Competitividade Global

[dropcap]N[/dropcap]o passado dia 18, a comunicação social divulgou o relatório do Swiss Lausanne International Management Development Institute (IMD) sobre Competitividade Global em 2020. Nos cinco primeiros lugares encontram-se Singapura, Dinamarca, Suíça, Holanda e Hong Kong. Taiwan surge em 11º lugar e a China em 20º.

O IMD foi fundado em 1990. Não é uma Universidade, mas desenvolve cursos que conferem o grau MBA, muito bem cotados a nível internacional. Para elaborar este relatório, o IMD recolhe dados de duas formas diferentes. Primeiro, junto de instituições reconhecidas mundialmente, como o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, etc. Dois terços dos dados analisados no relatório são recolhidos através destas instituições. Em segundo lugar, as equipas de investigação do IMD enviam todos os anos questionários aos chefes executivos de instituições de renome internacional, e os resultados deste levantamento representam um terço dos dados do documento. O IMD avalia 63 países e regiões e é publicado anualmente no mês de Maio. Este documento é tido em consideração por Governos, empresas internacionais e instituições académicas.

O relatório deste ano inclui dois pontos dignos da maior atenção: primeiro, a classificação não reflecte na totalidade o impacto da pandemia nos diferentes países e regiões, o que é compreensível visto a infecção ter surgido em Dezembro de 2019. Nessa altura, já o Relatório estava a ser preparado. O impacto da pandemia deve vir reflectido no Relatório de 2021. Em segundo lugar, os países e regiões que ocupam os cinco primeiros lugares, são pequenos. Devido a este factor, é-lhes mais fácil obter consenso social, o que resultou numa vantagem óbvia quando se tratou de lidar com a epidemia e de contabilizar os riscos globais.

A situação de Hong Kong pode ser considerada mista. Hong Kong aparece em quinto lugar, mas é a primeira vez nos últimos cinco anos em que não está entre os três primeiros. O principal motivo prendeu-se com a queda do desempenho económico, que passou de ocupar o 10.º lugar a nível mundial em 2019, para se situar em 28.º em 2020. Os inquiridos também manifestaram alguma preocupação a propósito da revisão da Lei de Extradição. Mas, graças à legislação comercial e à eficácia do Governo, subiu de segundo lugar para primeiro na avaliação da moldura administrativa, e de 19.º para 1º, no que respeita à estabilidade cambial. Quanto à eficácia comercial permaneceu em segundo. Estes factores positivos estabilizaram a posição de Hong Kong.

O relatório tem ainda outra imprecisão, ou seja, não toma em conta a proposta da “Lei de Segurança Nacional – na versão para Hong Kong” aprovada em Maio de 2020. Esta questão só vai ser analisada em detalhe no documento de 2021.

A partir destes dados, podemos facilmente chegar à conclusão de que Hong Kong ocupa a quinta posição devido, principalmente, à legislação comercial, à moldura administrativa, à estabilidade cambial e à eficácia do Governo, entre outros factores. É óbvio, que estes factores estão relacionados com o sistema social enquanto um todo. Por outras palavras, o sucesso de Hong Kong depende de uma série de boas práticas que sempre existiram. Desde que estas boas práticas se mantenham e se optimizem, Hong Kong continuará a subir de posição.

A principal razão para a descida de Hong Kong foi o decréscimo económico, o que não é difícil de entender. Seria de estranhar se as manifestações violentas, que continuaram a ocorrer na segunda mentade de 2019, não tivessem um impacto sócio-económico. Logo a seguir a todos estes distúrbios surgiu a pandemia, que também afectou grandemente a economia da cidade. Hong Kong foi ainda vítima da guerra comercial entre a China e os Estados Unidos, que apesar de tudo está actualmente amenizada devido ao sucesso das primeiras negociações. Em presença da simultaneidade destes três factores, como é que a economia de Hong Kong não poderia ter sido afectada?

Não nos esqueçamos que o relatório não toma em linha de conta a “Lei de Segurança Nacional – na versão para Hong Kong”. O Congresso Nacional do Povo Chinês vai ajudar em breve Hong Kong a promulgar esta lei.

Os conteúdos da lei vão influenciar, não apenas a China mas também Hong Kong. De momento, é difícil avaliar o impacto que vai ter na economia da região.

A classificação do documento reflecte a opinião da maioria das pessoas sobre competitividade. Claro que uma boa posição resulta em confiança e a confiança é um indicador de competitividade. É inegável que actualmente Hong Kong atravessa momentos difíceis. A descida de posição é um sinal da queda de competitividade. Se a população não fizer um esforço conjunto para que as condições melhorem, esta posição continuará a cair, o que significa que a competitividade irá diminuindo gradualmente.

O desenvolvimento económico requer um ambiente estável. O ambiente estável é criado por todos. O relatório dá um alerta à população de Hong Kong Hong, no sentido de reconquistar a estabilidade para que a economia volte a crescer. Hong Kong não pode perder o comboio. Só prosseguindo em frente com determinação, pode voltar a brilhar. E só quando voltar a brilhar, poderá Hong Kong afirmar com orgulho “Sou a Pérola do Oriente”.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
23 Jun 2020

Os mestres do universo

“Progress is measured by the speed at which we destroy the conditions that sustain life.”
George Monbiot

 

[dropcap]P[/dropcap]odemos dar-nos ao luxo de fazermos quase tudo o que queremos do ponto de vista financeiro. Porém, existem limites para o que podemos fazer, especialmente do ponto de vista humano e ecológico, mas, graças ao bem público que é o sistema monetário, não há limites económicos ou financeiros.

Para que a humanidade consiga sobreviver num planeta habitável, temos de agir com a máxima urgência. A alternativa é a extinção da vida humana. De acordo com os melhores cientistas, os complexos sistemas de suporte de vida da Terra, a atmosfera, oceanos e a superfície terrestre, atingiram o ponto de ruptura.

O escritor e activista ambiental e político inglês, George Monbiot, afirmou que bastaria que um dos muitos sistemas de suporte da vida de que dependemos como os solos, aquíferos, precipitação, glaciares, regimes de correntes aéreas e marítimas entrasse em ruptura para que todo o sistema falhe. O “Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (IPCC)”, em 2018, lançou um apelo claro e forte à acção.

Precisamos de reduzir as emissões anuais globais para metade nos próximos doze anos, e alcançar uma economia com emissões líquidas nulas até meados do século. O antropologista, Jason Hickel, afirmou que seria difícil sobrestimar o quão dramático é esta trajectória. Exige nada menos do que uma rápida e completa inversão da nossa actual direcção como civilização. O desafio é espantoso na sua escala.

O co-presidente de um grupo de trabalho do IPCC afirmou que os próximos anos serão provavelmente os mais importantes da nossa história. Após décadas de atraso, esta é a nossa última oportunidade de corrigir as situações e para o Reino Unido e Estados Unidos, bem como para outros países da OCDE, evitar uma catástrofe climática significa reduzir as emissões de CO2 em 80 por cento até 2030, e alcançar uma economia com emissões zero até 2040. Tal permitirá uma partilha equitativa das reduções de emissões entre países da OCDE, e países não-OCDE (seguindo a lógica da “responsabilidade comum mas diferenciada” defendida pela Convenção das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas de 1992, segundo a qual os países da OCDE devem efectuar reduções mais cedo e com mais pujança do que os outros). Para proteger os sistemas de suporte de vida da Terra e conseguir uma transformação tão radical, temos de abandonar o actual sistema financeiro globalizado e ultra-energético, cujo único objectivo é criar milhares de milhões de dólares de dívida não regulada para financiar um consumo aparentemente ilimitado, alimentando assim as emissões tóxicas.

Estamos a falar de um sistema económico que, num período relativamente curto da história da humanidade, destruiu os sistemas naturais da Terra e que, graças à dependência do capitalismo de um sistema baseado no imperialismo, racismo e sexismo, acorrentou todas as sociedades humanas a uma forma de escravatura.

No entanto, há aqueles que, graças a este sistema, realizaram ganhos de capital sem precedentes na história, o chamado “1 por cento”. A revista The Economist observou em 2012, que o “1 por cento” mais rico dos americanos não só recebe a maior parte do bolo, como é cada vez mais filho das finanças. O empresário Steve Kaplan e o economista Joshua Rauh, mostraram como banqueiros de investimento, advogados de empresas e gestores de fundos de cobertura e de “private equity” retiraram os executivos das empresas do topo da escala de rendimentos.

Os vinte e cinco investidores mais ricos em “hedge funds” ganharam mais de vinte e cinco mil milhões de dólares, cerca de seis vezes mais do que todos os executivos de topo das empresas do índice de acções S&P 500 em conjunto, mas o sistema financeiro que estes indivíduos utilizaram para acumular uma enorme riqueza não é um activo privado. Trata-se de um bem público, financiado, garantido e apoiado por milhões de contribuintes em todas as economias do mundo. Estamos a falar, em suma, de um grande bem público que foi capturado pelo “1 por cento”. Chegou o momento de o devolver à comunidade. Ao mesmo tempo, durante anos, os ambientalistas trataram o ecossistema quase como se fosse independente do sistema económico dominante, que se baseia em finanças desregulamentadas e globalizadas.

A macroeconomia, e em particular a teoria monetária, são consideradas “assuntos especializados”, ou seja, aquelas “criaturas das finanças” que controlam o sistema financeiro globalizado. Muito do que é feito dentro desse sistema é deliberadamente escondido da vista do público. Além disso, muitas pessoas continuam a ignorar as actividades do sector financeiro, em parte porque o sistema parece demasiado complexo e remoto, mas também porque, de alguma forma, todos nós beneficiamos com ele. Tanto os da geração do milénio como os reformados gozam da liberdade que a globalização financeira oferece àqueles que podem dar-se ao luxo de visitar terras e culturas distantes.

Muitos apreciam a facilidade com que se pode aceder à conta bancária mesmo em locais remotos, bem como a possibilidade de comprar bens de qualquer parte do mundo, fazendo uma transferência bancária com um simples pressionar no teclado. Já não podemos dar-nos ao luxo de nos submetermos a essas liberdades e poderes, nem de nos curvarmos à vontade dos deuses das finanças. Não haverá qualquer hipótese de proteger os sistemas de suporte de vida da Terra se não nos libertarmos das garras dos senhores do sistema financeiro globalizado. De um sistema capitalista que é cego para o capital mais vital de todos, o fornecido pela natureza, explorado parasitariamente e consumido a um ritmo desenfreado, como Ernst Friedrich Schumacher argumentou no seu clássico de 1973, “Small Is Beautiful: A Study of Economics As If People Mattered”.

Ao escaparmos ao controlo inexorável dos senhores do universo financeiro, descobriremos que podemos dar-nos ao luxo de criar um novo sistema mais equilibrado, baseado na justiça económica e na ecologia internacional, reflorestando vastas áreas da Terra e das suas zonas costeiras e para acabar rapidamente com a dependência da economia globalizada dos combustíveis fósseis e para superar a obsessão da nossa economia pelo “crescimento”, podemos, dentro dos nossos limites físicos e intelectuais, começar a restaurar a saúde dos nossos ecossistemas danificados. Podemos trabalhar juntos, colectivamente, para protegermos as nossas famílias e as comunidades e ambientes em que vivemos, crescemos e nos desenvolvemos, ou seja, para sobreviver, devemos nos próximos dez anos transformar, e até ultrapassar, o modelo capitalista fracassado que agora ameaça fazer ruir os sistemas de suporte de vida da Terra e, com eles, a civilização humana.

Devemos substituir esse sistema económico por um que respeite os limites do planeta; que alimente “solos, aquíferos, precipitação, glaciares, ventos, polinizadores, abundância e diversidade biológica”; que respeite a justiça social e económica. É possível atingir este objectivo nos próximos dez anos. Uma das razões porque podemos conseguir é o de que apenas 10 por cento da população mundial é responsável por cerca de 50 por cento do total das emissões. A alteração dos hábitos de viagem e de consumo de 10 por cento da população mundial contribuiria para reduzir 50 por cento das emissões totais num período de tempo relativamente curto. Isto ajuda-nos a compreender a extensão do que é possível alcançar se levarmos a sério a ameaça que a catástrofe climática representa para a civilização humana. Além disso, sabemos que o podemos fazer porque empreendemos enormes transformações no passado, em menos tempo do que o relatório do IPCC de 2018 sugeria.

Deveríamos confortar-nos não só com uma compreensão das transformações passadas, mas também com uma nova compreensão da moeda e dos sistemas monetários. É essencial que este conhecimento seja partilhado, a fim de oferecer aos activistas e ambientalistas argumentos económicos sólidos para contrariar os bispos do dogma económico capitalista, os que negam o clima, os derrotistas e os opositores. Àqueles que acreditam que é utópico pensar em pôr fim a um modelo capitalista profundamente discriminatório.

Àqueles que estão convencidos de que “não há dinheiro” para a necessária transformação e que a despesa pública é intrinsecamente inflacionista. Aos que acreditam que a hiperglobalização funciona muito bem como está. Que a pobreza, a desigualdade e a injustiça racial e de género não são o resultado do capitalismo globalizado, mas sim da fraqueza humana.

Que oferecer trabalho digno a todos é um sonho inalcançável. Que a humanidade sobreviveu a outras catástrofes climáticas no passado e que o fará de novo. Que a espécie humana é essencialmente má e movida pela ganância e pelo interesse próprio. Que não há esperança. Não é verdade. Há esperança; e não se baseia numa visão utópica da humanidade, mas no nosso conhecimento do génio humano, na sua coragem, empatia, ingenuidade, capacidade de colaboração e integridade. Sabemos que é possível transformar o sistema financeiro globalizado porque já o fizemos no passado – e num passado relativamente recente. Para transformar o actual sistema económico e financeiro, temos de ignorar os derrotados, tanto à direita como à esquerda, e armar-nos com sólidos conhecimentos. Este conhecimento pode levar milhões de pessoas a entrar em acção. Acima de tudo, servirá para corrigir as inúmeras falsidades sobre a forma como o grande bem público que é o sistema monetário se espalha conscientemente pelos seguidores de Hayek e Ayn Rand; pelos economistas da generalidade, pelos fanáticos da moeda criptográfica, por vários “reformadores” monetários e por todos aqueles que passiva ou activamente defendem uma economia capitalista financeiramente equilibrada que esgota deliberadamente os recursos limitados e preciosos da Terra.

O Presidente John Kennedy, em 1962, anunciou corajosamente: Escolhemos ir à Lua nesta década e fazer outras coisas, não porque sejam fáceis, mas porque são difíceis, porque esse objectivo servirá para organizar e medir o melhor das nossas energias e capacidades, porque é um desafio que estamos dispostos a aceitar, que não estamos dispostos a adiar, e que pretendemos vencer, assim como outros. “Nós escolhemos ir à Lua.” Em 1962, muitas pessoas tinham sérias dúvidas de que os cientistas e engenheiros do mundo tivessem os recursos físicos e intelectuais para construir uma nave espacial que pudesse chegar à Lua, e que os astronautas tivessem a coragem de fazer a viagem. Mas ninguém tinha dúvidas sobre a capacidade de financiar um “lançamento à lua”.

Os cientistas de todo o mundo colaboraram no projecto: foi uma das colaborações internacionais mais ambiciosas de sempre. Apenas sete anos após o discurso de Kennedy em 1969, Neil Armstrong pôs os pés na Lua. Podemos optar por sobreviver. Mas, para sobreviver, tudo tem de mudar. Tudo. Uma mudança radical de paradigma, baseada numa compreensão sólida do funcionamento do sistema monetário e numa força moral igualmente firme, pode transformar o nosso presente e salvaguardar o nosso futuro. Por vezes, temos simplesmente de encontrar uma solução. No momento em que decidimos conseguir alguma coisa, podemos fazer tudo. E estou certo de que, no momento em que começamos a agir nesta actual situação de emergência que nos trouxe a pandemia da Covid-19, podemos evitar uma catástrofe climática e ecológica.

Os seres humanos são muito adaptáveis: ainda estamos a tempo de consertar as coisas. Mas esta abertura não vai durar muito. Temos de começar hoje. Não temos mais desculpas.

Os cientistas do clima avisaram-nos de que, para evitar os impactos mais perigosos do colapso do clima e do aquecimento global, a humanidade tem de manter o seu “balanço de carbono” (desde 1870) dentro dos 3,200 mil milhões de toneladas de emissões de dióxido de carbono. Ao ritmo actual das emissões globais, este balanço seria esgotado num prazo de dez a doze anos. Pior ainda, em 2019, outro grupo de cientistas, a “Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistémicos (IPBES na sigla inglesa)”, advertiu que a natureza está a esgotar-se a um ritmo sem precedentes na história da humanidade. A taxa de extinção das espécies está a acelerar, com impactos graves e imediatos nas pessoas em todo o mundo. A ONU apelou a “uma reorganização fundamental a nível do sistema através de factores tecnológicos, económicos e sociais, incluindo paradigmas, objectivos e valores”. O “Novo Acordo Verde” é um pacote proposto de legislação dos Estados Unidos que visa tratar das alterações climáticas e das desigualdades económicas.

É um projecto de reorganização de todo o sistema num período de tempo relativamente curto. A primeira pergunta que devemos fazer é saber quem é o responsável pela execução deste plano? O “Novo Acordo Verde” deve ser entendido como um plano global único, implementado por uma autoridade global, ou como um plano a implementar localmente? Como Herman Daly, pioneiro da economia ecológica e arquitecto da chamada economia estatal estacionária, argumentou que a economia humana é um subsistema apoiado e contido por uma ecosfera global com um equilíbrio extremamente delicado, que por sua vez é alimentada por fluxos finitos de energia solar. Os sistemas de suporte de vida da Terra não conhecem os limites. Como podemos então pensar que o “Novo Acordo Verde”” pode funcionar a uma escala inferior à totalidade do globo?

Enquanto os impactos da crise actual se fazem sentir em todo o lado, a maior parte das emissões globais de gases com efeito de estufa – de ontem e de hoje – teve origem nos países ricos. Entretanto, as emissões nos países pobres são ainda relativamente baixas. A justiça ecológica exige, portanto, uma importante redistribuição da riqueza, dos países ricos que produzem e emitem emissões tóxicas para os países de baixos rendimentos. Além disso, como é defendido pelo “Global Commons Institute (GCI)”, os países ricos devem reduzir as emissões até que estas “per capita” convirjam em todo o mundo. Há algum tempo que a ONU propõe uma “contracção e convergência “, mas até agora tem permanecido letra morta porque as instituições mundiais são fracas, não prestam contas a ninguém e carecem de liderança política. É evidente que não podemos confiar apenas em iniciativas globais. Existe uma abordagem alternativa: a cooperação internacional baseada não em instituições globais, mas na autoridade dos Estados.

Para que o “Novo Acordo Verde” seja transformador, a sua aplicação deve gozar de legitimidade democrática. As políticas acordadas internacionalmente seriam implementadas e aplicadas pelas instituições locais e nacionais, de acordo com as condições de cada país. Mas mesmo que se consiga criar políticas a nível estatal ou local, será que isso significa que aqueles que operam nos mercados financeiros globais apoiarão as políticas dos vários Estados? Podemos esperar que o sistema financeiro dolarizado – agora completamente desligado da economia real – apoie e financie o “Novo Acordo Verde”? Temos de ser realistas e registar o facto de, com algumas excepções, este sector não contribuiria para financiar um projecto maciço de estabilização do clima em condições aceitáveis e sustentáveis.

Actualmente, aqueles que operam nos mercados de capitais globalizados comportam-se como “mestres do universo”. São indiferentes aos governos e comunidades para quem a transformação sistémica é uma urgência. Se queremos mobilizar os recursos financeiros necessários para as enormes mudanças imprescindíveis para preservar, restaurar e sustentar a vida na Terra, então o sistema financeiro globalizado deve ser subordinado às necessidades dos países e colocado ao serviço da transformação. Se queremos domar o sector global, o primeiro desafio é enfrentar a hegemonia da moeda que apoia a finança globalizada: o dólar americano.

22 Jun 2020

Discurso de encerramento da Semana da Cultura Chinesa

[dropcap]D[/dropcap]os portos frígidos da Europa — atravessando mar e medo, até a Índia ser memória de um odor — desceram da caravela dizendo à China ali estarem para comerciar e que sua mercadoria era húmida de suor e sal, a implorar praia, para o sol venerarem como nas Áfricas haviam cometido.

O mundo acabava aqui. Os chins não acolheram; também não hostilizaram. Deixaram-nos andar ao abandono nessa terra, por vezes de gigantes, e ser fantasmas de uma récita improvável.

À margem da vida e dos dias, ainda hoje esses espíritos da Lusitânia aqui desfilam e se reproduzem, entre guinchos e gargalhadas, abismos de baías e o redondel das sucessivas pestes. A verdade nunca os afligiu nem o badalar das horas os apoquentou.

Das igrejas brotavam anjos e o farto Buda sorria, entre dois folguedos infantis. As histórias escapavam de bibliotecas para encher as praças moles.

Não viera o crucificado. Mas sua mãe, pairando sobre a rocha feita templo, abençoava a cidade e garantia a paz. As árvores floriam todas as primaveras. As aves arribavam e algumas quedavam-se, presas firmes do lodo. E veio o jogo para que os homens criassem mundos como só as crianças criam mundos: homens finalmente infantes.

Desirmanada na praia, a mercadoria ainda atende o sol, reza por todos, assiste ao desfolhar dos séculos. Nada por aqui se passou e, como escreveu Auden, “nada de sério aqui poderá acontecer”.

Ora,

Algo de sério aqui tentámos fazer durante uma semana.
Algo que não fique na sombra dos nossos gestos e nos restos dos nossos dias.
Algo que permaneça convosco, nesta cidade, mas que se espalhe ao mundo nesta língua — por vezes rude e surda, doutras maviosa e branda — que do Tejo ao Rio das Pérolas, por naus humanas viajou e se instalou.
Foi tempo de nela visitarmos a cultura chinesa: o pensamento, a estratégia, a pintura, a etnografia e hoje a sua cúpula: a poesia.

E como é vasto este mar. E tanto fica ainda por navegar, ilhas por desembarcar, continentes por descobrir e gentes, bichos, histórias, plantas, mistérios, palácios e cabanas por encontrar. Tanto, tanto e mais além.

Conversámos com Confúcio, espantámo-nos com Frederico Rato e Sun Bin. Pela mão de mestre Leong, levemente pintámos a nossa primeira flor, desenhámos os nossos primeiros caracteres. Descemos ao inferno com Shee Va e dele trouxemos o espanto de dois mundos. E hoje, com Yao Feng, cavalgámos as estrofes de Li He, o donzel das unhas longas, mestre da palavra e do espaço.

Por uma vez não foi solitária a viagem. Contou com todos os que aqui se deslocaram e também com outros que na distância nos seguiram, dando bom uso à tecnologia que por vezes nos abafa.

Não fomos perfeitos e muito ficou por dizer, como muito fica por fazer. Quedam-se os livros para ler, para ler e para ler. Uma, duas, muitas vezes. Como Macau sabe muito bem, o importante é o que fica, não o que passa sem deixar memória. E as nossas memórias destes dias permanecerão para sempre nas páginas destes livros, de geração em geração, sempre prontas a novas leituras, sempre disponíveis a nóveis interpretações.

Uma coisa tende como certa: é que prometemos voltar. Nesta língua, a este mar. E nele pescar outros peixes, outras sereias e monstros, outras ilhas visitar.

Não seremos breves. A mercadoria está ainda por secar. Temos de história comum 500 anos e outros 500 por cumprir.

Assim entendo o que é aqui cumprir Portugal.

Muito obrigado.

22 Jun 2020

Buraco negro na educação

[dropcap]O[/dropcap] médico é um ser humano, por isso, quando adoece, deixa de ver doentes para não os contagiar. No caso dos professores, se tiverem problemas e não beneficiarem de uma supervisão adequada, são eles próprios e os seus alunos que ficam em perigo.

O recente caso de assédio sexual de uma aluna por parte do professor, não só provocou uma onda de indignação popular, como também fez soar o sinal de alarme no sector da educação. Casos semelhantes ocorreram mais do que uma vez no passado. Nos finais de 2019, um professor e uma estudante de Macau suicidaram-se no quarto de uma pensão. Este caso deu sem dúvida o alerta para o perigo das relações entre professores e alunos. Mas depois deste assunto ter caído no esquecimento, será que o sector deu mais atenção ao problema e envidou esforços no sentido de prevenir o abuso de alunos por parte dos professores? Esta temática pode ser considerada o buraco negro da educação.

Cada profissão tem o seu próprio código de ética cujo objectivo é impedir quem a pratica de se aproveitar de vantagens e privilégios e evitar prejudicar os utentes dos serviços. Estes códigos de ética contemplam a relação entre: advogados e clientes, médicos e pacientes. Segundo o código de ética dos profissionais da educação, professores e alunos não se devem apaixonar uns pelos outros e ter relacionamentos sexuais. No Despacho do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura n.º 6/2017 – “Homologa as Normas Profissionais do Pessoal Docente”, promulgado pela Governo da RAE, no que respeita à relação entre professores e alunos, apenas é referido que se deve “estabelecer uma relação de confiança e respeito mútuo com os alunos” e se deve “salvaguardar os direitos e interesses dos alunos”, o que é uma formulação muito genérica. Na totalidade do documento não são mencionados quaisquer requisitos respeitantes ao código de ética dos professores. O mesmo não sucede em Hong Kong, onde existe um “Conselho da Conduta Profissional na Educação”, formado por representantes dos professores, de grupos pedagógicos, representantes de pais e representantes do Governo. No código de ética dos professores vem claramente mencionado que “não poderão tirar partido da sua relação com os alunos para benefícios pessoais”.

A escola tem obrigação de ser um lugar seguro e é por isso que os pais lhes entregam os filhos. As autoridades escolares têm a confiança dos pais e são responsáveis por garantir que os alunos tenham professores qualificados. Para além do conhecimento técnico e do bom carácter, os professores também devem ser seleccionados com base na ética profissional. Ao longo das suas carreiras, os professores vão deparar-se com vários problemas, que requerem a supervisão e aconselhamento do director da escola e dos colegas mais velhos. No entanto, o aperfeiçoamento das condições para evitar a violação das leis é da responsabilidade das escolas. No caso recente do professor suspeito de ter assediado sexualmente uma aluna, a polícia não revelou detalhes, mas colocou-o sob investigação do Ministério Público, para proteger a vítima de danos secundários. A autoridade informou a comunicação social que esta abordagem, não só protegia a privacidade da vítima, mas também garantia o direito do público à informação e colocava o agressor em posição de vir a ser responsabilzado. Penso que esta é a abordagem correcta para lidar com a situação. A escola fez imediamente uma declaração pública e despediu o professor, o que me parece ter sido decisivo.

Existe um ditado na China que diz “Nunca é tarde de mais para reunir o rebanho mesmo depois de algumas ovelhas se terem tresmalhado”. Penso que este ditado contém apenas uma meia verdade. Reunir o rebanho apenas impede que as ovelhas venham a fugir de novo, não faz com que as que se perderam venham a ser encontradas. Os problemas acumulados no sector da educação estão ligados a um grande buraco negro, que devora silenciosamente os estudantes que lá se encontram.

Poderá a Proposta de Lei intitulada “Estatuto das escolas particulares do ensino não superior”, que está a ser submetida à análise na especialidade na Assembleia Legislativa há mais de um ano, criar um ambiente seguro para os estudantes e estabelecer as linhas administrativas e operativas das escolas privadas? Poderá ainda eliminar o buraco negro do sector da educação? Todas estas são questões importantes para o Governo, os educadores e a comunidade trabalharem.

Infelizmente, os estudantes são alvo de muitos incidentes nas escolas, que nunca deverão ser ignorados pela justiça. Os professores e os directores têm a responsabilidade de proteger os estudantes dentro das escolas. Devemos deixar que o Sol brilhe nos locais de ensino para fazer desaparecer para sempre o buraco negro.

19 Jun 2020

Bloomsday – O dia de Joyce

«Música de Câmara XX»
“No escuro pinhal,
Na sombra fria,
Aos dois eu punha
No pleno dia.
Quão doce beijar
Pôr-se ali
Onde os pinhos altos
Se enavilham!
Teu beijo pousando
E mais tenro
Junto ao caos macio
Dos cabelos.
Ó, no bosque dos pinhos,
No dia do meio,
Vem junto agora,
Amor ao pleno”.
James Joyce (1882/1941)

 

[dropcap]O[/dropcap] dia 16 de Junho, o «Bloomsday», é o dia instituído na Irlanda para homenagear o personagem Leopold Bloom, protagonista de «Ulisses», de James Joyce. Em todo o Mundo, é o único dia dedicado ao personagem de um Livro.

«Nós» portugueses somos os únicos que comemoramos o Dia Nacional – 10 de Junho – através da data que assinala a morte (1580) do «príncipe dos poetas portugueses», o Homem que «cantou» o dobrar do cabo das Tormentas, «para servir a Pátria, ditada minha amada».

Honrar Camões, poeta da «Bíblia da Pátria», foi o objectivo inicial ao adoptar o «10 De Junho» como o «Dia de Portugal de Camões e das Comunidades Portuguesas».

Apesar de não ser feriado, o «Bloomsday» é comemorado um pouco por todo o Mundo – é o dia dedicado a Leopold Bloom, protagonista do livro «Ulysses», de James Joyce, em vários lugares e em várias línguas.
Em Dublin, os fãs da obra refazem o percurso dos personagens pelas ruas da cidade conforme descrito por Joyce.

«Ulisses», nome latinizado do herói, é uma recriação moderna da «Odisseia» de Homero. É uma personagem eterna. Publicado a 2 de Fevereiro de 1922, dia do seu aniversário, em Paris, o romance – epopeia (tragédia do quotidiano) – «Ulysses», escrito entre 1914 e 1921, em Trieste, Zurique e Paris, foi um livro proscrito em todos os países anglo-saxónicos, incluindo os Estados Unidos da América e o Reino Unido, por conter alguns aspectos impublicáveis, nomeadamente obscenidades.

James Augustine Aloysius Joyce, escritor irlandês, nasceu em Rathgar, subúrbios de Dublin, a 2 de Fevereiro de 1882, filho de família rica católica. Entra numa escola jesuíta, passa pela Universidade de Dublin, onde se forma, e parte para Paris com a intenção de estudar Medicina. Desiste e passa todo o seu tempo a escrever. Modernista, um inovador – a linguagem é a personagem principal – e um dos autores de maior relevância do século XX, tornou-se um dos marcos da literatura ocidental contemporânea. Joyce foi romancista, contista e poeta.

A história de «Ulisses» (um «monstro», nas palavras do autor) narra um dia – 18 horas (dezoito capítulos – começa por volta das 8 horas da manhã e termina após as 2 da madrugada seguinte) – na vida do irlandês Leopold Bloom. «Bloomsday» vem do sobrenome da personagem carismática do livro, e passa-se no dia 16 de Junho de 1904. Bloom, amigo de Joyce, 38 anos, filho de pai judeu, agente de publicidade, imigrante, homem comum, sente-se deslocado na comunidade xenófoba de Dublin, capital da Irlanda – um expatriado tal como Joyce quando escreveu o livro.

James Joyce escolheu o dia 16 de Junho para ser imortalizado na sua obra «Ulisses» – um livro revolucionário no estilo e na concepção -, porque foi nesse dia que fez amor pela primeira vez com Nora Barnacle, jovem camareira do condado de Gallway, que viria a ser a sua companheira para o resto da vida.

As suas obras de maior referência são: «Música de Câmara» – uma antologia de 36 poemas líricos curtos – (Poesia) 1907; «Gente de Dublin» (Contos) 1914 e, os romances «Retrato de um Artista Quando Jovem» (1916) – livro autobiográfico, «Ulisses» (1922) – uma obra de esforço «homérico» e o intrigante sonho «Finnegans Wake».

Fernando Pessoa, num curto rabiscado comentário crítico à leitura de «Ulysses», comparou a arte de James Joyce à de Mallarmé, chamando-lhe «a arte fixada no processo de fabrico, no caminho. A mesma sensualidade de Ulysses é um sintoma de intermédio. É o delírio onírico, dos psiquiatras, exposto como fim.», sentenciando em jeito de conclusão: «Uma literatura de «antemanhã», porventura adivinhando nele a revelação de um novo estilo literário, um novo alvorecer, pressagiando, quiçá, o que iria ser o futuro literário:

«Começa, no ar da antemanhã, A haver o que vai ser o dia…» (in «Começa, no ar da antemanhã»), a escrita de Joyce como “[…] aquela fria Luz que precede a madrugada, E é já o ir a haver o dia […]” (in «Mensagem»).

Joyce faleceu em Zurique, na Suíça, a 13 de Janeiro de 1941. Atrevo-me a encomendar-vos um exercício de imaginação para o fim-de-semana:

E se James Joyce estivesse em Macau, agora mesmo, a escrever o Ulisses? Que trajecto tomaria Bloom (chamar-se-ia como? Nome chinês? português?), que pessoas do dia-a-dia da nossa cidade serviriam para ele retratar as sereias que agora nos encantam, os ciclopes dos nossos temores, as feiticeiras que nos traçam destinos, os deuses com que hoje nos cruzamos…??? Que língua ou línguas falaria? Que batalhas travaria? Que armas escolheria? Também «silence, exile and cunning» (silêncio, exílio e astúcia) do jovem Dedalus?

E se tivéssemos por cá, agora mesmo, um ‘James Joyce’ de verdade, de carne e osso, prestimoso, que se abalançasse a reescrever a epopeia nesta exígua curva recortada na orla meridional do país do meio?…

Macau já teve (e tem) os seus heróis, porventura escassos, demasiado na sombra e humildes, apagados e pouco idolatrados com certeza, para o bem social que precisávamos. Mas as suas vidas, rectidão de carácter e postura mereciam ser contadas e cantadas como a de Ulisses, à visa de inspiração e exemplo para nós, simples mortais.

Sem precisarmos de recuar muito no tempo, muitos de nós já cá viveram anos suficientes para assistir à generosidade, bondade, alegria, humanidade, resiliência, talento e sensibilidade de muitos heróis das causas nobres e justas. Eu próprio tive a honra de acompanhar o passo com alguns heróis que me marcaram profundamente: Lancelote Rodrigues, Carlos d’Assumpção, Manuel Teixeira, Adé, Leonel Barros, Domingos Lam, Silveira Machado, Tomás Bettencourt Cardoso, Henrique de Senna Fernandes, Alberto Alecrim… e os, tantos, sem nome sabido, que praticam o bem em silêncio…

Rejubilo e sensibilizo-me com a força de vontade e abenegação de heróis do presente, aqui, entre nós, como a Irmã Juliana Devoy… ou que partiram recentemente, como o filantropo Stanley Ho. Macau teve, nas suas ruas e pó, heróis que ficaram para a História, como Sun Yat-sen, Wenceslau de Moraes, Camilo Pessanha, João Paulino de Azevedo e Castro, José da Costa Nunes, Arquimínio Rodrigues da Costa, Xian Xinghai…, esperemos que apareçam muitos mais.

Parece que hoje em dia ninguém quer confessar que o outro é melhor que si próprio, que alguém suplanta a mediania, é mais valoroso, solidário, generoso, esforçado, temerário, e nos dá alento, com o seu testemunho, para persistirmos nos valores em que acreditamos e no que realmente vale a pena lutar nesta vida. Todos enfrentamos lutas e chegamos a encruzilhadas, mas poucos lutam as lutas dos outros e vão à luta por todos.

Quem me dera acordar um dia destes e ser (ou não…) feriado – o “Lancelote Day”!!! Aliás, o seu nome até se coaduna com a ideia, nome de outro herói, o lendário cavaleiro da Távola Redonda. Quis o destino que o «nosso» saudoso Lancelote, o do Lac de cá, o Lago Nam Van de Macau, se apressasse a juntar-se aos outros heróis de tarefas cumpridas, no dia seguinte ao Dia de Bloom, a 17 de Junho, faz agora sete anos.

Desafio a pluma mais talentosa da praça a transportar para os séculos XX-XXI tal figura do imaginário e redesenhá-la na pessoa do alegre, bonacheirão e bondoso padre, que foi nosso conterrâneo, e na altura nem sabíamos a sorte que tínhamos de o ter por perto!

 

“Mais do que a obra de um só homem, Ulisses parece de muitas gerações (…). A delicada música da sua prosa é incomparável”
J. Luís Borges, sobre o «Ulisses»de James Joyce, 1937
18 Jun 2020

Pansexualidade não é uma moda

[dropcap]E[/dropcap]ste é o mês do orgulho de tudo aquilo que não é heterossexual. A heteronormatividade está demasiado presente no nosso dia-a-dia. As outras formas de sexualidade continuam escondidas, pouco discutidas, pouco visíveis. A supermodelo Cara Delevingne mostrou recentemente o seu orgulho pansexual numa daquelas revistas que até deve reforçar os sistemas binários e heterossexuais até ao tutano. Ainda bem que o mostrou lá. Não se pode continuar a dividir os espaços. É preciso tornar todos os espaços mais diversos e ricos em auto-definições dos confortos sexuais que existem – que são tantos e múltiplos, mas que ainda são vistos de forma limitada. Outros artistas e figuras públicas já se assumiram como pansexuais, a Janelle Monáe e a Miley Cyrus, são exemplos. Afirmaram-se no mundo binário que gosta de delimitar identidades, vivências e preferências. Um mundo que insiste que existe um “normal” e o resto. E a pansexualidade parece estar agora na boca do mundo.

Pansexual é já um conceito antigo, em tempos denominou uma condição de disfunção, mas agora libertou-se das tontices que sempre amarraram o sexo e o género. Pansexualidade faz parte da conceito guarda-chuva queer e é bastante semelhante à bissexualidade, mas com diferenças. A etimologia da palavra ‘pan’, significa ‘tudo’. Enquanto que a bissexualidade refere-se à forma como se sente atracção sexual e romântica por mais do que um género (que normalmente fica-se pelo feminino e masculino), o pansexual não define o seu interesse romântico e sexual por géneros, isto é, interessa-se por todas as formas de expressão sexual e de género – homens, mulheres, não-binários e além. Assim alinha-se com a ideia de que o sexo de supostos pénis e vaginas não é limitado, nem binário. O género é fluido e múltiplo, tal como a sexualidade pode ser.

Só que a discussão da pansexualidade entre as celebridades, não deve ser confundida com uma moda, da mesma forma como o lilás domina as cores da estação. Falará assim quem acredita na efemeridade de certas ideias, na sazonalidade das ideias, em detrimento de outras. Nunca ninguém julgou a heterossexualidade uma moda. Esta protege-se com a visão conservadora da biologia, da religião, e até da medicina. Poder ver e experienciar a fluidez do sexo e do género implica querer pôr em causa as caixas definidoras da sexualidade humana. Esta fluidez resulta do reconhecimento que o mundo não é imutável, estático ou incontestável. Não existem formas melhores do que outras de viver a sexualidade. A pansexualidade permite abraçar a diversidade, a quem lhe fizer sentido.

A desvalorização diária que tira a legitimidade de se amar ou sentir tesão por quem se quer, não é uma moda, é um facto social demasiado comum. A afirmação categórica da pansexualidade, como outras categorias orientadoras, é um caminho para desconstruir o binarismo que ainda assola o mundo. A sexualidade da libertação deveria oferecer a oportunidade de estar em contacto com o desejo e a intimidade. Estes poderiam manter-se no conforto da casa, mas também precisam de viver na boca do mundo, e nas capas de revista. Há quem acredita que a intimidade deve ser de algum modo secreta, entre quatro paredes. Mas a discussão continua a ser imperativa. Até se normalizar a diversidade sexual, de género e de orientação, interessa, sim, de quem se gosta e como – no mês do orgulho LGBTQI, e sempre.

17 Jun 2020

I have a dream II

[dropcap]G[/dropcap]eorge Floyd, o afro-americano detido por suspeita de posse de uma nota falsa de 20 dólares e imobilizado pela pressão do joelho de um polícia sobre o pescoço, acabou por morrer. Na sequência deste incidente têm-se multiplicado as manifestações de protesto, não só nos Estados Unidos, como também no Reino Unido, em França, na Alemanha, Espanha, entre muitos outros países. A vaga de manifestações atravessou toda a Europa e a questão da discriminação racial foi mais uma vez levantada.

Ninguém imaginaria que este caso viesse a ter este impacto em tantos países europeus. Para já, é urgente que os Estados Unidos travem as manifestações de violência, resolvam o problema da discriminação racial e dêem resposta às exigências dos que em toda a parte se manifestam contra este acto de brutalidade. A discriminação racial vai ser um tema incontornável durante a campanha destas eleições presidênciais. Muitos cidadãos americanos interrogam-se sobre que medidas tomar para evitar a repetição desta situação e muitos outros sobre o que fazer para evitar serem a próxima vítima.

Para os Estados Unidos, este incidente representa um problema político e económico. Os protestos violentos forçaram as lojas a fechar as portas, agravando a situação, já de si precária, devido à pandemia. Após a recente cimeira, o Conselho da Reserva Federal anunciou que a taxa de juros bancários é de 0% – 0.25%; isto quer dizer que as poupanças dos americanos não estão a render quase nada e que, por outro, lado o Governo está a encorajar o consumo. Se as manifestações de violência continuarem, o comércio pode vir a fechar; o prazo da recuperação económica voltará a ser adiado e todos os americanos sofrerão as consequências.

Para os políticos é sempre uma dor de cabeça lidar com a violência nas ruas. O Presidente Trump afirmou que poderia enviar as tropas para acabar com os protestos. Na realidade, Trump citou a “Rebellion Law” promulgada em 1807; este conjunto de leis autoriza o Presidente a mobilizar o exército para pôr fim à rebelião, à violência, às reuniões ilegais, etc. Mas o Secretário da Defesa deixou bem claro que “essa seria a última opção.” Mark Esper acredita que o exército só pode ser chamado para resolver problemas internos em situações de extrema gravidade.

Claro que a mobilização do exército iria pôr fim aos distúrbios violentos. No entanto, esta violência foi desencadeada pela morte de George Floyd e também foi motivada por uma perda de confiança no Governo. No discurso que proferiu após a morte de Floyd, o antigo Presidente dos EUA, Barack Obama, identificou claramente as razões dos manifestantes:

“O povo americano sente-se frustrado com a falência das reformas do sistema judicial e dos procedimentos das forças de autoridade, ao longo das últimas décadas. Só podemos expressar o nosso descontentamento através de manifestações e de protestos contra a persistente discriminação racial.”
Obama elogiou as pessoas que se têm manifestado pacificamente, as únicas que podem ser agentes de mudança.

As doenças cardíacas requerem medicamentos para o coração. Se o ressentimento não for eliminado e a confiança no Governo não for restaurada, o problema de fundo fica por resolver.

A forma mais eficaz de resolver este problema é promover a união de todos os americanos e estabelecer como meta o fim da discriminação. O antigo Presidente George W. Bush, afirmou que a supremacia branca dividiu os Estados Unidos e continua a ser uma ameaça. Só unindo todos os americanos, das mais variadas origens, podem os Estados Unidos vir a ser um país onde impera a justiça e onde existem oportunidades para todos.

Para qualquer um dos candidatos presidenciais a eliminação da discriminação é uma questão central. Este incidente pôs a questão na ordem do dia e vai ser um assunto chave para os eleitores. Sobre esta matéria, embora Bush não tenha apontado a solução para o problema, o plano anti-discriminação que irá receber o apoio dos eleitores tem de ser elaborado pelas equipas de Trump e de Biden.

A discriminação só pode ser eliminada através da lei e da educação. A lei é usada para punir aqueles que praticam actos discriminatórios e a educação torna as pessoas conscientes e previne este problema futuramente. Neste contexto, é fundamental que o Governo promova alteração na legislação, reforce o controlo de actos discriminatórios e impeça que actos semelhantes voltem a acontecer. Nancy Pelosi, membro do Partido Democrata, propôs uma emenda à lei, da qual se destaca o seguinte:

a. Proibir a polícia de recorrer à imobilização através da chamada “gravata” e a abordagem por critério racial
b. Abolir a figura legal conhecida como imunidade qualificada para a polícia, que a protege de acções civis.
c. Estabelecer um registo federal para receber todas as queixas sobre más condutas policiais
d. Exigir que os agentes de todo o país usem câmaras durante as operações policiais
e. Considerar linchamento os crimes de ódio.

A proibição da “gravata” pode impedir incidentes semelhantes no futuro. Abolir a imunidade qualificada para a polícia que a protege de ações civis tornará os agentes directamente responsáveis pela suas acções perante a lei, e obrigando-os a indemnizar a parte ofendida. Estabelecer um registo federal para receber todas as queixas sobre más condutas policiais pode aumentar a confiança do público num organismo supervisor. Exigir que os agentes de todo o país usem câmaras durante as operações policiais será uma forma de provar se a polícia abusou ou não da força. Considerar linchamento os crimes de ódio agrava a punição e reduzirá as acções decorrentes de ódio racial.

Se estas medidas virão a ser eficazes só o tempo o dirá, mas a posição de Nancy Pelosi merece respeito. Na conferência de imprensa a democrata salientou:
“Este incidente trouxe grande dor aos americanos, que se transformou num grande movimento de protesto a bem da justiça.”

 

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
16 Jun 2020

Estátuas há muitas

[dropcap]U[/dropcap]m dos últimos governadores alemães de Qindao, na China, foi preso pelos seus por ter gasto em demasia na edificação de um palácio solitário, em frente ao mar, na arriba de uma praia do Mar Amarelo. Hoje esse palácio é um museu. No seu jardim, em 2002, acumulavam-se por ali, de forma desordenada, estátuas alusivas à Revolução Cultural. Por lá passeei em tarde fria, hipnotizado pelas intenções de pedra, pela energia condensada das palavras de ordem, agora exiladas das praças, das ruas, das rotundas. Uma outra era surgira e impusera outra linguagem. Era já antigo o que há tão pouco tempo fora erguido para ser radicalmente novo. O que antes tanto inspirara, horrorizava agora os olhares recentes da China mercantilista.

No templo de Confúcio, em Qufu, os Guardas Vermelhos destruíram uma estátua do Mestre, datada da dinastia Ming. Nunca dela vi qualquer fotografia. Era, ao que dizem, magnífica. Um guia lamentava a sanha dos revolucionários maoístas e mostrava-me uma frase, por eles escrita a negro numa parede, nesses tempos avermelhados. Não a quis traduzir. “Por que não a apagam?”, perguntei. “Sabe”, respondeu-me com meio sorriso, “a caligrafia de quem a escreveu é excelente”. E afastou-se do lugar.

Mais adiante, nesse mesmo templo, existe a parede de Lu, onde os escritos confucionistas foram escondidos durante a dinastia Qin (221-207 a.E.C.) e depois mais tarde recuperados para se transformarem na base fundamental das culturas chinesa, japonesa e coreana, entre outras. O imperador, que pela primeira vez unificara a China, ordenara a sua destruição total. Livros foram queimados e letrados sepultados vivos.

Em Angkor Wat, no Cambodja, os budistas cortaram a cabeça a inúmeras de estátuas de deuses hindus que, certamente, perturbavam as suas meditações moralistas. Contudo, fizeram um considerável Buda e ele para ali ficou sossegado até o monumento, engolido pela floresta e o desprezo dos homens, voltar a emergir e a despertar tanto interesse que hoje se inscreve na bandeira do país. Quando os Khmers Vermelhos lá chegaram e com ela se depararam, animados de um estranho monoteísmo, resolveram também destruí-la.

Contudo, um monge ventríloquo fez a estátua murmurar umas palavras e os jovens revolucionários fugiram apavorados dos espíritos em que não acreditavam. Hoje, uma parte importante da estatuária de Angkor Wat, talvez a mais bela, mora em museus franceses e outra em museus vietnamitas, consequência da “libertação” do país do mando de Pol Pot.

Por todo o Paris, existem estátuas de tipos que não se davam nada bem. Parecem, no entanto, conviver hoje pacificamente por muito que uns tenham guilhotinado os outros. Na verdade, ignoram-se, porque são estátuas: a pedra e o metal ainda não pensam, não sentem desejos, nem exprimem ambições.

Em Roma, o Vaticano prendeu, torturou e queimou Giordano Bruno, um dos mais brilhantes pensadores da sua época. Séculos mais tarde, aproveitando um momento em que o poder da Igreja se esvanecera, um grupo de jovens admiradores do sábio mandou fundir rapidamente uma estátua e colocou-a no preciso lugar onde ele fora barbaramente executado. Ainda preside, escura e sinistra, ao mercado diário que ali se desenrola no Campo dei Fiori. Alguém discretamente a seus pés deposita, de quando em quando, uma rosa.

Na Cidade Eterna, são muitas as estátuas emasculadas porque era desconfortável a um Papa a visão de sexos masculinos, ainda que engelhados e em estado de repouso.

O Porto edificou uma estátua à humilhação francesa às mãos dos ingleses, enquanto os primeiros nos traziam as Luzes e os segundos nos limitavam a independência e transformavam numa espécie de protectorado. Em Lisboa, a estátua de D. Pedro V no Rossio é, na realidade, uma representação do imperador Maximiliano do México, que incarnou um dos últimos sonhos, magnificamente disparatado, do colonialismo europeu. As valsas vienenses só brevemente soaram nos palácios mexicanos. A estátua de Maximiliano não passou de Lisboa.

Tanto faz. A arte pública tem sempre o duplo condão de elogiar e ofender. Nada a fazer. Os iconoclastas são globais e, em geral, surgem sempre possuídos por uma “verdade” qualquer, na qual piamente acreditam e pela qual estão dispostos à barbárie. Nem a dúvida os trava, nem o ridículo os faz parar. Por mim, também tenho ganas de derrubar algumas coisas: sobretudo, qualquer teoria que nos queira fazer acreditar num mundo verdadeiro.

15 Jun 2020

Singularidades de uma política económica

[dropcap]A[/dropcap]inda que me me continuem a preocupar as coisas públicas, constato que cada vez me motiva menos discutir governos, ministérios e outros incidentes administrativos. Há quem diga que na infância e na velhice toda a gente é anarquista e eu já vou entrando nesta fase da existência em que a paciência para jogos de salão e truques de ilusionismo se vai reduzindo a cada dia que passa, ainda que o público e a comunidade me continuem a interessar. Afinal as coisas públicas são outras e as instituições que delas deviam tratar estão hoje demasiado entretidas com ambições pessoais de protagonistas tantas vezes desqualificados para a função. Faz parte de certa abordagem da economia pública, hoje dominante, que tratou de desarticular e destruir o estado social em nome de um individualismo feroz para mais tarde justificar a incompetência da gestão pública e a urgência inevitável das privatizações. Ensinou-se nas universidades, pelo menos desde os anos 80, também em Portugal. E foi fazendo o seu caminho, empobrecendo a política, a comunidade, e a própria economia, que vai vivendo em estado mais ou menos anémico apesar da ávida e acelerada destruição do planeta.

Vem isto a propósito de querer hoje escrever sobre um ministro, um ex-ministro, aliás, da nossa República. Por acaso ou não, é também um amigo de muito longa data, coisa de infância, adolescência e até universidade, sempre com intensidade suficiente para que se mantenha uma certa ideia de proximidade, apesar de não nos cruzarmos há uns 25 anos. Foi, aliás, quando as abordagens neoliberais começavam a marcar presença nas universidades de economia e gestão em Portugal que nos licenciámos, na segunda metade dos anos 1980, em pleno apogeu do “pugresso” cavaquista, dos burgessos subitamente transformados em referências teóricas, do embrutecimento da análise económica e das suas implicações políticas, cada vez mais reduzidas a uma suposta análise da rentabilidade financeira – até essa largamente duvidosa. Foi nesse contexto de afirmação de uma certa hegemonia neoliberal em Portugal que criámos uma lista unitária de esquerda numa das maiores escolas de economia e gestão do país – e ganhámos todas as eleições enquanto lá estudei, às vezes com mais de 90% dos votos.

Era já na altura uma espécie de “geringonça”, como pejorativamente veio a ser designado o governo consensualizado entre PS, BE e CDU após os anos de desastre da austeridade neo-liberal que massificaram a pobreza, mataram a esperança de um qualquer horizonte de futuro, obrigaram à emigração. Nessa segunda metade dos anos 1980, o BE estava ainda longe de nascer mas já havia o PSR e a tal lista unitária que havia de liderar a associação de estudantes incluía também pessoas do PCP (a maioria) e do PS (em clara minoria), além de outras muito boas vontades que se juntaram nesse caminho. Na realidade, quando cheguei a Lisboa para começar a licenciatura, num fim de semana de Outubro, participei imediatamente numa reunião para preparar a lista para a associação de estudantes, ainda antes sequer de ir às aulas que só começariam na segunda feira. Um ano mais velho do que eu, e por isso já a começar o seu segundo ano no ISEG, quem me levou a essa reunião foi o Mário Centeno.

A dita “geringonça” não foi por isso uma surpresa: se alguém podia conceber um plano para as finanças públicas do país que pusesse de acordo PS, BE, PCP, Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI, seria certamente o Mário Centeno – tecnicamente exímio, politicamente experimentado nas difíceis artes das convergências à esquerda, familiarizado com as dinâmicas institucionais do país e do mundo. A proposta possível para conciliar tão divergentes pontos de vista não podia senão estar muito para lá dos convencionais campos de possibilidades e implicava passar muito ao largo de todos os limites impostos pelas teorias económicas ortodoxas: reduzir impostos, recuperar os salários da função pública, reduzir o desemprego, equilibrar as contas públicas e reduzir a dívida pública para relançar o investimento público no futuro. Tinha razão quem criticou tão despropositado programa – e foram na altura todos os analistas, da extrema esquerda à extrema direita, além das ditas “instituições europeias”: nada naquele plano podia ser suportado pela teoria económica existente ou pelas práticas conhecidas aquém e além-mar: ou contenção das contas públicas com recessão e desemprego, ou expansão das contas públicas com crescimento e emprego mas mais défice e mais dívida pública.

E no entanto, moveu-se. Não só a prática, mas a teoria. Quem estude economia pública sabe do extraordinário contributo teórico que o exemplo prático das finanças públicas portuguesas deu a conhecer. A haver casos semelhantes em todo o mundo, serão raríssimos. E jamais tratando-se de uma economia mergulhada numa recessão profunda como era a portuguesa até 2014. Esse contributo teórico e prático foi largamente reconhecido na Europa, com entusiastas declarações de governantes à esquerda e à direita, num continente com uma economia à deriva, sem soluções técnicas convincentes, quanto mais políticas: fala-se de inovação mas pouco se inova e as economias vão sobrevivendo sem grandes horizontes de um futuro melhor mas com a perspectiva do colapso ambiental eminente. À falta de soluções, o plano português, recebido com a natural desconfiança que o desafio às ortodoxias teóricas impunha, acabou a ser visto como uma oportunidade para a abertura de novos caminhos – o que obviamente não tem grande suporte entre quem beneficia dos caminhos velhos.

O percurso percorrido até ao fim de 2019 corresponde com precisão às ambições planeadas e não ao que estipulava a teoria económica dominante. Compreendo as críticas que fui lendo, à esquerda e à direita, garantindo que jamais tal programa teria a mínima hipótese de funcionar. Mas funcionou: as contas públicas registaram um equilíbrio jamais conhecido na democracia portuguesa, ao mesmo tempo que o salário mínimo tinha um crescimento sem precedentes históricos no país; diminuíram desigualdades, com os salários a ganhar importância na riqueza nacional e o rendimento disponível das famílias a subir drasticamente; o emprego aumentou rapidamente e a dívida pública desceu. Não vi nenhum dos críticos que apontou as contradições evidentes entre as propostas de Mário Centeno e as ortodoxias teóricas vir a terreno assumir que se tinha enganado: sim, foi possível implementar políticas públicas em Portugal que desafiaram o que até então se pensava sobre o assunto: comentadores sempre a postos para a crítica mais contundente mas afinal desconhecedores das possibilidades da auto-crítica. Passei a dedicar-me a outras leituras, portanto.

Este caminho de matemático rigor e precisão era desconhecido até então em Portugal, com orçamentos das contas públicas que dispensaram rectificações sistemáticas e que revelaram no final de cada ano o realismo de propostas que estavam muito para além dos limites do que parecia possível. Talvez não seja esta combinação única entre rigor técnico e criatividade teórica que fez de Mário Centeno um Ministro das Finanças com inusitada popularidade entre a população. Talvez tenha sido só mesmo a constatação óbvia de uma súbita e significativa melhoria das condições de vida de quem trabalha. A observação de que políticas diferentes podem trazer resultados diferentes. Hoje, observo com satisfação que, da esquerda à direita, todos os partidos e grupos de opinião têm melhores soluções para as finanças públicas do que as que o Mário Centeno trouxe ao país. O futuro está garantido e só pode ser radioso.

12 Jun 2020

Pobreza menstrual

[dropcap]A[/dropcap] propósito do dia da saúde feminina no final de Maio, discutiu-se a pobreza menstrual. As pessoas que menstruam (que já percebemos que não são só as mulheres) precisam de lidar com o sangramento mensal e fazer as contas à vida enquanto o fazem. Por este mundo fora há quem tenha que gerir as suas finanças de tal forma, que produtos menstruais não conseguem tornar-se numa prioridade.

A inevitabilidade dos úteros traz custos acrescidos para quem quer continuar com a vida como normalmente, e com dignidade. No mercado existem muitos produtos para lidar com o período – felizmente. Uma média de gastos anual – ou de uma vida menstruante – já são números assustadores – infelizmente. Continua a ser chocante como é que estes produtos continuam a ser taxados como não-essenciais. A discussão da pobreza menstrual deve incluir e estender-se do ocasional pedido para a doação de produtos de higiene íntima para os sem-abrigo. A pobreza menstrual não só aflige os casos extremos de vulnerabilidade socio-económica.

Muitas pessoas são obrigadas, no dia-a-dia menstrual, a improvisar com um pedaço de cartão e papel higiénico, ou até com uma meia. E depois, claro, o baixo poder de compra é influenciado pelo tabu que é a menstruação – e assim se afecta a vida de quem tem úteros. As pessoas que menstruam já têm stress suficiente. Têm medo de ter perdas de sangue, de cheirarem mal, do desconforto de tudo, a juntar o facto não terem dinheiro para comprar o produto que os poria mais confortáveis, é diabólico. O desconforto menstrual tende a ganhar pontos. Não só compromete a saúde, mas também o acesso à educação, formação e trabalho.

Este é um problema global. Para os países desenvolvidos e em desenvolvimento há sempre níveis de pobreza menstrual aqui e ali. O país mais recente a tomar medidas concretas contra a pobreza menstrual foi a Nova Zelândia. Todos os menstruantes em idade escolar vão ter acesso a produtos menstruais gratuitos. Portugal também viu desenhada uma proposta em assembleia muito semelhante. Vários projectos em contextos de países em desenvolvimento, por exemplo, ajudam as comunidades a criar pensos de pano, ou tentam ensinar a usar o copo menstrual. Em todas estas situações, seja na Nova Zelândia, no Uganda ou em Portugal é preciso oferecer produtos e falar sobre os períodos também. Vezes sem conta a menstruação sofre deste mal comunicativo. Ninguém gosta de falar dele, e o desdém pelo sangue mensal cá continua, e perpetua-se.

Só mais um factor complicador para sequer sonharmos em atingir a equidade menstrual; ter-se-ia que resolver um conjunto de vulnerabilidades que giram em torno do preço excessivo dos produtos, do baixo poder de compra das gentes e do pouco à vontade em discutir menstruações.

Cada corpo menstruante deveria ter o espaço e o tempo para explorar as formas com as quais se sente mais confortável, seguro e limpo durante a menstruação. As vozes mais críticas apontam que não basta oferecer produtos. Temos que conversar sobre isso e, na medida do possível, dar a escolher a quem mais precisa. No mercado há pensos descartáveis ou reutilizáveis, tampões, copos, discos e cuecas menstruais. A utilização dos mesmos depende da relação que se tem com o corpo, com a menstruação e até mesmo com a relação que temos com o ambiente. Para resolver qualquer situação de pobreza, não basta oferecer dinheiro ou recursos (apesar de extremamente importante), é também necessário criar condições de empoderamento para que as pessoas menstruantes consigam tomar decisões que as façam sentir que a menstruação não é um obstáculo para ninguém.

11 Jun 2020

10 de Junho – “Da minha língua vê-se o mar”

“Sou de todos os mares,
De todos os profundos oceanos do mundo.
Sou de todos os portos, do barulho das suas docas
De todos os enormes navios fundeados nos cais
E dos que estão encalhados nos bancos de areia (…)
Sou de todos os faróis que há nas noites das costas
Indicando, nos segundos cronometrados da sua luz,
A traição dos continentes, das ilhas e dos bancos de areia (…)
Sou de toda a extraordinária força da gente marítima
Que se entrega aos abismos do mar com a sinceridade
De quem se dá ao único destino possível da terra (…)
Sou de todos os voos de gaivotas e das travessias
Quase incompreensíveis aos homens da terra tão lentos
Por isso a minha pátria é o mar (…)
João Meneres de Campos
Mar Vivo
em “Poesia da Presença”

 

[dropcap]É[/dropcap] um milagre.
Portugal (1143) é um milagre de quase nove séculos, nove séculos como nação livre e independente (sem grandes ameaças, nem grandes traumas) – que mantém uma identidade cultural vincada e uma língua viva -, se os países fossem ordenados pela antiguidade pela ONU, Portugal ascendia ao pódio, a um honroso 3º lugar, logo atrás da China e da Inglaterra. Mas, se o critério fosse a imutabilidade das fronteiras, então até os «nossos» Amigos chineses seriam suplantados.
Falta-nos um só século, um só, para atingir um milénio de existência e aí “um país deixa de ser um país e passa a ser uma civilização, essa coisa que funde a história com o mito”.

“um palmo de terra para nascer, um mundo inteiro para morrer” , Padre António Vieira (1608-1697).

Celebrar o 10 de Junho – o «Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas» – data que assinala a morte do “príncipe dos poetas portugueses” (em 1580), o Homem que “cantou” o dobrar do cabo das Tormentas, “para servir a Pátria, ditosa minha amada” – “uma vida pelo mundo em pedaços repartida”.
Se tivermos o privilégio de ler a essência do tema (Dia de Portugal de Camões e das Comunidades Portuguesas), e se tivermos os Lusíadas como auxiliar de Leitura, facilmente deduzimos que é nesta obra maior de Camões que encontramos, “apelos contínuos para a urgência da liberdade e justiça para uma sociedade construída nos princípios da honra e nos valores da solidariedade” e, não será aí que lemos “o humanismo universalista dos portugueses, a abertura para o mundo e a invenção da modernidade”.
Em Portugal, a origem dos feriados é tão longuínqua quanto a monarquia constitucional, entre 1820 e a Implantação da República, em 1910.

Foi Almeida Garrett, que introduziu o romantismo literário em Portugal – o seu poema “Camões”, de 1825, do período de exílio, foi a primeira obra do romântismo da história da literatura portuguesa -, que identificou Luiz Vaz como modelo de herói português.

A ideia de se comemorar o III centenário de o autor d’Os Lusíadas partiu de Joaquim de Vasconcelos, que a apresentou em 1879 na Sociedade de Geografia, fruto da confluência de vontades, do republicano Teófilo Braga e o socialista Antero de Quental, “foram durante as décadas finais do século XIX as faces opostas da mesma moeda” –viriam a cortar relações a partir de 1872.

A 10 de Junho de 1880, um grupo de intelectuais , com o republicano Teófilo Braga à cabeça – entre outros faziam parte Ramalho Ortigão, Sebastião Magalhães Lima (futuro grão-mestre da Maçonaria), Luciano Cordeiro e Jaime Batalha Reis – organizou a Comemoração do III centenário de Camões. Um cortejo cívico e patriótico português, marcado pelo protesto contra o sistema da regeneração, o Governo e a política colonial.

Apesar de vários amigos seus – Ramalho Ortigão e Batalha Reis – terem participado, Eça de Queirós, opôs-se, “considerou-o ridículo, tendo declarado não ser com colchas penduradas nas varandas, mas com uma cultura viva que uma nação se prestigiava”: “Eu não reclamo que o país escreva livros, ou que faça arte: contentar-me-ia que lesse os livros que já estão escritos e que se interessasse pelas artes que já estão criadas”.

A festividade incluiu a transladação, para os Jerónimos, dos restos mortais de Vasco da Gama e de Camões, um velho sonho de Almeida Garrett que, desde 1836, pregava pela existência de um Panteão Nacional.
Após a Implantação da República, a 5 de Outubro de 1910, foi criada uma comissão legislativa com o objectivo de elaborar o projecto da bandeira da República Portuguesa e decretar os feriados nacionais. O Hino Nacional – «A Portuguesa» -, já existia desde 11 de Janeiro de 1890, logo a seguir ao Ultimato Inglês (o princípio do fim da Monarquia Constitucional).
O Ultimato Inglês de 1890 e a crise financeira que veio logo a seguir, em 1891-1892, fizeram cair a monarquia.

Composto e orquestrado por Alfredo Keil como marcha patriótica, com letra do poeta Henrique Lopes de Mendonça, foi tocado pela primeira vez por uma banda filarmónica.

A banda do Carril, hoje Filarmónica da Frazoeira, do concelho de Ferreira do Zêzere.
Apesar de composta ainda no tempo da monarquia, «A Portuguesa» tornou-se de tal forma popular que os republicanos adoptaram-na como Hino Nacional.

Sete dias após a revolução republicana, a 12 de Outubro, o Governo provisório todos os feriados civis e religiosos, decretando apenas cinco, este mesmo decreto consagrava por outro lado a origem dos feriados municipais.

O primeiro feriado nacional, decretado pelos republicanos, foi o 1.º de Dezembro, como o dia da «Autonomia da Pátria Portuguesa», o vulgarmente designado «Dia da Bandeira».

Os outros feriados decretados foram: o 1.º de Janeiro, consagrado à «Família Universal»; o 31 de Janeiro dedicado aos «Precursores e Mártires da República»; o 5 de Outubro em homenagem aos «Heróis da República» e, finalmente o 25 de Dezembro, o «Dia da Família».
Honrar Camões, poeta da “Bíblia da Pátria”, foi o objectivo inicial de Lisboa ao adoptar o 10 de Junho como feriado municipal.

A primeira romagem à Gruta de Camões, dá-se a 7 de junho de 1923. Era governador o republicano Rodrigo José Rodrigues (1879 – 1963).

Só em 1933, no Estado Novo, sob a batuta de Oliveira Salazar, o «Dia de Camões» passa a ser festejado a nível nacional. A data celebrava o «passado épico e o carácter singular» dos portugueses, ideias da «nossa» identidade.

Até ao 25 de Abril de 1974, o 10 de Junho era conhecido como o «Dia de Camões, de Portugal e da Raça». Homenagear as forças armadas é outro dos objectivos do 10 de Junho, a partir de 1963. Exaltação da guerra e do poder colonial.

Finalmente, a terceira República, como não se revia neste feriado, a partir de 1978, converteu-o em «Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas» -, mas nem sempre o espírito da iniciativa está presente.

Agitações, tumultos, revoltas e batalhas – dentro e fora de portas – risos e emoções – e, como navegamos em mares agitados – angústias e tristezas -, saques, crises e bancarrotas. Tradições e virtudes, insatisfação e preconceitos. E, assim vivemos quase há nove séculos – é fado!
Foi neste desalento, pobre e à deriva “que deram novos mundos ao mundo”.

Saber criar uma nova perspectiva geográfica do pensamento, para não estarmos ainda hoje a recordar as palavras de Eça de Queiroz (em «O Distrito de Évora»): “É assim que há muito tempo em Portugal são regidos os destinos políticos. Política do acaso, política do compadrio, política de expediente. País governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por privilégio e influência de camarilha, será possível conservar a sua independência?”.
Deixámos abolir – inconscientemente (?) – a «nossa» auto-estima. Daí resulta que uma faixa significativa da população vegeta e uma percentagem mínima vive, um dos lados de uma moeda já fora de circulação – e, assim vamos cantando e rindo!

Subjugados ao poder de interesses, hoje como ontem – Ramalho Ortigão (em «Últimas Farsas» de 1911), escrevia: “O acordo de dois partidos, revezando-se sucessivamente no poder (…) falhara inteiramente na sua reiterada aplicação prática. O jogo permanente (…) desgastara todas as engrenagens, boleara todos os ângulos, puíra todas as arestas (…). Nenhum dos dois partidos a si mesmo se distinguia do outro, a não ser pelo nome do respectivo chefe, politicamente diferenciado, quando muito, pela ênfase pessoal de mandar para a mesa o orçamento ou de pedir o copo de água aos contínuos”. Combater os «nossos» próprios defeitos, será um dos caminhos – estes pesam na «nossa» herança cultural -, temos de saber reorganizar o espaço afectivo.

Temos de criar e desenvolver a nossa própria gramática e sintaxe: uma nova linguagem de afirmação no mundo, a outra morreu nos finais do séc. XVI – não deixa saudade!

Em 2012, em pleno período da intervenção da troika em Portugal, foram abolidos quatro feriados nacionais, dois religiosos, dois civis: Corpo de Deus (11 de Junho); Dia de Todos os Santos (1 de Novembro); Implantação da República (5 de Outubro) e Restauração da Independência (1 de Dezembro). Neste último caso quebrou-se a tradição. Era o feriado mais antigo que existia em Portugal, vinha já desde a primeira metade do séc. XIX, tendo resistido até à I República.

Um dos primeiros gestos oficiais de Marelo Rebelo de Sousa, actual Presidente da República, foi repor os feriados perdidos, contra o coro de protestos das Associações patronais. E aqui chegamos – “por este rio acima” -, às Comunidades! “Macau, a primeira República democrática do Oriente, e ponto tradicional de interpretação e sincretismo cultural”
… e, continua a ser o português a “língua dos nossos encontros, desencontros e reencontros”.

* Vergílio Ferreira (1916/1996)

10 Jun 2020

Derrotar o Inimigo Comum da Humanidade com Solidariedade e Cooperação

Por Shen Beili, Comissária do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China na RAEM

 

[dropcap]E[/dropcap]m 7 de Junho, o Departamento de Comunicação do Conselho de Estado da China emitiu um livro branco intitulado “Combate ao COVID-19: China em Ação”. Consistindo em quatro partes, a saber, “Luta da China contra a epidemia: um teste de fogo”, “Prevenção, controle e tratamento bem coordenados”, “Reunindo uma força poderosa para combater o vírus” e “Construindo uma comunidade global de saúde para todos”, o livro branco apresenta uma visão panorâmica sobre a luta chinesa contra o novo coronavírus. Demonstra também a filosofia de governação centrada no povo do Partido Comunista da China e do governo chinês, e as notáveis realizações da China na modernização da sua governança.

Após o surto da epidemia, o presidente Xi Jinping assumiu o comando geral desta batalha popular. Tendo sempre em mente a segurança do povo, tomou decisões cruciais em cada momento crítico, apontando o caminho para vencer o vírus e reforçando a confiança e força do povo. Sob a liderança do PCCh, a China fez funcionar um sistema rigoroso de prevenção e controle em que participa toda a sociedade, e não poupou esforços para tratar pacientes e salvar vidas. Divulgou, de forma atempada, aberta e transparente, as informações relativas à epidemia conforme exigido por lei, e mobilizou rápida e efetivamente recursos de toda a nação para combater a epidemia e proteger, a todo custo, a segurança e saúde do povo.

Com árduos esforços e enorme sacrifício, a China conseguiu mudar a situação da epidemia. Em pouco mais de um mês, a propagação crescente do novo coronavírus foi contida; em cerca de dois meses, o aumento diário de casos domésticos havia caído para um dígito;e em aproximadamente três meses, foi alcançada a vitória decisiva na batalha defensiva de Hubei e Wuhan. Com essas realizações estratégicas, a China protegeu a vida, segurança e saúde do seu povo, e contribuiu significativamente para salvaguardar a saúde pública regional e global. Este livro branco de 37 mil palavras, bem estruturado e informativo, fala em voz alta a resposta da China nesta grande prova global de combate ao COVID-19.

O livro branco compartilha experiências preciosas da China nas ações coordenadas de prevenção, controle e tratamento, as quais podem ser referência para a comunidade internacional. Face à mais sereva emergência de saúde pública internacional desde a Segunda Guerra Mundial, a China defende que todos os países cuidem dos interesses da humanidade e do bem-estar das gerações futuras, somem esforços e troquem apoios no sentido de construir uma comunidade global de saúde para todos, em conformidade com o conceito da comunidade de futuro compartilhado para a humanidade. A China apela à comunidade internacional que se reúna, abandone o preconceito e a arrogância, rejeite ideias e condutas egoístas e se oponha à estigmatização e politização do vírus, para que o espírito de solidariedade, cooperação, responsabilidade e dedicação leve todos nós à vitória na luta contra esta pandemia.

Desde o início do surto, a China vem realizando ativamente intercâmbios e cooperações internacionais. Vem fortalecendo a comunicação de alto nível, compartilhando informações e promovendo pesquisas científicas junto com organizações internacionais e outros países. Além disso, vem fazendo todo o possível para prestar assistência, contribuindo com a sua inteligência e força para a luta global contra o coronavírus.

A ação da China nesta luta não apenas revela fatos, verdade e sinceridade, como também fornece inspiração ao mundo sobre como lidar com os crescentes desafios globais que estão intimamente relacionados.
Primeiro, devemos colocar sempre em primeiro lugar a vida e os interesses do povo. Nos momentos críticos em que a vida, segurança e saúde da população são severamente ameaçadas, todos os países devem agir com o senso de responsabilidade e identificar rapidamente o problema. Devem levar em consideração fatores de todas as vertentes, e tomar decisões oportunas e resolutas. Devem empregar medidas extraordinárias para lidar com emergências extraordinárias e envidar todos os esforços para proteger as pessoas.

Segundo, devemos persistir na construção da comunidade de futuro compartilhado da humanidade. A custo de vida, esta pandemia adverte-nos que os países devem superar as diferenças geográfica, racial, histórica, cultural e até de sistemas sociais. É urgente trabalhar de mãos dadas para construir a comunidade do futuro compartilhado da humanidade e cuidar deste único planeta onde podemos sobreviver. Para isso, uma das tarefas mais importantes é acelerar a construção de uma comunidade global de saúde para todos.

Terceiro, devemos salvaguardar o multilateralismo com maior firmeza. O COVID-19 comprova que nenhum país, por mais forte que seja, pode permanecer imune a desafios globais. Perante um desastre, quem cruza os braços e fica ocioso acabará vendo o tiro sair pela culatra, e quem aponta os dedos para outros acabará danificando a sua própria reputação. A supremacia e o fugir de responsabilidades, em vez de servir para resolver seus próprios problemas, prejudicarão os direitos e interesses justos de outros países. Apenas o multilateralismo pode fornecer à comunidade internacional uma força coesa para agir, e somente a união nos levará a superar as situações difíceis.

Quarto, devemos coordenar a contenção da epidemia e o desenvolvimento económico e social. Esta pandemia impõe dificuldades sem precedentes ao desenvolvimento dos países e torna inevitável uma grave recessão económica. É imperativo que a comunidade internacional trabalhe em conjunto para estabilizar e reabilitar a economia mundial. O desacoplamento, a “construção de muros” e a desglobalização, que são contra a tendência geral do desenvolvimento, podem dividir o mundo, como também não serão benéficos para qualquer país. A comunidade internacional deve prosseguir com a globalização, salvaguardar o sistema multilateral de comércio baseado na Organização Mundial do Comércio, cortar tarifas, remover barreiras, e facilitar o fluxo comercial.

O COVID-19 continua a espalhar-se pelo mundo. O que fazemos hoje determina como sairemos no futuro. A comunidade internacional deve reforçar a solidariedade e empenhar-se em cooperação. A China acredita firmemente que com isso conseguiremos derrotar a epidemia, e o mundo emergirá deste momento sombrio da história humana para abraçar um futuro ainda mais brilhante.

10 Jun 2020

Emissão de moeda em Hong Kong

[dropcap]O[/dropcap] Congresso Nacional do Povo Chinês autorizou o Comité Permanente do Congresso Nacional do Povo a formular a versão da Lei de Segurança Nacional aplicável a Hong Kong. Esta decisão deu origem a discussões acaloradas em Hong Kong e em várias partes do mundo. Se analisarmos as notícias da semana passada, veremos que estão em causa várias questões, sendo que uma delas é tentar perceber se os Estados Unidos irão ou não pôr fim ao sistema de emissão de moeda interligado (LERS sigla em inglês), já que a potência americana se opõe à promulgação desta lei em Hong Kong.

O LERS é o sistema de emissão de moeda em Hong Kong, implementado a 17 de Outubro de 1983. Os bancos que emitem moeda em Hong Kong, incluindo o Bank of China, o HSBC e o Standard Chartered Bank têm de têm de depositar dólares americanos no valor correspondente à moeda emitida na Autoridade Monetária de Hong Kong. A taxa de câmbio do dólar de Hong Kong em relação ao dólar americano, estabelecida a 17 de Outubro de1983, é de HK$7,8 para US$1. Isto quer dizer que quando os Bancos de Hong Kong emitem notas no valor de HK$7800, têm de depositar US$1.000 na Autoridade Monetária da cidade. A Autoridade Monetária não paga juros aos Bancos emissores.

Em 1983, devido ao início das negociações entre a China e o Reino Unido, a propósito do regresso de Hong Kong à soberania chinesa, o futuro da cidade apresentava-se incerto. Por este motivo, houve uma venda em larga escala de HK dólares, que resultou numa queda acentuada do valor da moeda. Para estabilizar o sistema financeiro da cidade, o Governo local adoptou o LERS e passou a usar o dólar americano como reserva para cobrir a emissão da moeda de Hong Kong. A grande vantagem desta medida foi a credibilidade da moeda. Possuir dólares de Hong Kong passou a ter a mesma fiabilidade de possuir dólares americanos. Deixou de haver necessidade de trocar a moeda local por US dólares. A História demonstrou que, na altura, o LERS estabilizou o sistema financeiro de Hong Kong.

É claro que a implementação do LERS também trouxe algumas desvantagens para Hong Kong. Em primeiro lugar, como a taxa de câmbio está aferida em 7.8 HKdólares para 1 USdólar, a margem de variação é muito baixa. Se a taxa de câmbio descer de repente, os especuladores terão oportunidade de comprar barato e obter grandes lucros quando o preço aumentar. O processo de compra e venda provoca instabilidade na moeda de Hong Kong e tem impacto no LERS, por isso a Autoridade Monetária de Hong Kong tem frequentemente muitas dores de cabeça para manter a correspondência dos $7.8 HK dólares para o dólar americano.

Em segundo lugar, do ponto de vista económico, para a implementação deste sistema de correspondência, a economia de Hong Kong e dos Estados Unidos teria de andar a par e passo. Se os Estados Unidos optassem por uma política de juros baixos devido a uma recessão económica, para encorajar o consumo e acelerar o crescimento económico, então, Hong Kong tinha de seguir o exemplo. Nos últimos 30 anos, a economia dos Estados Unidos conheceu altos e baixos. Embora Hong Kong tenha passado pelo mesmo processo, os altos e baixos não foram coincidentes no tempo, mas, mesmo assim, Hong Kong teve de implementar a política dos juros baixos, numa altura em que os valores do imobiliário estavam em alta. Cada vez mais fundos afluiam ao mercado imobiliário, mas o preço dos imóveis teve de se manter elevado. A dessincronização das economias dos Estados Unidos e de Hong Kong provocou que o LERS tivesse travado o crescimento económico da cidade.

Alguns analistas são de opinião que os Estados Unidos não irão acabar com o LERS em Hong Kong, principalmente porque este sistema beneficia a América. A emissão de HK dólares requer a aquisição de US dólares como garantia de reserva, o que gera uma procura estável de dólares americanos a nível internacional. Se a maior parte da reserva fiscal de Hong Kong for efectuada em US dólares, a procura desta moeda no mercado internacional aumenta; por isso o LERS é importante para os Estados Unidos.

No passado houve quem defendesse que a reserva fiscal de Hong Kong deveria ser feita com Renminbis (RMB) – a moeda chinesa- em vez de ser feita com dólares americanos. Do ponto de vista económico, visto que Hong Kong está mais susceptível à influência da economia chinesa, esta opinião parecia mais adequada.

Mas como o RMB ainda não se conseguiu impôr completamente no mercado internacional, Hong Kong continua a precisar do dólar americano para dar credibilidade à emissão da sua moeda.

No fim de contas, a emissão de moeda faz parte do sistema financeiro e o sistema financeiro é parte do sistema económico global. No ano passado, Hong Kong viveu momentos de tormenta na sequência do Movimento contra a Lei de Extradição e este ano foi afectado pela pandemia. A economia piorou indubitavelmente. De momento, a prioridade é desenvolver uma indústria que possa trazer receitas significativas para Hong Kong. Estas receitas não se podem destinar apenas aos cofres do Governo local, devem também chegar aos bolsos dos residentes. Só depois de estabilizar a economia, Hong Kong poderá considerar a alteração do sistema de emissão da sua moeda.

Em Macau, a emissão da pataca tem como garantia o dólar de Hong Kong, usado na sua reserva fiscal. Se Hong Kong alterar o sistema de emissão de moeda, Macau será afectado. De acordo com a actual situação económica, a probabilidade dessa alteração ocorrer é muito baixa e Macau não precisa de se preocupar, para já, com este assunto. No entanto, devido ao impacto da pandemia, o turismo desceu a pique e as receitas dos casinos reduziram drasticamente. A economia de Macau sofreu temporariamente um forte revés. Têm surgido muitas opiniões que advogam a necessidade urgente da diversificação da economia, para acabar com a dependência quase exclusiva da indústria do jogo. Estas propostas devem ser implementadas o mais rapidamente possível; a chave está na aposta nas indústrias secundária e terciária, para que Macau não dependa apenas do turismo. É uma estratégia política a longo prazo, a bem da estabilidade económica de Macau.

 

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

9 Jun 2020

Re-evolução!

“It is madness to hate all roses because you got scratched with one thorn. To give up on your dreams because one didn’t come true. To lose faith in prayers because one was not answered, to give up on our efforts because one of them failed. To condemn all your friends because one betrayed you, not to believe in love because someone was unfaithful or didn’t love you back. To throw away all your chances to be happy because you didn’t succeed on the first attempt. I hope that as you go on your way, you don’t give in nor give up!”
Antoine de Saint-Exupéry
The Little Prince

 

[dropcap]Q[/dropcap]uando vos procuram oprimir e quando vos tentam destruir, levantai-vos e ressuscitai como a fénix das cinzas até os cordeiros se tornarem leões e a regra das trevas já não existir. A exortação não é certamente para alimentar ou incitar uma revolução armada ou violenta, mas para que todos possam adquirir a segurança e “a força do leão”, para poderem enfrentar tudo o que for necessário para mudar, embora de uma forma não violenta! O apelo a uma Re-evolução das consciências individuais, para que possamos afirmar uma consciência colectiva generalizada capaz de mudar verdadeiramente tudo o que necessita de ser alterado. Na história da humanidade tivemos muitos mestres que estimularam as nossas consciências a evoluir desde Jesus, passando por Gandhi e Buda.

Existem inegáveis denominadores comuns entre todas as disciplinas meditativas, religiões ou doutrinas filosóficas. O denominador comum é o amor na sua expressão mais elevada e mais universal. Amor para connosco, com o próximo, com todos os seres vivos, com as próximas gerações e para com o nosso planeta.

Em síntese, o Amor Universal. “Como o Pai me amou, também eu vos amei; habitai no meu amor”. “Se guardardes os Meus mandamentos (ensinamentos), habitareis no Meu Amor; assim como Eu guardei os mandamentos de Meu Pai e habito no Seu Amor. Já vos disse estas coisas, para que a minha alegria habite em vós e a vossa alegria seja completa. Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei” (João 15:9-12).

A humanidade só pode se livrar da violência através da não-violência. O ódio só pode ser derrotado com amor. Responder ao ódio com ódio apenas aumenta a grandeza e a profundidade do ódio como disse Gandhi e “Tu, assim como todos no universo inteiro, mereces o amor e afecto” como afirmou Buda. Todos os grandes mestres expressam inegavelmente o ideal para a humanidade que é o amor universal. Então qual é a razão pela qual o homem não se pode aproximar desse ideal? Não apenas de uma forma teórica ou abstracta, mas na prática, ou seja, na vida quotidiana. Não temos força de vontade suficiente? Não acreditamos fundamentalmente nestes princípios inegáveis enunciados por todos os mestres? Estamos talvez demasiado distraídos pela materialidade e pela vida quotidiana para negligenciarmos a nossa evolução espiritual?

O materialismo e a moralidade são inversamente proporcionais. Quanto mais um aumenta, mais o outro diminui, dizia Gandhi. O “lado negro” é tão forte na natureza humana que se sobrepõe a qualquer iniciativa colectiva tendente a melhorar? O nosso “lado negro” é mais forte sendo um caminho mais fácil? Ou pior, é a indiferença do bem-estar supostamente alcançado que nos “impede” de compreender como a desigualdade social é, de facto, uma derrota, em vez de considerarmos o nosso estatuto como uma vitória? O capitalismo é a crença espantosa de que o mais perverso dos homens fará as obras piores para o maior bem de todos, como afirmou John Maynard Keynes. Creio que cada ser humano tem a centelha divina dentro de si, e que no fundo cada um pode acender essa luz.

A luz que, ao mesmo tempo que põe a nu a nossa fragilidade humana, permite a cada um descobrir a força para melhorar por si. Fazer algo para melhorarmos não só nos beneficia, como a toda a humanidade. Tudo isto sempre no denominador comum do amor. É de pensar que é necessário e indispensável uma mudança de rumo, que aspira a uma visão mais “amorosa” de tudo o que está dentro e fora de cada um. Só aquele que se tornou sábio através do amor pode libertar-se da cruz de causa e efeito, à qual a ignorância o tinha pregado, disse Sterneder. Aquele sentimento que transcende o individualismo, egoísmo, busca do poder e do domínio; que tende para o interesse próprio e a riqueza de uns, gerando a pobreza de muitos. É necessária uma mudança radical, uma evolução fundamental da consciência de todos, através da qual possamos plantar a semente do renascimento da humanidade, rumo a uma nova vida, onde cada um possa encontrar a sua dimensão, para construir um mundo melhor.

Se pudéssemos apagar o “eu” e o “meu” da religião, da política, da economia… em breve seriamos livres e levaríamos o céu para a terra” como afirmou Gandhi. Neste momento (pandemia da Covid-19), onde o mundo foi obrigado a parar, a maioria de nós é obrigada a ficar “fechada” em casa e cada um tem grandes oportunidades de dedicar tempo a fazer coisas que antes provavelmente pouco ou nada fazíamos.

Reflictamos sobre o significado desta pausa, em conjunto! Sem isso, dentro de algumas semanas, quando a pandemia tiver “abrandado”, mas não desaparecida, vamos esquecer completamente que anda por aí quiçá escondida.

O não aproveitar a “oportunidade” de mudança (que nos é apresentada com esta situação), pode conduzir-nos ao declínio social e ambiental e a uma involução crescente da espécie, até à nossa completa escravatura ou, pior ainda, à nossa extinção. Algo se tem escrito sobre a sexta extinção. É de recordar que em 2012, foi publicado “The Book of Barely Imagined Beings: A 21st Century Bestiary”, de Caspar Henderson, que descreve algumas criaturas bastante bizarras mas existentes, tais como o diabo espinhoso, a borboleta do mar ou o urso de água. Trata-se de um livro de título original, mas muito semelhante ao publicado por Jorge Luis Borges que escreveu “O livro dos seres imaginários”, e em pouco tempo todos esses animais deixarão de existir.

A questão, porém, é muito mais alarmante, pois dentro de algumas décadas, cerca de 75 por cento das espécies vivas desaparecerão da Terra, ou seja, a sexta extinção em massa está em curso, pois por cinco vezes, em quinhentos e quarenta milhões de anos, a maioria dos seres vivos desapareceu do planeta sendo a última vez há sessenta e cinco milhões de anos, no episódio mais famoso, que no imaginário colectivo, está ligado à extinção dos dinossauros, embora também tenha afectado muitas espécies vegetais, peixes primitivos e bactérias. A extinção em massa é uma transição biótica com uma duração geológica relativamente curta, em que o ecossistema terrestre sofre uma profunda alteração e que está ligada ao aumento da concentração de carbono na atmosfera e nos oceanos.

Assim, de acordo com as previsões de Daniel Rothman, um geofísico do Instituto de Tecnologia de Massachusetts que comparou o ciclo do carbono nos períodos em que ocorreram as outras extinções em massa, há já alguns anos que se verifica um aumento dos valores que desencadearão o processo de extinção, e que por volta do ano de 2100 atingirá o seu auge e levará cerca de dez mil anos a encontrar um novo equilíbrio. O aspecto mais dramático é que, pela primeira vez em milhares de milhões de anos, o aumento da concentração de carbono é causado por seres humanos e ainda de acordo com um estudo recente da WWF, nos últimos quarenta anos o homem eliminou 60 por cento das outras espécies vivas e as estatísticas acompanham o aumento das emissões de CO2.

Esta é a maior crise de biodiversidade desde que existimos, pois perdemos três mil espécies por ano, ou seja, três por hora, com uma taxa de extinção cem vezes superior ao normal, de acordo com a revista Science Advance e como se não fosse suficiente, cerca de 30 por cento dos vertebrados estão a diminuir, tanto em número como em expansão geográfica. Segundo a “União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN)”, que elabora ciclicamente a “Lista Vermelha” das espécies ameaçadas de extinção, um quarto dos mamíferos e um oitavo das aves estão em risco de extinção. Actualmente, conhecemos cerca de dois milhões de espécies animais e vegetais, mas estima-se que, nas profundezas do oceano ou nas florestas tropicais, haja mais dezenas de milhões de espécies desconhecidas e em risco de extinção.

A sexta extinção em massa é também chamada de “Extinção do Holoceno”, a era geológica que começou há cerca de onze mil e setecentos anos e que durante algumas décadas, segundo uma tese partilhada por quase toda a comunidade científica, deu lugar a uma nova fase, a do “Antropoceno”, a era geológica em que as actividades dos seres humanos estão a mudar de forma significativa e irreversível as estruturas territoriais, ecossistemas e o clima do planeta, e entre as principais causas da extinção em massa está, naturalmente, o aquecimento global, cujos dados são cada dia mais alarmantes.

Os últimos cinco anos têm sido progressivamente os mais quentes alguma vez registados (e vão piorar cada vez mais), e em 2018 os oceanos atingiram temperaturas recorde e, obviamente, a calote de gelo na Antárctida derrete seis vezes mais depressa do que há quarenta anos. O Japão abandonou os acordos internacionais para restaurar a actividade baleeira a 1 de Julho de 2019 (que entretanto continuam a morrer cheias de plástico no estômago: um fim que, de uma forma ainda mais perturbadora, nós, humanos, também corremos o risco). Os dados que já não podem ser definidos como alarmantes, mas seria correcto considerar de apocalípticos, provêm também das estatísticas sobre o consumo de carne, cujo abuso tem estado estreitamente ligado às emissões de gases e ao aumento do efeito de estufa.

É de recordar das consequências que parecem mais fúteis devido ao aquecimento global, pois em breve poderemos ficar sem cerveja ou café. Há mais de uma década que se fala do desaparecimento progressivo das borboletas ou das abelhas, e recentemente também de dados catastróficos e das gravíssimas consequências ligadas ao desaparecimento de muitas espécies de insectos, que mostram como a extinção está a ocorrer a cada minuto que passa, em todos os habitats. Muitos de nós viverão provavelmente tempo suficiente para ver espécies animais ou insectos que não estavam em risco até há alguns anos atrás, e que estudámos na escola ou vimos em desenhos animados desaparecer, porque, se não fosse claro, ao contrário de todos os outros mamíferos, a quantidade de seres humanos na Terra continua a crescer.

Assim, iremos continuar sós, em um destino muito pior do que a extinção. A nossa ganância e o hábito do desperdício perpetuam a pobreza, que é um crime contra a humanidade. Tudo nos deve fazer pensar, sem alarmismo apocalíptico ou hipótese de conspiração geopolítica, que certamente tudo será bom! Mas não é suficiente! Temos de pensar no que fazer agora, para evitar a degradação social e ambiental a que estamos a assistir, mais do que qualquer outra coisa e à degradação em que estamos a participar! Quanto à Europa é de sugerir em alto e bom som um regresso aos valores constitucionais. Inevitavelmente a verdadeira mudança vem de todos e de cada um de nós. A seguir é de relatar o que, segundo Mahatma Gandhi, representou os sete pecados da sociedade que são a 1) Riqueza sem trabalho; 2) Prazer sem consciência; 3) Comércio sem moralidade; 4) Ciência sem humanidade; 5) Conhecimento sem carácter; 6) Religião sem sacrifício (não de animais mas de riquezas) e 7) Política sem princípios.

Seria apropriado fazer uma análise acerca de nós e sobre a sociedade à nossa volta, para compreender, no que diz respeito a estes princípios (se os partilharmos), o que podemos mudar e o que queremos fazer!

Sabemos muito bem que cada revolução começa a partir da base e não a partir do topo, ou seja a partir de cada um de nós. Quais são as áreas? Se quiser uma mudança na sociedade, tenho de partir de mim, do meu comportamento. Se quero uma mudança na economia tenho de partir de mim igualmente, do meu trabalho, da forma como o faço… Se quero uma mudança no ambiente, como posso contribuir? Melhorando hábitos alimentares, de transporte, de redução do desperdício, etc. Se quiser uma mudança na política, qual é o meu nível de participação?

Até que ponto estou realmente determinado a fazer valer os meus direitos e os dos meus concidadãos (direitos civis, humanos e constitucionais)? Estes são os desafios que temos pela frente. Enfrentar juntos a mudança que terá de ser radical, em nós, na nossa sociedade, economia e relações. É de esperar que todos juntos tenhamos a força necessária para implementar e defender esta mudança! Arun Gandhi em “A Virtude da Raiva e Outras Lições Espirituais do Meu Avô Mahatma Gandhi” diz que ” …Todos os dias experimentava novas ideias e fazia um esforço para questionar sempre as crenças de que mais gostava. Nunca deixou de se questionar a si. Sabia que, se seguido de uma forma rígida e dogmática, qualquer ensinamento se tornaria uma paródia de si e se afastaria do seu objectivo.” Estamos a atravessar uma pandemia que não é apenas de saúde, mas que em poucas semanas se tornou económica e imediatamente a seguir política e do ponto de vista social a população está a dar mostras de grande determinação.

A população mostra muito mais determinação do que as instituições. Os nossos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e voluntários) demonstram uma louvável capacidade de resistência, dada a seriedade e precariedade com que a maioria deles tem de realizar o seu trabalho; os nossos profissionais de saúde, assim como voluntários da Protecção Civil, são muito mais concretos e práticos do que muitos políticos. A nossa estrutura social (famílias e grupos solidários de todos os tipos) é muito mais sólida do que a economia “virtual” que nos rodeia. Os nossos administradores locais (autarcas) são muito mais operacionais do que toda a “superpolítica” da UE, que mostra, na prática, quais os modelos que devem ser defendidos! Porque são eles que, no stressante teste desta pandemia, emergem na solidariedade e na procura de soluções práticas, concretas e imediatas para os problemas do dia-a-dia?

Por esta razão, parabéns a todos esses profissionais abnegados independente do país onde laboram. A maioria da população está a demonstrar uma capacidade de reacção e vontade de poder que muitas vezes, tantos clichés subestimaram. O bombardeamento mediático ligado à Covid-19 (nada mais é falado em todos os canais de televisão 24 horas por dia) criou uma confusão na informação onde todos ouvem falar de tudo.

Este modelo de comunicação está a gerar uma psicose, que, espero, não conduza a manifestações de massas violentas. Espero que nos eduque e nos ajude a compreender como os meios de comunicação social podem “manipular fortemente a informação”, não tanto dizendo falsidades, mas sim “moldando a verdade” para que se gerem certos estados de espírito que “predispõem à aceitação do sacrifício”; (admitindo ou não que ficar em casa durante algumas semanas “em retiro” possa ser considerado um sacrifício por alguém).

Mas se (os nossos filhos) nos tivessem pedido, por exemplo, para ficarmos um mês em casa, para reduzirmos a poluição atmosférica ou para aderirmos solidariamente a qualquer forma de protesto (neste caso, protesto não violento), teríamos aceite sem discussão? Será que o teríamos feito? Tenho a certeza de que todos concordamos que a maioria de nós não o faria. Depois temos de convocar “o papão” para semear as sementes do medo… e obter o resultado: todos vão para casa e calem-se! Não questiono de modo algum a validade sanitária da medida restritiva, pois estou apenas a reflectir sobre as modalidades de comunicação com o objectivo de obter condicionamento em massa. Tudo isto desencadeia uma espiral assustadoramente perigosa na economia, que poderá ter repercussões muito graves no estatuto da maioria da população, mesmo para os próximos anos.

É verdade que os europeus sempre demonstraram a sua grande força, vontade, espírito de iniciativa e empreendimento, precisamente nos momentos mais difíceis das grandes tragédias nacionais, bem como após as duas guerras mundiais, foram sempre o cenário da enorme força de renascimento da população europeia. Então, como lidar com este “precipício económico” para o qual se está a ir a toda a velocidade?

Certamente através de uma reformulação das escolhas políticas, e consequentemente económicas, inspirada nos princípios das Constituições, ou seja, baseada em valores fundamentais. Deste ponto de vista, a visão da Europa, ou da UE, deve, evidentemente, ser revista e refundada. A questão que se deve colocar é de saber qual são o espírito, os valores e os princípios que “guiaram” aqueles que defenderam a causa da unificação europeia? Princípios inspirados na defesa dos valores humanos (solidariedade, fraternidade, partilha) ou apenas abstracções puramente económicas e monetárias?

Todos vemos claramente a resposta nestes dias atrozes que vivemos, em que todos pensam no seu jardim, e sem qualquer controvérsia, mesmo nos meses anteriores à pandemia, com os acontecimentos ligados à imigração, em que a total falta de interesse da UE pelas questões humanitárias tinha-se tornado evidente. É este o futuro que queremos para os nossos filhos e netos? Serão estes os valores expressos pela UE e que em todos estes anos lhes queremos transmitir e em que fundamentamos as escolhas para o nosso e o seu futuro? Sinceramente… não, obrigado! A mudança é possível. Mas começa com cada um de nós. A re-evolução não começa a partir do palácio, nem a partir do topo. A re-evolução começa na base, começa com as pessoas, com todos e cada um de nós. Se queremos realmente mudar, devemos melhorar, não podemos continuar a aceitar a mediocridade destes sistemas, pelo que chegou o momento de todos darem um primeiro passo para a mudança.

Se pensarmos que cada pessoa, que cada um de nós se compromete todos os dias a fazer algo para que se possa produzir uma melhoria, ela produzir-se-á. Terá de ser uma melhoria em todas as áreas, como a pessoal, relacional, laboral, económica, social e até política. Um gesto de amor para com alguém ou algo, uma acção de solidariedade para com os mais infelizes, um comportamento de respeito para com a coisa pública (que é nossa, pertence a cada um de nós). Quantas possibilidades temos todos os dias para melhorarmos e para aperfeiçoar tudo à nossa volta? Hoje devemos esforçar-nos por estar presentes (aqui e agora) neste objectivo e com a prática diária, com a convicção certa, cada acção levar-nos-á a ser sempre um pouco melhores do que antes, mais conscientes até que certos pensamentos, comportamentos, acções, valores se tornem “normais”; os valores que teremos alimentado com as nossas acções tornar-se-ão tão enraizados para se tornarem “comportamento diário normal”.

É um caminho, não é fácil, mas não é impossível. O compromisso pode ser o de construir uma relação renovada entre as pessoas e o Estado, em que um esteja integrado com o outro. Uma relação serena, de pertença e não de contraste; de participação e não de concorrência. Eu percebo que posso ser idealista ou até ingénuo… alguém pode até rir-se de tudo isto. Quantas vezes, até eu próprio já pensei o contrário, muitas vezes… demasiado. Temos de mudar! Se os nossos pensamentos, palavras e acções não mudam! Se queremos mudar o nosso mundo devemos mudar os nossos sentimentos, crenças, pensamentos, acções e o mundo à nossa volta. Acredito! E os outros que estão no mesmo barco que se chama sociedade?

8 Jun 2020

Hong Kong, o grande palco

[dropcap]O[/dropcap] maior palco do mundo é o palco político. Pode estar em qualquer lado e ter muitos actores em cena ao mesmo tempo. Recentemente, Hong Kong transformou-se num desses palcos.

No dia 28 de Maio, a Assembleia Popular Nacional (APN) aprovou, por maioria, a controversa proposta de lei de segurança nacional para Hong Kong, com 2.878 votos a favor, um contra e seis abstenções. A versão final do documento será ratificada pelo Comité Permanente da APN e directamente incluída no Anexo III da Lei Básica de Hong Kong. Ninguém ficou surpreendido com a esmagadora votação a favor da lei. Pelo contrário, o deputado que votou contra e os seis que se abstiveram é que foram alvo de grande curiosidade.

Os representantes de Hong Kong e de Macau que compareceram na Assembleia Popular Nacional e na Conferência Consultiva Política do Povo Chinês apoiaram unanimemente o resultado da votação. A Chefe do Executivo de Hong Kong publicou uma carta aberta, impressa nas primeiras páginas de muitos jornais, apelando ao apoio à lei de segurança nacional de Hong Kong. As maiores organizações da cidade, os responsáveis pelas forças policiais e os reitores das principais cinco Universidades de Hong Kong seguiram-lhe o exemplo, fazendo o mesmo apelo. Esta situação ocorreu com frequência na China há décadas atrás, na sequência de movimentações políticas. Na altura, os membros do campo pró-governamental, tinham sempre de apoiar as decisões do Governo Central e seguir as suas directrizes. Mesmo que, futuramente, viesse a haver mudanças na cena política, podiam sempre dizer que não tinham compreendido bem o contexto anterior e assim sacudir a água do capote. Uma pessoa curiosa, só precisa de ir à Biblioteca Central consultar alguns jornais antigos e ver como grupos de patriotas se posicionaram por ocasião da “ Campanha Anti-Lin Biao e Anti-Confúcio”, de “Os Protestos de Tian’anmen em 1976”, da campanha “Criticar Deng Xiaoping, Contra-atacar o Divisionimo de Direita e a Tendência para Reverter o Veredictos” e dos “Protestos na Praça da Paz Celestial (Tian’anmen) em 1989”. Depois de uma leitura atenta, a pessoa perceberá que os melhores actores deste mundo não estão em Hollywood, mas sim nos bastidores da política.

O título deste artigo é “Hong Kong, o grande palco”. Na realidade, Hong Kong teve no passado um grande palco, o “Grand Theatre”, sediado na Queen’s Road, na parte Leste de Hong Kong, onde se exibiam filmes e eram levadas à cena óperas cantonesas. Acabou por ser demolido, e no seu lugar foi construído o “Hopewell Centre”. O “Grand Theatre” passou a fazer parte da história, mas Hong Kong é actualmente o grande palco político, onde a China e os Estados Unidos se degladiam. É mais excitante e letal do que as “competições de artes marciais entre Wu Kung-i e Chan Hak Fu” que tiveram lugar em Macau há 60 anos atrás. Porque é que Hong Kong, o centro financeiro asiático que conheceu dias de glória, se transformou num Coliseu, num palco de lutas de gladiadores?

Após a Revolução Cultural, Deng Xiaoping propôs reformas que abriram a China ao exterior e defendeu o princípio “um país, dois sistemas”. A ideia que presidiu à primeira medida foi a revitalização económica do país no período pós Revolução Cultural e a segunda foi orientada para a resolução dos problemas políticos que poderiam advir do regresso à soberania chinesa de Hong Kong e de Macau e também para uma tentativa de reunificação pacífica com Taiwan. No cenário internacional, a China estava a lutar para manter alguma discrição e para dar uma imagem de país desenvolvido, esperando vir a realizar o mais rapidamente possível as “quatro modernizações”. Apesar das perturbações causadas pelo “Protesto na Praça da Paz Celestial (Tian’anmen) em 1989”, Deng Xiaoping insistiu em persistir no caminho das reformas e da abertura, após a sua visita ao sul da China em 1992. O progresso económico da China nos últimos anos tem sido avassalador, o que prova o sucesso das reformas e das políticas de abertura. Mas se os responsáveis pela implementação destas políticas se desviarem do percurso estabelecido, ou interpretarem estas políticas de forma diferente, o progresso que foi alcançado pode vir a perder-se e a prosperidade pode transformar-se um revés económico.

。唯一的問題在於下這個決定前,有沒有細心想一想香港推行基本法第23條立法,梁振英解決不了?林鄭月娥亦解決不了?

A “lei de segurança nacional para Hong Kong” aprovada pela Assembleia Popular Nacional (APN) parece ser a última cartada para travar os “meninos mal comportados” de Hong Kong. Mas antes de tomar esta decisão, terá a APN pensado porque é que Hong Kong não implementou o Artigo 23 da Lei Básica, durante a vigência do anterior e da actual Chefes do Executivo?

Se um médico não prescrever o medicamento certo e não identificar a causa da doença, mas se limitar a aumentar as doses de um remédio desadequado, o doente acabará por morrer. Bom, neste caso, no grande palco político que é agora Hong Kong, não seria melhor colocar alguns artistas verdadeiros do que levar à cena musicais sino-americanos acompanhados por aquelas óperas chinesas típicas da Revolução Cultural, como “A Rapariga do Cabelo Branco” e o “Ataque ao Regimento do Tigre Branco”?

5 Jun 2020

A meteorologia e a pandemia covid-19

[dropcap]M[/dropcap]uitos artigos têm sido escritos sobre as implicações da pandemia COVID-19 na vida social, cultural, científica, económica, financeira, etc. Também têm sido publicados textos relacionados com a pandemia e o clima, alguns especulativos, e até a própria Organização Meteorológica Mundial – OMM (World Meteorological Organization – WMO) se debruçou sobre as implicações na área da meteorologia, tendo manifestado preocupação sobre a fiabilidade das previsões meteorológicas durante o período em que a pandemia tem vindo a grassar (no Website da OMM pode-se ler: WMO is concerned about the impact of the COVID-19 pandemic on the quantity and quality of weather observations and forecasts, as well as atmospheric and climate monitoring).

O grande público não se terá apercebido, mas é natural que a fiabilidade das previsões meteorológicas tenha sido afetado pelo facto de milhares de aeronaves terem permanecido em terra durante um largo período. Mas, perguntará o leitor, “que têm a ver os aviões com o grau de acerto das previsões meteorológicas”? De maneira sucinta tentaremos esclarecer.

As previsões são baseadas em medições dos vários parâmetros meteorológicos (temperatura do ar, pressão atmosférica, direção e velocidade do vento, nebulosidade, humidade, visibilidade, etc.), no mar e em terra, à superfície e em altitude. Até há alguns anos as observações de superfície eram feitas exclusivamente por profissionais (observadores meteorológicos), em estações meteorológicas designadas por estações sinóticas. As observações eram feitas nas chamadas horas sinóticas principais (00:00, 06:00, 12:00, 18:00 UTC) e nas horas sinóticas intermédias (03:00, 09:00, 15:00 e 21:00 UTC). Para poderem ser comparáveis a nível global, as observações eram feitas simultaneamente nas horas expressas em Tempo Universal Coordenado (Coordinated Universal Time-UTC, sucessor do Greenwich Mean Time-GMT). À medida que a tecnologia foi avançando, as estações clássicas foram sendo substituídas por estações automáticas. A grande vantagem destas últimas reside no facto de as observações poderem ser feitas e transmitidas continuamente, na medida em que não precisam da intervenção humana. Apresentam, no entanto, algumas desvantagens, como, por exemplo, impossibilidade de classificarem as nuvens de acordo com as dezenas de géneros, espécies, variedades e particularidades suplementares. Um equipamento meteorológico, por mais avançado que seja, não consegue classificar e codificar, por exemplo, nuvens como sendo altocúmulos lenticularis perlucidus com virga associada (género – altocúmulo; espécie – lenticularis; variedade – perlucidus; particularidade – virga). Para o meteorologista que analisa a situação e elabora previsões, é muito importante saber o tipo e quantidade de nuvens que existem nos locais em que são feitas as observações, na medida em que refletem muito do que se passa na atmosfera. Diriam os poetas que “as nuvens traduzem os estados de alma da atmosfera”.

As estações automáticas, além de não poderem substituir cabalmente os observadores meteorológicos, necessitam de ser inspecionadas frequentemente por peritos que procedem à limpeza e aferição dos sensores, na medida em que, não sendo manipuladas diariamente pelos observadores, estão mais sujeitas a deterioração. A falta de manutenção dos instrumentos provocada pelo confinamento de muitos profissionais poderá estar também na origem de erros de leitura de vários parâmetros.

Nos oceanos recorre-se a estações meteorológicas instaladas em boias e navios. Os satélites meteorológicos permitem uma cobertura de todo o globo, mas a medição dos vários parâmetros meteorológicos não é feita com o mesmo rigor do que as observações in situ. Também são utilizados radares para deteção e seguimento de certos fenómenos meteorológicos, como precipitação intensa, ciclones tropicais, tornados, etc.

Além de milhares de estações sinóticas espalhadas por todo o globo, existem ainda as estações aerológicas, em que as observações são feitas às 00:00 e 12:00 UTC, por sondas contendo sensores de temperatura, de humidade relativa e de pressão. Impulsionadas por balões cheios de hélio ou hidrogénio, as sondas procedem à medição destes parâmetros, e do vento, a vários níveis de altitude.

Um complemento importante às observações regulares em altitude são as efetuadas automaticamente por instrumentos instalados a bordo de aeronaves. Cerca de três mil aviões, de 43 companhias aéreas, procedem a observações no âmbito do programa da OMM “The global Aircraft Meteorological DAta Relay – AMDAR”, fazendo diariamente mais de 800.000 medições da temperatura, da direção e da velocidade do vento, registando também as coordenadas dos locais onde são feitas as observações. Além destes parâmetros, é cada vez mais frequentemente a medição da humidade e da turbulência.

Designa-se por Sistema Global de Observação da OMM (WMO Global Observing System-GOS) o conjunto de métodos, instalações e equipamentos envolvidos na realização das observações meteorológicas à escala global. Abrange os Serviços Meteorológicos Nacionais (SMNs), boias, navios, radares meteorológicos, aviões, satélites, etc.

Os dados obtidos através do GOS são recebidos em terra pelos vários SMNs, onde são sujeitos a controlo de qualidade, processados e transmitidos para centros meteorológicos nacionais, regionais e mundiais. Uma vez na posse dos dados, marcam-se os respetivos valores em cartas de superfície e de altitude, e procede-se à respetiva análise. Nas cartas de superfície traçam-se as frentes e os sistemas de pressão (anticiclones, depressões, vales, cristas, colos, etc.) e, nas de altitude, são identificadas faixas de ventos muito fortes, designadas por correntes de jato, e zonas de perigosidade para a aviação, como turbulência severa, formação de gelo, cinzas vulcânicas, etc. Os valores dos parâmetros meteorológicos servem também de input para modelos físico-matemáticos que elaboram prognósticos que podem ser reproduzidos na forma de cartas que cobrem vastas regiões, com períodos de validade em geral de 12, 24, 48, 72 ou mais horas.

Para efeitos aeronáuticos, foram estabelecidos pela OMM e pela Organização da Aviação Civil Internacional – OACI (International Civil Aviation Organization – ICAO) dois centros mundiais (Londres e Washington), que fazem parte do designado World Area Forecast System – WAFS, onde se produzem cartas de prognóstico de tempo significativo para que os operadores aeronáuticos possam elaborar os planos de voo, selecionando as rotas mais convenientes em termos meteorológicos e de poupança de combustível. Estas cartas fazem parte da documentação de voo das tripulações, de modo a que possam evitar zonas de maior perigosidade, como, por exemplo, turbulência severa, cumulonimbos, ciclones tropicais, formação de gelo, cinzas vulcânicas, etc.

As correntes de jato são sinalizadas por setas e os fenómenos meteorológicos mais significativos são representados por símbolos com a indicação da base e topo das camadas, onde será mais provável a sua ocorrência.

Graças a estes prognósticos, a duração das viagens da Europa para Macau, por exemplo, duram significativamente menos do que o percurso inverso, na medida em que há aproveitamento das correntes de jato que têm forte componente oeste-leste nessas latitudes.

Durante a fase mais aguda da pandemia os aviões deixaram praticamente de voar, o que implicou que não tivessem sido feitas milhões de observações em altitude. Não havendo esta informação, a localização e intensidade das correntes de jato não foram eventualmente determinadas com precisão, o que implica análise menos eficiente das cartas meteorológicas de altitude. Como os prognósticos são baseados nas análises, e estas baseadas em observações, depreende-se que a fiabilidade das previsões para efeitos aeronáuticos diminuiu. Mas, poderá comentar o leitor, “pouca diferença fez à aviação, na medida em que os aviões praticamente deixaram de voar!”. Isso é uma realidade, mas não nos esqueçamos dos voos de emergência e outros, como os de repatriamento, em que os operadores fizeram os cálculos da quantidade necessária de combustível sem que tivessem ao seu dispor cartas de prognóstico com a mesma fiabilidade a que estavam habituados. As previsões para outros fins, além dos aeronáuticos, também poderão ter sido afetadas na medida em que, não sendo detetadas corretamente a localização e intensidade das correntes de jato, isso também se reflete na previsão do deslocamento das frentes e dos sistemas de pressão à superfície.

Pode-se então concluir que a ausência de observações feitas pelas aeronaves e a falta de manutenção de equipamentos devido ao confinamento de muitos profissionais muito provavelmente contribuíram para uma previsão do tempo menos eficiente, durante o período de ocorrência da pandemia Covid-19.

4 Jun 2020

O Libelo da Desobediência

[dropcap]“D[/dropcap]a Miséria no Meio Estudantil” é um manifesto corrosivo, polémico, cáustico, lançado em 1966, pela Associação Federativa Geral de Estudantes de Estrasburgo (A.F.G.E.S.), composta por estudantes contestatários. Este libelo denunciava, vigorosamente, as universidades como “organizações institucionais de ignorância”, ao serviço da sociedade de consumo.

O ano de 1968 marca a História da segunda metade do séc. XX. 1989 seria uma outra hipótese mas já estava próximo do virar do século – apesar do séc. XX na verdade terminar com o 11 de Setembro 2001 – “a fronteira histórica” – uma tranquila terça-feira de Verão, que dá início ao século XXI.

68 foi um ano de tragédias, transformações, tumultos, revoltas, reivindicações. Entre Janeiro e Fevereiro, a cidade de Hull (Inglaterra) – então o maior porto de pesca mundial – foi abalada pelos terríveis naufrágios de três arrastões e a consequente morte de 58 pescadores. Em Abril, Martin Luther King é assassinado e o mundo protesta ruidosamente contra a Guerra do Vietname. Em Maio, em França – Nanterre, onde a revolta começou, e em Paris, manifestações mobilizam mais de 500 mil pessoas e dão início a uma greve geral que durará semanas e que se traduziu no maior protesto estudantil da História. O Brasil vive também o seu Maio de 68, com os estudantes a revoltarem-se contra o regime militar. Em Agosto, as tropas do Pacto de Varsóvia (excepto Roménia) invadem a Checoslováquia, pondo termo à experiência de democratização que ficou conhecida como Primavera de Praga. Portugal também merece uma nota de rodapé em 68 – dá-se a queda de Salazar e a entronização de Marcelo Caetano.

O panfleto “Da Miséria no Meio Estudantil” – agitador, provocador, revolucionário, incendiário -, foi dado à estampa a 23 de Novembro de 1966, na inauguração oficial do ano lectivo, no Palácio Universitário de Estrasburgo. Na sequência dos acontecimentos, a associação de estudantes encerrou portas a 14 de Dezembro, por força de uma decisão judicial – o famoso caso do juiz Llabador.

Os estudantes germânicos tiveram a colaboração moral e material da “mal afamada” Internacional Situacionista francesa, sob as rédeas de Guy Debord. Claro que este libelo também teve repercursões em Portugal, sobretudo depois do Maio de 68. É esse o quadro que nos dá Júlio Henriques responsável pela Selecção de Textos, Prefácio e Tradução.

No Prefácio, com o sugestivo nome “Necessário Proémio Paroquial”, o autor de “Alucinar o Estrume” – belissímo -, traça-nos um olhar sobre o livro, o meio estudantil português, com observações desinibidas, sem apartes, nem condescencências, e faz uma reflexão sobre o manifesto desde o seu acto criativo até ao seu papel civilizacional.

Em Portugal, a primeira tradução “Da Miséria” surge em Coimbra, em 1969, “no contexto da grande agitação contra o fascismo” e a guerra colonial na África portuguesa. Depois, o livro surge republicado logo após o 25 de Abril e em 78. A Fenda edita-o em 1985, numa altura em que se vivia um clima de falso puritanismo, intriga, rancor e vingança permanente – no tempo do famoso Cavaquistão –, das “palhaçadas académicas”.

As palhaçadas regressam, com as , com os seus rituais e toda uma massificação do ensino terciário exigida por um capitalismo selvagem que tinha necessidade de modernizar a sua mão-de-obra – torná-la dócil, mal paga, adaptável (recibos verdes, precaridade, flexibilidade) -, para as curvas sinuosas do crescimento económico.

Termino com a frase que abre a edição portuguesa da Antígona: “Quem nos deu asas para andar de rastos?” – continua Florbela Espanca a perguntar no seu poema <Não Ser>.

Covid-19 & Ensino

Tomei a liberdade de tomar algumas notas sobre o ensino durante o período de confinamento e gostaria de as poder compartilhar:

– As passagens administrativas são um mal menor, depois de devidamente ponderados todos os seus efeitos. O que devia ser obrigatório é repensar o calendário escolar do próximo ano, de maneira a poderem ser encaixadas algumas aulas suplementares, de carácter facultativo, sobretudo nas chamadas disciplinas nucleares – para dar, explicar, rever, completar, sedimentar conceitos de um ano escolar anormal.
– Exames são uma fraude – os alunos estão demasiado acomodados – , deviam dizer <NÃO> aos exames. Já não bastava a forte pressão psicológica a que estiveram sujeitos quarentena/confinamento e às experiências do ensino à distância, para agora terem de prestar provas em que a única coisa que se vai avaliar é a condição sócio-económica, não o conhecimento dos alunos. É uma realidade nova em velhos problemas. O ensino continua a ser uma fonte generosa de descriminação.

– Espero que nenhum aluno tenha sido esquecido – que se tenha feito um levantamento sério – , por não ter computador ou acesso à internet. Já agora, as instituições competentes poderiam ter pago as tarifas de internet a todos os alunos, durante este período.

– Seria bom criar um grupo de trabalho, para rever, organizar, afinar a(s) máquina(s) do ensino à distância – oxalá que não venha a ser necessário de novo, de maneira a, no futuro, não haver falhas, interferências, nem nunca estar em dúvida a violação dos direitos dos dados pessoais.

Seria louvável pensar em criar e desenvolver a disciplina de Educação para a cidadania digital – a pensar no futuro.

4 Jun 2020

O sexo importa-se com o apocalipse

[dropcap]O[/dropcap] mundo está estranho e confuso. A minha tentativa de articular qualquer conteúdo esta semana virá da confusão dos sucessivos eventos da última semana, e dos últimos meses.

O mês do orgulho LGBTQI+ começou agora em Junho. A celebração de uma história de reivindicação e resistência ecoa todos os anos, em muitas partes do planeta. Um lembrete que a transgressão e contestação dos limites das forças normativas são necessárias se queremos ver alguma mudança no mundo. Na mesma altura em que outras vozes dissidentes, contemporâneas, são ecoadas num país norte-americano em particular. Fala-se em racismo estrutural, ou formas de preconceito estrutural, como nunca se falou. O mal do mundo não acontece pelas mãos das pessoas más. A discriminação não é um acto único, psicopata ou desviante, mas o resultado de uma estrutura, de relações sociais e instituições que permitem que as pessoas façam muita parvoíce – como já estamos fartos de assistir. Somos também obrigados a reflectir sobre a globalização de uns problemas, e não de outros. As redes sociais estão cheias de conteúdos de uma particular geografia, e não de outras. Talvez uns contextos estejam mais preparados para discutir coisas difíceis, e outros ainda não. Ninguém ignora o que está a acontecer, mas não sei até que ponto se olha e se analisa o estado do mundo com cuidado, e à forma como contribuímos para isso.

O sexo podia não estar metido nesta confusão de conceitos, mas é o lugar que melhor habita. Talvez porque o sexo desde cedo quebrou as amarras conservadoras e inflexíveis. A intimidade, o sexo e a auto-determinação não vivem num vácuo. O espaço das relações raciais dos diferentes tons de melanina não é um só nó por desembaraçar. É um nó de uma malha complexa, histórica, ligada a muitos outros nós de desigualdade. Uma terapeuta sexual, a Lauren Fogel Mersy, retoma o conceito de interseccionalidade, um conceito chave para perceber o emaranhado da malha, com a clareza que raramente consigo ter. Como ela diz na sua página social: “sabem o que faz decrescer a nossa líbido? Opressão sistémica, racismo, e trauma racial”. Não podemos perceber o que acontece à nossa volta sem tentar juntar várias peças de um puzzle, e perceber o seu encaixe e desencaixe.

Esta é uma forma, como muitas, de mostrar que o sexo se importa com o apocalipse. O apocalipse é entendido aqui como um suposto estado de disrupção e de potencial transformador. Quem me conhece sabe que gosto de olhar para o sexo como centro gravitacional que integra o íntimo e o social. Não desperdiço a oportunidade de reforçar esse argumento em alturas de crise: em pandemia, que nos obriga a uma reorganização de vivências e rotinas, ou num qualquer outro estado de conflito socio-político. Viro-me sempre para a mesma questão: como vemos o sexo dentro e fora de tensões sociais? E como é que, através dele, podemos olhar as malhas indissociáveis de sistemas de opressão? Como é que através da lente analítica do sexo podemos pensar a mudança e a libertação?

Raramente nos mostramos confusos como o mundo, mas é um estado legitimo. Frequentemente esquecemos de dar espaço à transição, e deixarmo-nos no meio de um antes e um depois que ainda não percebemos como é que se irá concretizar. Nesse processo de apocalipse, o sexo não pode ser um escape – como experiência sensorial, única – mas servir a consciencialização que aquilo que carregamos é tanto nosso como do mundo.

3 Jun 2020

Tenho um sonho

[dropcap]D[/dropcap]ia 29 de Maio, a imprensa divulgou uma notícia chocante. Um negro norte-americano morreu depois de um polícia lhe ter pressionado o joelho contra o pescoço durante nove minutos. O incidente desencadeou uma série de manifestações que acabaram por se transformar em motins. O Minnesota declarou imediatamente o estado de emergência. O agente foi acusado de assassínio e homicídio por negligência. As manifestações e os distúrbios alastraram-se a todo o país. Mas o que aqui está em causa não são os motins, mas sim a discriminação de que os negros têm sido alvo nos Estados Unidos.

O Mayor de Minneapolis Jacob Frey declarou pouco depois do incidente:
“Acredito no que vejo e o que eu vi estava errado a todos os níveis.”
Também pediu desculpa à comunidade negra e à família do falecido:
“À comunidade negra e à família, apresento as minhas mais sinceras desculpas.”
No entanto, esta atitude não acalmou os ânimos. Pelo menos uma pessoa morreu durante os distúrbios.

Alguns manifestantes incendiaram carros, destruíram e saquearam lojas. A Guarda Nacional interveio e o estado de emergência foi declarado no Minnesota.

O caso desenrolou-se da seguinte forma. Na segunda-feira um negro de 46 anos foi alegadamente preso por falsificação de dinheiro. Estava deitado no chão, algemado e o agente da polícia pressionava-lhe o pescoço com o joelho. O homem acabou por morrer. Estes acontecimentos foram filmados por um transeunte, que posteriormente colocou as imagens no YouTube. Enquanto pressionava o pescoço do detido com o joelho, o polícia tinha uma mão no bolso e ouvia, com um ar absolutamente impávido, a vítima implorar:

“Por favor, deixe-me respirar.”

Os agentes da autoridade só precisam de usar a força suficiente para subjugar os suspeitos e impedi-los de fugir. Um suspeito deitado no chão e algemado não pode fugir. Neste caso a pressão exercida pelo joelho é claramente uso abusivo da força, já para não falar de crueldade. O agente foi dispensado do serviço e acusado de assassínio e homicídio.

A dupla acusação de assassínio e homicídio por negligência é um artifício da Procuradoria para impedir o réu de escapar à justiça, pois se fosse acusado apenas de assassínio seria necessário provar que houve intenção de matar. A acusação de homicídio suplementar vem preencher esta lacuna. Na eventualidade de não vir a ser condenado por assassínio, existe uma forte possibilidade de vir a ser condenado por homicídio por negligência, crime onde a intenção de matar não é condição sine qua non.

Este caso vai ser seguramente julgado com a presença de um júri. Os jurados serão brancos ou negros? Como proceder para garantir que não serão discriminados por motivos raciais? Esta questão vai certamente ser assunto de notícia. Outro tema que também vai interessar a opinião pública é o destino dos outros três agentes presentes no local. Irão ou não ser acusados de cumplicidade, ou de recusa de assistência à vítima?
Michelle Bachelet, Alta-Comissária dos Direitos Humanos da ONU, afirmou que nos Estados Unidos a discriminação racial é “endémica” e está em todo o lado. Segundo ela, o país tem de tomar “medidas sérias” para prevenir incidentes deste género.

Nos Estados Unidos, a história da tentativa de emancipação dos negros remonta ao tempo de Lincoln, o 16º Presidente, que ocupou o cargo na década de 60 do séc. XIX. Em 1954, Martin Luther liderou o boicote à utilização de transportes em Montgomery, um movimento pelos direitos civis, que recorreu a formas de protesto não violentas e que culminou com a promulgaçao da Lei dos Direitos Civis em 1964. Esta lei estipulava o fim do apartheid, da discriminação dos negros, das minorias e das mulheres. A Lei do Direito de Voto, aprovada em 1965, assegurava que os negros americanos não seriam privados do seu direito de voto.

A 28 de Agosto de 1963, num emocionante discurso que ficou para a História, Martin Luther proferiu a célebre frase “I Have a Dream”.

“Tenho um sonho. No meu sonho, virá o dia em que, neste país, os meus quatro filhos não serão julgados pela cor da sua pele, mas sim pelo seu carácter.”

As aspirações de Lincoln e de Martin Luther concretizaram-se com a eleição de Barack Obama, o primeiro Presidente negro dos Estados Unidos. Um negro foi institucionalmente reconhecido como a figura suprema do país. Durante a campanha de Obama, o lema “I have a dream” foi adoptado como slogan. Este Presidente negro é sem dúvida representativo da História Americana.

Embora a América tenha tido um Presidente negro, ainda é preciso lutar para que não haja discriminação na justiça e no tratamento policial. A frequência com que os negros são maltratados e mortos pela polícia americana, levou o Mayor Jacob Frey a afirmar:

“Ser negro na América não pode ser uma sentença de morte,”
Um conjunto de vários factores ainda faz pensar que os negros continuam a ser vítimas de discriminação. Esta discriminação é sobretudo social. Entre Lincoln e Obama, existiu um lapso de 160 anos, no qual a discriminação foi eliminada dos sistemas político e jurídico. Quantos anos serão ainda necessários para eliminar a discriminação social? Para que isso aconteça é preciso vontade política e uma pedagogia constante, para que a situação vá melhorando a pouco e pouco. Para já, não existe nenhuma medida milagrosa que possa acabar de vez com a discriminação.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

2 Jun 2020

O fecho do mercado

[dropcap]C[/dropcap]ertamente não tivemos antes experiência semelhante: à falta de suficientes pauzinhos que interferissem suficientemente com cada vez mais poderosas engrenagens globais, um vírus insuspeito fez o mercado fechar subitamente, um colapso estrondoso que vivemos ainda, vagamente entorpecidos e atordoados, e que os livros de história contarão um dia – se ficar alguém para contar, evidentemente, que isso também não é hoje muito certo.

As mãos visíveis que acertam os rumos definidos por poderes invisíveis navegam a curta vista, que são muitas as curvas e denso o nevoeiro: não há rentabilidade dos activos que aguente a passividade deste mercado fechado: mesmo que se amontoem corpos mortos em cemitérios oficiais ou improvisados, há que reanimar os mercados globais com que alimentamos gorduras de minorias privilegiadas e asseguramos com mais ou menos decência a sobrevivência do resto. Mesmo faltando distância suficiente para que se notem os efeitos do bloqueio à economia que vivemos – e ainda mais para que se analise com relevância o problema e as alternativas que podemos colocar – a pandemia que paralisou o planeta já nos deixou sinais suficientes das aberrações do sistema económico contemporâneo.

Uma é a ideia de casa. Parece simples, ficar em casa. E será, em muitos casos. Não me custa nada. Mas não é o caso dos muitos milhões de pessoas que vivem nas periferias suburbanas das grandes metrópoles do sudeste asiático ou da América Latina. Ou das não tão grandes mas também miseráveis periferias das maiores cidades do Sul da Europa. Ou até dos subúrbios de Paris, Bruxelas, Estocolmo, ou de todas as grandes cidades dos Estados Unidos. Para estes milhões de pessoas, frequentemente não há casa. E se há, é um espaço exíguo, sem as infra-estruturas necessárias, onde se acumulam demasiadas pessoas e demasiada miséria. O fecho do mercado mostrou como não resolver esse problema básico e elementar que é o direito à habitação facilmente se torna, também, um problema de saúde pública. Um problema da comunidade e não um problema individual de quem não se enquadra devidamente no tal mercado que entretanto fechou.

Depois da casa, a comida. Mesmo quando ficar em casa é fácil, é preciso comer. É preciso quem produza. Quem transporte os produtos para os locais onde se compra. Quem venda. Ou quem entregue em casa (de quem a tem, evidentemente). O mercado dá pouco valor a estas coisas. E costuma dar pouca importância ao impacto ecológico do transporte internacional de alimentos. Mas este confinamento a que nos vemos obrigados (e que está longe de estar resolvido) recoloca no centro das discussões sobre políticas agrícolas a questão da soberania alimentar e da territorialização da produção de alimentos. A que mercado vamos comprar comida, afinal? Enfrentamos ou não a crise ecológica vigente – e decorrentes alterações climáticas?

Já seriam por si só motivos mais do que suficientes para nos fazer repensar a sociedade que vivemos. Mas não são só essas básicas e elementares necessidades humanas – a habitação e a alimentação – que põem hoje em evidência a aberração do sistema económico em que vivemos e das respectivas políticas e mecanismos de regulação – genericamente, aliás, legitimadas por governos, agências e organizações internacionais por todo o planeta. As questões do trabalho – o seu valor, a sua protecção, as relações sociais e de poder inerentes – são também recolocadas com uma violência que ainda não vislumbramos na sua plenitude – mas que aí estarão, implacáveis.

Em tempos de “normalidade”, o mercado não valoriza médicos e enfermeiros, produtores e distribuidores de comida, trabalhadores dos transportes e sistemas logísticos. E quando as condições se alteram e estas passam a ser as profissões mais relevantes para manter em penoso funcionamento um sistema económico e social em cuidados intensivos, também não há mecanismos de mercado que alterem significativamente a remuneração, a segurança ou as condições de trabalho destas pessoas que asseguram a sobrevivência de todos os que cá estamos. Se a “normalidade” dos mercados faz destas pessoas mercadoria barata e dispensável e remunera CEOs e administradores com rendimentos mensais que um trabalhador jamais auferirá em toda a sua vida, temos algo de profundamente apodrecido para atirar para o caixote de lixo da história. Ou então esperamos e a história atira-nos a nós.

Entretanto há quem viva, de facto, a eficácia poderosa e cruel dos mercados: trabalhadores independentes, pessoas com contratos a prazo, eventualmente transformados à pressa em empresários em nome individual, as vítimas da precariedade que marca cada vez mais as relações de produção no capitalismo contemporâneo – incluindo todos os artistas e profissionais das variadas áreas da cultura indispensáveis para que chamemos “criativa” à economia actual: as pessoas que dependem das encomendas, dos ciclos da procura, das decisões dos gestores, enfim, dos mercados, na sua magnífica dimensão regulatória. Essas pessoas passam fome, não têm outro remédio, e isto ainda mal começou. Enquanto o mercado estiver fechado, sabem que não têm solução. E nós também sabemos que esta regulação económica não serve – até porque o mercado, como se vê, a qualquer momento pode fechar.

Também eles sabem tudo, os que não deixam nada. Sabem que este fecho dos mercados também os ameaça. Sabem que a morte continua a sair à rua e que há um vírus descontrolado pronto a matar. E sabem que precisam de abrir o mercado outra vez. Fazem-no com brutalidade: não se limitam a abrir mercados internos, de proximidade, modestos nos resultados mas ainda assim mais seguros para a saúde. São alarves e têm grandes ambições. Franqueiam as portas à chegada de aviões carregados que alimentem o negócio de um turismo reles, feito de serviços de mínimo valor e de exploração máxima de pessoas e de um território que não é nosso, como o Carvalhal. Vão matar muita gente.

29 Mai 2020

Macau, Arte e Periferia

“Se viesse
se viesse um homem
se viesse um homem ao mundo, hoje, com
a barba de luz dos
patriarcas: só poderia,
se falasse deste
tempo, só
poderia
balbuciar balbuciar
sempre sempre
Só só”
Pallaksch, Pallaksch
de Paul Celan
tradução de João Barrento

 

[dropcap]E[/dropcap]nquanto se processa a “integração” de Macau (uma cidade que está na História por direito próprio) na China, esperamos que nunca a sua “subordinação (?)”, seria louvável que na arte, os confrontos, os diálogos e os intercâmbios fossem abertos para a ampliação da cidadania, não só para consumo à escala local, regional, nacional, mas que torne viável o acesso aos valores maiores de todo o Universo – Arte.

Ruptura na educação (apostar mais na educação pelos sentidos). Formação, promover a inovação e fomentar a criação, eis alguns dos objectivos pretendidos aos agentes culturais de Macau – uma política cutural séria deve assentar em dois vectores fundamentais: as responsabilidades estruturais e as estratégias.
Conhecer, incluir, circular.

Ao constatar as desvantagens da periferia (estar na periferia é ser necessariamente mais cosmopolita, há mais culturas para conhecer, mais mundos para calcorrear) de Macau – o que leva forçosamente à sua integração ou subordinação (a nossa condição periférica pode trazer consigo um certo nacionalismo e, na opinião de Albert Einstein, “o nacionalismo é uma doença infantil, é o sarampo da humanidade”) –, dever-se-ia apostar na criação de uma órbita cultural. Essa órbita cultural (sem saudosismo e sem heróis) deveria ter sempre dois pólos distintos. Uma de oferta local – a criação de novas galerias (existem muitas salas de projectos, galerias Não) – , com escolas de formação e também educação -, para criar autores, público e críticos em diferentes aéreas.

Um ensino que afine a sensibilidade e expanda a criatividade, para que se possa ver as coisas de outros ângulos e se fuja às rotinas. O público em Macau ainda vai muitas vezes ver a marca/colecção/nome, mas ainda não existe o hábito cultural de ver o produto. Falta criar ainda um trabalho conceptual – um trabalho que não se finque na materialidade – que se apoie e que se dirija ao público. Falta criar novos públicos para a criação contemporânea para linguagens artísticas que procuram a inovação e novas formas de comunicação.

Acabar de vez com os produtores/programadores que só produzem/programam quando subsidiados, que a crítica venera e o público despreza ou esquece. Centrar os programas mais nas ideias e menos nas personalidades. Não basta ter programações culturais é indispensável criar políticas culturais – natureza do público, interesses e origens, gostos e horizontes, fidelização.

Da caligrafia à fotografia, passando naturalmente pela cerâmica, pintura, desenho, gravura, só para citar algumas e outra de cariz internacional – nos museus – não antólogicas ou autobiográficas, mas sim temáticas e transversais, privilegiando temas inspirados em matérias de actualidade e do desenvolvimento.

Convém aqui ressalvar que os grandes nomes mundiais – exposições de referência –, nunca poderão passar pelo Território, não por opção de quem dirige, não por questões orçamentais, não por uma questão de ambição do público, mas porque só são possíveis nos grandes museus do mundo, depois de largos anos de enriquecimento das suas colecções, para que a cedência/intercâmbio, torne o sonho realidade. Não fomos ainda capazes de entender os códigos sociais que favorecem a circulação internacional feita de protocolos institucionais.

Não temos capacidade de aqui trazer propostas centrais sintonizadas com o nosso tempo. Ao fim de quase 500 anos de História, Macau não se pode tornar numa cidade cultural periférica (a geografia não pode, não deve ser vista como uma forma de contenção artística) subalterna, porque isso leva-nos facilmente – só se for essa a ideia –, para a menoridade intelectual, que nos arrasta para perigos de uma certa marginalidade social, jogo/casinos.

A periferia não é nem nunca foi sinónimo de pobreza criativa. As periferias são lugares, pessoas, factos e realidades.

A arte é de todos se a todos for dado acesso – a cultura não é nem mais nem menos que uma questão de hábito – ou não será que “A Arte é necessária para que o Homem se torne capaz de conhecer e mudar o Mundo. Mas a Arte também é necessária em virtude da magia que lhe é inerente” – palavras de Ernest Fischer.

Criar uma cidade de contexto multicultural, multi-étnica, multi-religiosa, de pluralismo cultural e ideológico – com uma visão da cultura de fruição, de liberdade e de inteligência. Somos pluralistas, sem poder ideológico (não existe nem produção nem transmissão de ideias), “é um dos riscos de se viver nos subúrbios, percorremos o vazio, estacionamos na ignorância e habitamos no mundo das crenças”.

“A Arte existe porque a Vida não basta” – Ferreira Gullar (1930-2016), escritor, poeta e crítico de arte brasileiro.

29 Mai 2020

Até que enfim

[dropcap]O[/dropcap]s constantes pedidos de independência para Hong Kong por parte dos activistas, bem como as deslocações de delegações a Washington e outros países, no sentido de motivar uma intervenção internacional na ex-colónia britânica são mais do que motivos para justificar a aprovação da lei de segurança nacional para Hong Kong por parte da Assembleia Popular Nacional.

Assim, Pequim está a garantir a integridade territorial da China que se encontra explicitamente ameaçada pelas reivindicações exibidas nos protestos de Hong Kong. Logo, trata-se de um assunto de defesa nacional, uma atribuição do país consagrada na Lei Básica, portanto de uma acção legal e não ilegal, como alguns iluminados consideram.

Claro que se chegou a este ponto depois da RAEHK se ver paralisada durante vários meses e a violência emergir regularmente por parte dos activistas, tendo encontrado uma reacção tímida do lado da polícia local. Sendo regulamentada a lei, o governo de Hong Kong tem finalmente dentes para acabar com esta situação, altamente prejudicial para as suas gentes e estabelecer um clima pacífico que permita o regresso da normalidade, ao abrigo do segundo sistema, isto é, garantindo os direitos cívicos e políticos expressos na Lei Básica. Até que enfim.

29 Mai 2020

Um dia de cada vez

[dropcap]M[/dropcap]acau acordou ontem orfã de um dos seus mais incontornáveis vultos. Apesar de pessoalmente só conhecer mais a fundo o impacto da sua acção a 11 mil quilómetros daqui, é possível sentir que a população de Macau, ou pelo menos os seus representantes, acusaram a sua perda. Macau tem vivido nos últimos meses (e até nas últimas semanas) tempos intensos e inéditos, acredito até, para quem viva no território há décadas.

Penso que nem o próprio Stanley Ho imaginaria ser possível, em tão curto espaço de tempo, assistir à imposição de encerrar os casinos de Macau durante 15 dias, ao início de uma pandemia que fechou fronteiras e está a toldar de forma implacável as relações económicas e internacionais, ao acentuar da crise social e política de Hong Kong e à decisão de proibir a realização da exposição fotográfica do 4 de Junho.

Em tão prováveis tempos de mudança, as perdas custam mais a aceitar e é fácil sairem-nos palavras que casam bem com “os bons velhos tempos”, mas talvez seja precisamente agora que é ainda mais necessário estar vigilante e seguir exemplos que nos levam a fazer aquilo que importa, um dia de cada vez.

28 Mai 2020

A Constituição e a Covid-19

“Our Constitution is partly a reality, but only partially is true. Partially it is still a program, an ideal, a hope, a commitment, a work to be done.”
Piero Calamandrei
Discussion on the Constitution

 

[dropcap]O[/dropcap] poeta italiano Dante Alighieri no “Inferno” da “Divina Comédia” dizia: “Considerai a vossa própria semente; vivamos não como brutos, mas para seguirmos a virtude e o conhecimento”. Neste momento, as pessoas expressam medo, angústia e, por vezes, até pânico. O que produz o medo, angústia e pânico? Estas emoções facilitam uma redução do poder do nosso sistema imunitário e tornam-nos mais vulneráveis aos ataques da Covid-19 (ou de qualquer outra patologia). Se olharmos com atenção, percebemos que “a tarefa da Covid-19” tem na verdade uma raiz mais profunda noutro vírus, o vírus financeiro!

É assim para que possamos dar sinais fortes, porque somos capazes, como povo global, de pôr um fim a esta escravidão, porque todos pedem segurança e serenidade, para si, para as suas famílias, para os seus países e para o mundo inteiro. A segurança e a serenidade são alcançadas de duas formas, primeiro, ter claras práticas “meditativas”, evolução e crescimento pessoal que permitam aos nossos “Eus” ter um guia interior, ligado à nossa alma, porque desta forma experimentamos total segurança e serenidade em qualquer situação e não vamos depender de situações externas! É o mais proveitoso que podemos fazer, porque precisamos de reforçar o nosso sistema imunitário.

Além disso, a segurança, serenidade, alegria, humor e “eros” são os sentimentos e as formas que trazem um grande benefício no reforço das nossas defesas imunitárias. Depois há algo, que temos de fazer para consolidar a segurança e a serenidade, pois necessitamos de ser capazes de ter uma visão do mundo externo articulada, bem formada, como a do mundo interno (quando praticamos meditação e outras práticas de transformação e crescimento pessoal). Devemos poder ver o mundo com os olhos desprendidos, para que possamos ver que existe uma saída. Esta saída está muito próxima de nós e chama-se Constituição. É o que podemos aprender com a Covid-19 Temos de aproveitar como uma oportunidade única que temos de despertar a consciência; no sentido de uma grande ocasião, provavelmente “irrepetível”, porque toda a humanidade tem de mudar os seus hábitos.

Os hábitos que tínhamos antes não eram bons hábitos, eram maus hábitos, tanto alimentares como culturais e sociais! Temos de rever todo o nosso modo de vida, que não foi orientado pela sabedoria, mas sim pela patetice. Nas últimas décadas, a maior parte da humanidade tem-se comportado como um bando de desorientados. É por isso que a Covid-19 pode tornar-se um momento extraordinário, uma oportunidade para despertar toda a humanidade, porque pode expor a gaiola financeira em que todos no mundo são prisioneiros. Encontramo-nos numa prisão financeira global. O dinheiro domina tudo, subjuga o bem-estar dos trabalhadores, sujeita o povo, que é oprimido pelas finanças internacionais. Ainda que não tendo uma visão comunista do mundo, todas as pessoas são escravas deste sistema e apenas uma “elite” muito pequena detém o controlo e a propriedade das finanças mundiais. Como funciona este sistema opressivo de financiamento internacional gerado pela cultura neoliberal?

Simples, as finanças internacionais exigem que todos, enquanto seres humanos individualmente, grupos e comunidade, pratiquem uma forte concorrência (entre nós e entre países); forte concorrência a todos os níveis como concorrência política, económica e social. Não há dúvida de que uma forte concorrência política, económica e social é fundamentalmente inconstitucional em quase todo mundo. Não é preciso “grandes estudos” para compreender este princípio fundamental. A Constituição em geral baseia-se na solidariedade e na cooperação e não numa forte concorrência, por outras palavras, com o sistema actual, as finanças dominam o povo, enquanto “constitucionalmente” deveriam ser as pessoas a dominar as finanças.

As finanças devem estar ao serviço do povo e não o contrário! Este princípio também mudaria completamente os modos de governo, pois actualmente, estes servem para tornar os povos cada vez mais escravos das finanças internacionais, o que é absolutamente inconstitucional! Antes da Covid-19 os economistas que se referiam ao modelo predatório neoliberal aconselharam em quase todo o mundo a reduzir as despesas nos cuidados de saúde, diminuir o número de médicos, cortar o número de enfermeiros, fechar pequenos hospitais, evitar a compra de equipamento médico… Reduzir foi a palavra de ordem! Se olharmos para o mundo actual surge a inevitável pergunta – nos últimos dez anos quantos milhares de milhões de dólares ou euros foram cortados no mundo nos cuidados de saúde pública, quantas camas foram eliminadas e quantas enfermarias foram encerradas, para além do encerramento de inúmeros pequenos hospitais?

Quantos médicos que, uma vez reformados, não foram substituídos por novas contratações? Os resultados destas infelizes escolhas estão à frente dos olhos de todos! Podemos dizer que estas escolhas, implementadas pelos vários governos dos países à escala mundial, têm estado em contraste com a maioria das suas Constituições que deve mencionar mais ou menos a ideia de que o Estado protege a saúde como um direito fundamental do indivíduo e do interesse da comunidade, e garante o atendimento gratuito aos necessitados. Ninguém pode ser obrigado a submeter-se a determinado tratamento médico, excepto por disposição legal. A lei não pode, em caso algum, violar os limites impostos pelo respeito pela pessoa humana. Outro tema actual é o sistema prisional. Houve motins em alguns países e haverá no futuro devido à Covid-19.

Os motins devem-se também ao medo de os prisioneiros serem infectados; as prisões estão sobrelotadas, pelo que, se o vírus entrasse, o contágio alastraria rapidamente e com cenários dramáticos. Não é preciso fechar os olhos! Há uma admissão necessária a ser feita, pois as condições de vida dentro das celas tornaram-se insustentáveis. Mas para todos, não só para os prisioneiros, entre os quais se espalha no silêncio culpado da política e da opinião pública, o número de sujeitos psiquiátricos que, durante muito tempo, já não têm um lugar para os acolher, condições de vida terríveis que, em pouco menos de dez anos, perturbaram e agravaram um ecossistema muito delicado, em que os directores das instituições, a direcção e elementos da polícia prisional, os polícias, o corpo de educadores e o exército de voluntários e profissionais de saúde, todos os dias correm muito mais riscos do que uma infecção por Covid-19. Porque é que as prisões estão sobrelotadas?

Se estão sobrelotadas, significa que são demasiado pequenas em comparação com a população prisional. Mesmo nesta área torna-se fácil desmascarar o perverso guia neoliberal das escolhas de política económica; assim, se as prisões estão superlotadas, significa que aqueles que as deveriam ter alargado receberam a recomendação habitual de reduzir as despesas, porque não há dinheiro; reduzir as despesas com os cuidados de saúde, porque não há dinheiro; reduzir as despesas com a aplicação da lei; reduzir as despesas com os bombeiros, etc. Haverá alguma hipótese de tornar a população prisional menos numerosa? Sim, há.

Poderão ser aplicadas medidas alternativas à prisão, especialmente a prisão domiciliária. Mas para tal precisaríamos de mais agentes da autoridade, ou pulseiras electrónicas, mas não existem o suficiente! Como assim?

A resposta é a habitual, o corte nas despesas, não existe dinheiro suficiente! Deveríamos ter tido mais hospitais, mais médicos, mais camas de cuidados intensivos, mais respiradores. Deveríamos ter tido prisões maiores. Não deveríamos ter o “numerus clausus” para certas disciplinas universitárias (tente pensar nisso, mesmo a tentativa de controlar o crescimento cultural das nossas futuras gerações). Espero que todos acordemos! Que retiremos “os atributos” e que se possa defender toda a população e não uma pequena elite que detém o controlo financeiro. Assim surge o ensinamento cristão de que “Então Jesus entrou no templo e expulsou todos aqueles que ali se encontravam para comprar e vender; derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos vendedores …e disse-lhes a minha casa será chamada casa de oração, mas vós fazeis dela um antro de ladrões.”, Mateus 12-13. Por que chegámos a este ponto?

Fizemo-lo porque “não havia dinheiro”? Para construir (reconstruir) uma ponte, um hospital ou uma escola pode faltar matéria-prima, pode faltar trabalho, mas a única coisa que nunca pode faltar é dinheiro! Nas Constituições e na democracia, o dinheiro do Estado é impresso pelo Banco Central. O Banco Central pode imprimi-lo com uma simples decisão e na medida do necessário para a economia, para conseguir o pleno emprego e para criar o bem-estar da população. E poderíamos também falar da gestão do fenómeno da inflação, a que tal processo pode conduzir, mas contra o qual existem medidas que tendem a equilibrar este círculo virtuoso (como a “escada rolante” para o ajustamento dos salários). Imagino agora a reacção dos economistas “mainstream” que arrancam a roupa, rasgam o cabelo, gritam heresias, mas como se atrevem a permitir-se sustentar tais falsidades! Como podem ainda apoiar as provas embaraçosas do fracasso da economia geral? E qual será a justificação de que não há dinheiro! Mas não se percebe? O nível insustentável da dívida pública de muitos países? Continua a aumentar!

As dívidas devem ser pagas! Para construir hospitais criam-se dívidas! Para contratar enfermeiros e médicos criam-se dívidas, etc. O cântico habitual! Estes economistas ou são escravos do sistema ou, pior ainda, da forte folha de pagamentos dos poderes, ou são realmente ignorantes; nunca leram (ou compreenderam) uma página de John Maynard Keynes ou não leram (ou não compreenderam) as Constituições dos países. Ou pior ainda…ambos ao mesmo tempo. A maioria das Constituições dos Estados-Membros da União Europeia (UE) prevê a soberania monetária! Isto significa que os Bancos Centrais (e não o BCE) podem imprimir todo o dinheiro necessário. O problema é que grande parte dos povos europeus acreditou nessas pessoas. Os povos europeus continuam a acreditar que não há dinheiro, que vivem além das suas possibilidades, que se gerou uma enorme dívida pública ao contrário dos alemães, que são formigas salvadoras, e os outros as cigarras gastadoras da Europa.

Quantas falsidades nos enchem a cabeça todos os dias! Chegou o momento de nos fazermos ouvir, de todas as pessoas partilharem estes pensamentos, até que os políticos e os economistas mal intencionados sejam desmascarados e a mudança desejada se realize. Chegou o momento de transformar o medo em raiva, para que a raiva se torne o combustível da mudança: “A raiva é para as pessoas como a gasolina é para os automóveis; é o combustível que nos faz mudar para um lugar melhor”. Caso contrário, não teríamos o impulso necessário para enfrentar um desafio. É a energia que nos permite reagir à injustiça disse Mahatma Gandhi. É de esperar e acreditar, que cada europeu acorde e ponha em acção a sua energia e vontade pessoais para que os valores das diversas Constituições dos Estados-Membros possam ser implementados e renovados.

Os cidadãos da UE são forçados a entrar numa gaiola financeira internacional e encontram-se numa das prisões mais rígidas de toda a comunidade mundial. A UE utiliza a opressão do povo e, em primeiro lugar, a opressão da informação através da destruição dos cérebros pensantes do povo, em virtude do facto de serem donos de todos os meios de comunicação social e, por conseguinte, de terem enchido o povo europeu com a história “da dívida pública fora de controlo”, com o facto de “ter de se manter dentro de um orçamento equilibrado” e com uma sequência de disparates deste tipo. Muitos governos europeus atribuíram milhares de milhões de euros para fazer face às urgências decorrentes dos bem conhecidos acontecimentos ligados à Covid-19. Chegou-se a esses montantes mendigando do sistema europeu, e quem sabe porquê, passados alguns dias, quando a necessidade já não era apenas de uns poucos países, mas também franco-alemã, veio a comunicação da Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen anunciar que a Comissão Europeia activou, pela primeira vez, a cláusula de salvaguarda do Pacto de Estabilidade, que permitirá aos governos de cada um dos países da zona euro “injectar dinheiro no sistema enquanto for necessário” – “A Covid-19 tem um impacto dramático na economia, e muitos sectores são afectados.”

A presidente da Comissão Europeia acrescentaria “O encerramento é necessário, mas atrasa gravemente a actividade económica. …faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para apoiar a economia e os cidadãos, e respeitamo-lo. Os auxílios estatais são os mais flexíveis de sempre e os vossos governos podem dar o dinheiro de que precisam a restaurantes, lojas, pequenas e médias empresas” Só? O que significa “dar o dinheiro de que precisam”? Ela não disse “empresta o dinheiro”. Mas, na verdade, todo o dinheiro que vai ser colocado no sistema será considerado dívida! Esperemos que não. Isso seria o fim! Os principais economistas e pró-europeus obrigaram-nos a viver mendigando à UE. Este é um modelo de controlo sem precedentes para a Europa. É um modelo predatório e violento que apenas serve para matar pessoas e destruir o planeta. Trata-se de um sistema criminoso. A injecção dos milhares de milhões de euros acordados é absolutamente insuficiente. São uma bagatela em comparação com o que é preciso.

Considerando que a pandemia da Covid-19 irá durar alguns meses, que se poderá transformar em vírus endémico e permanecer para sempre, há que considerar que a paragem da economia irá custar pelo menos dois ou três triliões de euros à economia até Dezembro de 2020, o que significa que, se os países saírem da emergência no final de Junho, são precisos muitas centenas de milhares de milhões de euros para reparar os danos à economia que, em grande parte, parou. Mas mesmo que se encontrem os fundos necessários, mesmo que se consiga adiar o pagamento dos impostos, no final será tudo dívida, o que significa que então ter-se-á de pagar porque estão todos endividados! E a única razão pela qual estão endividados é a hipnose gerada pela ignorância e pelo medo de quem sabe que catástrofes poderiam acontecer se os pactos europeus não fossem respeitados. Um povo consciente de que a moeda é impressa e de que se trata de um assunto do Estado, não deve temer nada. Em vez disso, o sistema (predatório e criminoso) prevê que o BCE imprima papel-moeda (ou seja, imprima dinheiro do nada…), empreste esse dinheiro aos bancos privados (a juro zero…) e os bancos privados decidam arbitrariamente a quem o emprestar.

Aplicando taxas, que, em comparação com zero, duplicam, triplicam, quadruplicam na melhor das hipóteses o seu rendimento. O outro aspecto a revolucionar é o sistema de crédito, pois os bancos protegem-se atrás de Basileia 1,2,3,4, e quem sabe que outras “bases de dados” ou registos, onde (cidadãos e trabalhadores honestos) são comparados com criminosos que vivem condenados por toda a vida a deixarem de ter acesso ao crédito por terem saltado ou atrasado alguma prestação de algum empréstimo ou hipoteca, ou (na sua vida empresarial) por terem tido alguns acidentes. Então, uma vez que o dinheiro é criado do nada, porque deixar este privilégio para o BCE e para o “lobby” da banca privada? Ficarem ricos à custa do povo europeu?

28 Mai 2020