HPV, mas também é verdade que são facilmente prevenidos com vacinação.

 A vacina é polémica, como devem calcular. A população em geral está resistente em tomá-la. Primeiro, porque protege as pessoas de uma infecção sexualmente transmitida e ninguém gosta de pensar que pode ser afectado por tal. O estigma das infeções sexualmente transmissíveis desabrocha do medo de uma suposta actividade sexual prolífica, que ninguém quer assumir. Segundo, a vacina protege de um cancro que ninguém sabe se vai desenvolver. E se é verdade que muita gente vai estar em contacto com o vírus sem nunca desenvolver cancro, como tantas as outras infecções na história, só através de uma vacinação em massa é possível erradicar completamente o risco.

Na estória de sexo, infecção e cancro, uma vacina antes do início da vida sexual equivale a um acto heróico. E não só, a vacina é igualmente eficaz para quem já tenha iniciado a vida sexual e já tenha tido infecção por HPV. Para os adultos, infelizmente, é uma vacina dispendiosa se a tivermos de financiar. Mas se o vírus do HPV é praticamente inevitável, só com uma vacinação massiva o tornamos absolutamente inútil.

14 Jun 2023

Inteligência Artificial (II)

A semana passada, falámos sobre a carta aberta divulgada pela Organização Sem Fins Lucrativos “Center for AI Safety”, onde era solicitada a suspensão da investigação em sistemas de inteligência artificial mais avançados do que o GPT-4. A razão apresentada era o perigo que o mau uso da inteligência artificial (IA) pode representar para a humanidade.

Alegava-se que poderia vir a ter “consequências desastrosas. Um exemplo da má utilização da IA é a produção e divulgação na Internet de vídeos falsos. Os softwares com tecnologia de redes neurais podem retirar as roupas às pessoas fotografadas, exibi-las nuas e criar imagens pornográficas, dando origem a vídeos e áudios falsos. Depois de produzidos, podem ser publicados na Internet.

Na altura, colocámos a seguinte questão: sobre quem recai a responsabilidade criminal, sobre o produtor do software, ou sobre quem o usou para criar os vídeos? A questão moral também se coloca nesta situação, porque a nudez obscena não deve ser exibida perante crianças nem circular online. Como é que a sociedade lida com este problema? Referimos ainda que a IA pode ser considerada em três fases distintas, a saber, Inteligência Artificial Limitada, Inteligência Artificial Geral e Super Inteligência Artificial. Estamos actualmente a desenvolver a segunda fase da IA.

No actual estado de desenvolvimento, a IA pode substituir pessoas que desempenhem tarefas simples e repetitivas

Pelas notícias que nos chegam, não é difícil perceber que estão a ser feitas experimentações em sistemas de condução não tripulados. Se estes sistemas forem completamente desenvolvidos, os motoristas têm de encontrar outro trabalho. Aqui, não podemos deixar de perguntar, deveremos continuara a aperfeiçoar estes sistemas de IA e deixar os motoristas desempregados?

Provavelmente o melhor será os motoristas começarem a ganhar outras competências para precaverem o futuro. O desemprego destes profissionais vai reduzir as receitas do Governo porque vão deixar de pagar impostos laborais e o Governo pode ser obrigado a aumentar os impostos das empresas de transportes para compensar as perdas. Este imposto extra que recai sobre empresas mais automatizadas, chama-se imposto robótico e já está em vigor em alguns países europeus. A introdução do imposto robótico, para além de assegurar que as receitas do Estado não serão reduzidas devido à substituição de trabalhadores por sistemas computorizados, destina-se sobretudo a criar um Fundo que permita formar e ensinar outras competências a quem ficou sem trabalho por ter sido substituído por computadores. O imposto robótico pode, assim, reduzir os efeitos negativos da implementação dos sistemas de condução não tripulada.

Por enquanto, alguns profissionais não podem ser substituídos pela IA, como advogados e professores. Num processo jurídico, os advogados esgrimem diferentes pontos de vista legais e cada um deles tem um peso diferente no processo. A IA não pode julgar porque não sabe distinguir os diferentes pesos dos argumentos legais apresentados.

A IA nasce a partir de uma imensidade de dados, dados esses acumulados através da experiência humana ao longo da História. Por conseguinte, a IA lida facilmente com a realidade existente e tem menos probabilidades de cometer erros, mas não consegue lidar com o que ainda não existe. A novidade não está inserida no sistema de dados a que o computador tem acesso. No entanto, as profissões da área jurídica têm de lidar constantemente com novas leis e casos peculiares e isto é algo com que a IA não consegue lidar.

A IA também não pode substituir os professores, porque quem ensina tem de ver se os alunos estão a perceber as matérias e estar atento a vários factores como expressões faciais, movimentos, perguntas e concentração, de modo poder explicar o assunto a partir de diferentes ângulos. O sistema de IA pode criar um vídeo com a explicação da matéria da aula, mas não pode responder às respostas dos estudantes, tendo em conta diversas situações, como faz um professor verdadeiro.

A IA é uma tecnologia de ponta na área informática. Esta tecnologia irá certamente desenvolver-se ainda mais e surgirão inevitavelmente novos problemas. O desenvolvimento da IA vai ser indissociável da questão da responsabilização e das questões de ordem moral. A IA é uma tecnologia criada pelos Homens e deve ser usada em benefício de todos. Talvez os cientistas que trabalham nesta área devessem ter em conta o que foi feito quando se começou a estudar o ADN, de forma a criarem comités para supervisionarem e regularem o desenvolvimento desta tecnologia e evitarem abusos e “consequências desastrosas”. De futuro, quando as condições o permitirem, este sector será legislado e regulado.

Futuramente, a IA pode vir a ultrapassar-nos e os computadores poderão desenhar e compor melhor do que os humanos. Se esse dia vier, a arte passará a ser fruto da civilização humana ou da “civilização” da IA? O mundo mudará por causa das pessoas ou por causa da IA? Imaginemos que estamos a discutir com um modelo de inteligência artificial questões como o aborto ou as alterações climáticas. A IA usa a imensa base de dados recolhida ao longo da experiência da humanidade e vai analisá-la connosco. No entanto, a IA não tem sentimentos humanos e não compreende as conotações emocionais e morais do aborto nem consegue sentir as consequências das alterações climáticas. Neste momento, o que é que a IA representa para as pessoas? O que é que vai trazer aos seres humanos? Falámos de algumas consequências do desenvolvimento da IA, ou seja, do pensamento não humano.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão do Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

13 Jun 2023

Teatro em patuá – Rompendo o tempo e o espaço da língua

Por 林江泉 Lam Kongchuen*

Na área da Grande Baía, existe uma língua única que transcende as barreiras linguísticas, rompe as fronteiras culturais e cria ligações multilingues. As pessoas recombinam-se e exploram novas vidas neste interface especial de “duas palavras e três línguas” ou mesmo de composição multilingue, e continuam a enfrentar as incógnitas linguísticas com uma atitude aberta em relação às diferentes línguas. Só existe uma região com uma tão misturada língua: o Patuá em Macau.

O Patuá é um património cultural formado em Macau durante a colisão e turbulência das culturas chinesa e ocidental, derivado principalmente do antigo dialecto português de Macau. Tem por base o português, misturado com os dialectos chinês e cantonense, bem como com malaio, espanhol, goês, canarim, inglês. Emite uma força colectiva de linguagem, e as fronteiras da comunicação parecem já não estar definidas e limitadas por um tempo e um espaço específicos, tornando-se uma mistura e um receptor de linguagem, tornando-se assim uma testemunha do desenvolvimento da história humana – a “história viva”. Um poeta francês disse um dia: “O pequeno tamanho de Paris é o seu grande tamanho”. A língua nativa é uma língua pequena na língua local, mas também exala uma grande tensão, reflectindo as características urbanas do intercâmbio cultural e do multiculturalismo entre o Leste e o Oeste em Macau.

O guião mais antigo publicado pelo Teatro em patuá indica como data de representação o dia 18 de Fevereiro de 1925, e a estudiosa macaense da cultura local, Elisabela Larrea, estima a sua história em mais de cem anos. Há trinta anos atrás, esta linguagem mista foi levada para o palco, desenvolvendo uma forma única de actuação em Macau – o Teatro em patuá. O Teatro em patuá é uma actividade artística única da comunidade Filhos da terra em Macau. Em 2021, foi incluído na “Lista de Projectos Representativos do Património Cultural Imaterial Nacional”. Actualmente, o Teatro em patuá tornou-se um projecto incluído no Festival de Artes de Macau. Na cerimónia de encerramento do 33.º Festival de Arte de Macau, o grupo aDóci Papiaçam apresentou uma peça original – “Chachau Alau di Carnival (Oh! Que Arraial!)”. A peça é uma expressão concentrada de “patuá” e também um sistema metafórico da língua, que altera as suas fronteiras, bem como as do tempo, do espaço e da vida. No mundo dramático em que o discurso substitui o enredo, o Teatro em patuá ocupa uma posição importante, alterando a psicologia e os hábitos de visionamento estabelecidos pelo público. O desenvolvimento do Teatro em patuá passou por uma fase construtiva de regressão dialéctica, integrando sentimentos individuais locais e reflexão cultural no drama, alargando continuamente as características artísticas únicas do drama misto.

Na sessão de “Chachau Alaau di Carnaval (Oh. Que Arraial!)”, os Filhos da terra representavam a maioria, muitos dos quais vieram com a família para assistir. Assisti a esta peça de duas horas e meia com a minha filha, de 6 anos, e já eram 23 horas. Antes de vir assistir à peça, a minha filha atinha participado no encontro desportivo de crianças nessa manhã. De um modo geral, a sua força física deveria ter-se esgotado excessivamente, mas não se sentiu nada cansada durante o processo de visionamento da peça; pelo contrário, ficou ainda mais excitada. Embora não consiga entender Patuá, compreende outras línguas, como o mandarim, o cantonês e o inglês. Ela assistiu de forma consciente e perceptiva e partilhou o riso e a resposta com o público. A arte dramática não é igual à narrativa: abrir a percepção é uma parte importante do visionamento de uma peça de teatro. A minha filha também falava cantonês antes de ir para o jardim-de-infância, mas depois da escola passou a falar sobretudo mandarim, o que afectou o seu hábito de falar cantonês. Desde que viu uma pequena parte de cantonês em “Chachau Alaau di Carnaval (Oh. Que Arraial!)”, voltou a despertar o seu interesse em falar cantonês. No segundo dia de visionamento da peça, ela começou a tagarelar incessantemente, imitando o “Bom dia” em Patuá para dar as boas-vindas à manhã, e até tentou comunicar connosco em cantonês durante um dia. Isto significa que a hipotética cena de representação do drama remove tudo o que não está relacionado com o drama e regressa à sua essência – a colecção da mente e da percepção.

Sendo a única dramatização da integração da comunidade dos Filhos da terra, o Teatro em Patuá torna “único” o programa do Festival de Artes de Macau,. O “Chachau Alau” em “Chachau Alau di Carnaval (Oh. Que Arraial! )”, realizado pelo Grupo de Teatro Dóci Papiaçám di Macau, dirigido por Miguel de Senna Fernandes, é um termo geral para utensílios de cozinha em cantonense, que é equivalente ao significado de “tachos e panelas” em mandarim. Aqui, é “preparação” e também preparação; é um carnaval e uma metáfora viva para “carnaval”.

A peça conta a seguinte história: com o relaxamento gradual das múltiplas medidas de prevenção de epidemias em Macau, o número de turistas que chegam continua a crescer. Um determinado bairro foi seleccionado como piloto para as actividades carnavalescas e uma série de espectáculos culturais e artísticos abrangentes serão realizados para participar no espectáculo do carnaval de Macau, acrescentando vitalidade à pequena cidade. Depois de a notícia deste plano se ter espalhado, houve muitos elogios por parte do público, e os residentes da comunidade esfregaram as mãos, esforçaram-se por conceber as actuações mais emocionantes e ensaiaram em conjunto. No entanto, para atrair mais espectadores com a participação do público, o organizador convidou inesperadamente um artista não local para actuar, o que surpreendeu os residentes da zona…

As duas cenas da peça também misturaram vários tipos de curtas-metragens de comédia e muitos dos espectadores também foram actores na parte da peça dedicada às curtas-metragens. Esta abordagem teatral desconstrutiva e disruptiva demonstra plenamente a natureza exploratória dos teatros multimédia. A peça produz um efeito composto de “drama e drama em sincronia”, utilizando o drama para desconstruir o drama. O drama já não é um drama absoluto, mas um drama que sempre foi um fenómeno de desenvolvimento social ou uma trajectória da vida quotidiana. O segmento de curta-metragem da peça inclui o segmento de performance “serious standup comedy”, de Carlos Morais José, “Eu e o Outro”, que discute principalmente a relação emaranhada entre Eu e o Outro num sentido filosófico. Brinquei com o facto de ter mantido sempre esta relação com as suas cartas. O mestre de teatro Peter Brook escreveu em “The Open Door” que o drama começa com uma relação: “O drama começa quando duas pessoas se encontram e se uma pessoa se levanta e a outra olha para ela, já começou. Para que se desenvolva, é necessário que uma terceira pessoa se encontre com a primeira. Desta forma, está vivo e pode continuar a desenvolver-se. Mas os três elementos no início são os mais básicos”.

Este ano coincide com o 30º aniversário da fundação do Grupo de Teatro Dóci Papiaçám di Macau. O drama Chachau Alau di Carnaval foi apresentado no encerramento do festival. O festival abriu especialmente com a “Exposição de fotografias do Grupo de Teatro Dóci Papiaçám di Macau: Multiculturalismo em Palco há 30 Anos”, convidando o público a entrar no interior deste património cultural imaterial nacional a partir de múltiplas perspectivas. De facto, a exposição pode também ser encarada como um drama estático, prefigurando uma forma de “descobrir o teatro”. Pode dizer-se que a “peça na peça” ou “curtas-metragens na peça” de “Chachau Dalau di Carnaval” e a exposição de imagens do grupo de teatro estão de acordo com os três elementos do drama de Peter Brook.

O Teatro em Patuá tem as características do estilo ocidental de “revista”, sobreposto à forma de actuação da Opereta. Esta peça humorística é fundamentada, popular e acessível, e a história é simples. Através dos diálogos e acções cómicas, zangadas e engraçadas dos actores, faz piadas e sátiras sob a forma de comédia ou farsa, critica a situação actual, combina ironia subtil com humor e exprime a situação dos seres humanos na sociedade contemporânea sob a forma de farsa, apresenta o verdadeiro estado da existência humana numa atmosfera de comédia compressiva. Os temas do Teatro em Patuá são na sua maioria retirados de Macau, e giram em torno de pequenas coisas da vida para desencadear o pensamento, reflectindo os pensamentos e pontos de vista dos macaenses, mostrando as características culturais da sua natureza optimista, um Macau profundamente amado e procurado por muitos macaenses e chineses locais. Quer em termos de enredo global, quer em termos de pontos individuais do enredo, “Chachau Alaau di Carnaval” procura sempre um equilíbrio entre a linguagem e a narrativa: a preposição da linguagem e o recuo da narrativa conseguem esse equilíbrio. Os criadores traduziram e codificaram o protótipo de Patuá, tentando restaurar a aparência original da vida, e tudo voltou ao teatro.

O seu cenário é quotidiano, próximo do ambiente diário da vida real de Macau, e o sistema de beleza da dança tende a concentrar-se no requinte, explorando o significado potencial da localidade e a simbolização da Área da Grande Baía. Ao mesmo tempo, os actores fazem um estilo carnavalesco de “reunir e falar” com o público, tornando-o parte integrante do desenvolvimento do enredo, eliminando assim a distância entre os actores e o público. Através da representação desta peça, o Teatro em Patuá ganhou uma nova alcunha: “Drama de estilo carnavalesco”. A integração de alguns elementos humorísticos omnipresentes na vida quotidiana para retratar de forma mais realista a vida de uma comunidade minoritária não só exprime o alcance da língua no desenvolvimento social e histórico, como também aumenta o poder multidimensional da peça.

Actualmente, pelo menos 43 por cento das cerca de 6000 línguas existentes no mundo estão em vias de extinção. As pessoas esforçam-se por procurar novas tecnologias e métodos artísticos para as salvar. Actualmente, apenas alguns residentes de Macau ainda usam o patuá, que está listado como “língua em vias de extinção” pela UNESCO. E o Teatro em patuá de Macau está a despertar a atenção da sociedade para a cultura dos Filhos da terra e a sua influência no mundo teatral sob a forma de arte. Humboldt, um linguista e educador alemão, disse que: “Cada língua contém uma visão única do mundo”. Quando uma língua desaparece, os seres humanos perdem uma visão do mundo e a riqueza dessa sua visão. A diversidade do mundo foi afectada pela homogeneização e o Teatro em patuá manteve sempre a sua singularidade, tornando-se uma linguagem e um mecanismo artístico que explora constantemente a riqueza dentro das suas limitações.

Em “Chachau Alau di Carnaval” há uma frase que aparece constantemente: “Macau está empenhado em construir uma base de intercâmbio e cooperação com a cultura chinesa como a corrente principal e diversas culturas coexistindo.” Da herança crítica à prosperidade cultural inovadora, tem ajudado o desenvolvimento económico moderadamente diversificado de Macau, tornando-se um novo cartão de visita para Macau se tornar global. O Teatro em patuá parte de Macau, passa por São Francisco, São Paulo, Porto, Lisboa e outras cidades, e tem vindo a desempenhar o papel de movimento em direcção a diferentes continentes. Brook escreveu em “Time Line”: “Não é um drama, é uma viagem”. Miguel de Senna Fernandes, fundador e líder do Grupo de Teatro Dóci Papiaçám di Macau, é um dos Filhos da terra. Há mais de 270 anos, os seus antepassados criaram raízes em Macau, viajando de longe. Ele acredita que, no futuro, poderá transformar as peças em dialecto local numa plataforma cultural e tornar-se numa ponte para o intercâmbio cultural entre a China e Portugal. Miguel abordou a essência do drama – viajar é comunicar e a história da comunicação humana e das viagens é composta por uma série de dramas.

*Artista contemporâneo, director de teatro e cinema, escritor e poeta

13 Jun 2023

A ingratidão do 10 de Junho

Li atentamente no Facebook uma referência a um macaense que é um grande artista plástico, um gráfico de se lhe tirar o chapéu e autor, há vários anos, do cartaz do 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, de seu nome Victor Hugo Marreiros.

O texto referia que a República Portuguesa já o devia ter condecorado pelo seu amor a Portugal na exteriorização da sua arte. Não faço a mínima ideia se Macau já o agraciou, o que sei é que nunca vi que o artista tivesse sido chamado ao Palácio de Belém para receber uma condecoração nacional bem merecida. Esta, é uma das formas de ingratidão do 10 de Junho que se diz dedicado às Comunidades Portuguesas.

O que têm feito os diferentes governos portugueses pelas suas comunidades espalhadas pelo mundo? Têm enviado bolas de futebol para entreter a pequenada do Luxemburgo, de Moçambique, da Austrália ou dos Estados Unidos da América? Têm-se preocupado com os lusodescendentes que se licenciaram nas mais diversas universidades internacionais e contactá-los para saber o que precisam no futuro da sua profissão ou mesmo convidá-los a trabalhar em Portugal? Têm organizado os inúmeros consulados portugueses a receber condignamente os emigrantes que aos milhares desejam tratar do seu cartão de cidadão ou passaporte? Neste particular de “consulados” temos sido uma vergonha. A maioria dos casos informa os portugueses no estrangeiro que são “honorários”. Em outros casos, dizem que os assuntos têm de ser tratados nas embaixadas, assim ao estilo de tirar a água do capote. Por exemplo, no grandioso país que é a Austrália, como é que um português pode dirigir-se de Darwin, Perth, Brisbane ou mesmo de Melbourne até Camberra para ir à Embaixada de Portugal, se nem sequer sabem o horário de atendimento.

Não, não é um dia dedicado às Comunidades Portuguesas. Essas comunidades pouco ou nada usufruem da atenção, dedicação e obrigação de velarem pelos seus inúmeros problemas. Em grande número de casos, os emigrantes resolvem os seus problemas burocráticos quando se deslocam de férias a Portugal, normalmente no mês de Agosto. Há emigrantes que nem sabem onde é o consulado português, querem registar a sua nova vida, leia-se, residência, no país para onde decidiram viver e não o conseguem fazer.

Em Inglaterra, ao longo dos anos, temos lido as mais diversas queixas dos nossos compatriotas contra os consulados que não estão ao seu serviço. No Canadá um casal quis registar o seu filho que acabara de nascer e responderam-lhe que o registo seria feito após os dois anos de idade. Dois anos? A que propósito? É assim que se dedica o Dia de Portugal às Comunidades Portuguesas?

O que temos assistido é à ignóbil fanfarronice de anualmente um secretário de Estado, um ministro ou o primeiro-ministro e o Presidente da República deslocarem-se a um país onde residem portugueses, chegam lá, “mamam” umas almoçaradas e jantaradas, dão uns beijinhos, proferem uns discursos ocos e sem sentido, afirmam que gostam muito do patriotismo de quem por lá trabalha de sol a sol e viajam em primeira classe, porque a económica nas aeronaves deve ter percevejos…

O Dia de Portugal não pode ser a ida à África do Sul do Presidente Marcelo zangado com o primeiro-ministro António Costa, fingirem que nem se veem e andarem a visitar uns museus sul-africanos – o que tem isso a ver com os emigrantes? –, participarem nuns jantares com beijinhos e abraços aos que foram convidados, nem sequer explicar aos mais jovens quem foi o nosso maior poeta Luiz de Camões e regressar o mais depressa possível à Régua para observarem no Douro a poluição dos barcos do patrão da TVI e um fogo de artifício. Na Régua até o ministro João Galamba foi assobiado pelo povo e o primeiro-ministro confrontado pela ineficácia dedicada aos professores. O que restou de benefício para os portugueses da África do Sul a visita oficial deste ano? Nada.

Portugal tem de pensar profundamente que estes emigrantes que vivem desamparados oficialmente pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros são os mesmos que depositam milhões de euros nos bancos portugueses anualmente. Eles ajudam a economia portuguesa, eles fazem por viajar na TAP, eles alugam carros em Portugal, eles edificam a sua casa nas suas terras natais, eles frequentam durante um mês tudo o que é monumento, restaurante e mercado. E isto, não tem importância? O Governo não se acha com competência para colocar os consulados portugueses a servir dignamente os emigrantes? Não tem informações dos nossos emigrantes que adquiriram um prestígio enorme onde vivem, tal como o artista de gabarito internacional Victor Hugo Marreiros? Como diria o meu vizinho: “Não me lixem”…

Crédito para a foto: Cartaz de Victor Hugo Marreiros

11 Jun 2023

As acções valem mais do que as palavras

As belas fábulas contadas ao longo de milhares de anos não passam de histórias e não é possível matar a fome com o desenho de uma fatia de bolo. Para vivermos num mundo de fadas encantado, temos de construí-lo com as nossas próprias mãos.

Recentemente, durante a sessão de interpelações orais da Assembleia Legislativa, o secretário para os Transportes e Obras Públicas, Raimundo do Rosário, afirmou que, em Maio, se deslocaram no Metro Ligeiro cerca de 5.500 passageiros. Raimundo do Rosário acredita que com a abertura em sequência da Linha da Barra, da Linha de Hengqin e a da Linha da Taipa, haverá cada vez mais pessoas a utilizar o Metro Ligeiro. Salientou também que não é fácil conseguir um orçamento equilibrado na área dos transportes públicos, em parte alguma do mundo. Finalizou, mencionando que houve um concurso público para administrar as lojas na Estação da Barra do Metro Ligeiro, mas que até agora ninguém concorreu, o que demonstra a falta de interesse na proposta.

Se bem me lembro, durante o planeamento inicial da construção do Metro Ligeiro, as autoridades apresentaram-no ao público recorrendo a estimativas quantitativas e afirmaram que cada quilómetro de linha serviria aproximadamente 50.000 habitantes, demonstrando desta forma que seria um meio de transporte útil. No entanto, a realidade mostrou que os custos de construção do Metro Ligeiro, contando com alguns problemas de ordem técnica, excederam amplamente as estimativas. Não estaremos de forma alguma a exagerar se chamarmos a este projecto um elefante branco. De uma perspectiva comercial, não é surpreendente que não surjam propostas para gerir as lojas da Estação da Barra do Metro Ligeiro, porque a incerteza paira sobre o futuro desta estação. Se o Governo não tomar em linha de conta os aspectos práticos, os projectos fracassam.

Por outro lado, a secretária para os Assuntos Sociais e Cultura, Ao Ieong U, fala ponderadamente, mas dizer a verdade não significa que os problemas se vão resolver ou que se vá adoptar uma abordagem pragmática. Segundo alguns noticiários, quando interpelada pelos deputados da Assembleia Legislativa, a secretária Au afirmou que, de acordo com a previsão da Direcção dos Serviços de Educação e de Desenvolvimento da Juventude, no próximo ano, o número de estudantes em Macau atingiria o seu pico, chegando aos 88.000, número que virá progressivamente a decair para os 81.000 em 2030. Ao mesmo tempo que promovem reformas em escolas sem características pedagógicas distintivas, as autoridades vão exigir que outras reduzam o número de alunos por turma no ano lectivo de 2025/2026. Caso contrário, as “escolas pequenas” ou sem características pedagógicas distintivas vão ter dificuldade em recrutar alunos.

Aparentemente a secretária Au tem, de facto, feito grandes esforços para preservar a sobrevivência das “pequenas escolas” e das escolas sem características pedagógicas distintivas face a uma taxa de natalidade persistentemente baixa em Macau. No entanto, estas políticas proteccionistas podem na verdade ajudar as escolas sem características pedagógicas distintivas a proceder a reformas e melhorar a sua qualidade de ensino ao longo dos anos? Há alguns anos, a Direcção dos Serviços de Educação e de Desenvolvimento da Juventude convidou grupos pedagógicos de Xangai a visitar Macau para o intercâmbio de experiências e pontos de vista, nomeadamente a experiência de transformação de escolas “desfavorecidas” de Xangai, que tinham uma notação pedagógica fraca e passaram a ter uma boa notação. Se Xangai pode fazê-lo, porque é que Macau não pode?

Já se passaram vários anos e, em Macau, a taxa de retenção de alunos no ensino não superior tem vindo consistentemente a baixar devido a vários esforços. No Estudo sobre o Progresso Internacional da Literacia (Progress in International Reading Literacy Study), Macau aparece classificado a nível mundial entre o 9.º e o 15.º lugar. Com um desempenho tão extraordinário, se ainda nos preocupamos com a sobrevivência das “pequenas escolas” e das escolas sem características pedagógicas distintivas, onde é que estão os verdadeiros problemas?

9 Jun 2023

Crepúsculos

Choveu esta noite, forte e feio. A meio da manhã, em todo o Douro, o céu ainda era um dossel total em tons de chumbo que impunha uma espécie de crepúsculo matinal. Tudo continuava molhado nesta varanda, nestas vinhas em cascata e em toda a paisagem apreensível.

Parecia urgente voltar a adormecer e em nada pensar. Só que o meu pensamento é rebelde, mesmo quando não deve, e mantém tiques de mergulhador – entre outros desvarios, foi cair em Tordesilhas.

Aconteceu aí, num dia 7 como o de hoje, a assinatura de um acordo internacional que ficou para a História com o título de “Tratado de Tordesilhas”.

Foi em junho, no ano de 1494, que os altos representantes do Reino de Portugal e da Coroa de Castela firmaram um compromisso que atribuía a propriedade das terras “descobertas e a descobrir” de um lado e do outro do Atlântico, tendo como linha de demarcação o meridiano 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão, no arquipélago de Cabo Verde. Por isso é que os idiomas dominantes, ainda hoje, no Brasil e no Chile, respetivamente, são o português e o castelhano, enquanto no país da morna predomina o crioulo.

É bom recordar tudo isto, porque o incumprimento de acordos e tratados está a fazer uma guerra fratricida na Ucrânia e, aqui para nós que ninguém nos ouve, até o caudilho Franco chegou a arquitetar uma grande operação de conquista de Portugal ainda antes de iniciar a Guerra Civil de Espanha, em 1936.

O Tratado de Tordesilhas foi ratificado por Castela a 2 de julho e por Portugal a 5 de setembro de 1494. Do lado português estiveram presentes na cerimónia Rui de Sousa, senhor de Sagres e Beringel, o seu filho João Rodrigues de Sousa, almotacém-mor, e Aires de Almada, corregedor dos feitos civis na corte e do desembargo real.

*

FIQUEI hoje a saber de um terrível desastre português, já bem visível do Minho ao Algarve, que resulta igualmente das alterações climáticas que ontem aqui chamei e que atacam, de facto, não só os pássaros, mas também os outros seres viventes, incluindo a fauna humana, porque todos dependem fundamentalmente de haver água no céu e na terra.

No final de abril já estavam oficialmente em situação de seca severa, no nosso país, 40 concelhos e em seca extrema 27, o que corresponde a 40% do território continental. A manter-se a falta de chuva, muitas hortas e quintais vão sendo abandonados, canteiros floridos vão murchando, não poucas vinhas vão sendo menos cuidadas e milhares e milhares de árvores vão fenecendo. Assim, daqui a poucos anos, vai ser dramática a continuação da falta de chuva e o envelhecimento das populações rurais e urbanas, já que vão instalar em Portugal grandes áreas desérticas, mesmo que se passe, como acontece em boa parte da França, a um regime drástico de racionamento do precioso líquido no consumo doméstico, à proibição do uso e da comercialização de piscinas, bem como o fim da lavagem de carros e da rega de jardins e mesmo interdição de novas edificações em localidades em que menos de um terço das casas apenas sejam habitadas sazonalmente pelos proprietários de segundas habitações ou por turistas.

Talvez surpreenda que os franceses, apesar da sua história cultural, ainda tenham casos extremos de religiosidade popular como aqueles que nós registamos relativamente a Fátima, ou em povoações que organizam procissões a pedir água a Deus e a sua mãe.

Na sua crónica de ontem, no “Público”, Ana Cristina Leonardo contava que “em Perpignan, terra fronteiriça frequentada por Dali e Picasso, a falta de água atingiu proporções tais que as forças católicas locais decidiram reavivar, no passado mês de maio, uma procissão esquecida há quase 150 anos. Em devoção do santo Galderic (nome catalão), um santo de origem camponesa já conhecido no século IX (e provavelmente até os menos crentes…) percorreram as ruas de Perpignan implorando chuva ao Altíssimo.

Não foi o único cortejo realizado na região dos Pirenéus Orientais. Se, entretanto, não chover, a meio de agosto não haverá mais água” aproveitável em toda essa região.

Acresce que uma reportagem de há um ano e picos, realizada pela BBC, mostrava que a escassez de água já afeta aproximadamente 40% da população mundial, segundo estimativas da ONU e do Banco Mundial que calculam para 2030 o número terrível de 700 milhões de deslocados em consequência das secas. Em simultâneo, na Europa, na Ásia, na África e nas Américas, sucedem-se as tempestades catastróficas, as inundações navegáveis, a submersão de extensas regiões, os aluimentos e derrocadas de terras com arrastamento de casas e milhares de mortos e desalojados, além de mobilidades várias.

Estou em Vila Real, onde tem chovido nos últimos dias e há previsão de trovoadas e brutais ganizadas, mas ainda não ouvi alguém falar de procissões nem de outras rezas coletivas. Não me admiraria se Dali ou Picasso, ressuscitados por um milagre de Fátima, preferissem vir passar nas civilizadas faldas do Marão os últimos dias das suas vidas.

A nossa embaixada foi secretariada por Estêvão Vaz e teve como testemunhas João Soares de Siqueira, Rui Leme e Duarte Pacheco Pereira. Por parte de Castela e Aragão, o mordomo-mor D. Henrique Henríquez, D. Guterre de Cárdenas, comendador-mor, e o doutor Rodrigo Maldonado, secretariados por Fernando Álvarez de Toledo, que levaram consigo três testemunhas, Pêro de Leão, Fernando de Torres e Fernando Gamarra, nomes agora nada nos dizem, mas que talvez se arrependessem hoje de grande parte do que impuseram uns aos outros.

Os originais encontram-se depositados no Archivo General de Indias, na Espanha, e no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal, onde são consultáveis, mas deixaram de vigorar a partir de 1750, quando ambas as coroas estabeleceram novos limites fronteiriços para a divisão territorial nas colónias sul-americanas, concordando que rios e montanhas seriam usados para demarcação dos limites.

Portugal, buscando proteger o seu investimento, já tinha negociado com Castela em 1479 o Tratado de Alcáçovas, obtendo em 1481, do Papa Sisto VI a bula Æterni regis, que dividia as terras descobertas e a descobrir de ambos os lados do paralelo que passa pelas Canárias.

Foi como dividir o mundo em dois hemisférios e deixar o do norte para a Castela e o do sul para Portugal, resultado a que se somavam o efeitos das duas outras bulas anteriores a Dum Diversas, de 1452, e a Romanus Pontifex, de 1455, do Papa Nicolau V, que concedia à Ordem de Cristo todas as terras conquistadas e a conquistar a sul do cabo Bojador e da Gran Canária.

Gentes e bichos que lá vivessem eram bons para o tráfico de escravos e para a caça grossa, que dava muito jeito a conquistadores e missionários. Claro que as negociatas não acabaram aqui, mas já chega de curiosidades pouco edificantes.

7 Jun 2023

Imperatriz

Há jogos, como aqueles de Michel Tournier no seu Tarot de Marselha em «Sexta -feira ou os limbos do Pacífico», em que a jogada era estranha e dava repostas desconcertantes, mas todo o enredo acaba por corroborar a resposta de xadrez do jogo visionário. O herói cai ao mar, não morre, vai para uma ilha, e ali irá passar longos anos que vamos conhecendo pela narrativa do autor. Mas as cartas do Tarot não ficaram, contudo, naufragadas, circulando por aqui em forma oracular, que entre o Mediterrâneo e o Atlântico há forças bem diferentes, que mares não são oceanos, embora tudo seja água. A trajectória vai dar ao Pacífico e a passividade a lado nenhum, que viajar é preciso e viver não é preciso, trazendo à lembrança os velhos Argonautas. Preciso, só mesmo o acaso.

Pode uma Imperatriz ficar dentro da gaveta sem que no jogo oracular ninguém dê pela sua falta? Não só pode, como aconteceu. Também lá poderiam ter ficado o Diabo, o Imperador, o Mundo… enfim, todos afinal cabem dentro das gavetas, mas sentiriam sua falta os consulentes, que estas coisas são como os alfabetos, uma soma de caracteres que em média dá vinte e dois, e se aos diálogos faltar alguma destas componentes, lá estão os mestres escola a procurar as faltas, que estes atentos ao erro são em si mesmo uma paralisia que não deixam espaço livre a falhas alheias. Ora num jogo de imponderáveis vamos então saber que não há excluídos, e que a força do domínio de cada um, impera, e se nem com a razão altaneira conseguimos vislumbrar por vezes um elefante à frente do nariz, imagine-se fontes outras em que nada está de acordo com a sistematização da infalibilidade racional!? Não acreditar é como não saber, duvidar é medir com o ponteiro do relógio a vida que se teme, estar preso a si mesmo é a denúncia de uma condição tristíssima, e assim jogamos a extenuante falta do aprendizado que continua sem ver a falta de uma Imperatriz.

Mas vamos voltar então às nossas gavetas onde escondemos, guardamos, atolamos, vislumbramos… e saber que tal como escondemos as coisas, também as coisas se escondem de nós, e que na medida que as vamos possuindo elas também nos possuem, e que depois de nada estar a resultar no jogo desta travessia me lembrei então de súbito ir de novo à gaveta: e ei-la deitada, olhando para cima como um sinal. Neste aparato deveras transformador, lembrei todas elas e a marca deixada de um poder com raízes tão terrenas que os céus se fecharam para que as pudéssemos contemplar, e que um simples jogo de Tarot numa noite amena de quase Primavera fustigou a buscá-las. A primeira lembrada foi Teodora, depois Catarina, no centro uma impressão grave de que uma Imperatriz era muito mais que uma Rainha, que estas espectaculares mulheres não nascem na Europa Ocidental senão em forma de caricatura, e que a caricatura impressa por esposos governantes fê-las muito governáveis. Era a noite para contemplar a Imperatriz que não desejou pertencer a nenhum baralho onde a sua influência contemporizasse com forças outras. Ela ficou fechada, por fim falou. O que disse em sua divisa foi enorme; não estava ali para prestar favores, nem seguia nenhuma romaria ao altar dos poderes, ela era um poder. Esta impressão transversal ao que desejamos incluir, pode ser por momentos um instante extremamente angustiante…não sabemos se nos fustiga… interroga… suplica… ou nos dá um código para denunciar grandes equívocos.

Justiniano era forte e não lasso,

Justiniano era feito de aço.

E agora Justiniano, o bravo,

Está aí de uma mulher escravo

Situacionismo! Falamos do Código Justiniano. Teodora elaborara as leis que restringiam a liberdade dos homens, destronara de seguida um papa presidindo a todas as petições e julgamentos. Teodora não era a consorte, em termos de sorte também nem sempre fora bafejada, sendo aqui o império Bizantino a fonte imperial mais conseguida para uma evolução gigantesca que o mundo de então, e o de agora, ainda desconhecem. Julguei vê-la no baralho do Tarot, mas logo surgiu Catarina, e na contemplação arquetípica que se havia dado por esquecida, era evidente a supremacia a Leste destas figuras. Catarina, a Grande, a mediadora nata que já lá para trás pelejara na guerra Russa-Sueca, no Império Otomano, soube como transformar a relação com a Europa Ocidental, reduzir com firmeza o poder da igreja ortodoxa russa, e ainda ampliar as fronteiras do Império para sul e para ocidente: Crimeia, Ucrânia, Bielorrússia, acrescentando assim 518 000 quilómetros à nação. Uma Imperatriz que se ocupou das artes e da filosofia, um intercâmbio civilizador que viria a resultar como modelo humanista. E dito isto vamos omitir agora a sua águia de ouro e a cruz que encima o orbe e buscar sua outra imagem ao livro do Apocalipse:

“…e surgiu uma grande maravilha no céu;

uma mulher vestida de sol

com a lua debaixo dos pés e, sobre a cabeça,

uma coroa de doze estrelas”

Nada mais parecido que o seu desejo de um vestido branco em sua mortalha, apenas ornado com uma coroa dourada na cabeça.

7 Jun 2023

Inteligência artificial (I)

No passado de 31 de Maio, alguns jornais de Hong Kong anunciaram que várias centenas de cientistas, liderados pot Sam Altman, Director-Executivo da Open AI, – uma empresa recente que desenvolveu o chat robótico, com base em inteligência artificial, ChatGPT – bem como o cientista Xin Dun, conhecido como o “Padrinho da Inteligência Artificial”, e executivos da Google e da Microsoft assinaram conjuntamente uma carta, divulgada através da organização sem fins lucrativos “Center for AI Safety”, na qual solicitam a interrupção das investigações em sistemas mais avançados do que o GPT-4, alegando que o mau uso da inteligência artificial (IA), pode ter consequências graves para a humanidade.

O ChatGPT é usado principalmente em sistemas de IA interactivos. Recentemente, foi noticiado que a Universidade de Hong Kong proibiu os estudantes de usarem o ChatGPT para redigirem os seus trabalhos académicos o que demonstra o poder deste sistema informático. O GPT-4 é uma das versões da aplicação ChatGPT, que está adequado a um vasto leque de tarefas processadas por computador e comandadas por voz, como produção de textos, compreensão de linguagem humana, resposta a perguntas, tradução, etc.

Recentemente, o Presidente Xi Jinping declarou que é necessário aperfeiçoar o nível do processamento de dados em rede e da segurança do uso da IA.

Casos semelhantes ao acima mencionado ocorreram no passado mês de Março, quando mais de 1.800 líderes da área tecnológica assinaram uma carta aberta. Entre eles encontravam-se nomes como Bill Gates da Microsoft, apelando a uma moratória sobre o desenvolvimento de sistemas de IA mais avançados do que o GPT-4, durante os próximos seis meses. Na carta pergunta-se se os sistemas de IA devem substituir os humanos em todas as tarefas possíveis? Devem os humanos desenvolver “mentes” artificiais para substituir as suas próprias mentes? Devemos perder o controlo das nossas civilizações? Na carta afirma-se que se não for imposta de imediato uma moratória a seis meses, o Governo deve intervir e impô-la ele mesmo. Os laboratórios de IA e os peritos independentes devem aproveitar esta oportunidade para desenvolverem e implementarem em conjunto protocolos de segurança para a IA avançada, sujeitos a auditoria e supervisão rigorosas por peritos externos independentes.

Um apelo semelhante foi feito em 2018. No relatório “O Uso Pernicioso da Inteligência Artificial: Previsão, Prevenção e Mitigação” publicado por 26 peritos em IA, assinala-se que os abusos nesta área terão consequências desastrosas. São disso exemplo os vídeos falsos e a pirataria informática.

Em Junho de 2019, surgiu um software de tecnologia de redes neurais que despia as pessoas retratadas em fotografias e, a partir daí, criava imagens pornográficas. Estas imagens podem depois ser usadas para criar vídeos falsos. Se alguém publicar um vídeo falso, comete um delito e fica sujeito a uma pena, mas quando é o computador a publicar um vídeo falso na Internet, através de um sistema de IA, como é que pode ser responsabilizado? Para além do aspecto da responsabilidade criminal, é preciso salientar que a nudez obscena não pode ser exibida perante crianças nem circular online. Como é que a sociedade lida com vídeos obscenos produzidos por software de tecnologia de redes neurais? Não existe só uma resposta a pergunta, mas não deixa de ser uma questão moral e social.

Quem detém os direitos dos áudios e vídeos produzidos pelo software de tecnologia de redes neurais? A legislação dos direitos de autor, estipula que quem faz o vídeo detém os direitos e tem de receber uma percentagem sobre a sua comercialização. Neste caso, os direitos pertencem ao fabricante do software que gerou o vídeo e o áudio falsos, ou à pessoa que usou o software para os criar? Esta pergunta não tem uma resposta simples já que não existe legislação nem acordo entre as partes.

Ao nível tecnológico actual, quando nos referimos à IA estamos a falar da capacidade que os computadores passam a ter para simular a inteligência humana, para aprender e resolver problemas. A IA pode ser sub-dividida em três fases, nomeadamente, Inteligência Artificial Limitada, Inteligência Artificial Geral e Super Inteligência Artificial. Actualmente estamos a desenvolver o segundo estádio de IA.

A primeira fase é a Inteligência Artificial Limitada, que se foca numa única tarefa e tem um desempenho repetitivo. O software AlphaGo é um exemplo típico desta fase. Embora o AlphaGo possa ganhar o campeonato mundial de xadrez, não consegue desempenhar outras tarefas. Estão também incluídos nesta fase os sistemas de condução não tripulada, o uso de robots para automatizar a produção, o uso de IA para avaliar riscos, prever tendências de mercado, etc.

A segunda fase é a Inteligência Artificial Geral, e significa que o sistema informático, à semelhança de um ser humano, tem capacidade para desempenhar qualquer tarefa intelectual. Como já foi mencionado, o “Center for AI Safety” apelou para que fosse suspensa toda a investigação em sistemas mais avançados do que GPT-4, que é exactamente o foco do desenvolvimento da IA nesta segunda fase. O Congresso americano intimou Sam Altman, Director Executivo da Open AI, para responder a questões sobre o ChatGPT. Durante a audiência, Sam Altman afirmou que é “muito importante” que o Governo americano regule esta indústria à medida que a IA se desenvolve.

Nick Bostrom, filósofo da Universidade de Oxford e especialista em IA, define a fase III, a Super Inteligência Artificial como “inteligência que ultrapassa largamente os maiores cérebros humanos em quase todos os domínios, incluindo a criatividade científica, a inteligência geral e as competências sociais.” Uma metáfora simples pode ilustrar a situação desta fase. Os seres humanos têm que estudar por muito tempo para se tornarem engenheiros e enfermeiros, mas a Super Inteligência Artificial pode aperfeiçoar-se continuamente enquanto os seres humanos não conseguem fazê-lo.

Na próxima semana, continuaremos a nossa discussão sobre os efeitos negativos da IA nas nossas sociedades e sobre a melhor abordagem para lidar com a situação.


Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão do Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

6 Jun 2023

Portugal está a perder a juventude

Quando eu andava no Liceu de Évora apenas sonhava com a universidade em Lisboa. A família tinha meios financeiros para que eu pudesse estudar. Digo-vos isto, porque no nosso país estão a acontecer fenómenos tristes e desoladores com a nossa juventude.

Cada vez há menos alunos que desistem do ensino secundário; cada vez mais estudantes que terminam o secundário não têm possibilidades de ordem financeira para se inscrever numa qualquer universidade; cada vez mais temos “jovens” com 35 anos de idade a viver na casa dos pais porque não têm emprego que lhes proporcione o aluguer de uma residência; cada vez mais existem casais de namorados que não podem decidir casar porque não têm possibilidade de pagar as despesas do casamento, dinheiro para conseguirem uma casa e muito menos pensar em ter filhos; cada vez mais temos jovens universitários que a meio dos cursos desistem por falta de apoio oficial para o pagamento das propinas e procuram um trabalho diverso, em alguns casos, apenas conseguem laborar num restaurante; cada vez mais temos jovens que terminam o curso superior e não têm condições para obter o mestrado e o doutoramento; cada vez mais temos jovens que tiram o curso de enfermagem e assim que iniciam o trabalho num hospital ou centro de saúde, logo concluem que o salário obtido não chega para sobreviver e decidem emigrar; cada vez mais assistimos a jovens licenciados a emigrarem para Inglaterra, Alemanha, França e Holanda; cada vez mais somos confrontados com jovens que nos interrogam se existe alguma possibilidade de irem trabalhar para Macau; cada vez mais temos à vista desarmada jovens a dormir na rua depois de terem consumido um qualquer tipo de estupefaciente e cada vez mais ouvimos jovens a dizer que em Portugal não têm futuro e que se vão embora para o estrangeiro.

Naturalmente, que esta realidade é chocante e revoltante, porque as autoridades governamentais não querem dar-se conta que o país está a perder a sua juventude e que daqui a uma década serão muito poucos os jovens que viverão em Portugal. Não é possível chegar aos 35 anos e continuar a viver em casa dos pais, alguns na companhia da namorada. E este caso processa-se em residências paternais que têm possibilidades de sustentar os filhos, porque a grande maioria não tem o pecúlio necessário para manter os filhos em casa. Isto, é degradante, é triste e leva-nos a pensar que os governantes não têm qualquer preocupação com o futuro da juventude.

Há dias, um jovem que tinha desistido do curso de Medicina por não poder pagar as despesas inerentes às aulas, dizia-nos que iria para Espanha, mais concretamente para Madrid, visto que tinha lá um amigo que lhe arranjava um bom emprego numa clínica médica e que simultaneamente poderia terminar o seu curso clínico. São inúmeros os exemplos como este. Os jovens só por si são revolucionários e sonhadores. Nós também o fomos, mas nos dias de hoje em Portugal nem podem ser revolucionários nem sonhadores. O único sonho é a emigração. E esta, tem inserido milhares de raparigas e rapazes. Se forem a Paris ou a Londres logo se deparam com este triste panorama, felizmente de bom grado para os jovens que decidem emigrar. E há o outro lado da moeda. A família. Os jovens que emigram sofrem com saudades dos pais, dos irmãos e muitas vezes das namoradas. Os pais ficam pelas suas localidades a vaguear e a pensar a toda a hora nos filhos que viram partir e que não sabem quando os voltarão a rever. É um quadro negro para uns e outros. Para os que partem e para os que ficam.

Na semana passada recebi um email de um filho de um amigo pedindo-me que nada dissesse aos pais. O jovem transmitiu-me que iria deixar a Europa e que tinha arranjado um bom contrato para exercer a sua profissão de engenheiro na Nova Zelândia. Ou seja, no fim do mundo. Imaginam certamente, o estado em que vão ficar os seus pais quando souberem que o filho vive para lá da Austrália. O país, melhor, os responsáveis pelo ensino e pelo trabalho dos jovens têm muito rapidamente de mudar de atitude e legislar medidas de grande apoio social aos jovens. Se um estudante a meio do curso participa às autoridades que não tem dinheiro para continuar, o Governo tem a obrigação de lhe pagar as propinas. O Governo não pode continuar a assistir impávido e incompetente face ao que se passa com a juventude. E, para não falarmos no ano lectivo que está a terminar e que foi um ano perdido para a maioria dos estudantes devido à justa luta dos professores que há mais de um ano enfrentam um ministro da Educação incompetente, cruel, arrogante e que conseguiu que durante o ano lectivo as escolas estivessem praticamente encerradas. Ainda na semana que findou os professores atravessaram Portugal de norte a sul para explicar ao povo do interior as razões da sua luta e a incompreensão vaidosa do ministro e da sua equipa na tutela da Educação.

Não temos dúvidas que Portugal está a perder a sua juventude, o que já acontece nos dias de hoje. As estatísticas de jovens que têm emigrado são assustadoras e chocantes. Termino com um apelo a quantos amigos leitores vivem em Macau: se receberem algum contacto de um licenciado a pedir ajuda para trabalhar na RAEM, façam tudo o que puderem para que esses jovens possam ter um trabalho, casa, companheira e filhos.

4 Jun 2023

O cômico como espelho: Teatro em Patuá e a celebração dos 30 anos de Dóci Papiaçam di Macau

Como unga fula nacê aqui

Na básso d’unga sol qui brilhâ assi

Na verdi perfumado deste jardim

Na casa qui sâm nôsso

Nôs têm aqui

Iou co vôs

Miguel de Senna Fernandes

“Eu sou maquista!”, dito em Patuá, aponta para o reconhecimento profundo desse sentimento de identidade que marca o coração de quem é macaense. Dito pelos atores, a frase catalisou fortes emoções no público que assistiu ao espetáculo Oh, Que Arraial! do grupo Dóci Papiaçam di Macau no encerramento do Festival de Artes. A apresentação, portanto, se revela como uma declaração de amor à cidade, com todas suas contradições e idiossincrasias, muito bem exploradas da cômica dramaturgia da obra, que conta a história de uma Macau que se abre novamente para os turistas numa era pós-pandemia, tentado realizar uma festa popular para revitalizar culturalmente um dos seus bairros mais tradicionais.

Além de configurar uma homenagem à cultura macaense, o espetáculo Chachau-Lalau di Carnaval – nome original em Patuá – é uma celebração aos 30 anos de longevidade desse grupo teatral que mais bem expressa o sentimento de ser macaense. Sua existência, por si só, constitui um feito em uma época em que a continuidade e a longevidade já não representam um grande valor.

Em termos de memória e crítica cultural, é importante reconhecer os signos mobilizados ao longo do espetáculo. Chau-cháu-lau-lau é antes de mais nada uma bagunça, uma mixórdia, uma confusão. Chau-cháu é o termo para se referir ao guisado à chinesa, onde todas as carnes se misturam. É esse termo que dá a dimensão cômica, mas também poética e política, do modo de existir maquista: a diversidade é o que nos identifica. O que é o mesmo que reconhecer que, em Macau, houve combinação. Sem que a essa combinação se faça um juízo imediato de valor, mesmo porque, no bojo da combinação convivem, muitas vezes, forças antagônicas e sabores duvidosos. Se cozinhar é a arte de encontrar o ponto, encenar é a arte de combinar as diferenças.

Historicamente, sabemos que dessa combinação – desse guisado – saíram sabores e saberes que constituíram uma gastronomia própria, uma linguagem própria, uma arte própria. Manifestando formas de existir e sentir que se realizam pela síntese de uma diversidade que se entrelaça.

A língua patuá, resultado desse encontro entre a cultura portuguesa com a cultura chinesa – mas também com as culturas malaia, espanhola, canarim de Goa e inglesa – é uma dessas sínteses de um ponto de fusão radical entre os diferentes que vieram aportar na Grade Baía, no delta do Rio das Pérolas.

Muitas vezes chamada de crioulo macaense, o patuá, a despeito de seu valor histórico, tem sido classificado pela UNESCO como uma língua criticamente ameaçada, ou seja, que está em vias de extinção. Por essa razão, cresce ainda mais, em importância, o trabalho do grupo Dóci Papiaçam di Macau. Sua existência ganha um sentido mais profundo: ao encenar em patuá, vive para fazer viver. Existindo para dar continuidade ao que existe, incorpora em si o dilema de toda a cultura macaense. Não sendo mais Portugal – algum dia chegou a ser? – poderá vir a ser China? – alguma vez deixou de ser? Na encruzilhada entre o “não mais” e o “não ainda”, alcançará ser coisa própria ou deixará de ser tal coisa alguma?

Macau vive a maldição dos híbridos, interface à espreita de interesses políticos, que dos ambíguos buscam tirar proveito: Macau é apresentada como uma plataforma multicultural a serviços das grandes potências e seus mandatários engravatados. A interculturalidade e o multilinguismo se manifestam na peça, com personagens que não se entendem em um espaço físico em que habitar não necessariamente significa conviver. E no qual a exploração de uns pelos outros pode compor a gramática dos encontros.

Enquanto isso, no rés do chão da vida comum, os populares cuidam do ordinário: um barrigudo ergue a camisa para refrescar-se, uma moça alucina ser digital influencer, um estrangeiro oportunista busca emprego, um velho canta canções antigas e uma senhora leva nas costas o comércio que sustenta a família. Cenas tão cotidianas de uma Macau pedestre. O efeito cômico só existe, e toda gente ri, porque na caricatura estão os traços reveladores do que se vê na realidade. Quando os exageramos, podemos defini-los melhor. E o riso na plateia eclode frente aos absurdos que os tais traços revelam. Afinal, são personagens fictícios ou são nossos próprios retratos?

Pelo exagero, os medos também se mostram: o medo de ter filhos imprestáveis, o medo de não ter sucesso, o medo de ser dominado, o medo de ser esquecido, o medo da contaminação pela doença. Entre o teatro de revista e a opereta, a peça comunitária se profissionaliza na discussão de grandes temas. Aqui também há palco para grandes tragédias.

Macau, que vive do turismo, enfrentou o medo de desaparecer nos tempos de pandemia. Efetivamente, para muitos expatriados que aqui passaram décadas de suas vidas, Macau deixou de existir. Ex-maquistas, acometidos pelo infortúnio dos reveses da vida, retornaram a suas ex-pátrias. Duplicaram em si o impasse dessa pátria: habitam um lugar incerto entre o ser e o deixar de ser. Desencontros e frustrações também compõem nossa história.

Do ponto de vista da linguagem, o espetáculo combinou trechos de projeções audiovisuais com atuação cênica, produzindo intermezzos cinematográficos em que esquetes cômicas foram apresentadas antes e após um pequeno intervalo dividindo a peça em dois atos. A inserção da linguagem audiovisual nos permitiu refletir sobre as modalidades intermidiáticas de comunicação e as formas de dizer mediadas pelas tecnologias. Jogando com gêneros jornalísticos e programas de variedades, muito presentes na internet e na programação televisiva de Macau, percebemos mais claramente as performances e encenações envolvidas experimentadas em formas cotidianas de dizer. Nesse caso, também lidamos com as máscaras e os fracassos dos processos comunicacionais de hoje em dia.

Essa produção valoriza o esforço feito pelo grupo nos últimos anos, contextualizando inclusive o contexto pandêmico, de produzir e difundir vídeos no YouTube, com o mesmo caráter cômico e crítico à cultura macaense que já aparecia nas produções estritamente teatrais. Essa inserção no espaço das redes sociais, um ciberespaço sem fronteiras, reforça a missão do grupo de não apenas preservar o patuá, mas de projetar essa língua para além dos limites da ilha. O sentido de continuidade aparece também aí, na renovação de gêneros comunicacionais e artísticos. Mas nenhum deles é maior do que o sentido de renovação que aponta para a esperança de continuidade expressa nos comentários do diretor Miguel de Senna Fernandes quando olha para as crianças e adolescentes que atuam no espetáculo: a vida continua. Ao longo dessa história, vão se forjando novas identidades, complexificando ainda mais a paisagem. Nesse jardim onde as sementes foram plantadas, o futuro sopra seu perfume: como uma flor que nasce aqui.

Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte.

1 Jun 2023

Adeus La Niña, El Niño está a chegar

Desde há cerca de dois meses que os serviços meteorológicos e oceanográficos observam a tendência para o aumento da temperatura das águas superficiais na parte central e leste da região tropical do Oceano Pacífico.

Baseado em observações e modelos, os meteorologistas estão a prever que este aquecimento se vai acentuar dentro de alguns meses, o que muito provavelmente dará origem a mais um episódio do El Niño. Segundo a Organização Meteorológica Mundial, este fenómeno poderá induzir um aumento da temperatura média global, reforçando a tendência geral para o aquecimento inerente às alterações climáticas.

Atualmente a temperatura da superfície dessa região do Pacífico está próxima dos valores médios, o que indica que está na fase neutra que se seguiu a um episódio de La Niña extraordinariamente longo, que teve início em setembro de 2020 e terminou em março de 2023. Este é o segundo episódio de La Niña mais longo, desde 1950, apenas ultrapassado pelo que ocorreu entre a primavera de 1970 e a primavera de 1973 (37 meses).

Como é do conhecimento público mais atento, o El Niño é um fenómeno oceano-atmosférico que consiste no aquecimento da água superficial, em relação aos valores médios, na parte central e leste da região tropical do Oceano Pacífico. É assim designado porque a sua máxima intensidade ocorre estatisticamente próximo do Natal, referido nos países de língua espanhola por El Niño. Apesar desta denominação, que poderia gerar bons augúrios, este fenómeno tem como consequências, entre outras, a fuga de cardumes para águas mais frias, principalmente de anchovas, o que traz graves prejuízos aos pescadores peruanos. Contrariamente, La Niña corresponde a um período em que a temperatura superficial do oceano nessas mesmas regiões apresenta valores de alguns graus abaixo da média.

O conjunto destes dois fenómenos e da fase neutra é designado nos meios científicos por “El Niño-Oscilação Sul” (El Niño-Southern Oscillation – ENSO), na medida em que, simultaneamente às variações da temperatura da água, ocorrem flutuações da pressão atmosférica à superfície entre as regiões leste e oeste do Pacífico Sul. Para caracterizar este fenómeno, foi criado o chamado “Índice de Oscilação Sul” (Southern Oscillation Index – SOI), que se obtém com base na comparação de anomalias da pressão atmosférica (desvios em relação aos valores médios) no Taiti e Darwin, respetivamente na Polinésia Francesa e Austrália.

As três fases do ENSO afetam a circulação geral da atmosfera de maneira diferente, principalmente no que se refere à chamada célula de Walker, conforme se ilustra de maneira esquemática, segundo interpretação da NOAA (National Oceanic and Atmospheric Administration dos Estado Unidos da América).

Como se pode constatar, nas zonas mais quentes da superfície oceânica em que o ar húmido converge, ocorre movimento ascendente (convecção) e consequente formação de fortes camadas nebulosas e consequente pluviosidade. Por outro lado, nas zonas em que há movimento descendente (subsidência) o céu apresenta-se praticamente limpo. Esta interpretação da NOAA ajuda a compreender como o tempo se comporta conforme as fases do ENSO. Estas alterações propagam-se temporal e espacialmente, afetando regiões longínquas. O fenómeno ENSO enquadra-se num mecanismo designado por “teleconexões”, que consiste no facto de certos fenómenos que ocorrem na atmosfera ou no sistema atmosfera-oceanos provocarem alterações na circulação atmosférica, não só nas regiões em que ocorrem, mas também em regiões longínquas, causando fenómenos meteorológicos significativos como, por exemplo, precipitação severa em algumas regiões e secas noutras.

Na fase neutra, os ventos alísios que sopram de leste para oeste (representados pela seta inferior da célula de Walker) arrastam a água superficial, aquecida pela radiação solar, para a parte oeste do Pacífico, provocando convergência à superfície nesta região, o que por sua vez causa movimentos verticais do ar húmido cujo vapor de água condensa dando origem a fortes camadas nebulosas.

Durante os episódios El Niño verifica-se um enfraquecimento dos ventos alísios sobre a região, passando a componente predominante do vento a soprar de oeste para leste, muito mais fraca, o que reforça o aquecimento da superfície do mar, atendendo a que não há arrastamento da água superficial pelo vento, o que impede a sua substituição por água mais fria vinda de zonas mais profundas. A convergência à superfície, agora mais para leste, origina forte convecção no parte central e leste da região tropical do Pacífico.

Durante La Niña, os ventos alísios intensificam provocando arrastamento da água superficial e consequente subida de águas profundas mais frias para a superfície, o que provoca transporte de nutrientes, dos quais se alimentam os peixes. Este fenómeno (substituição da água superficial, arrastada pelo vento, por água mais fria vinda de zonas mais profundas) designa-se por afloramento ou ressurgência (upwelling, em inglês).

Pode-se considerar La Niña, que consiste no arrefecimento de alguns graus em relação à média, como o fenómeno inverso ao El Niño.

Enquanto o El Niño dura cerca de 9 a 12 meses, os episódios de La Niña têm uma duração maior, entre de 1 e 3 anos. Ambos ocorrem alternadamente com periodicidade aproximada de 3 a 5 anos, separados pelas fases neutras.

No Peru o El Niño é classificado como “moderado” quando a temperatura da água à superfície sofre um incremento até 1,7 °C, “forte” quando o aumento é entre 1,7 a 3 °C, e “extraordinário” quando é superior a 3 °C. No Brasil, entre outras consequências, provoca redução da pluviosidade no norte e leste da Amazónia, o que cria condições propícias à ocorrência de incêndios florestais, seca no sertão nordestino, e pluviosidade intensa no sul. Também por influência deste fenómeno climático ocorrem secas, por vezes severas, na Índia, Indonésia, África e Austrália. No Peru, Equador, oeste dos EUA e litoral da Colômbia ocorre forte precipitação dando frequentemente origem a inundações e deslizamentos de terras nas regiões montanhosas. Na Venezuela, Suriname, Guiana, Guiana Francesa e interior da Colômbia as chuvas são escassas.

Ainda por influência do El Niño, nos meses de dezembro a maio, na parte da Ásia onde a região de Macau está inserida, ocorre maior precipitação do que nas fases neutra e La Niña, e a probabilidade de ocorrência de ciclones tropicais em abril e maio é menor.

Em anos de La Niña é provável a ocorrência de mais ciclones tropicais a afetar Macau do que em período neutro, e a monção de nordeste é em geral mais intensa de setembro a fevereiro, o que provoca tempo mais frio e menos chuvoso do que o normal.

Quando ocorrem fenómenos atmosféricos gravosos como ciclones tropicais severos, secas, marés de tempestade, etc., há uma certa tendência para imputar as suas causas às alterações climáticas, o que frequentemente não corresponde à realidade. Os fenómenos ENSO têm causas naturais e integram-se no que se convencionou designar por “variabilidade climática”, que consiste em variações do estado médio do clima em períodos relativamente curtos como um mês, uma estação, um ou poucos anos. As alterações climáticas, cujas causas são atribuídas aos gases de efeito de estufa, resultam da atividade humana e consistem em variações estatisticamente significativas do estado médio do clima, que persistem durante muito mais tempo e abrangem regiões mais vastas.

Meteorologista

1 Jun 2023

50 anos da morte de Picasso

Onde estava no dia 8 de Abril de 1973? Lembrei-me disto a propósito de Baptista Bastos e do Abril do ano que se seguiria. Ora, nós estávamos a crescer, pelo menos os da minha geração, muitos já iam avançados, outros não sabem, e muitos ainda hão de lembrar. Estávamos exatamente no dia da morte de Picasso […] sim, ele é um acontecimento como qualquer revolução, intempérie natural ou mesmo sobrenatural plasmado nesta nossa humanidade. Este, ainda por cima lindíssimo ser, nasceu lá para os lados das boas heranças peninsulares: Málaga, na Andaluzia, e nunca é demais vincular tal facto: é até bom lembrar a boa origem do sul, que por lá nasceu o melhor da Península Ibérica.

Por quê? Não sei. Talvez pressinta que nada há de melhor que estes mundos atravessados por povos tão morenos como luas, tocadores de cítara, amáveis e culturais, fecundos e macios. São católicos há tão pouco tempo na escala da civilização que nunca enfiaram bem o “barrete”, mas prodigalizaram-no à sua maneira tão terna e trágica! Afinal, é este Sul que nunca parou de jorrar as lendas mouras, a errância cigana, os judeus e os árabes, o vinho e as laranjas, a liberdade e a vida, que sempre nos trouxe a graça dos bem-nascidos.

Não se pode escrever acerca de Picasso sem uma humilde reverência e alguma natural intimidação, afinal falamos de um prodígio que marcou a arte do século vinte como nenhum outro e, por instantes, pensamos que ele tem qualquer coisa que nos escapa como se abordássemos a fonte por onde os feitiços nascem, a razão se esconde, e a prodigalidade acontece. A sua mãe dizia que, quando rapazinho, “ele era um anjo e um demónio de beleza”, ninguém se cansava de olhar para ele. Já o seu pai era um professor de desenho que muito cedo se apercebera da genialidade deste filho, passando-lhe os pincéis, e mais tarde todos os homens seriam esse pai destronado na versão do homem que o filho viria a talhar.

Ele é tido como alguém de muito generoso, preocupando-se com os outros, fazendo que um amigo dissesse que ele deu muitos mais quadros do que vendeu, mas Picasso era também um homem duro por necessidade de se autoproteger, e não perdoava faltas que talvez lhes parecessem absolutamente inestéticas. Mas estamos ainda nos primórdios e Espanha parece cada vez mais atarracada mesmo quando entra na Real Academia das Belas Artes, e vai então para Paris. Corria o ano de 1900. Passa da Fase Azul, passa para a Fase Rosa e rápido entra no Cubismo. O geométrico andaluz elimina o paisagístico e entra na sua herança cultural mais remota. Acabara-se o dom maneirista!

Mas Paris não é uma festa nestes primeiros anos ao contrário do romance de Hemingway e Picasso conhece a grande tribulação – mas Picasso é Picasso – e com seu amigo Max Jacob, que o acompanha no início da jornada, vai ensinar-lhe uma grande lição no meio dessa logística desesperança: aconselha-o a pôr de lado as suas lunetas e deixar de vestir-se como um lojista, dizendo-lhe: — Vive a tua vida como um poeta! Aqui sentimos-lhe a estirpe e a vocação de um anti-miserabilista, um certo garbo e lindíssima definição para neutralizar de vez o temor da sobrevivência. Tudo isto devemos reter.

«Nessa época, não nos preocupámos senão com o que fazíamos. E todos os que faziam se reuniam entre si. Apollinaire, Max Jacob, Salmom… Que aristocratas!» E, como a velha frase de Shakespeare «não há lembrança mais feliz que o tempo feliz na miséria», a morte de Apollinaire põe um fim definitivo à época extraordinariamente produtiva do «grupo Picasso». Era a Primeira Guerra Mundial. Prossegue. Vamos encontrar então mais tarde um Picasso mundano, bastante mais rico, frequentador de serões, dizendo: conduzir um carro é péssimo para os pulsos de um pintor. No seu “smoking” contrata também um motorista. Mas Picasso, rico ou pobre, nunca será um burguês. Já estávamos na Segunda Guerra Mundial, e Matisse afirma que se todos tivessem feito o seu trabalho como ele e Picasso, nada disso teria de novo acontecido. Picasso adere ao Partido Comunista em 1944 e conservará o seu cartão até à sua morte. No entanto a sua lúcida natureza de criativo insurgia-se contra o trabalho artístico poder ser inscrito nas lutas sociais, e dizia que um Rimbaud na Rússia seria tarefa impossível.

Picasso foi um ser humano devorador, pois que a sua noção de vida não era dada pelo cálculo da partilha ou de uma qualquer equidistância para a fastidiosa felicidade, por isso os seus amores foram sugados até ao tutano, mas creio com sinceridade na sua vocação de amante ilimitado, de tal forma que tudo brotou como alimento dado pelos efeitos das suas paixões. Tudo nele vibrou na presença da mulher que em seu tempo amou. Casou-se cinco vezes, por último comprou um castelo no sul de França, instalou-se com Jacqueline Roque, e o efeito foi como sempre: surpreendente. Picasso arde-nos entre os dedos, ele teve vida longa, ciclos diferentes, múltiplas vidas, e em todas elas encontramos o Avatar, aquele trabalhador incansável, o homem justo, o ser raríssimo, a treva e a luz, e a fecunda necessidade de se livrar do medo.

Nasceu a 25 de Outubro de 1881.

31 Mai 2023

Pilotar devagarinho (II)

A semana passada, falámos sobre a questão dos pilotos de uma conhecida companhia aérea de Hong Kong que conduzem os aviões muito devagar nas pistas e das queixas que vários aeroportos fizeram ao longo dos últimos meses devido a esta situação.

Normalmente, leva 10 minutos a conduzir um avião da porta de embarque até à pista de descolagem e alguns pilotos demoram 40 minutos para fazer este percurso, ou seja, mais 30 do que o necessário. Um dos motivos que pode levar a esta situação é a vontade dos pilotos de aumentar as suas horas de voo e, consequentemente, os seus salários. Na raiz do problema, poderá estar o cálculo salarial que, actualmente, é feito com base nas horas de voo efectivas e não nas estimadas, como a companhia aérea costumava fazer anteriormente.

Se o avião chega mais cedo ao seu destino, o piloto recebe menos. Além disso, o número de horas voadas certifica a experiência do piloto. Quanto mais horas de voo acumuladas, mais experiente será o piloto e maior será a confiança que o público deposita nele e na companhia aérea para a qual trabalha. Se parte destas horas de voo acumuladas se ficam a dever à condução lenta nas pistas, a confiança do público será abalada.

Devido a estes incidentes, as companhias aéreas estão sob grande pressão. A pandemia desferiu um golpe quase fatal nesta indústria, provocando prejuízos muito elevados. Na medida em que a pandemia já não tem o mesmo impacto, as pessoas voltaram gradualmente a viajar. Agora que o sector começava a melhorar ligeiramente, vê-se confrontado com o problema da condução lenta nas pistas. A melhor forma de resolver esta situação é, claro está, seria alterar o sistema de avaliação de desempenho através do qual os pilotos são pagos à hora. Desde que os salários dos pilotos aumentem, o problema vai naturalmente melhorar. No entanto, o número de pessoas que viajam ainda é limitado, por isso como é que a companhia aérea vai poder aumentar os salários?

Os passageiros, são vítimas dos atrasos provocados pela condução lenta. Durante a epidemia, era impossível viajar e agora, finalmente, vão poder fazê-lo. Como é que iriam imaginar que vão entrar num avião pilotado por alguém que conduz propositadamente devagar? Portanto é natural que fiquem zangados e desapontados. A frustração será com certeza dirigida contra a companhia aérea. Face a esta situação, podemos apropriadamente afirmar que as companhias aéreas estão em sofrimento.

No que diz respeito aos pilotos, a sua relação com a companhia aérea é uma relação de trabalho, ou seja, uma relação empregador/empregado. Nenhum trabalhador está disposto a ter o seu salário reduzido. Quando conduzem devagar e ganham 30 minutos nas suas horas de voo, os pilotos acabam por receber mais 1.500 dólares de HK. Mesmo assim, este valor não compensa os salários reduzidos. Os pilotos conduzem devagar porque estão descontentes com a companhia aérea por lhes ter reduzido os vencimentos devido à pandemia. Afinal de contas, os pilotos também foram vítimas da pandemia. Nesta questão, as pessoas concentram-se na condução lenta, mas quantas compreendem que durante a pandemia os pilotos foram afectados por reduções salariais?

Com a permissão do Governo chinês, Hong Kong pôde implementar o sistema jurídico da Common Law na sua Lei Básica. Nas relações laborais, a Common Law estipula que os trabalhadores devem desempenhar as suas funções com esmero e cuidado. Torna-se pois claro que a condução lenta propositada viola esta lei. Assumindo que este caso ia a tribunal, o importante não seria quem ganhava a acção ou quem a perdia, porque a questão mais importante é estabelecer e manter boas relações de trabalho, de forma que a companhia aérea, os pilotos e os passageiros sejam todos beneficiados.

A criação de boas relações de trabalho pode tornar esta companhia aérea famosa na indústria, os pilotos tranquilizam-se se forem mais bem pagos e os passageiros podem desfrutar de viagens agradáveis e confortáveis. É uma situação em que todos saem a ganhar.

Nas actuais circunstâncias pós pandémicas, todos esperam aumentar os seus rendimentos e esperam mesmo compensar o que perderam durante a pandemia. Mas, na verdade, a economia tem de recuperar aos poucos, e não pode voltar ao nível em que estava antes deste problema sanitário, de repente. As companhias aéreas, os pilotos e os passageiros têm de compreender esta realidade.

Para resolver o problema da condução lenta, a companhia aérea deve dialogar mais com os pilotos para que haja mais compreensão de parte a parte e para que os conflitos possam ser reduzidos. Assim que a pandemia desaparecer completamente e que o número de pessoas que viajam voltem aos níveis normais, a economia irá naturalmente recuperar, e o problema da condução lenta vai melhorar significativamente.

 

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão do Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

30 Mai 2023

Jogadores e observadores

Existem dois famosos versos do poeta chinês Bian Zhilin que dizem o seguinte: “Tu estás na ponte a observar a paisagem, quem mais acima a admira, observa-te também a ti.”

Estejamos onde estivermos, nunca se sabe quem nos observa. Também existe um provérbio chinês que diz, “O observador vê melhor o jogo do que os jogadores”, o que, aplicado aos versos de Bian Zhilin, sugere que é difícil distinguir entre jogadores e observadores.

A 22 de Setembro de 2015, o Presidente chinês Xi Jinping declarou num discurso de boas-vindas em Seattle, a “Armadilha de Tucídides” (tendência inexorável para a guerra quando uma potência emergente ameaça substituir uma potência hegemónica), não é um dado adquirido, mas repetidos erros de cálculo estratégico entre grandes potências podem levá-las a criar este problema pelas suas próprias mãos.

Apesar das declarações do Presidente Xi, a luta de poder entre a China e os Estados Unidos é inevitável. Após quase quarenta anos de reformas e de abertura, a economia chinesa passou a ser a segunda maior do mundo e, em 2025, “Made in China” deixará de ser um mito. Perante a competitiva China, a relação entre os dois países começou a mudar. “Armadilha de Tucídides” é uma expressão criada pelo politólogo americano Graham Allison e, naturalmente, o círculo político americano compreende as suas implicações. Portanto, a questão é se alguém vai cair na armadilhada.

Infelizmente, durante a governação de Leung Chun-ying e de Carrie Lam, a Região Administrativa Especial de Hong Kong defrontou-se com o Movimento dos Chapéus de Chuva e com o Movimento Anti Lei de Extradição. A forma como estes dois movimentos foram conduzidos criou muitas oportunidades vantajosas aos opositores e também veio a influenciar o resultado das Eleições Gerais em Taiwan. Dado que as consequências destes dois Movimentos excederam a capacidade do Governo da RAE de Hong Kong para lidar com a situação, o Governo Central da China promulgou a “Lei da República Popular da China para a Salvaguarda da Segurança Nacional na Região Administrativa Especial de Hong Kong” a 1 de Julho de 2020. A esta lei, seguiu-se a melhoria do sistema eleitoral de Hong Kong e, recentemente, o aperfeiçoamento da governação a nível distrital. Tudo isso inaugurou uma nova era que visa embarcar numa expedição para consolidar o princípio “Um país, dois sistemas” e também o princípio “Hong Kong administrado pelas suas gentes”. Critérios semelhantes foram aplicados em 2021 às Eleições para a Assembleia Legislativa de Macau.

Concordo que um líder deve amar o seu país, mas o que verdadeiramente importa é que o patriotismo não pode ser reduzido a palavras de ordem ou mentiras cridas por quem procura ganhos pessoais. Um patriota tem de colocar os interesses do seu país em primeiro lugar. Desde que o seu objectivo seja a estabilidade a longo prazo do país, mesmo que discorde dos métodos usados pelo Governo para a alcançar, o seu desagrado deve ser encarado como uma expressão de patriotismo. Esta abordagem é muito mais correcta do que transformar o patriotismo numa ferramenta de supressão das vozes dissidentes.

No seu livro “Decifrar o Pensamento de Pequim”, o falecido Huang Wenfang citou um conselho de Liao Chengzhi, que foi responsável pelos assuntos de Hong Kong e de Macau, relativo ao termo “patriotismo”: “O termo não é usado correctamente. Se dissermos que o nosso jornal é um jornal patriótico, isso implica que os outros jornais não o são; se dissermos que a nossa escola é uma escola patriótica, isso implica que as outras escolas não o são… Como tal, o patriotismo passa a ser exclusivamente nosso; o patriotismo passa a ser algo que exclui os outros, o que lhes irá provocar renitências”.

O Presidente Xi Jinping disse certa vez, “O grafismo do caracter chinês “人” (povo), revela o apoio que damos uns aos outros”. Excluir os outros e criar conflitos leva sem qualquer dúvida à perda de apoio. Por isso, quer sejamos jogadores ou observadores, é indispensável que nos apoiemos uns aos outros para evitar cairmos na armadilha ou para nos libertarmos dela.

28 Mai 2023