Tânia dos Santos Sexanálise VozesBetty Dodson: a mãe da masturbação [dropcap]B[/dropcap]etty Dodson morreu aos 91 anos no dia 31 de Outubro de 2020. Quem a conheceu diz que o dia das bruxas não podia ter sido melhor dia para deixar o planeta. Ela, como muitas bruxas do passado, era uma curiosa e conhecedora dos caminhos do sexo e do orgasmo. Era uma artista “heterossexual bissexual lésbica” que trabalhou muito pela libertação das vulvas. Sem grandes rodeios, considerava-se a mãe da masturbação e a impulsionadora do uso dos vibradores na auto-descoberta. Ela citava dois acontecimentos que a ajudaram a definir o seu caminho. Um foi quando tentou exibir os seus quadros de cenas de masturbação. Não que fossem tempos particularmente abertos a estes conteúdos (estamos a falar dos anos 60), mas a sua exposição anterior, com imagens de sexo explícito heterossexual, tinha sido muito bem acolhida. Uma mulher masturbava-se com um vibrador e um homem acariciava o seu pénis – e a reacção foi péssima (mas também de alguma curiosidade, já que muitos se questionaram acerca da pequena máquina). Para além disso, nos loucos anos 60 de sexo em grupo, ela reparou que muitas mulheres fingiam ter orgasmos. O orgasmo tornou-se numa questão de justiça social, e o caminho a percorrer, era o da masturbação. Ela começou a organizar grupos de mulheres no seu apartamento em Nova Iorque, onde, nuas, observavam as suas vulvas e ensinavam-se técnicas de masturbação. Falava-se de padrões de beleza limitadores. Falava-se e observa-se a diversidade de vulvas e as suas formas e feitios – ela chegou a caracterizá-las, com seus desenhos, fotografias e nomes exóticos. Lábios maiores ou menores, clitóris mais ou menos visível e de diferentes tamanhos, a vulva gótica, a renascentista, a art déco e muitas outras (caso queiram saber em que categoria pomposa fica a vossa vulva é só passar no website dela). Depois usavam brinquedos sexuais para praticar, em conjunto, várias técnicas para se atingir o orgasmo – a técnica de eleição era a “rock n’ roll”. Deu também um outro espaço para a utilização de brinquedos sexuais quando na altura eram extremamente criticados pelo movimento feminista. A popularidade da wand, um massajador doméstico que era encomendado em catálogos de artigos para o lar e usado para brincadeiras sexuais, deve-se muito a ela. Tanto é, que a wand é agora um brinquedo sexual assumidíssimo. Não é por acaso que ela sempre reclamou os louros desta inovação. Os workshops continuaram durante décadas e até há bem pouco tempo. O seu trabalho ganhou ainda mais visibilidade quando Gwyneth Paltrow a convidou para o seu programa sobre sexo, vulvas e a importância do auto-conhecimento nestas coisas do orgasmo (podem vê-la na plataforma de streaming de eleição). Uma coisa tão simples como olhar a vulva no espelho, era o mínimo que a Betty exigia. Com plena consciência de que o privado é político, trabalhou para a libertação das vulvas com o sentido cívico de que “orgasmos melhores, resultam num mundo melhor”. Ela escreveu livros, pintou e desenhou sexo, masturbação, muitas vulvas, e muitos pénis também (que, curiosamente, tinham maior dificuldade em agradar as massas). A artista e educadora sexual deixa o seu trabalho nas mãos da sua parceira de negócios que já veio garantir manter o funcionamento dos workshops (podem ver mais informações nos canais habituais). O seu legado dificilmente desaparecerá.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesMedir a felicidade [dropcap]A[/dropcap] semana passada, foi publicado o “Index de Felicidade de Hong Kong”. O Index de felicidade da população de Hong Kong é de apenas 6.16 pontos. Esta pontuação está muito próxima da de 2019, 6,15, a mais baixa da última década. O estudo foi conduzido pela Escola de Enfermagem da Universidade Politécnica de Hong Kong e pela empresa de estudos sociais “Hong Kong Happy d”. Os inquéritos foram realizados no passado mês de Setembro. O objectivo do estudo é a avaliação do nível de felicidade da população de Hong Kong, em função de factores psicológicos, sociais, ambientais, etc. Um dado bastante impressionante revelado por este estudo foi o de que o nível mais baixo de felicidade se situa no grupo etário compreendido entre os 12 e os 18 anos, apenas 5.87 pontos, muito abaixo dos 6.2, verificado em 2019. É também de salientar que as mulheres são menos felizes do que os homens. Apurou-se ainda que 45 por cento dos inquiridos sofre de depressão, das suas formas mais ligeiras às mais graves. Hong Kong realiza com frequência este tipo de estudos. As Nações Unidas publicam regularmente, desde 2012, o Relatório de Felicidade Mundial. A oitava edição deste Relatório foi publicada este ano, a 20 de Março. Num universo de 153 países, Hong Kong aparece em 78º lugar, duas posições abaixo da que ocupou em 2019. E para que serve este Relatório? Em 1972, o Rei do Butão substituiu o PIB pela “Felicidade Nacional Bruta”, como indicador do desenvolvimento nacional. Esta medida chamou a atenção de outros países. Cada vez mais Governos valorizam a felicidade da população e o desenvolvimento sustentável. Em 2012, as Nações Unidas decidiram recorrer à estatística para estudar o nível global de felicidade e publicaram o primeiro Relatório sobre esta matéria. Hong Kong ocupa a 78ª posição no Relatório Mundial de Felicidade, situando-se a meio da tabela. Como o Instituto Politécnico de Hong Kong publicou o estudo em Setembro, os resultados estão mais actualizados do que os do Relatório Mundial. Acredita-se que em 2021 Hong Kong irá continuar a descer no Index Mundial de Felicidade. Os responsáveis pelo estudo feito em Hong Kong, assinalaram que os níveis de felicidade dependem em primeiro lugar de factores internos e posteriormente de factores sociais e ambientais. Assim, quem quiser ser mais feliz, tem de trabalhar os factores internos. É fundamental ganhar um capital psicológico. Se os factores ambientais – por exemplo, a epidemia- podem ter impacto nas pessoas, resiliência de cada um de nós pode ajudar a diminuir o transtorno provocado por factores. Além disso, as pessoas devem criar valores positivos. Se todos forem sensíveis, responsáveis, para consigo próprios e para com os outros, valorizarem a integridade pessoal, teremos uma sociedade mais harmoniosa e mais feliz, e aumentaremos o bem-estar em Hong Kong. O nível de felicidade individual, também aumenta, evidentemente, em função da qualidade de vida. O Index de Felicidade de Hong Kong pode ser uma referência para Macau. A criação de um capital psicológico, citado no Relatório, pode aplicar-se à população de Hong Kong e à de Macau. Os habitantes de Macau também podem incrementar a sua resiliência e reduzir o impacto dos factores adversos. Cada cidadão de Macau tem a responsabilidade de criar valores pessoais positivos e ajudar a criar uma sociedade mais feliz. De que é que Macau precisa para ser feliz? A distribuição anual de dinheiro feita pelo Governo da RAEM tem contribuído para a felicidade da população. Actualmente, os reformados recebem uma pensão de cerca de 6.000 patacas mensais. Através do plano de distribuição de receitas, os residentes permanentes recebem todos os anos 10.000 patacas. Ninguém quer ser confrontado com uma epidemia. Durante este período, o Governo de Macau distribuiu por cada residente cartões de consumo no valor de 8.000 patacas, para ajudar a minorar as dificuldades criadas pela pandemia. Todas estas medidas se centram na distribuição de dinheiro. Até que ponto é que esta distribuição aumenta a felicidade dos habitantes de Macau? Em 2016, o Governo suíço levou a referendo o “Rendimento Mínimo”. Nessa altura, esta medida foi muito debatida. Os adultos receberiam 2.500 francos suíços (cerca de 19.900 HK dólares) mensais e as crianças um quarto deste valor, o que equivaleria a 5.000 HK dólares. Quando os salários excedessem essa quantia não haveria lugar a qualquer subsídio. Este plano acabou por ser rejeitado. A distribuição de dinheiro é uma política de assistência social que levanta controvérsias. Precisamos de uma investigação mais aprofundada para encontrar os factores que geram a felicidade da população de Macau, para que possamos compreender a relação entre as políticas sociais e o crescimento do index de felicidade. Seja qual for o resultado, o Governo vai ter de lidar com a enorme dificuldade equilibrar a gestão orçamental e a distribuição de receitas. Hong Kong e Macau são Regiões Administrativas Especiais da China. Em Macau, o PIB per capita cresceu significativamente nos últimos anos. Será que de futuro o Relatório Mundial de Felicidade passará a incluir Macau? Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog:http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
luis-sa-cunha Ai Portugal VozesOs peixes já não respiram [dropcap]T[/dropcap]odos nós já ouvimos falar do que se está a passar nos oceanos. A falta de civismo dos homens, a falta de infra-estruturas, as fábricas que despejam produtos químicos para os rios, os piqueniques nas praias e nas margens dos rios, os navios que descarregam o lixo e lavam o seu interior deitando os detritos para o mar têm constituído as principais razões para que a poluição marítima comece a colocar a saúde dos humanos em perigo. Todos os que se dedicam ao mergulho sabem bem do que estamos a escrever. As águas dos rios e do mar estão a ficar um caos e têm sido inúmeras as vezes em que aparecem peixes mortos ao cimo das águas. Estamos perante um verdadeiro crime ecológico. Os peixes já se alimentam de plástico e de produtos tóxicos. Alguns já nem conseguem respirar e morrem. O tio Alfredo é um pescador que assiduamente levanta-se de madrugada para ir à pesca, conforme as horas das marés o permite. Levanta-se cedo, pega no seu material de pesca e aí vai ele para a beira do rio Tejo. – Então, tio Alfredo, isto está a dar ou não? – Viva, amigo! Isto já não é o que era… antes até o robalinho apanhava aqui, agora nem vê-los… – Mas tem visto aí uns golfinhos? Quer dizer que as águas estão mais limpas? – Não, amigo. Os golfinhos aparecem porque andam cheios de fome e vêm atrás dos cardumes e rapidamente se vão embora porque sentem que as águas estão cheias de porcaria que não “lhes cheira bem”… tá-me a perceber? – Parece que sim, tio Alfredo. Está a dizer-me que o que vem pelo rio abaixo chega aqui perto da foz e nota-se que os peixes não andam nada felizes… – É isso mesmo. O peixe já não tem a mesma qualidade e agora ainda pior com essa história dos “aviários” que têm feito por todo o lado… aquilo é só farinha e o peixe não vale nada… ainda vou preferindo estes que ficam aqui nos meus anzóis… O problema é grave e quem nos governa até tem ministros das Pescas. Que não servem para nada a não ser a preocupação dos licenciamentos de bons hotéis à beira da costa marítima… As organizações relacionadas com a defesa do ambiente tudo têm feito para que os rios e o mar possam ser alvo de uma acção musculada e efectiva. Normalmente falam para as paredes. Vamos ao rio Guadiana, ouvimos queixas. Vamos ao Mondego, as mesmas queixas. No Douro nem se fala. Num dos maiores rios navegáveis o factor ambiental está a tornar-se um crime. Como é possível que cada ano sejam licenciados mais barcos para navegar no Douro a fim de transportar turistas. E o ambiente marítimo? Nem se fala nisso. Os barcos são de os mais variados portes e até já existem navios-hotéis. Os motores das embarcações fazem uma barulheira que eles pensam que não incomoda os milhares de peixes que estão no fundo das águas. Os barcos a gasóleo largam resquícios de óleo e deitam uma fumarada que até o ambiente exterior fica conspurcado. No rio Douro é uma pena que a família piscícola não seja defendida. Peixes mortos aparecem todas as semanas de verão, altura em que os barcos são aos montes. Mas, não haverá alternativa para estas embarcações a gasóleo que navegam por todo o país? Felizmente existe, mas as autoridades governamentais e os empresários que deviam ser obrigados a mudar de paradigma assobiam para o lado. Portugal tem um dos melhores estaleiros do mundo, em Olhão no Algarve, onde são construídos navios de todas as dimensões e que são movidos com baterias eléctricas e à base da energia solar. Energia solar? É verdade, amigos, num país como o nosso cheio de sol, os barcos que saem daquele estaleiro têm sido a alegria dos seus compradores. Já vai havendo alguns a navegar, mas o rio Douro, o lago Alqueva, o rio Tejo e tantas barragens existentes por todo o país mereciam uma legislação oficial que fosse obrigatória na aquisição de navios a energia solar. Nada melhor para o ambiente. Silenciosos e nada poluentes. Quem está satisfeito é o governo da Madeira que encomendou uma embarcação para cerca de 400 pessoas e para realizar o trajecto Funchal-Porto Santo. E por que não, o governo nacional não obrigar os empresários do Douro, Tejo, Guadiana e barragens a adquirir barcos a energia solar? Por que razão o governo prepara-se para adquirir novas embarcações, no valor de milhões de euros, para a travessia Lisboa-Barreiro e vai escolher embarcações poluentes? Ainda por cima a Sun Concept, a empresa portuguesa que está a desenvolver embarcações electro-solares inovadoras e sustentáveis está a exportar para vários países, nomeadamente para a Alemanha. Por que não dar a ganhar dinheiro a uma empresa portuguesa e defender o ambiente onde vivemos e onde os peixes já nem conseguem respirar?… *Texto escrito com a ANTIGA GRAFIA
Carlos Morais José A outra face VozesQuarentena (2) [dropcap]D[/dropcap]escobri pois os meandros da abulia. Eu, que não sou de meditações, de quietismos, de posições indianas. “Um pensamento de nada é um nada de pensamento”, dizia aristotelicamente o meu professor de filosofia. E ria, dentes amarelados, incrustados — “é a lógica da batata!”, rematava. E eu ria também e acreditava como aos 16 anos ainda se acredita em coisas que, à partida, nos parecem que a algum lado hão-de chegar. Esquecera-se o bom senhor de distinguir entre o nada e o vazio, de estabelecer os dois campos, pois que o nada só na mente se vislumbra, e que para considerar o vazio logo o espaço assome como aquele lugar, extenso e sem nome, que de tudo é suposto ser sustento. Claro! — Sobra-me o tempo! Este tempo azul da quarentena. É nele que pairo e que sou, qual nuvem bem aviada. Voo sobre as estradas, as cidades, as montanhas, mas deitado em cama alheia e desta vez sem ideia de ficar ou de fugir. A vontade deixou de ter um papel. Estou fechado, trancado, submetido, algemado. Não posso sair para nenhum lado que não seja esse abismo de nada, hiante, escancarado, a rir-se dentro de mim. “Saltarás, saltarás e por fim te acharás”, zumbe o rifão na cabeça. Não há pressa de ser – o coração bate lento como o de uma lagosta. Tenho o tempo do meu lado (o tempo… o tempo…) e nele desmaio afogado. Assim passa outra manhã, outra tarde, outra noite, embora tenha corrido as cortinas e invocado a visão que teima em não comparecer à chamada. Afinal, fora sempre assim, não é de agora, da quarentena, da forçada solidão. Bem me dispo para os deuses, mas eles parecem não ter interesse por meu corpo nu e sóbrio. Silêncio neste quarto que é o mundo. Depressão. Leio então Epicuro e mergulho no jardim. Há, pela noite, de jasmim um puro odor que uma vela exala. Talvez isso me ajude à fantasia de não me encontrar rodeado de artifícios de sala. E que um gineceu aguarda a ponta do meu nariz. Ó eflúvios incessantes! Ó gardénias delirantes de um tango por dançar! E da fonte de água escura brota um som delicado. Sento-me, faço um bordado de pensamentos cruéis. O velho mestre entoa a canção da média luz, da contenção necessária, do corpo que não deseja. Mas o meu corpo boceja de tão graves intenções. Volto-me outra vez na cama, reviro de novo o lençol. Este jardim cheira a formol, a bafio. Sou gentio sem lugar em crença tão assustada. Não! Não me serve esta estrada, este caminho do meio onde as flores são astutas e se afastam quando passo. Ainda assim, eu prefiro vaguear por selva crua e, retalhado de espinhos, colher a fruta madura que num ápice se oferece, sem remorsos e sem preces, ao meu corpo desbocado. E durmo um sono pesado que me permita sonhar. Debalde. Caio num sítio vazio onde o nada me espera e nada desta quimera me alivia enquanto durmo. Acordo exactamente no mesmo sítio onde me tinha deitado. Que esperavas, animal? Sobrevoar a cidade, ver gente, curtir um pouco, daquela vida tão pouca de que dantes tu fugias? Sim, compreendo… o quanto falta me faz um sorriso laminar, os bons dias prazenteiros que me dava aquela velha, a mulher do meu porteiro, as discussões sem sentido que não seja discutir, a piada sem humor que me fazia sorrir e mesmo o tédio de estar no meio de uma multidão. Não, não serei feliz sozinho, tenho precisão dos outros, de partilhar o caminho, de um consolo, de um carinho, de um acolhedor regaço. Caramba, já me desfaço em tantas elucubrações. Batem à porta e, num salto, lá vou abrir apressado. Diz que é hora de jantar, de medir a temperatura. Estendo a testa e balbucio “obrigado”. Felizmente que não medem o grau da minha loucura. Volto ao jardim apressado, mas…, por mais estranho que seja, tenho o lugar ocupado pelo outro que não deixa de me fazer companhia. “Quem és tu?”, pergunto frio, o cenho bem carregado. “O que fazes no meu quarto, neste jardim tão privado?” O outro pouco refila. Agora creio-me Borges, num labirinto fechado, em conversa com alguém que em mim não acredita. E rio desta desdita de me crer tantos num corpo, decadente e decaído dessa cruz que eu mesmo ergui. Toca o telefone. É já amanhã o dia, reza uma voz distante. Belisco-me, será verdade? Vai finar-se a quarentena? Vou sair, espernear, e de novo abraçar, e pela relva rolar, e voltar a respirar ar sem ser condicionado. E dou por mim agastado de outro plano não ter que não seja agradecer por ter cumprido este fado. Pronto, acabou. O elevador transporta-me ao átrio, vejo a luz que pela porta me diz que existe a rua. Não sei quem de aqui sai. Serei o mesmo? Quantos dos meus cabelos entretanto embranqueceram? Quantos amigos me esperam? Que fazer da liberdade? Voltar ao mesmo que dantes? O meu filho abraça-me. Contenho lágrimas. “Tudo bem”, sussurro aliviado, “tudo bem…– É o teu pai. Eis-me de volta.”
João Romão VozesTurismo na economia (II): crescimento e resiliência [dropcap]R[/dropcap]etomo o fio a uma meada que comecei a desenrolar na crónica anterior, sobre impactos do turismo nas economias, seus processos e mecanismos, com desequilibrados benefícios para quem vive em zonas turísticas e obscuras formas de diferir problemas para o futuro, assunto a que tenho dedicado parte significativa da minha profissional nos últimos 10 anos. Na realidade, são anos em que muitos economistas têm questionado um processo que parecia consensual, ao qual se foi chamando “crescimento liderado pelo turismo” (“tourism led growth”, na sua versão na língua que se foi tornando absolutamente hegemónica – quase exclusiva, na realidade – na produção científica contemporânea). A hipótese é relativamente simples e aparentemente fácil de observar: a dinâmica turística gera empregos, vendas, impostos, implica aquisição de produtos intermédios, recorre a recursos variados dos territórios, abre novas oportunidades de negócio: de forma directa (pelo consumo dos turistas), indirecta (pela utilização dos produtos intermédios necessários aos serviços turísticos) ou induzida (pelo consumo de quem trabalha no sector), o turismo gera inevitavelmente crescimento económico nos territórios. Mas à medida que o tempo passa, os impactos se acumulam e os dados estatísticos permitem analisar períodos mais longos, pode também passar-se do imediatismo do curto prazo para as transformações estruturais de prazos mais longos. E é olhando para estas transformações mais lentas que um conjunto cada vez mais alargado de investigadores, entre os quais me encontro, tem vindo a identificar diferentes problemas económicos com significativos impactos negativos sobre o crescimento económico: alteração de padrões de especialização regional, processos acelerados de desindustrialização, concentração do conhecimento e tecnologia em actividades de baixo valor acrescentado ou intensificação da especulação imobiliária são mecanismos que de facto podem gerar crescimento económico (eventualmente significativo) numa primeira fase, mas certamente comprometem o crescimento futuro. Mesmo deixando de lado outros aspectos relevantes, como a justiça na distribuição dos rendimentos e benefícios do turismo (quando existem), já devia ser motivo de preocupação para as políticas de desenvolvimento territorial contemporâneas. Na realidade, em estudos a que me dediquei em regiões europeias, com dados dos últimos 12 anos, só observei um impacto positivo da procura turística sobre o crescimento económico quando ela se traduz também na capacidade de gerar um alto valor acrescentado pelos serviços turísticos. Pelo contrário, regiões com turismo mais massificado e parte significativa da população a trabalhar no sector apresentam em geral um crescimento económico inferior às restantes (o que, por exemplo no caso português, implica um agravamento da divergência dos níveis de desenvolvimento económico em relação às zonas mais ricas da Europa, em vez da ambicionada convergência). Acrescem a estes desequilíbrios os problemas de vulnerabilidade que têm sido continuamente expostos com a sucessão de crises a que temos assistido – e que certamente contribuíram para que se generalizasse entre cientistas sociais (e também entre economistas) a utilização do conceito de resiliência. A pandemia actual não é única crise com impactos mais ou menos devastadores sobre o turismo a que assistimos recentemente: em menor escala, as chamadas gripes suína ou das aves já tinha afectado o turismo, sobretudo na Ásia; os atentados do 11 de Setembro tiveram um impacto relativamente curto mas global; e os efeitos da crise financeira internacional foram globais e francamente mais duradouros. Enquanto formas de consumo das quais não depende a sobrevivência humana, o lazer, as viagens ou o turismo são facilmente afectadas em tempo de crise económica, além de se tornarem inviáveis em tempos de insegurança generalizada, seja por motivos de guerra ou guerrilha, seja por motivos de saúde. Essa vulnerabilidade das regiões altamente dependentes do turismo em relação a estes choques externos constitui então outra implacável fraqueza: na realidade, não foi difícil observar em diferentes estudos que as regiões europeias que mais sofreram com a crise económica de 2007-2008 – e onde esses impactos negativos foram mais longos – foram aquelas onde era mais significativa a especialização económica em sectores ligados ao turismo e à construção: também eu observei, com os devidos modelos econométricos, que um sector turístico assente em serviços massificados e prestados com processos baseados em mão-de-obra intensiva contribui para aumentar a vulnerabilidade económica, enquanto reduz a capacidade de absorção e de recuperação em relação aos “choques negativos”. Pelo contrário, um turismo gerador de elevado valor acrescentado contribui para o crescimento económico, reduz a vulnerabilidade e acelera a absorção e recuperação após um impacto externo negativo. Estas tendências mais gerais que se podem identificar comparando conjuntos alargados de territórios podem ser também olhadas com mais detalhe observando territórios concretos. Por exemplo, causou alguma surpresa a forma como o turismo recuperou muito rapidamente no Algarve após a crise de 2007-2008 (em 2010 já tinha retomado os níveis e a trajectória de crescimento anterior à crise), mas os problemas económicos e sociais da região perduraram muito para além disso. Uma resposta que encontrei para o problema, publicada em 2016 no jornal académico Tourism Economics, tem a ver com as interelações do turismo com outros sectores de actividade: neste caso, a estreita ligação e o reforço recíproco que foram alimentando as actividades turísticas e de construção civil no Algarve fizeram com que um desemprego massivo se abatesse em simultâneo sobre os dois sectores. Sendo verdade que o turismo recuperou depressa, o mesmo não aconteceu na construção, que nos últimos 20 anos se tinha tornado fonte massiva de emprego na região – o que viria a marcar a tragédia social que se viveu então e que havia perdurar. Retomo a meada concluindo que os benefícios (ou problemas) económicos associados ao desenvolvimento turístico dependem em larga medida da forma como o sector se relaciona com as restantes actividades da região. Voltarei ao assunto em próxima crónica.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO “Big Data” como o novo petróleo “Two of the most important developments of this new century are the emergence of cloud computing and big data. However, the uncertainties surrounding the failure of cloud service providers to clearly assert ownership rights over data and databases during cloud computing transactions and big data services have been perceived as imposing legal risks and transaction costs.” Marcelo Corrales Compagnucci Big Data, Databases and “Ownership” Rights in the Cloud [dropcap]O[/dropcap]s chineses, alistam cidadãos para os chefiarem e sempre tal aconteceu, com precedentes muito antigos, mesmo datando da história imperial, durante o curto mas fundamental período da Dinastia Qin (221-206 a.C.) na qual a vida quotidiana e a sociedade estava organizada de uma forma perfeitamente militar. Todos os habitantes estavam divididos em grupos de cinco ou dez famílias que trabalhavam em conjunto e se administravam umas às outras. Um sistema de vigilância estava em vigor na altura, e cada pessoa comunicava comportamentos considerados “desviantes”. A fim de se manterem mais próximo do nosso tempo, as unidades de trabalho e, mais tarde, os muitos cidadãos envolvidos em actividades de fiscalização mútua continuaram estas tradições. Ainda hoje não será difícil encontrar em algumas cidades pessoas idosas com uma braçadeira nos braços encarregados de inspeccionar a área, capazes de contar cada pequeno detalhe da vida. Talvez também para estas referências mais ou menos distantes, os chineses parecem aceitar facilmente o desenvolvimento “cidadão” em nome da “segurança” e da dissuasão (obtida também através de modelos de previsão adoptados pelas autoridades locais) contra os criminosos. Actualmente, os “olhos” da China não são apenas uma inspiração mas sim uma realidade e muitas empresas chinesas estão na corrida por um mercado em contínua expansão. Para a imprensa nacional, incluindo “sistemas de vigilância vídeo, controlo de acesso, alarmes policiais, sistemas de inspecção de segurança” e o mercado da segurança pública foi estimado em cerca de noventa mil milhões de dólares até ao final de 2017 e espera-se que cresça para cento e sessenta e dois mil milhões de dólares em 2023, de acordo com a Associação da Indústria de Segurança e Protecção da China. Esta é uma tendência global, influenciada pelo que está a acontecer na China. O mercado global de vigilância vídeo foi estimado em quarenta mil milhões de dólares em 2018 e espera-se que atinja um valor de noventa e seis mil milhões de dólares em 2024. A Europa segue e não tem capacidade de instalar câmaras “anti-vandalismo” e “inteligentes” devido a uma questão orçamental. Mas essa é a tendência futura. Qualquer projecto de cidade inteligente gira em torno do “Intelligent Operation Center (Ioc) ”, um mega computador capaz de controlar todas as áreas do projecto. A China não só tem influência nas tendências globais, como tem a capacidade de impor os seus produtos no mercado mundial, e são os Estados Unidos que o provam. Por exemplo, os militares americanos começaram a comprar produtos de videovigilância chineses. As motivações foram o preço e desempenho. Segundo uma investigação do “Financial Times”, a base militar em Fort Drum, em Junho de 2018, adquiriu câmaras Hikvision (é um fabricante e fornecedor chinês parcialmente estatal de equipamento de vigilância por vídeo para fins civis e militares, com sede em Hangzhou) no valor de trinta mil dólares. Um concurso para câmaras de segurança no acampamento base do Corpo de Fuzileiros Navais em Lejeune, em Janeiro de 2019, descobriu por outro lado que apenas o equipamento Hikvision funcionaria numa rede com outras câmaras, dando acesso a dados sensíveis de outras ferramentas tecnológicas utilizadas. A rápida expansão da Hikvision no mercado de vigilância dos Estados Unidos, em que 42 por cento pertence ao governo chinês, começou em 2010, quando principiou a vender alternativas muito mais baratas aos dispositivos fabricados por marcas como a Axis e a Bosch. Em 2016, a empresa chinesa tinha-se tornado o segundo maior fornecedor de produtos de vigilância vídeo nos Estados Unidos, com 8,5 por cento do mercado de câmaras de vigilância. Foram, em particular, os preços que atraíram as pequenas empresas e as forças da lei locais para a China. A marca tornou-se tão popular principalmente devido ao preço. A presença de câmaras chinesas na Web levantou suspeitas imediatas, apoiadas pela directiva do governo dos Estados Unidos de proibir a compra de tecnologia chinesa para o seu sector militar. Mas no final de Julho de 2019, as câmaras produzidas pela Hikvision, segundo o jornal financeiro britânico, permanecem na Base da Força Aérea de Peterson, no Colorado, no quartel-general do Comando de Defesa Aeroespacial Americano (Norad) e no quartel-general do Comando Espacial da Força Aérea. Mesmo os departamentos de polícia de estados como Massachusetts, Colorado e Tennessee ainda dependem das câmaras Hikvision. Só o Departamento de Polícia de Memphis tem pelo menos 1500. E porquê? Porque o desempenho conta e tal como noticiado nos meios de comunicação internacionais, o sistema Hikvision é capaz de identificar com precisão rostos independentemente da etnia, enquanto algumas tecnologias desenvolvidas no Ocidente só são precisas no que diz respeito à população branca. Isto acontece por uma razão muito simples; as possibilidades que a China tem de experimentar e aperfeiçoar o seu armamentário de segurança são imensas, graças à enorme quantidade de dados de que dispõe. E tem áreas onde pode desenvolver a sua tecnologia. Porque é que a tecnologia chinesa é considerada tão avançada em termos de reconhecimento facial e competitividade internacional? Uma primeira explicação tem a ver com um continente africano gigantesco destinado a crescer dramaticamente em termos demográficos nos próximos anos, pois em 2050 uma em treze crianças no mundo será nigeriana e uma em cada quatro crianças será africana. A África é o continente em que a China tem vindo a investir em termos económicos e políticos desde há anos. Basta dizer que, quando foi investido presidente da República Popular em 2013, Xi Jinping fez a sua primeira visita de estado a África, entre eles a Tanzânia, África do Sul e Congo, testemunhando a relação muito estreita entre a China e a África. No continente africano, a China desempenha o papel de motor da industrialização, com investimentos e a criação de zonas económicas especiais que permitem verter o seu próprio excedente comercial e gerir o seu financiamento em busca de recursos. Não faltam acusações mal intencionadas contra a China de suspeitas de realizar extensas operações de apropriação de terras e de influenciar fortemente a economia dos países africanos que, a longo prazo, correm o risco de se encontrarem em dívida para com a China de forma dramática. O que os outros países não fizeram, a China fez, e por essa ajuda é mal vista pelo Ocidente, porque a África deveria ser o continente perdido e sem futuro. Mas esta relação privilegiada da China com os países de África também tem outras implicações, ligadas precisamente à “Inteligência Artificial (IA) ”. Em Março de 2010, com o Zimbabué, a empresa chinesa baseada em Cantão, CloudWalk Technology, assinou uma parceria para iniciar um programa de reconhecimento facial em grande escala em todo o país. O acordo, apoiado pela iniciativa do governo chinês “One Belt One Road” (a “Nova Rota da Seda”), que como se sabe é um gigantesco plano de investimento geopolítico e de infra-estruturas, considerado como o maior projecto estratégico da história humana, que visa aplicar a tecnologia chinesa à segurança do país africano, o que implica também um nível de experimentação e investigação sobre rostos africanos, a fim de aperfeiçoar ao máximo o mecanismo de reconhecimento facial da tecnologia chinesa. Alguns aspectos que nos parecem futuristas são uma realidade na China. O reconhecimento facial é uma realidade diária nas cidades chinesas e são utilizadas tanto para pagamentos em restaurantes como para entrar em edifícios públicos, bancos, escolas e universidades. Em Shenzhen foi lançada uma campanha para o uso do reconhecimento facial em todas as áreas da vida quotidiana. Estas são actividades que, como de costume, permitem acumular o novo petróleo do nosso tempo que são os dados. Os “Grandes Dados” recolhidos acabam numa grande base de dados e as empresas chinesas, de facto, devem submeter-se à estreita ligação com o governo, não só em termos de financiamento, mas também em termos de partilha dos dados recolhidos. O sistema de vigilância chinês é actualmente um dos mais avançados do planeta e o objectivo da “aterragem” no Zimbabué é melhorar o seu know-how para tornar os seus produtos ainda mais competitivos no mercado internacional, pois a introdução de tecnologia numa população de maioria negra permitirá às empresas chinesas identificar mais claramente outros grupos étnicos, ultrapassando os promotores americanos e europeus. Outro exemplo desta capacidade chinesa é o da Transsion Holdings, uma empresa quase desconhecida que começou a entrar no mercado dos smartphones em África, acabando por ultrapassar a Samsung. Em Abril de 2018, a Transsion apresentou um novo modelo de smartphone com tecnologia de reconhecimento facial e que será comercializado em África. A Huawei, o gigante das telecomunicações que se tornou líder tanto no mercado dos smartphones como no das redes, começou a sua ascensão a partir de um mercado “secundário”, nomeadamente da América Latina e como habitualmente, a China está a refazer os caminhos que levaram ao sucesso. A minoria uigur, um grupo étnico de língua turca e muçulmana, vive na região noroeste da China de Xinjiang. Existem actualmente cerca de onze milhões de uigures na região. Neste território residem símbolos da cultura muçulmana, algumas cidades apenas para lhes dar nome como Kashgar, por exemplo, que despoletam memórias e histórias incríveis de aventura ligadas ao comércio, trocas e vidas extraordinárias. Mas a região nem sempre foi muçulmana pois foi também e acima de tudo uma região atravessada por populações nómadas, por mil religiões e crenças e por diferentes atitudes e organizações sociais. A área foi considerada inexpugnável durante muito tempo, porque foi atravessada pelo deserto de Taklamakan, o terror de todo o explorador. Actualmente, nas cidades da região, os mercados ao ar livre, o cheiro da carne de cordeiro e das especiarias catapultam a mente de qualquer pessoa para a imaginação árabe. Os chineses da região têm olhos azuis ou longas barbas; através de Xinjiang, das suas cidades, montanhas e deserto, pode-se admirar a grandeza da paisagem, história, cultura e etnia da China. Uma longa campanha chamada “Go West” tem apelado às empresas e negócios chineses para investirem naquela região que é estratégica para o governo e os planos futuros do Presidente Xi Jinping e da sua Nova Rota da Seda. A África, para além de garantir recursos e pontos de venda para o fabrico chinês, é também um laboratório para as suas indústrias tecnológicas. Segundo estimativas do co-fundador de “Wired”, a China tem cinco a dez anos para criar um produto verdadeiramente global que todos no mundo vão querer. Pode ser um carro com auto-condução ou um robô. Saem de uma cultura de réplica como o Japão esteve durante muito tempo, mas depois rompeu com o Sony Walkman, câmaras fotográficas e outros equipamentos que as pessoas queriam. O Japão era o melhor no fabrico desses produtos. A China está a aproximar-se desse momento e um dos lugares onde este produto que “todos queremos” poderia sair, é definitivamente a Innoway, a rua de Pequim onde os sonhos das estrelas chinesas mais recentes do momento estão a eclodir. Vindo da estação de metro de Zhongguancun, atravessando pontes em ruas de oito faixas, transitando enormes centros comerciais electrónicos, parece que estamos catapultados para o início do filme “Vanilla Sky”. O silêncio governa esta rua, outrora ocupada principalmente por livrarias, enquanto muito jovens a percorrem com os olhos fixos nos seus smartphones. A Innoway guincha na atmosfera nerd e informal do Vale do Silício americano, mas tem óbvias “características chinesas” como no resto de Pequim em que não há espaço para dinheiro e tudo é feito com o WeChat, incluindo o carregamento de telemóveis, assim como a ligação Wi-Fi é obtida lendo Qrcode com a rainha-mãe de todas as aplicações chinesas. O “Laboratório dos Sonhos” é a placa que se pode ler na entrada de um edifício; em frente dela há um escritório com o logótipo Microsoft. Não muito longe está a sede da Tencent. Atravessando a rua há o primeiro dos vários ecrãs que mostram todos os poderes de reconhecimento facial aplicados ao trânsito e capazes de assinalar imediatamente quem está fora de linha. Uma cena que faz tanta revolução aos olhos ocidentais, mas que é percebida de uma forma completamente diferente pelos chineses. Na Innoway existem robôs, sistemas de reconhecimento facial para máquinas automáticas de snacks, sensores, câmaras inteligentes, assistentes de voz capazes de sustentar uma conversa humana. A Xiaomi, agora um gigante no mercado dos smartphones e que apostou na IA, produziu um há dois anos, e diz-se que é surpreendente. O futuro vai ser esse, como na série de TV “The Expanse”, em que vamos passar o nosso tempo a pedir directamente à IA que nos mostre respostas aos nossos pedidos ou como Ian McEwan diz em “Machines Like Me: A Novel”, poderíamos ter robôs, verdadeiros “amigos” capazes de facilitar as nossas vidas (ou inserir nos nossos caminhos mentais perguntas perturbadoras, graças à sua capacidade de avaliar num nanossegundo milhares de dados dispersos na rede). O que mais se esconde dentro dos escritórios da Innoway é que constitui a verdadeira riqueza desta estrada de pouco mais de duzentos metros, o trabalho incessante de criação, melhoramento, controlo e verificação de todas aquelas aplicações capazes de invadir o mercado e de proporcionar à China um novo potencial em termos de cidades inteligentes e processos industriais. Ali experimentam algoritmos capazes de automatizar fábricas, de operar veículos automotores (especialmente ao nível da gestão logística complexa ou dos transportes públicos ou de longa distância), sistemas de vigilância capazes de regular o tráfego urbano (e, claro, de controlar o trânsito dos habitantes em todos os pormenores). Desta forma, estão a ser procuradas soluções para as cidades chinesas do futuro. A Innoway representa a China bem lançada para uma liderança tecnológica que vai enriquecer muitos e provavelmente permitir viver em cidades mais seguras, limpas e arrumadas, sendo capaz de desenvolver uma forma hipertecnológica de “controlocracia”. A Innoway está dentro da área de Zhongguancun, já no passado o centro tecnológico da China, da Lenovo e das grandes empresas capazes de entrar nos mercados internacionais graças ao pacote de hardware e ao trabalho exaustivo e meticuloso dos trabalhadores. A história de Zhongguancun intersecta a da China e representa melhor a transformação do país de “fábrica do mundo” em potência tecnológica capaz de investir, animando o seu mercado interno e as principais cidades chinesas a tornarem-se cada vez mais “inteligentes”, concentrando-se na IA e nos “Grandes Dados” aplicados a algumas questões-chave exigidas pelo governo como a mobilidade, controlo, segurança e automação industrial. Outrora um cemitério abandonado, no final dos anos de 1990 Zhongguancun era ainda uma pequena aldeia e a sua transformação, que teve lugar no final dos anos de 1970. Presentemente, graças à presença territorialmente próxima de Beida (a Universidade de Pequim) e Tsinghua que é o berço de gigantes tecnológicos e de estrelas chinesas de sucesso. Aqueles que trabalham na Innoway não têm dúvidas, pois um engenheiro chinês especializado em IA ganha mais do que um homólogo ocidental. A transformação dos anos de 1990 para hoje tem sido sensacional, também graças ao apoio político. O governo decidiu investir, consciente de que o processo tecnológico chinês necessitava de alguns elementos fundamentais, como uma área onde diferentes tipos de inovação, engenheiros, programadores, gestores e dinheiro pudessem coexistir. Em 2014 o governo investiu cerca de trinta e seis milhões de dólares; em 2015 houve a visita do primeiro-ministro Li Keqiang e desde a sua “inauguração” a Innoway actuou como uma “incubadora” de três mil empresas em fase de arranque, das quais trezentas e cinquenta e cinco são estrangeiras. Mais de mil empresas iniciantes angariaram fundos no valor de mais de quatro mil milhões de dólares (em toda a área de Zhongguancun, existem mais de nove mil empresas de alta tecnologia). Apesar do recente abrandamento da economia chinesa, devido a vários factores, nomeadamente o choque comercial com os Estados Unidos e a Covid-19, parece ter afectado pouco mesmo a parte mais avançada da mesma, e o ar que se respira nesta área tecnológica parece diferente do resto da cidade. Também porque a Innoway é a bandeira de toda a região de Zhongguancun pois é aqui que vivem as mais promissoras start-ups, incubadoras de empresas, investidores, programadores e engenheiros do país. É por aqui que as empresas estrangeiras devem passar para encontrar fundos e lançar projectos hitech. A rua alterna entre pequenos edifícios que nos primeiros andares existem maioritariamente livrarias e cafetarias onde rapazes e raparigas (a idade média é muito baixa e faz esquecer por um momento os problemas devidos ao envelhecimento da população, agora um dos problemas mais importantes para a liderança) comem rapidamente uma refeição ou estão envolvidos em reuniões. Em alguns casos no rés-do-chão há exposições dos produtos mais inovadores, como no caso do Baidu, que tem aqui o seu Laboratório de IA. Depois sobem para os pisos dos escritórios, normalmente introduzidos por salas com mesas e sofás, muitas vezes equipadas com secretárias, porque a tendência é encorajar ao máximo o co-trabalho. É um ambiente onde muitas empresas estrangeiras também procuram inspiração (e talento), mas é especificamente chinês. Neste ambiente apertado, limpo e estimulante, há pelo menos vinte eventos por semana como apresentações, palestras e trabalho em rede. A tecnologia poderá facilitar a vida, tornando as cidades chinesas mais seguras. E o sonho de viver numa cidade tão ordenada, limpa e organizada e com muito menos habitantes do que a actual megalópole chinesa parece reunir programadores e engenheiros. A resposta chinesa ao actual desafio tecnológico com os Estados Unidos é de que não se pensa na América, mas de que a China necessita deste processo.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSexo com corpo [dropcap]N[/dropcap]ão podia sugerir ideia mais banal que esta: o sexo faz-se com o corpo. Óbvio. O nosso sentido de consciência está conectado com este conjunto de moléculas, células e órgãos que nos transportam por este mundo. O problema é que este corpo é, muitas vezes, entendido exclusivamente pelos olhos do modelo bio-médico. O desenvolvimento de medicamentos para o tratamento de disfunções sexuais são um exemplo dessa visão. Se não há erecção sugerem-se uns compostos para ajudar a reverter a situação, sem grande reflexão de que este corpo é bem mais complexo do que isso. Este modelo também perpetua a assumpção de que estamos programados, como um computador, a reagir de determinada forma a estímulos. O sexo seria “natural”, tal com a maternidade. Seriamos compostos por algoritmos que prevêem comportamentos. Mas o corpo não está assim tão desconectado do mundo que habita. Molda-se e reage. O corpo que incorpora o social é outra proposta de corpo – esta, inspirada por Foucault. Ele foi dos primeiros a teorizar acerca das dinâmicas de poder sociais e institucionais que perpetuaram o binarismo de género e a heteronormatividade ao longo dos tempos. O corpo dança para responder às limitações de uma suposta normalidade. Neste caso, por exemplo, a disfunção eréctil seria contextualizada nas visões de masculinidade (e de ansiedade de performance) e a forma como estas imagens e pressupostos incomodam e limitam. Já muita investigação mostra que a não-erecção é resultado de dinâmicas às quais o viagra não conseguiria, sozinho, resolver. Ainda vos consigo oferecer mais uma perspectiva de corpo, inspirada no trabalho de Merleau-Ponty. Diria que é uma visão mais íntima e sensorial. A proposta é de que o corpo precisa de ser entendido como um espaço de processamento do mundo. Esse mundo que não precisa de ser verbal ou intelectual. A vida contemporânea ocidental tem contribuído para o contrário. Proveniente do dualismo de Descartes levado ao extremo, actualmente, vive-se em dissociação constante com o corpo. Por isso é que o sexo com consciência e aceitação – que deixa a sensação fluir e fruir – é um estado raro. A indisponibilidade de dar um pouco de tempo à sensação é resultado da pouca importância que damos ao corpo e à sua própria linguagem. Quantas vezes é que se deixam sentir? Sem as distracções do costume: sem a cabeça cheia, sem o smartphone que não pára de tocar e sem os emails que não param de cair. A honestidade no sexo e na sexualidade depende da capacidade de nos ligarmos com o corpo. Por mais básica que esta proposta pareça, o processo pode ser teimosamente difícil. Se quisermos voltar ao exemplo da disfunção eréctil, há investigação recente que mostra que terapia de grupo com recurso a técnicas de meditação são bastante promissoras. Várias visões de corpo permitem reclamar o prazer de uma forma plural, complexa e inclusiva. Um exemplo extremo da visão bio-médica do corpo é o das crianças a quem os médicos decidem (!) se devem ter uma vulva ou um pénis quando nascem com genitais indefinidos. Só com propostas complexas sobre como interligar o social e o psicológico – com as suas representações e significado – e o corpo – com as suas sensações e subjectividade – é que entendemos de onde vêm os limites do sexo e de como é que podemos dar-lhes a volta. Como diz a genial Carmo Gê Pereira, educadora sexual e doutoranda em sexualidade humana, é preciso que todos sejamos polimorficamente perversos para reencontrar o prazer no corpo que habitamos e que merece ser explorado.
luis-sa-cunha Ai Portugal VozesConselho de amigo “Conheço homens e mulheres que desde Março quase não voltaram a sair de casa, não foram almoçar ou jantar a um restaurante, não foram a um espectáculo, não deram sequer uma volta na rua. Sei de pessoas apavoradas que não saem de frente do televisor a ver as notícias sobre a pandemia. Há pais e mães que deixaram de ver os filhos, avós que deixaram de ver os netos. Ora, será isto viver?” José António Saraiva [dropcap]E[/dropcap]ste é o Portugal amedrontado. Há milhares que nunca mais viram o sol desde Março e alguns entraram na loucura. O confinamento não é solução para nada quando nem sequer sabemos o que é que está perante nós. Um vírus que mata? Parece que sim. Uma pandemia generalizada? Decretada. Brasil, EUA e Índia com milhares de mortos? Uma realidade. Um jantar nos arredores de Lisboa com mais de 100 pessoas e que deixou 10 infectados? Um facto. Uma corrida de Fórmula 1 num autódromo, construído mal e incompetentemente para corridas de motas, cheia de mais de 40 mil espectadores em tempo de calamidade e com tudo mal organizado, deixou já cerca de 20 presentes infectados com a covid-19? Uma tristeza que já retirou Portugal do calendário de Fórmula 1 de 2021 e levou o governo a decidir que as corridas de MOTO GP não terão público. E o surf voltou à Nazaré e encheu a colina adjacente à costa com milhares de adeptos sem máscara e sem distanciamento físico? Bem, ao chegarmos a este ponto já temos que salientar a incompetência das autoridades oficiais. A inconsciência do pessoal já é conhecida desde que realiza festas todas as semanas com mais de 200 pessoas e nos dão a certeza que a propagação do vírus não vai parar tão certo. Desde que grupos de jovens se juntam ao redor de uma árvore de um jardim e bebem até às cinco da madrugada. No caso da Nazaré toda a gente sabia, incluindo os técnicos da Meteorologia, que vinham aí ondas gigantes e que os melhores surfistas da Austrália, Japão, Hawai, Brasil e Indonésia já estavam a caminho de Portugal. Ora, se o espectáculo era inevitável, então, as medidas oficiais tinham de ser tomadas. As estradas em direcção ao canhão da Nazaré tinham de ser encerradas, brigadas da Saúde tinham de obrigar o uso de máscara a todos os presentes e os agentes policiais deviam obrigar ao distanciamento físico. Não acontecendo nada disto e continuando a existir eventos com milhares de pessoas, tais como, corridas de toiros, transportes públicos a abarrotar, corridas de carros ilegais nocturnas, assim, ninguém pense que a covid-19 vai terminar. A semana que terminou deixou, pela primeira vez, os portugueses muito preocupados. O número de infectados em 24 horas ultrapassou os 4500 e já se prevê que chegue aos 7000 com o número recorde de 40 mortos. O Conselho de Ministros reuniu extraordinariamente depois de proibir a mobilidade entre concelhos apenas para que a tradição da ida aos cemitérios não se cumprisse. Proíbem a ida aos cemitérios, mas mantêm as fronteiras abertas quando sabemos que a situação em Espanha é 10 vezes pior que no nosso país. A situação está a ficar preocupante. Há especialistas que reportam hospitais completamente esgotados. Dos centros de saúde e dos departamentos da função pública ninguém atende os telefonemas. Os lares continuam diariamente a sinalizar mais surtos. Governantes que em vez de se preocuparem com uma pandemia que poderá matar milhares de portugueses no próximo Dezembro, e por esse facto, anuncia-se a possibilidade de um novo estado de emergência para as duas primeiras semanas do último mês do ano. Assim não se deve governar porque estiveram simplesmente preocupados com o Orçamento do Estado e com as eleições nos Açores. Quanto ao Orçamento do Estado foi um circo de chorar por nunca mais. O Partido Socialista para se manter no poleiro do poder precisou de umas abstenções de deputados que nem pertencem a qualquer partido. Nesta tristeza política assistiu-se ao inesperado. O Bloco de Esquerda, ao fim de tanto amor pelo PS, resolveu juntar-se à direita e à extrema-direita votando contra o Orçamento. Pouca gente percebeu a atitude do Bloco. Irá perder o apoio de milhares de eleitores ou pensa que sendo mais radical, e vendo um PCP mole e pouco activo, que terá um êxito eleitoral? Duvido que o Bloco venha a ter alguma coisa a ganhar com um comportamento que mais parece uma loja de costureiras… Nos Açores, deixem-me dizer-vos que nunca esperei que o PCP ficasse fora do parlamento regional e que o PS ao fim de tantos anos perdesse a maioria absoluta. Com uma agravante: os ultras do Chega elegeram dois deputados, o que, no absurdo, toda a direita junta poderá formar governo nas ilhas açorianas. Todavia, é um prenúncio para o nível nacional político. No continente o PSD anda de rastos a querer igualar o comportamento do CDS. O Iniciativa Liberal, o PAN e o Chega têm angariado cada vez mais apoiante e as últimas sondagens apontam que os extremistas do Chega são um género da antiga maioria silenciosa. Parece que não existem, mas na altura do voto podem surpreender. Portugal, anda ao Deus dará. O povo anda revoltado, triste e pobre. O confinamento de milhares de infectados com a covid-19 está a deixar as pessoas sem alma, sem forças e sem dinheiro. Quem nos ler em Macau que se compenetre de uma certeza: deixem-se estar e nunca saiam da RAEM, um conselho de amigo. *Texto escrito com a ANTIGA GRAFIA
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesMacau, um mediador privilegiado [dropcap]A[/dropcap] Associação de Arbitragem de Macau participou na Mostra Internacional de Comércio e Investimento de Macau, a convite da Associação dos Empresários de Língua Portuguesa. A Associação de Arbitragem de Macau declarou que o objectivo desta Mostra é a promoção dos serviços de arbitragem de Macau às empresas e Câmaras de Comércio sediadas na Área da Grande Baía, bem como nos países de língua portuguesa. Macau será um mediador privilegiado para a resolução de conflitos comerciais entre empresas chinesas e empresas de países de língua portuguesa. A arbitragem, ou mediação, é um método que permite resolver conflitos sem recurso à litigação. A litigação tem de ser feita em Tribunal e é regulada pela lei local. Se as partes em conflito tiverem nacionalidades diferentes, terão de se submeter à legislação que vigora na área do Tribunal. Além disso, os juízes são peritos em matéria de leis não são peritos em assuntos comerciais e só se podem pronunciar do ponto de vista legal. O papel dos mediadores é diferente do dos juízes. Na arbitragem, o queixoso e o réu podem escolher o mediador, avalizado por ambas as partes após negociação, para promover a resolução do conflito. O mediador possui por regra, para além das habilitações jurídicas, outro tipo de qualificações. Um exemplo típico desta situação é a secretária para a Justiça de Hong Kong, Zheng Ruohua, que além da formação jurídica, tem um doutoramento em Engenharia Civil. Estas habilitações académicas e profissionais tornam Zheng Ruohua numa excelente mediadora de conflitos que envolvam empresas de construção civil. Estas vantagens aumentaram a confiança na arbitragem de conflitos comerciais. Por coincidência, a comunicação social de Hong Kong publicou alguns artigos sobre esta matéria. Zheng Ruohua declarou que o Governo de Hong Kong está a estudar a implementação do princípio “Investimentos de Hong Kong, Lei de Hong Kong e Arbitragem de Hong Kong ” na Área da Grande Baía. Na ausência de conflitos internacionais, o princípio pode ser implementado na Área da Grande Baía em questões civis e comerciais que envolvam investimento de capitais de Hong Kong. Nestas circunstâncias, a lei de Hong Kong deverá prevalecer e, em caso de disputa, a arbitragem deverá ter lugar em Hong Kong. O Governo da RAEHK espera que, através destas medidas, mais empresas de Hong Kong estejam dispostas a investir na Área da Grande Baía. Se duas empresas de Hong Kong envolvidas em projectos comerciais na área da Grande Baía tiverem um conflito contratual, estarão sempre sujeitas à lei chinesa. Como os dois empresários são cidadãos de Hong Kong, a possibilidade aberta pela arbitragem de vir a aplicar a lei de Hong Kong a dissidências que envolvam contratos comerciais na zona da Grande Baía, torna-se sem dúvida atractiva. À partida, a opinião de Zheng Ruohua tem um valor de ordem prática. Os empresários de Hong Kong estão familiarizados com a legislação comercial da cidade. Mesmo que estejam a operar na Área da Grande Baía, não significa que conheçam a fundo a lei chinesa. A arbitragem permitirá que estes empresários recorram à lei de Hong Kong para resolver os seus conflitos. Esta possibilidade vai sem dúvida encorajar o investimento de capitais de Hong Kong na área da Grande Baía. Algumas pessoas podem interrogar-se sobre a validade do veredicto da arbitragem, visto não ser proferido em Tribunal. Será que é legalmente vinculativo? Hoje em dia, muitas zonas já criaram uma legislação especial para a arbitragem, e as suas decisões são não só reconhecidas localmente como também a nível internacional. Desde que a “Convenção de Nova Iorque” seja garantida, as decisões da arbitragem proferidas em qualquer lado podem ser reconhecidas em 163 países e terão de ser aplicadas por força da lei, quer localmente quer internacionalmente. Cada vez mais países reconhecem os veredictos dos mediadores, o que promove a internacionalização da arbitragem, alargando cada vez mais o seu espectro de acção. Desta forma, se o princípio “Investimentos de Hong Kong, Lei de Hong Kong e Arbitragem de Hong Kong” for implementado, a lei de Hong Kong pode ser usada para arbitrar conflitos na China, e o veredicto poderá ser reconhecido em muitos países. Esta proposta é sem dúvida magnífica. A Convenção de Nova Iorque vai aplicar-se à China, a Hong Kong e a Macau. isto significa que os veredictos dos seus mediadores são reconhecidos em 163 países. Macau acaba de implementar a nova revisão da lei da arbitragem. Se o princípio “Investimentos de Hong Kong, Lei de Hong Kong e Arbitragem de Hong Kong” for bem-sucedido, poderá Macau estudar a possibilidade de vir a implementar o princípio “Capitais de Macau, Lei de Macau e Arbitragem de Macau” aos contratos civis e comerciais da Área da Grande Baía? Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Carlos Morais José A outra face VozesQuarentena [dropcap]P[/dropcap]assar por uma quarentena só na aparência significa quedar-se encerrado num quarto sem janelas e contacto físico com o exterior. Uma quarentena é, sobretudo, uma odisseia interior. Esqueçam o espaço, as geografias ignotas. Hoje dou por mim velejador solitário, errante num mar interno, sem bússola ou GPS, ignorante das rotas, sob um apagado céu, que a razão desconhece. Não há final nem destino. Só um tempo circular, lento e espiralado, que se impõe como amigo em tão parca expedição. E, na surpresa dos percursos, quantas ilhas, quantos monstros, quantas deusas, quantos sustos, que desertos, que aldeias, se expõem nesta nave à deriva sem recursos? As horas derretem-se lentamente de encontro às paredes brancas. Moby Dick! — Afasto estas ideias! Sou eu, mas sou também, mais que nunca, o que me observa e me julga, o que fero me aquilata e questiona as acções. Estas parecem agora longínquas, como se outro as tivesse cometido. Quem era aquele que lá fora, mergulhado na cidade descrente, andava e falava e duvidava? Em que estava ele realmente naquela hora metido? Alguma coisa, ainda que ínfima, terá valido um pouco a pena, nessa vida de cisterna, na razão flutuante, no arremesso pedante? Finalmente, o que sou eu, neste preciso instante, e o que posso fazer? Nada. Sobra viver. De todos esses momentos, lembro com especial horror a frequência do deserto. E chamo deserto ao estado de abulia, de embrutecimento, de erosão da vontade, em que o pensamento se detém no vazio, em que absurdo pairo neste limitado espaço, sem uma ideia, um desejo, um qualquer objectivo. E sou eu, unicamente eu, na amável dor desta constância. Tudo se ergue na distância, mas tudo me advém, sem ter real importância. Fico pasmado na cama, fito o tecto e talvez além dele e sinto que não passo desse olhar prisioneiro. E é daí, desse limite impotente, que emerge o desespero. Bem tenta a razão acalmar, dizer “são só uns dias”, mas ao assim consolar, entendo que tal falar ainda mais me atordoa. “Falas de mais”, resmungo, “ó verso de poço sem fundo.” E outras vozes se detêm, em cacofonia de sentidos e exclamações abrasivas. Quem aqui fala?! Quem grita, quem se revolta, quem obedece, quem padece e quem esmola pelo futuro?! E abúlico esqueço, recostado no vazio, nas margens daquele rio que, lá fora, insiste sempre passar. E sonho que sou ribeiro, afluente do mundo, em constante devaneio, direitinho ao mar profundo. Revejo mentalmente os quadros de Hieronymus Bosch e vejo que me relatam: sou aqueles seres ambulantes ou eles deambulam em mim. Sou as visões do inferno, a obra do padre eterno, a mulher oferecida, uma leitura sem fim. Refaço em sobressalto as notas de uma sonata, os dedos pelo piano, o inquieto violino. E descubro, naquele tom de avidez, que não a ouvira nunca, salvo este acesso de angústia e danada nitidez. E todos os livros que li, versos que sempre amei, histórias que percorri, ideias que partilhei, se apresentam como ecos de um mundo incompreensível. E resta o sentido vago de um sentido impossível. Procuro oásis diário, onde erguer a minha tenda, clamo pelo rebanho, que se assume refractário, busco sem cessar a água, a mágoa da salvação. Passaram mais duas horas ou assim reza a clepsidra, tão sedenta de atenção. E, mentalmente, reproduzo esse som que não existe. Pingue sem pongue, somente pingues e os intervalos vazios a marcar a sua vez. E é neles que me sustenho e tento recuperar um laivo de lucidez. Sou, por aqui afinal, o portador dessa luz, a chama infatigável de uma vela descartável, que impiedosa se assombra do meu risível engenho. E de novo, na abulia da cruz, só pasmado me detenho. Lá fora, ao que parece, chora o vento e tomba a chuva. Mas não é esta janela tão irreal como o ecrã por onde deslizo a esmo e nesse passo me encontro dotado a mais de mim mesmo? E não será a loucura esse mero transbordar? Que parte de mim é essa, em espuma pelo chão, que me esqueci de limpar? Acordo e lavo tudo, inundado de pudor. E saio da abulia, no riso de quem a si já não fia e, finalmente, abre a porta que ficara esquecida no fundo de um corredor. Lá fora, ao que parece, chora o vento e tomba a chuva. Nenhum tufão se compara ao mal que aqui assoma, à desordem embutida num cérebro quase doente e temente da retoma. E, demente, danço o tango, danço o samba e o bolero. Com companheira invisível, marco os passos, afino as voltas e expurgo o desespero. Será hora de jantar? Fica o tempo, a contradança, a resumir a criança que, por instantes, regressa. Não quero. Não tenho pressa. Só uma sede me abrasa, ao longo destas jornadas. Sonho que volto a casa e em leito ínvio me deito, rodeado de camélias e velas amordaçadas. Um dia, ainda outro, outro dia se acumula. Maldigo a água do rio, que livre se entrega ao mar. E eu, fechado, sou lago em que teimo navegar. Já não dou pelo poente, só tenho olhos pr’á foz, extingue-se aquela voz, o suplício final de um destino amargurado. Telefono para o jornal. “Está lá”, questiono. “Sim. Está cá.” Desligo mais descansado. Um dia, ainda outro, outro dia se acumula…
Carlos Morais José A outra face VozesQuarentena [dropcap]P[/dropcap]assar por uma quarentena só na aparência significa quedar-se encerrado num quarto sem janelas e contacto físico com o exterior. Uma quarentena é, sobretudo, uma odisseia interior. Esqueçam o espaço, as geografias ignotas. Hoje dou por mim velejador solitário, errante num mar interno, sem bússola ou GPS, ignorante das rotas, sob um apagado céu, que a razão desconhece. Não há final nem destino. Só um tempo circular, lento e espiralado, que se impõe como amigo em tão parca expedição. E, na surpresa dos percursos, quantas ilhas, quantos monstros, quantas deusas, quantos sustos, que desertos, que aldeias, se expõem nesta nave à deriva sem recursos? As horas derretem-se lentamente de encontro às paredes brancas. Moby Dick! — Afasto estas ideias! Sou eu, mas sou também, mais que nunca, o que me observa e me julga, o que fero me aquilata e questiona as acções. Estas parecem agora longínquas, como se outro as tivesse cometido. Quem era aquele que lá fora, mergulhado na cidade descrente, andava e falava e duvidava? Em que estava ele realmente naquela hora metido? Alguma coisa, ainda que ínfima, terá valido um pouco a pena, nessa vida de cisterna, na razão flutuante, no arremesso pedante? Finalmente, o que sou eu, neste preciso instante, e o que posso fazer? Nada. Sobra viver. De todos esses momentos, lembro com especial horror a frequência do deserto. E chamo deserto ao estado de abulia, de embrutecimento, de erosão da vontade, em que o pensamento se detém no vazio, em que absurdo pairo neste limitado espaço, sem uma ideia, um desejo, um qualquer objectivo. E sou eu, unicamente eu, na amável dor desta constância. Tudo se ergue na distância, mas tudo me advém, sem ter real importância. Fico pasmado na cama, fito o tecto e talvez além dele e sinto que não passo desse olhar prisioneiro. E é daí, desse limite impotente, que emerge o desespero. Bem tenta a razão acalmar, dizer “são só uns dias”, mas ao assim consolar, entendo que tal falar ainda mais me atordoa. “Falas de mais”, resmungo, “ó verso de poço sem fundo.” E outras vozes se detêm, em cacofonia de sentidos e exclamações abrasivas. Quem aqui fala?! Quem grita, quem se revolta, quem obedece, quem padece e quem esmola pelo futuro?! E abúlico esqueço, recostado no vazio, nas margens daquele rio que, lá fora, insiste sempre passar. E sonho que sou ribeiro, afluente do mundo, em constante devaneio, direitinho ao mar profundo. Revejo mentalmente os quadros de Hieronymus Bosch e vejo que me relatam: sou aqueles seres ambulantes ou eles deambulam em mim. Sou as visões do inferno, a obra do padre eterno, a mulher oferecida, uma leitura sem fim. Refaço em sobressalto as notas de uma sonata, os dedos pelo piano, o inquieto violino. E descubro, naquele tom de avidez, que não a ouvira nunca, salvo este acesso de angústia e danada nitidez. E todos os livros que li, versos que sempre amei, histórias que percorri, ideias que partilhei, se apresentam como ecos de um mundo incompreensível. E resta o sentido vago de um sentido impossível. Procuro oásis diário, onde erguer a minha tenda, clamo pelo rebanho, que se assume refractário, busco sem cessar a água, a mágoa da salvação. Passaram mais duas horas ou assim reza a clepsidra, tão sedenta de atenção. E, mentalmente, reproduzo esse som que não existe. Pingue sem pongue, somente pingues e os intervalos vazios a marcar a sua vez. E é neles que me sustenho e tento recuperar um laivo de lucidez. Sou, por aqui afinal, o portador dessa luz, a chama infatigável de uma vela descartável, que impiedosa se assombra do meu risível engenho. E de novo, na abulia da cruz, só pasmado me detenho. Lá fora, ao que parece, chora o vento e tomba a chuva. Mas não é esta janela tão irreal como o ecrã por onde deslizo a esmo e nesse passo me encontro dotado a mais de mim mesmo? E não será a loucura esse mero transbordar? Que parte de mim é essa, em espuma pelo chão, que me esqueci de limpar? Acordo e lavo tudo, inundado de pudor. E saio da abulia, no riso de quem a si já não fia e, finalmente, abre a porta que ficara esquecida no fundo de um corredor. Lá fora, ao que parece, chora o vento e tomba a chuva. Nenhum tufão se compara ao mal que aqui assoma, à desordem embutida num cérebro quase doente e temente da retoma. E, demente, danço o tango, danço o samba e o bolero. Com companheira invisível, marco os passos, afino as voltas e expurgo o desespero. Será hora de jantar? Fica o tempo, a contradança, a resumir a criança que, por instantes, regressa. Não quero. Não tenho pressa. Só uma sede me abrasa, ao longo destas jornadas. Sonho que volto a casa e em leito ínvio me deito, rodeado de camélias e velas amordaçadas. Um dia, ainda outro, outro dia se acumula. Maldigo a água do rio, que livre se entrega ao mar. E eu, fechado, sou lago em que teimo navegar. Já não dou pelo poente, só tenho olhos pr’á foz, extingue-se aquela voz, o suplício final de um destino amargurado. Telefono para o jornal. “Está lá”, questiono. “Sim. Está cá.” Desligo mais descansado. Um dia, ainda outro, outro dia se acumula…
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesO inquebrantável iceberg [dropcap]E[/dropcap]xiste uma canção popular cantonesa, muito famosa, intitulada “Quebrar o Iceberg”, mas a letra fala sobretudo da possibilidade de derreter o gelo com amor, sem indicar um método específico para destruir o iceberg. Se um navio de 1.000 toneladas conseguisse quebrar um iceberg, o Titanic não teria afundado. Os icebergs flutuam na água e apenas10% do seu volume emerge à superfície. É impossível quebrar estas gigantescas massas de gelo de forma abrupta, no entanto há neste mundo quem o tente fazer. Na antiga China, as relações entre os governantes e o povo era comparada à dos navios com o oceano. Os navios têm de ser sustentados pela água para se manterem à superfície e poderem navegar. Se os marinheiros não tiverem um bom conhecimento das correntes, a embarcação afunda. Numa perspectiva científica actual, se a água gelar, pode recorrer-se aos barcos quebra-gelo para resolver o problema; mas quando se forma um iceberg, não há forma de quebrar esta montanha gelada. Um quebra gelo que tentasse investir contra um iceberg teria a sua sorte traçada. O tempo começa a arrefecer em Outubro, mas os icebergs políticos e económicos já apareceram em Hong Kong e em Macau. Dia 1 de Outubro, em Hong Kong, houve manifestações e confrontos nas ruas de Causeway Bay. As medidas de combate à epidemia e a lei de segurança nacional não foram capazes de acabar com o desagrado da população. A polícia foi novamente chamada para manter a ordem. O ambiente de festa dos festivais de Outono foi desta vez perturbado pelos conflitos entre a polícia e os manifestantes, que pudemos ver em directo nos ecrãs das televisões. Depois de várias detenções, as ruas voltaram a ficar pacíficas. Mas terá o problema ficado resolvido? Depois de ter assistido à forma desabrida com que Carrie Lam proferiu o seu discurso, fiquei bastante preocupado por ela. Quebrar o gelo não quer dizer necessariamente quebrar o iceberg, mas sim fazer tudo o que está ao nosso alcance para o derreter. Em vez de elogiar os agentes pela determinação e bravura com que puseram fim aos motins, teria sido preferível criar uma Comissão de Inquérito independente para avaliar de forma justa a actuação dos agentes e não imolá-los numa colisão contra o iceberg. O iceberg político em Hong Kong não dá mostras de vir a derreter nos anos mais próximos, porque houve quem se lembrasse de colocar o navio “Hong Kong”, com 7 milhões de pessoas a bordo, num universo gelado. A coragem política demonstrada não deixa de ser impressionante, mas é totalmente desprovida de sensatez. Por enquanto, fica a dúvida se iremos assistir à destruição do iceberg ou do navio, mas acredito que em breve o saberemos. Em Macau, o Lago Nam Van não consegue albergar um iceberg político. O ar gelado transportado pelo iceberg económico, que surgiu no início deste ano e que por cá continua instalado, fez baixar a temperatura de Macau para níveis nunca antes vistos. Durante a “Semana Dourada” na China continental, que teve início a 1 de Outubro, o número de turistas continentais que visitaram Macau caiu em mais de 80 por cento, em comparação com o ano anterior. Os esforços do Governo para trazer turistas para o centro da cidade revelaram-se inúteis, e a afluência nos Casinos caiu a pique. Para enfrentar o iceberg económico trazido pela epidemia, o Governo da RAEM propôs-se utilizar mais 20 mil milhões de patacas das reservas fiscais, para fazer face às despesas dos últimos dois meses de 2020. É previsível que a economia doméstica não vá melhorar a curto prazo, nem que o iceberg económico vá derreter tão depressa. Vinte anos após o regresso de Macau à soberania chinesa, e com os esforços de grupos de peritos, de académicos e de consultores das maiores organizações, a diversificação moderada da economia acabou por não passar de um projecto de investigação caríssimo. Na situação actual, sitiado pelo iceberg, Macau tem de confiar no Chefe do Executivo para encontrar uma boa estratégia que lhe permita libertar-se do gelo.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesO inquebrantável iceberg [dropcap]E[/dropcap]xiste uma canção popular cantonesa, muito famosa, intitulada “Quebrar o Iceberg”, mas a letra fala sobretudo da possibilidade de derreter o gelo com amor, sem indicar um método específico para destruir o iceberg. Se um navio de 1.000 toneladas conseguisse quebrar um iceberg, o Titanic não teria afundado. Os icebergs flutuam na água e apenas10% do seu volume emerge à superfície. É impossível quebrar estas gigantescas massas de gelo de forma abrupta, no entanto há neste mundo quem o tente fazer. Na antiga China, as relações entre os governantes e o povo era comparada à dos navios com o oceano. Os navios têm de ser sustentados pela água para se manterem à superfície e poderem navegar. Se os marinheiros não tiverem um bom conhecimento das correntes, a embarcação afunda. Numa perspectiva científica actual, se a água gelar, pode recorrer-se aos barcos quebra-gelo para resolver o problema; mas quando se forma um iceberg, não há forma de quebrar esta montanha gelada. Um quebra gelo que tentasse investir contra um iceberg teria a sua sorte traçada. O tempo começa a arrefecer em Outubro, mas os icebergs políticos e económicos já apareceram em Hong Kong e em Macau. Dia 1 de Outubro, em Hong Kong, houve manifestações e confrontos nas ruas de Causeway Bay. As medidas de combate à epidemia e a lei de segurança nacional não foram capazes de acabar com o desagrado da população. A polícia foi novamente chamada para manter a ordem. O ambiente de festa dos festivais de Outono foi desta vez perturbado pelos conflitos entre a polícia e os manifestantes, que pudemos ver em directo nos ecrãs das televisões. Depois de várias detenções, as ruas voltaram a ficar pacíficas. Mas terá o problema ficado resolvido? Depois de ter assistido à forma desabrida com que Carrie Lam proferiu o seu discurso, fiquei bastante preocupado por ela. Quebrar o gelo não quer dizer necessariamente quebrar o iceberg, mas sim fazer tudo o que está ao nosso alcance para o derreter. Em vez de elogiar os agentes pela determinação e bravura com que puseram fim aos motins, teria sido preferível criar uma Comissão de Inquérito independente para avaliar de forma justa a actuação dos agentes e não imolá-los numa colisão contra o iceberg. O iceberg político em Hong Kong não dá mostras de vir a derreter nos anos mais próximos, porque houve quem se lembrasse de colocar o navio “Hong Kong”, com 7 milhões de pessoas a bordo, num universo gelado. A coragem política demonstrada não deixa de ser impressionante, mas é totalmente desprovida de sensatez. Por enquanto, fica a dúvida se iremos assistir à destruição do iceberg ou do navio, mas acredito que em breve o saberemos. Em Macau, o Lago Nam Van não consegue albergar um iceberg político. O ar gelado transportado pelo iceberg económico, que surgiu no início deste ano e que por cá continua instalado, fez baixar a temperatura de Macau para níveis nunca antes vistos. Durante a “Semana Dourada” na China continental, que teve início a 1 de Outubro, o número de turistas continentais que visitaram Macau caiu em mais de 80 por cento, em comparação com o ano anterior. Os esforços do Governo para trazer turistas para o centro da cidade revelaram-se inúteis, e a afluência nos Casinos caiu a pique. Para enfrentar o iceberg económico trazido pela epidemia, o Governo da RAEM propôs-se utilizar mais 20 mil milhões de patacas das reservas fiscais, para fazer face às despesas dos últimos dois meses de 2020. É previsível que a economia doméstica não vá melhorar a curto prazo, nem que o iceberg económico vá derreter tão depressa. Vinte anos após o regresso de Macau à soberania chinesa, e com os esforços de grupos de peritos, de académicos e de consultores das maiores organizações, a diversificação moderada da economia acabou por não passar de um projecto de investigação caríssimo. Na situação actual, sitiado pelo iceberg, Macau tem de confiar no Chefe do Executivo para encontrar uma boa estratégia que lhe permita libertar-se do gelo.
luis-sa-cunha Ai Portugal VozesO gangue do alcatrão [dropcap]E[/dropcap]m tempos que já lá vão convivi com jornalistas e senti o amor que colocavam no que faziam. O jornalismo tem que se lhe diga quando praticado com a investigação à verdade. Recordo-me do caso Watergate que levou ao fim político de Richard Nixon. Na altura, foi um grande escândalo, o mundo tremeu, a América chorou de vergonha e o mundo ficou a saber que o jornalismo tem muita força quando aborda os temas com surpresa suprema e indiscutível. Encontrava-me numa mesa de café com amigos quando um deles afirmou: “É pá, isto do Nixon foi uma grande caxa”! “Caxa”? O que era isso, indaguei e explicaram-me que se tratava de uma notícia verdadeira que podia derrubar montanhas. Uma “caxa” era algo que o jornalista apresentava ao chefe e quando lhe mostrava, ouvia logo “Tens a certeza disto? Olha que é muito grave!”. O chefe arriscava e a manchete de jornal provocava que a edição esgotasse. Foi assim ao longo dos anos. Anos que passaram mas que infelizmente cada vez menos nos têm surpreendido cada vez menos por não existirem tantas “caxas”. Há quem diga que os jornais agora são de sociedades multinacionais, que os jornalistas são uns jovens receosos de tudo e todos, ganhando mal e cheios de medo de perderem o emprego. Pode existir menos qualidade no que se lê nas páginas dos jornais, mas vê-se que continuamos a ler jornalistas com um grande nível literato e com histórias que são autênticas “caxas”. Então, o escândalo do ex-juiz Rui Rangel que colocava as namoradas a escrever os acórdãos de um tribunal superior e que não passava de um corrupto que envergonhou todos os magistrados, não foi uma “caxa” que deu brado? As “caxas” continuam a existir e a mostrar ao mundo que o pateta do Trump que tanto mal diz da China, afinal tem uma conta bancária num banco chinês e negócios com a China. Ao lembrar-me destas histórias das “caxas” conclui que o que tinha acabado de saber, mesmo não sendo jornalista, tinha uma “caxa” na mão e que valia a pena colocá-la ao conhecimento dos meus leitores de Macau, já que em Portugal nenhum jornal faz a mínima ideia do que se passa. E o que se passa é que no seio da Guarda Nacional Republicana (GNR) anda tudo doido. Trata-se de um gangue de malfeitores profissionalmente organizados que têm ganho milhões de euros em prejuízo de centenas de portugueses. Uma autêntica mafia à qual lhe chamam “o gangue do alcatrão”. Imaginem que acabaram de construir um armazém de grandes dimensões para a guarda de pneus e que ao lado do armazém tem de ter um espeço equivalente a um campo de futebol bem alcatroado para os camiões carregar e descarregar. No escritório aparece-lhe um Alberto qualquer a dizer-lhe que tem uma empresa de alcatroamento e que lhe pode fazer o trabalho de terraplanagem e alcatroamento. Falam em custos e o Alfredo adianta-se logo a elucidar que normalmente as empresas da especialidade levam entre 20 e 50 mil euros conforme a dimensão do terreno, mas que devido à pandemia o negócio tem andado mal e que ele lhe faz o trabalho por cinco mil euros. O empresário esfrega logo as mãos de contente e concorda com a empreitada proposta. No entanto, o Alberto diz logo que lhe terá de pagar adiantado para as despesas de compras de materiais. O empresário concorda e passa um cheque de cinco mil euros. Alberto, informa que no dia seguinte lá estarão as máquinas e que as obras terão início. Na verdade, no dia seguinte chegam ao local as monstruosas máquinas e camionetas empregues nos trabalhos deste género de alcatroamento de grandes superfícies junto de hipermercados, fábricas, estações de transportes públicos, zonas industriais, arruamentos e até parqueamentos ao redor de estádios de futebol. Os trabalhos decorreram e passadas três semanas, o empreiteiro sobe a escritório para falar com o empresário e apresentar a conta dos trabalhos no valor de 30 mil euros… – Mas, desculpe, deve haver um grande engano da sua parte, senhor empreiteiro!? – Não, não me parece que haja qualquer problema. Então, o senhor não encomendou a obra? Eu recebi um telefonema no meu escritório que avançasse com as máquinas para alcatroar toda este seu terreno e foi o que fiz como o senhor assistiu estes dias todos… – Mas… Mas, desculpe, eu recebi aqui o senhor Alfredo a comunicar-me que tinha uma empresa especializada nestes trabalhos e que me faria a obra por cinco mil euros e até me pediu para lhe pagar adiantado, o que fiz em dinheiro vivo… – Pois é, meu caro amigo, o senhor foi aldrabado e esse Alfredo é um dos muitos vigaristas que andam por aí a aldrabar centenas de empresários que precisam de ter as suas superfícies alcatroadas… usam sempre o mesmo estratagema… quando veem um local por alcatroar, contactam com o patrão, contam essa mesma história do bandido, mamam a massa adiantada e depois telefonam para as empresas especializadas que avancem para determinado sítio a fim de executar a obra… – Você nem me diga uma coisa dessas… – Digo-lhe e mais ainda: isto é o “gangue do alcatrão” que é um polvo enorme que tem andado a por a GNR e a Guarda Civil a entrarem em loucura, porque não conseguem apanhar os fulanos… a vigarice é em Portugal e em Espanha… os fulanos têm ganho uma fortuna milionária… já imaginou as centenas de trabalhos que têm sido feitos nos dois países com um início deste calibre, onde aparece um aldrabão a propor um trabalhinho baratinho e levam logo o dinheirinho adiantado… Isto está muito bem organizado e têm ganho milhões… *Texto escrito com a ANTIGA GRAFIA
João Romão VozesTurismo na economia (I): quanto é que é muito? [dropcap]É[/dropcap] frequentemente assumido que o desenvolvimento do turismo, sobretudo quando se entra em processos de mais intensa massificação, implica um conjunto de custos e problemas ambientais, culturais e de eventual perturbação da qualidade de vida de quem vive nesses destinos “de sucesso”, mas que em compensação há um benefício económico que acaba por ser mais vantajoso para essa comunidade. Não é verdade: na realidade, não só os custos e benefícios do turismo são muito assimetricamente distribuídos pela população – uns e outros podem ser muito diferentes para cada pessoa – como se encontram com frequência problemas económicos muito significativos associados ao desenvolvimento turístico. Há um padrão para a evolução de destinos turísticos, formalizado no início dos anos 1980 por um geógrafo britânico a trabalhar no Canadá, Richard Butler de sua graça, que se pode aplicar de forma muito genérica a grande parte dos territórios: os sítios são “descobertos” por viajantes ocasionais e mais ou menos acidentais, que não encontram serviços nem infra-estruturas particularmente orientadas para a hotelaria e o turismo, mas que apreciam a visita, vão voltando, comentam o assunto, e o local vai ganhando popularidade; numa segunda fase, alguns negócios locais (alojamento, alimentação, pequeno comércio) começam a orientar-se para esse novo segmento de mercado que se vai criando e a população tende a receber com agrado estes visitantes que ajudam os negócios e reforçam o orgulho local; até que se chega à crítica fase do desenvolvimento, quando os sistemas e infra-estruturas de transporte se começam a implementar e/ou organizar em função dos fluxos turísticos, enquanto empresas exteriores à região (e ao país, eventualmente) se vêm instalar, sobretudo na hotelaria – mas também na restauração ou no comércio ou outros serviços, como a distribuição (agências de viagens a operadores turísticos). A procura turística aumenta rapidamente e esses novos mercados prometem – e frequentemente garantem – alta rentabilidade e rápida recuperação dos investimentos. É nesta fase crítica que os benefícios económicos são evidentes e imediatos, enquanto os problemas são mais subtis e remetidos para a obscuridade de um qualquer futuro. Mas não deixam de ser visíveis, ainda que por vezes vão emergindo lentamente esses impactos sobre a organização territorial das economias: as fábricas de conservas, os estaleiros navais ou os portos comerciais do litoral que vão fechando e ficando ao abandono até que uma redefinição do uso do solo abra o caminho a um magnífico e muito mais rentável empreendimento turístico ou cais de cruzeiros; os terrenos agrícolas que passam a ser ocupados por soberbos campos de golfe – e respectivos imobiliários associados, que são quase sempre a motivação real do investimento; os prédios de habitação em zonas urbanas substituídos por unidades hoteleiras de mais ou menos ou menos charme, primeiro, e apartamentos para alugar em plataformas online de uma alegada economia de partilha de recursos (e que afinal é apenas uma ferramenta para a sua exploração máxima com regulação mínima). Não são apenas as grandes empresas de transporte e alojamento turístico a fazer grandes negócios, de lucro fácil e rápido, nestas alturas de massacre intenso e sistemático sobre territórios e comunidades: são também pequenos negócios locais, proprietários de imóveis que os retiram da sua função de provisão de habitação permanente para a prestação de serviços de alojamento temporário, e muitas pessoas que encontram nestes novos serviços oportunidades de trabalho com rendimentos frequentemente muito acima do que encontravam antes da chegada massiva do turismo. Mesmo sendo frequentemente trabalho com alguma sazonalidade e mal regulado ou informal, não é difícil oferecer uma expectativa – e mesmo uma concretização real – que supera largamente o que existia nas relativamente pobres economias periféricas como é o caso da portuguesa. E essa atractividade – sobretudo para a população mais jovem – traz uma outra consequência potencial: o abandono precoce dos estudos e a preferência por se começar cedo uma carreira profissional com remunerações aparentemente atractivas (mas que também pouco evoluem ao longo da vida profissional). Pouco se tem estudado o assunto, mas uma análise recente destas dinâmicas nas regiões da Croácia mostra que onde o turismo mais se desenvolveu nos últimos 20 anos foi onde se observou a pior evolução nas qualificações da população. A este problema de longo prazo junta-se outro, que é o da concentração do conhecimento e utilização económica de tecnologia num sector de actividade com fraco valor acrescentado, e que pouco contribuirá para que haja uma convergência significativa entre regiões mais ou menos desenvolvidas, com maior ou menos capacidade integrar conhecimento e tecnologia na produção e com maior ou menor criação de valor para a economia. É nessa fase de desenvolvimento acelerado que pode ser mais crucial a acção das políticas públicas: deve apoiar-se o turismo, enquanto actividade que, de facto, permite gerar emprego e riqueza, aproveitando uma onde de atractividade que pode não durar sempre, ou deve condicionar-se, quer limitando as infra-estruturas de suporte (transportes e alojamento, sobretudo), quer priorizando apoios a outros sectores de actividade, com potenciais melhores resultados futuros mas também maiores riscos e incertezas no presente? No que diz respeito a Portugal, a resposta tem sido inequívoca – e em favor do turismo. Não são só os autarcas que dizem desconhecer “o que é turismo mais”, foram também os anos do cavaquismo em que se destruíram (literalmente) frotas pesqueiras e indústrias relacionadas (e que agora se pretendem resgatar em nome de uma alegada “economia azul”, orientada para os recursos do mar), foram as décadas de reforço de transportes aéreos e portos de cruzeiros, as autorizações para o desenvolvimento da hotelaria e dos projectos imobiliários associados aos campos de golfe, esses parasitas dos territórios e das comunidades que não oferecem às economias qualquer tipo de contributo para o desenvolvimento tecnológico. Na realidade, pese a distração de um ou outro autarca, até pode-se saber-se o que é turismo a mais. Há muitos casos, devidamente estudados. Mas será sempre difícil encontrar esse momento em que o copo começa a transbordar: entre a liberdade de movimentos e de circulação, as necessidades efectivas de infra-estruturas de transporte, alojamento e outros serviços inerentes à boa estadia de viajantes, e as legítimas oportunidades económicas decorrentes, quanto é que é demais? Até quando se deve apoiar e quando se deve limitar o desenvolvimento do turismo? É um facto que a pergunta soa melhor em inglês (“how much is too much”) mas a resposta tem que vir em várias línguas – e em particular em português. Voltarei ao assunto em breve.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesAuto indulto (II) [dropcap]A[/dropcap] semana passada discutimos a nomeação de Amy Coney Barrett para o Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos e o poder de concessão de perdão do Presidente dos EUA. A questão colocada foi “Pode o Presidente indultar-se a si próprio?” A magistrada não respondeu a esta pergunta; apenas observou que a lei americana continha uma lacuna sobre esta matéria e que seria necessária uma análise jurídica mais detalhada para se chegar a uma conclusão. O Comité Judicial do Senado votou a nomeação dia 23 e aprovou-a; o Senado irá confirmar a nomeação mais tarde. Como o Partido Republicano detém a maioria no Senado, Amy Coney Barrett deverá ser eleita sem dificuldade. Depois da nomeação estar confirmada, será de imediato integrada no Supremo Tribunal de Justiça. No que se refere à questão “Pode o Presidente indultar-se a si próprio?”, existem alguns pontos a salientar. Primeiro, na Constituição americana, nunca é referido que o Presidente não pode ser alvo de um processo criminal. Apenas é referido que o Presidente não possui imunidade absoluta e pode ser sujeito a uma acção legal em certos casos. Como essas circunstâncias não são especificadas, é necessário procurar um esclarecimento. Em segundo lugar, imaginemos que o Presidente dos Estados Unidos é julgado e condenado por um Tribunal, mas que depois ele se indulta a si próprio. Se isso viesse a acontecer, o concessor do indulto e o indultado seriam uma e a mesma pessoa. O conflito de identidades criaria um conflito de interesse. Por um lado, o Presidente representa o interesse nacional, e a sua condição de cidadão representa, por outo lado, o seu interesse pessoal. O Presidente perdoaria o cidadão, sendo que ambos são a mesma pessoa. Neste sentido, após ter cometido alguma infracção à lei, o Presidente usaria o seu poder para evitar o castigo. Como estaríamos perante um conflito de interesses, a forma mais simples de o resolver é nunca enveredar por esse caminho. Em terceiro lugar, o quarto parágrafo do Artigo 2 da Constituição Federal estipula que se o Presidente cometer um acto de traição, de suborno, um crime, ou uma qualquer contravenção, pode ser destituído. A destituição passa por um julgamento político. Será movido contra o Presidente um processo político e não um processo jurídico, por violação da lei. Embora nunca tenha havido na História dos Estados Unidos um caso em que o Presidente concedeu o perdão a si próprio, já aconteceu o Presidente em funções indultar o seu antecessor. O caso Watergate que ocorreu nos Estados Unidos em 1974, deu lugar à resignação de Nixon da Presidência. A 8 de Setembro desse mesmo ano, Gerald Ford, o novo Presidente concedeu o perdão a Nixon. Numa emissão da Televisão nacional, Ford afirmou: “Esta amnistia é boa para o país, porque a situação em que se encontra a família de Nixon afecta-nos a todos. A sua tragédia nunca teria fim, a menos que alguém lhe pusesse cobro. E percebi que o único a poder fazê-lo era eu. Se posso, tenho de tomar esta decisão.” Ford usou o seu poder para indultar Nixon dos crimes que lhe foram imputados. Não nos esqueçamos que Ford tinha sido Vice-Presidente de Nixon e, após a resignação deste, assumiu automaticamente a Presidência. Por este motivo, vários sectores da política americana criticaram o indulto. Foi considerado um acto de corrupção. Embora Ford tenha declarado nunca ter feito qualquer acordo com Nixon, o seu círculo político duvidou destas declarações e atribuiu a culpa da derrota nas eleições de 1976 a este incidente. O Presidente dos Estados Unidos tem o direito de conceder perdão aos cidadãos americanos e o acto de perdão está acima da decisão de qualquer Tribunal. Pode reverter uma condenação. Pode também fazer suspender uma investigação em curso, de forma a que o suspeito não tenha de enfrentar um julgamento. Ford tinha direito à concessão do perdão, mas a História dos Estados Unidos nunca deixa de nos surpreender. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Hoje Macau VozesPlano Director IV [dropcap]A[/dropcap] altura dos edifícios tende a ser contemplada como o resultado de actos abusivos de urbanização, operados pela especulação imobiliária, e com a conivência do poder que administra bens públicos. Não tivesse sido assim, o poder público estaria em condições de transmitir aos habitantes de uma cidade que a construção em altura é a forma mais eficiente do uso do solo urbano, nomeadamente quando o solo não chega, e é necessário para outros usos que dependem de solo não edificado, como por exemplo circulação ou resguardo e fruição ambientais. O mesmo certamente os habitantes da cidade extrairiam, se esse fosse o seu reconhecimento da prática urbanística que conhecem. A construção em altura foi antes resultado de capacidade instrumental que permitiu às cidades resolverem crises de crescimento e de saturação, de se reinventarem e de estabelecerem um novo equilíbrio. Para isso contribuíram novos materiais e novas soluções estruturais, e contribui Elisha Otis com a invenção dos elevadores com travões de segurança, apresentados na feira universal de Nova York em 1854, pois até então os elevadores eram demasiado perigosos para transportar passageiros. Como também para isso contribui o desenho mais bem vocacionado a essa morfologia pois, desenhar algo em altura, não é plasticamente a mesma coisa que acrescentar pisos. Efectivamente uma torre não se desenha da mesma forma como um edifício alto. É antes uma “estória” que se conta na vertical. Tem um começo, uma base ou um plinto onde toda a carga se concentra, em muitos casos exprimindo isso mesmo no desenho. Tem ainda um desenvolvimento, um corpo ou um fuste e tem um epílogo, um coroamento, um pináculo ou um remate. Tudo reduzindo em escala na progressão da altura, seja para atenuação dos momentos da carga, seja para enfatização plástica da altura, parecendo mais alta do que na realidade é, assim abrindo o angulo para recuo visual e para projecção solar no solo. Não é por acaso que uma das formas que mais caracterizou a Arte Deco, e que é recorrente a forma dos arranha-céus desse período, tenha sido o zigurate, i.e a pirâmide em degraus. As torres poderão ter ainda no topo um amortecedor de massa sintonizado (um TMD), composto por elementos suspensos e de grande dimensão, que chegam a atingir várias centenas de toneladas de peso. É um dispositivo montado em estruturas para reduzir a amplitude das vibrações mecânicas, protegendo dos efeitos dinâmicos do vento ou dos sismos, reduzindo a amplitude da vibração, atenuando a sensação de desconforto, o desgaste das juntas de construção, ou mesmo a falha estrutural. São amortecedores sintonizados porque são dimensionados especificamente para cada estrutura e, por serem deveras especiais, podem merecer um desenho cuidado e nalguns edifícios fazerem parte do circuito de visitantes, como é o caso da torre Taipei 101. Como também não é por acaso que sinos de grandes dimensões em bronze maciço, se penduraram no cimo de torres de igrejas muito altas. Para o privado que é dono do solo, construir “mais alto” foi também contrapartida de quem aceitou ou quis ocupar “menos solo”. Foi isso que aconteceu com o centro Rockfeller em Nova York onde, a parte do lote que não foi ocupada, é hoje a praça onde os noviorquinos no Inverno patinam no gelo ao ar livre. Em suma, na ideia de torre, construção em altura, ou na morfologia urbana que contempla essa possibilidade, não há nada de que a humanidade ou os habitantes das nossas cidades se devam envergonhar. Apenas o modo de habitar é diferente, mas também muito em sintonia com a razão por que gostamos de viver em cidades grandes e cosmopolitas. A construção em altura não merece de todo ser considerada uma palavra feia. O preconceito resulta do facto de que o planeamento urbanístico, ou a falta dele, confrontaram os habitantes da cidade com alturas excessivas em locais desadequados, condições geométricas insuficientemente resolvidas e tipologias de fogos com condições mínimas, que rapidamente se degradaram por falta de regimes de manutenção nessas moles residenciais, de escritórios ou industriais. Consolidou-se uma tradição de desenho arquitectónico de edifícios altos onde é indiferente o número de pisos, pois o edifício é sempre desenhado da mesma maneira, apenas acrescentando o desenvolvimento da mesma “estória”, todavia sem nada de novo ou de interessante, nomeadamente para a diversidade dos fogos e dos espaços. Ao mesmo tempo os mesmos habitantes da cidade assistiram à distribuição de vantagens de sobreocupação de solo que se afiguraram como não equitativas ou discricionárias. Questão não se coloca nos novos aterros da RAEM, para que a morfologia urbana deva seja truncada toda à mesma altura, onde os lotes serão obrigatoriamente colocados na posse dos particulares em condições que são função das vantagens que será possível deles retirar. As faces da uniformização são transversais, tanto nos benefícios como nos prejuízos. Questão que antes se colocaria em zonas já consolidadas, onde a atribuição de vantagens geraria desigualdades sobre a renovação do que está já está na posse dos particulares, mas também situações que a urbanização sabe administrar em regime de perequação numa bolsa conjunta de terrenos. Chegados aqui, afigura-se poder existir um equívoco na estrutura de interpretação e de comunicação por que enveredou o projecto de Plano Director para a RAEM no que respeita a morfologia em geral e a altura de edifícios em particular. Para obter a confiança do público de que não se praticará mais do mesmo a respeito de volumetrias de construção excessiva e discricionária, a interpretação facultada em torno do plano alimentou o preconceito de que a altura da construção é generalizadamente nefasta e indesejável, sendo isso inverso à teoria do urbanismo e à história das cidades. Optou pela prudência da contenção volumétrica, em prejuízo de instrumentos que são de vantagem para o uso eficiente do solo, expressão do engenho e da arte, apenas sujeito a rigor mais criterioso.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO modelo de Xiong’an “A smart city is an intelligent town that provides enormous possibilities for human growth through art, culture, social, architectural, economic, political, environmental, and scientific flowering with the optimal mix of nature, technology, humanity, and arts.” Amit Ray Peace Bliss Beauty and Truth: Living with Positivity [dropcap]A[/dropcap] entrada dos escritórios da Terminus, em Pequim é feita com reconhecimento facial. O átrio é completamente branco, assim como as cortinas, as janelas, balcões de recepção e duas poltronas de forma futurista. O corte em ziguezague das portas que permitem as entradas em espaços abertos é o que recordamos nos filmes de ficção científica e nas populares séries da Guerra das Estrelas. A ideia a transmitir é a de “futuro” mais ou menos imaginado e conhecido, porque a Terminus, fundada em 2015, é uma das muitas das estrelas chinesas que rapidamente se tornaram notadas para além dos mil milhões de dólares do seu valor e o futuro está a manipulá-la para a tornar extremamente “presente”. O seu objectivo é, de facto, fornecer em nome do governo a gestão “inteligente” de compostos e bairros inteiros, reunindo tanto como o actual menu em Inteligência artificial e Internet das Coisas (IoT) permite. Os distritos da cidade conseguiram pela Terminus fornecer todo o tipo de informações sobre os residentes e transeuntes e todos os dados que provêm do silêncio e incessante trabalho de câmaras inteligentes, através de sistemas de reconhecimento de impressões faciais, geolocalização e de voz, impressões digitais de áudio em que a união de toda esta informação flui em frente de ecrãs controlados. A China está a projectar e aperfeiçoar a vida das cidades inteligentes que estão em construção. Este é um mercado próspero. A Terminus já teria completado cerca de sete mil projectos de cidades inteligentes na China. As suas soluções cobririam uma área total de quinhentos e cinquenta milhões de metros quadrados para uma população de mais de oito milhões de pessoas. O esforço explicado nos escritórios da Terminus é o de poder aplicar conceitos “inteligentes” aos edifícios residenciais. Mas o que é uma cidade inteligente? Existe uma extensa literatura sobre o assunto, bem como exemplos de cidades inteligentes, ou distritos “inteligentes”, também na Europa. A “cidade inteligente” é a “expressão actualmente utilizada para estratégias de planeamento urbano relacionadas com a inovação e em particular com as oportunidades oferecidas pelas novas tecnologias de comunicação para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos”. Na China pode-se observar alguns projectos de cidades inteligentes. Olhando para slides e renderings, vêm-se lugares de clareza tranquilizadora. Os projectos descrevem territórios com ruas limpas, pontes estilizadas sobre cursos de água, árvores por todo o lado e imensos espaços verdes, dentro dos quais os complexos residenciais parecem ser muito eficientes. Olhando para os desenhos dos projectos, é de imaginar os carros eléctricos a percorrer as ruas sem a sombra de buracos, e que há uma pessoa dentro dos veículos, porque os carros são semi-autónomos. Ainda é necessário um ser humano dentro do veículo para lidar com situações onde o bom senso é necessário, um elemento que emergiu de um mapa mental humano que os carros são actualmente incapazes de processar. Observando os projectos é de imaginar cidades silenciosas, ritmadas pelo zumbido dos motores eléctricos, sulcadas por edifícios precisos e serviços do mais alto nível, escolas, hospitais e serviços públicos. Todos os projectos de cidades inteligentes são eco-sustentáveis onde não se encontrará sequer o mais pequeno vestígio de carvão, nem mesmo no canto mais remoto de um edifício. As cidades inteligentes representam a ideia de um mundo eficiente, belo e sustentável. Mas quantas pessoas poderão desfrutar destes paraísos terrestres ultra-tecnológicos? E quais serão os parâmetros que lhes permitirão viver nesses locais? Quem poderá viver ali e quem não o poderá fazer? Para além dos tecno-entusiastas ou governantes fascinados pela possibilidade de ter cidades totalmente “sob controlo”, as cidades inteligentes correm o risco de se tornarem um dispositivo de desigualdade. Na China, estão a imaginar cidades de 2,5 milhões de pessoas. O que irá acontecer ao resto da população? Em que tipo de cidade irão viver? No Ocidente, o número destas cidades está a diminuir. O risco é que apenas algumas pessoas possam habitar em cidades inteligentes, presumivelmente suficientemente ricas para poderem viver e utilizar recursos que não estarão disponíveis a todos. A série de televisão brasileira “3%” dá-nos um exemplo perturbador do que uma cidade inteligente pode vir a ser. Nos seus episódios são-nos apresentados dois lugares; um chama-se Maralto, o outro chama-se Entroterra. O primeiro é uma espécie de lugar perfeito com natureza e espaços verdes por todo o lado, tecnologia eficiente e de alto nível, uma perspectiva vertiginosamente elevada da vida, a possibilidade de cura de possíveis doenças com tratamentos futuristas. No segundo vivem os marginais, que estão completamente atrasados em termos de tecnologia e recursos. Todos os anos o Maralto organiza o Proceso, uma espécie de grande exame que permite aos jovens de vinte anos do interior serem seleccionados, pelos seus méritos, para viverem no Maralto. Apenas “3%” poderão “merecê-lo”. E uma vez no paraíso, os mais merecedores terão de se esterilizar. No Maralto não há lugar para todos e acima de tudo o paraíso não pode ser herdado, deve ser merecido. Para além da crítica que a série também coloca ao conceito de meritocracia, o Maralto é uma transfiguração distópica do que poderia tornar-se as nossas cidades futuras, ou melhor, as cidades inteligentes para aqueles que as podem pagar. Maralto, de facto, é, para todos os efeitos, o que entendemos por cidades inteligentes. Para além dos aspectos mais distópicos, ou talvez simplesmente mais pessimistas, existem duas ordens de raciocínio que mantêm unidos os fios invisíveis que ligam os projectos de cidades inteligentes chinesas aos ocidentais; a escassez de recursos que permitirão a vida nas cidades inteligentes e a conveniência nos mercados mundiais de todas aquelas ferramentas tecnológicas que permitirão a sua realização. Em ambos os casos, a China é favorecida; em primeiro lugar porque os recursos necessários para desenvolver cidades inteligentes estão principalmente em território chinês; em segundo lugar porque toda a tecnologia que fará funcionar as cidades inteligentes, mesmo na Europa e nos Estados Unidos, já existe na China, está testada e é competitiva nos mercados mundiais. Os projectos de cidades inteligentes ocidentais, todos baseados num futuro eco-sustentável, dependerão cada vez mais da utilização e eficiência de certos elementos. Por exemplo, as baterias bem como a maioria dos bens tecnológicos necessários para gerir uma cidade inteligente, precisam das chamadas “terras raras” para serem construídas e que país tem mais recursos para as terras raras? A China tem quase o monopólio de todos aqueles metais raros essenciais para a energia com baixo teor de carbono e tudo o que está relacionado com o digital. A chamada “guerra dos metais” ou a corrida para encontrar estas terras raras dá-se sempre que possível, basta pensar na nova corrida à Gronelândia que se desenvolveu na última década e que mostra como o destino das tecnologias verdes e digitais do Ocidente está nas mãos de um único país, a China. Além disso, os metais raros são essenciais para a criação das nossas cidades do futuro, verdes e sustentáveis, mas a extracção destes metais, incrustados na rocha, é um processo complicado. E não é um processo “limpo”, pelo contrário, porque a refinação, como os peritos salientam, requer a trituração de pedras e depois a utilização de uma série de reagentes químicos, tais como ácido sulfúrico e nítrico, para não mencionar que para purificar cada tonelada de terras raras são necessários pelo menos duzentos metros cúbicos de água. Além disso, a água é poluída pela presença de ácidos e metais pesados. Uma minoria viverá em cidades sustentáveis, a grande maioria em locais poluídos. O segundo ponto que liga as cidades inteligentes da China ao nosso mundo diz respeito ao desenvolvimento de cidades inteligentes na China, pois desenvolveu tantos projectos de cidades inteligentes e tão à frente do Ocidente que tem a possibilidade de vender os produtos tecnológicos necessários para criar cidades inteligentes a preços competitivos nos mercados internacionais, incluindo os mercados ocidentais. A este respeito, deve recordar-se que as origens do projecto chinês datam de meados da década de 1990. Nessa altura, foi lançado um mega plano urbano; depois, em 2011, as iniciativas da cidade inteligente foram incluídas no então décimo segundo plano quinquenal. Em 2018, a China desenvolveu cerca de quinhentas experiências e tudo isto é mais do que todos os outros países juntos. Um elemento do passado, o desenvolvimento económico e a poluição que originou, e um do futuro, a corrida tecnológica que dura há anos, obrigaram basicamente a China a repensar o seu desenvolvimento urbano, perseguindo o modelo de cidade inteligente, capaz de desenvolver ao máximo a IoT e permitir qualquer tipo de controlo. O objectivo do governo chinês é entregar cidades seguras à sua população de dois pontos de vista que são a sustentabilidade ambiental, em nome do novo mantra da “civilização ecológica”, e segurança pessoal. O documento sobre o plano de construção da cidade inteligente de Xangai 2011-2013 afirma que o desenvolvimento inovador e transformador requer um sistema de infra-estruturas de informação avançado internacionalmente, um sistema de informação e inteligência eficaz, uma indústria de TI de próxima geração e um sistema de segurança de informação regional fiável. Para desempenhar plenamente o papel do mercado, e seguindo a orientação do governo, uma cidade inteligente deve ter as características chave da digitalização, do trabalho em rede e da inteligência para elevar o nível de modernização global da cidade e permitir aos cidadãos partilhar os benefícios. Esta abordagem, também confirmada por vários documentos governamentais produzidos a partir de 2014, visa, portanto, a construção de cidades de média dimensão, hiperligadas e capazes de tirar partido das novas tecnologias para controlar questões ambientais, de tráfego e populacionais, justificadas pela necessidade de erradicar a criminalidade nas cidades chinesas. Este último elemento é amplamente tido em conta pela população, por exemplo, em Longgang, um distrito de Shenzhen bastante famoso em todo o país pelas suas elevadas taxas de criminalidade, casos de roubo e furto que caíram mais de metade graças a sete mil novas câmaras de alta definição, equipadas com inteligência artificial, em todo o distrito. Mas entre estes pressupostos benéficos, surge uma preocupação de como podem os cidadãos proteger a sua privacidade quando os sensores recolhem dados sobre tudo o que os rodeia? Claro que tudo isto tem um impacto e terá também nas nossas futuras cidades inteligentes em questões relacionadas com os dados pessoais dos cidadãos. E alguns casos também deveriam ser um aviso para o Ocidente. Em Março de 2019, a declaração de Robin Li, CEO da Baidu, o mais importante motor de busca chinês, sobre a protecção de dados e privacidade dos cidadãos chineses lançou um alarme de que os chineses são relativamente mais abertos e menos sensíveis à utilização de dados pessoais. Se tiverem a capacidade de trocar privacidade por segurança, conveniência ou eficiência, em muitos casos estão dispostos a fazê-lo. A lei de 2017 sobre cibersegurança chinesa também tem a sua importância, que anuncia que quer proteger os dados dos cidadãos. É preciso esclarecer qual o papel dos governos ou o que acontece aos dados recolhidos pelo cruzamento de diferentes tecnologias. A questão da privacidade colocada pela recolha e processamento dos dados dos cidadãos extraídos em cidades inteligentes parece estar a anos-luz da Europa. Mas em breve se tornará muito actual, especialmente se pensarmos que a China já está a finalizar o que deveria ser o “projecto dos projectos”. O Presidente Xi Jinping indicou o local e a hora para fazer de Xiong’an, a cerca de cem quilómetros de Pequim, o modelo global de cidade inteligente em que existirão dois milhões e meio de habitantes para uma área que deveria tornar-se o farol, guia, exemplo para todo o planeta, do que se entende por cidade inteligente. Tudo começou em 2017, quando chegou o primeiro anúncio apresentando Xiong’an como uma nova cidade, o fulcro da “estratégia para um novo milénio”, uma área capaz de demonstrar um modelo urbano sustentável, moderno e inovador não só à China, mas a toda a Ásia (que hoje é o continente mais avançado e em breve aquele onde será produzida a maior riqueza do mundo). Em Junho de 2017, o Presidente Xi Jinping presidiu a uma reunião do Partido Comunista sobre planeamento urbano em Pequim, na qual afirmou que enquanto a capital deveria permanecer o centro da política nacional, cultural, intercâmbios internacionais e inovação científica, todas as outras funções deveriam ser transferidas para outros lugares, como Xiong’an. Entretanto, o presidente Xi promoveu uma série de funcionários experientes para este desiderato, em particular, o presidente da Câmara Municipal de Shenzhen de 2010 a 2017, que foi nomeado governador de Hebei, a região que irá acolher a nova cidade. O tecnocrata, Chen Gang, que supervisionou as indústrias de alta tecnologia de Pequim, tornou-se o primeiro líder da Nova Área de Xiong’an. Então, como será Xiong’an? Será arrumada, limpa, terá mobilidade sob controlo constante em termos de transporte público eléctrico e algoritmos prontos para organizar melhor o tráfego, que será escasso. Será uma cidade hiper-controlada. Além disso, e isto é de grande interesse, não será apenas o resultado da investigação chinesa pois os países europeus e a própria União Europeia também participarão no projecto “cidade inteligente das cidades inteligentes”. Na China, de facto, está-se a trabalhar para construir uma cidade ideal, para ser adaptada também às características ocidentais. Uma cidade que custa, mas a China não pretende poupar esforços pois estima-se que serão necessários quinhentos e oitenta mil milhões de dólares para construir a nova cidade, enquanto outros noventa e um mil milhões de dólares serão gastos para criar a imensa quantidade de infra-estruturas necessárias para o transporte (dentro e fora da cidade). O objectivo é transformar Xiong’an num novo pólo tecnológico financeiro em que 80 por cento do crescimento económico na nova área dependerá em grande parte das indústrias de ponta, com prioridade dada ao investimento em biotecnologia e ao estudo de novos materiais. Não serão perdidos os mais importantes gigantes chineses de alta tecnologia, tais como o Baidu, Alibaba e Tencent, que anunciaram a sua intenção de estabelecer ali as suas filiais. Da mesma forma, as principais empresas chinesas de telecomunicações, incluindo a China Mobile, Unicom e Telecom, irão testar as novas redes sem fios 5G em Xiong’an. A cidade de Xiong’an será “verde e inteligente” e estará concluída em 2035. Mas há também alguns problemas relacionados com tecnologia e controlo, segurança e mobilidade. O que é que falta? A arte, a cultura, o sonho, a experiência. Xiong’an, como muitas outras “novas” cidades chinesas, arrisca o seu destino habitual, ter necessário espaço, limpo, organizado mas desabitado. Ou, se for habitado, como será o projecto se alguma vez se tornar realidade? A ideia é animar a futura cidade inteligente com inserções, hotspots de natureza artística, capazes de transmitir interacção e informação, e para prenunciar uma ligação com o resto do país e do mundo através daquilo que hoje, na China, parece por vezes um fetiche que é a herança cultural.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesFactos menstruais [dropcap]U[/dropcap]ma associação no Reino Unido estabeleceu que esta seria a semana da consciência ambienta-menstrual onde tentam incorporar vários temas que por aqui já vos trouxe ao longo do tempo: tabu, pobreza, inclusão e representação menstrual, e os seus efeitos no ambiente. A proposta é de que a menstruação, para além de sangue a sair por entre as pernas, seja uma questão de justiça social. Nós, humanos, perpetuamos práticas menstruais que não nos trazem muita saúde, nem física, emocional ou ambiental. As práticas desenvolvidas para ajudar a gerir a menstruação têm resultado em poluição. Os produtos como pensos e tampões descartáveis acabam no mar e em aterros sanitários. Não há praia com lixo que não tenha algum componente menstrual, e, dada a percentagem atroz de plástico na sua composição, estes objetos nunca vão desaparecer por completo. Um facto aleatório para o vosso conhecimento geral. Neste ano de 2020, em que sentimos tudo a mudar, a menstruação continua a ser uma preocupação de topo. O que devia ser tremendamente normal – os úteros sangram mensalmente -, continua a ser uma grande fonte de escárnio e nojo. Vi algures uma tira de BD que ilustrava a dificuldade em normalizar o sangue menstrual. Imaginem um tipo sentado no sofá a ver uma batalha sangrenta na televisão, está todo contente! Em outro momento, aparece um penso ensanguentado no ecrã, e com ele vem a expressão de horror do espectador. Padrões duplos, é o que é. Para umas situações o sangue é fixe, para outras é absolutamente intolerável. De quem é a culpa desta discriminação menstrual hedionda? Nossa, minha, tua, de todos. A educação menstrual está mais a cargo das empresas de comercialização de produtos do que de conversas familiares sem vieses comerciais. Empresas que retratam a menstruação como um líquido azul. Porque ainda hoje, ninguém diz que está com o período. Ensinou-me a minha mãe. Insinua-se que se está menstruada, com um código de morse, com olhares de “a ver se me faço entender”. Desconversa-se a menstruação porque o aceitamos como a norma, e há quem sinta a necessidade de se desculpar por sequer mencioná-la na comunicação social. Não se fala da menstruação como quem fala de queques, por exemplo. Se assim fosse estaríamos mais à vontade em trocar receitas (e factos!), ou discutir as melhores estratégias que nos trazem conforto durante dias de inchaço e dor, até aos produtos que usamos e queremos recomendar. Sabiam que a água ensanguentada, das lavagens dos pensos e cuecas menstruais reutilizáveis, resulta numa água tão incrivelmente rica que podem regar as vossas plantas com ela? Outro facto menstrual que provavelmente não sabiam, e este, muito benéfico para o ambiente. Até acho que, a incapacidade de falar de menstruações como quem fala de um bolo de arroz, e o uso massivo de produtos descartáveis, fizeram com que as pessoas menstruantes se desconectassem da sua menstruação. O que ela é e para onde vai? O plástico e a menstruação começaram a ter uma relação mais íntima, precisamente porque as pessoas queriam formas discretas de lidar com ela. Mas agora que vemos os pensos descartáveis (que podem ter 90% de plástico! Outro facto) a serem encontrados pelas praias do mundo, as pessoas mais ambientalmente conscientes ficaram com vontade de utilizar outros produtos: pensos reutilizáveis e copos menstruais. Com esta transformação vem outra transformação desejável: uma relação mais próxima com a menstruação, olhar o sangue de frente e aguentar todas as pressões que nos sinalizaram que podia ser nojento. Não vale a pena viver na pouca aceitação (social e individual) porque a menstruação é um facto inevitável da vida.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesAuto indulto (I) [dropcap]O[/dropcap] Presidente Republicano Donald Trump tem estado em conflito com os Democratas a propósito de uma nomeação para o Supremo Tribunal de Justiça. Há alguns dias atrás, Amy Coney Barrett, a candidata apoiada por Trump, foi questionada por diversos membros do Comité Judicial do Senado. Das perguntas que lhe colocaram, destacam-se a seguinte, “Pode o Presidente amnistiar-se a si próprio, caso tenha cometido um crime”? E porque é que esta questão surgiu? Por causa da alegada ligação de Trump com os russos, que poderão ter exercido influência no resultado das eleições presidenciais de 2016. No dia 3 de Junho de 2018, Trump nomeou o advogado Rudy Giuliani, que declarou em entrevista no “This Week”, da NBC, que Trump poderia ter o direito que amnistiar as suas próprias infracções à lei, mas que não acreditava que o fizesse. Em que é que consiste o direito de perdão do Presidente? Em 1787, quando a Constituição Federal foi elaborada, era referido o direito real de comutar ou amnistiar certos crimes, segundo a lei britânica. Este direito foi inscrito na Constituição. O Artigo 2 estipula que o Presidente tem o direito de emitir ordens de liberdade condicional e de perdoar crimes que ponham em risco os Estados Unidos, excepto em casos em que exista um impeachment. Existem muitos documentos que indicam que o Presidente não tem de justificar o direito de concessão de perdão, e que não tem de aceitar opiniões contrárias vindas do Congresso ou dos Tribunais. Como o poder de conceder perdão é o poder supremo do Presidente, não é de estranhar que os comentários de Rudy Giuliani tenham concentrado a atenção dos americanos. A investigação ao Russiagate concluiu não haver provas que Trump se tivesse aliado aos russos para influenciar a eleição presidencial. Desta forma Trump não vai ter de enfrentar a justiça, mas resta a questão se o Presidente tem ou não poder para se indultar a si próprio. Amy Coney respondeu, afirmando que nunca se tinha colocado essa possibilidade nos Estados Unidos. Essa situação pode ou não vir a acontecer. É um assunto que requer análise jurídica, no âmbito do direito de concessão de perdão. Os candidatos que não respondem às perguntas do Comité Judicial vão deixar certamente uma má impressão. Contudo, segundo a common law, os juízes não estão autorizados a expressar a sua opinião sobre a interpretação da lei. Isso poderia conduzir a situações de injustiça em futuros julgamentos. Assim sendo, e do ponto de vista legal, não se pode dizer que Amy tenha evitado a pergunta. Claro que, do ponto de vista político, a relutância de Amy em fazer afirmações que pudessem ofender Trump é compreensível. Para responder à pergunta “Pode o Presidente indultar o seu próprio crime?”, é preciso ter em consideração vários pontos importantes. Primeiro, o direito criminal, estipula claramente que o Chefe de Estado em funções não pode ser alvo de um processo crime. Desta forma, só lhe pode ser movido um processo após resignar da presidência. Mas como a Constituição Federal não estipula que o Presidente em funções não possa ser alvo de um processo criminal, só podemos encontrar respostas em situações anteriores. A 9 de Julho deste ano, o Supremo Tribunal americano decretou que os Procuradores da cidade de Nova Iorque podiam ter acesso às contas bancárias pessoais e empresariais e às declarações de impostos de Trump, mas recusou o pedido da Casa dos Representantes para obter a sua documentação fiscal. Esta acção foi desencadeada porque em Agosto de 2019, o Procurador de Manhattan, Cyrus Vance, levantou a possibilidade de Trump ter cometido actos ilegais, quer a nível pessoal quer a nível empresarial e, através de uma intimação emitida por um juiz, foi solicitada uma investigação às actividades de Trump entre 2011 e 2018, esperando vir a ter acesso aos registos financeiros da Mazars USA, uma empresa de contabilidade que assessoria Trump. Os três Comités da Casa dos Representantes também solicitaram intimações ao Tribunal da mesma forma, convocando a Mazars USA, na esperança de obter a documentação financeira de Trump. Os nove juízes do Supremo Tribunal decretaram por maioria (7 contra 2), que o Presidente não tinha imunidade criminal absoluta. Não ter imunidade criminal absoluta, significa que pode ser processado em determinados casos. Como o Supremo não especificou as circunstâncias em que o Presidente pode ser processado, essa possibilidade permanece em aberto. Continua na próxima semana. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
luis-sa-cunha Ai Portugal VozesA covid-19 também não gosta do Ronaldo [dropcap]N[/dropcap]ão sou médico. Conheço é muitos clínicos. O que escreverei é simplesmente baseado nas conversas com médicos e enfermeiros amigos. A covid-19 tem sido um mal mundial desde que em Wuhan iniciou a sua marcha mortífera. Uns dizem que é um vírus; outros de que se trata de uma bactéria. Uns afirmam que é uma treta inventada para exterminar com os velhotes que ainda podem testemunhar o que é uma ditadura, a fim de se poder definitivamente implantar no globo um governo ditatorial mundial, como sonha o fascista Trump; outros inclinam-se para uma pandemia descontrolada da qual ninguém estava preparada e muito menos com alternativas de cura imediata. Uns cientistas condenam o confinamento e a obrigatoriedade do chamado stayway, uma nova forma de controlar a nossa privacidade; outros aconselham os governos a decretar a obrigatoriedade de estados de emergência e ao uso de máscara obrigatória mesmo na rua. Uns, alvitram que tudo não passa de criar o medo em toda a gente e que o convívio, os festejos, os casamentos, os baptizados, as festas, os beijos, os abraços terminem de modo a que a natalidade reduza drasticamente no planeta porque não haverá dinheiro para sustentar tanta gente no planeta; outros, contrapõem que tudo não passa de teorias de conspiração que não querem admitir que o caso é grave a nível mundial. Mundial, ponto e vírgula. Lembro-me, por exemplo, de uma terra chamada Macau onde os infectados e os óbitos são praticamente inexistentes. Será porque a RAEM tem dezenas de casinos e que fazem muita falta que estejam abertos 24 horas para que possam lucrar muito dinheiro que irá servir para múltiplos financiamentos, inclusivamente as obras faraónicas da mãe-pátria? A covid-19 é a maior demonstração de competência e de incompetência de quem esteja ligado aos assuntos de saúde. Os médicos, enfermeiros e auxiliares nos hospitais trabalham até à exaustão como autênticos heróis enquanto os dirigentes políticos só se preocupam nos materiais a comprar porque num contrato de ajuste directo há sempre rendimento pecuniário indirecto para quem tem o poder de decisão. No entanto, os médicos estão divididos e até já foi criado um movimento em Portugal, onde se insere o bastonário da Ordem dos Médicos, que visa chamar a atenção que o Serviço Nacional de Saúde está a rebentar pelas costuras e que em Novembro e Dezembro se a pandemia vier a agravar-se será o caos. Já existem hospitais sem condições para receber doentes. Há serviços hospitalares encerrados por falta de profissionais ou de camas. A covid-19 tem servido para todas as desculpas num país em que já tivemos 100 infectados por dia e agora já vai em mais de 2.500 e com os óbitos a aumentar. Óbitos que muitos médicos já afirmaram não terem nada a ver com a covid-19: são doentes com males graves, como doenças pulmonares, cardíacas, renais, regenerativas, intestinais, estomacais, prostáticas e naturalmente cancerígenas. Todas estas doenças levam à morte, especialmente quando o paciente ultrapassa os 80 anos de idade. Para tristeza de um povo, os doentes sem covid-19 têm sido postos de parte: as consultas pararam, as cirurgias foram suspensas e milhares de cidadãos continuam sem médico de família. A Saúde parece, mesmo com uma pandemia dita mortífera, continuar a ser o parente pobre de um Orçamento de Estado. Nem quero acreditar que em 2021 irá mais dinheiro para a TAP e para as ferrovias do que para a Saúde. Dizemos mesmo que o grande cancro de Portugal é a falta de saúde da sua população. A falta de hospitais públicos, a falta de ambulâncias e de clínicos no interior e a impossibilidade financeira de um povo poder visitar um hospital privado. Isso, só em sonho. Como é que um cidadão com uma pensão de 200 euros pode ser operado no Hospital da CUF-Descobertas a uma Trigeminal Neuralgia, cirurgia delicada que tem um custo de 18 mil euros? Obviamente que neste país anda-se a brincar com a saúde de todos nós. A covid-19 que tem sido apresentada através de testes que cientificamente ainda não foi provada a sua eficiência, tem provocado outros danos colaterais que muita gente nem faz ideia. Falei com um amigo que me transmitiu que nunca tinha chorado ao levar os filhos à escola, mas que desta vez ficou profundamente triste ao ver que a sua filha não podia abraçar nem beijar os amigos. E há mais danos inimagináveis: sabem que desde Março, devido ao confinamento, ao teletrabalho, ao layoff, ao controlo dos filhos encerrados em casa que as depressões aumentaram 300% e que desde Abril já se registaram cerca de 5.000 divórcios? Tudo isto é covid-19, a tal doença que segundo os responsáveis só ataca depois das 20 horas e que ingerir álcool depois dessa hora é óbvio que o líquido chama o vírus para o restaurante ou bar. A covid-19 continua tão estranha que o Conselho de Ministros reúne todas as semanas, mas apenas três ministros ficaram infectados. Trata-se de uma doença que não gosta de futebol visto que até deixou o Cristiano Ronaldo doente depois de estar a jantar com todos os colegas da selecção nacional e ninguém ficou infectado… *Texto escrito com a ANTIGA GRAFIA
Hoje Macau VozesPlano Director III [dropcap]A[/dropcap] formação de urbanista obtém-se por vias diversas. Pode ter origem na engenharia, na geografia ou na arquitectura e, em função disso, os contributos de especialidade podem ser na área das infra-estruturas, da demografia, dos transportes e da distribuição dos usos, ou mesmo somente para a integração de todos esses contributos numa morfologia urbana, cuja aptidão continua a ser exclusivo da formação urbanista com origem na arquitectura. Essa realidade não é mais do que o resultado da especialização e autonomização do conhecimento, sendo que todos esses contributos são simultaneamente necessários. Por sua vez as situações podem reclamar a predominância de um desses contributos, tendo em conta as prioridades e os objectivos a que o plano deve dar resposta e, nesse exercício, é possível identificar qual desses contributos está em comando ou foi negligenciado. No caso do Projecto de Plano Director para a RAEM suscita-se que a circulação e a distribuição de usos tenham estado em comando e que o contributo mais ténue tenha sido a morfologia urbana. Para a questão importa ter em atenção duas tradições de urbanismo que são o “prescritivo”, de matriz predominante anglo-saxónica, e o “descritivo” de matriz mais continental europeia. O primeiro pratica-se por via de parâmetros e índices a que as edificações devem obedecer, o segundo define a morfologia urbana a que as edificações devem corresponder. Chegados aqui, fácil é admitir que o “urbanismo descritivo” é mais garante de uma paisagem urbana qualificada do que o “urbanismo prescritivo”, e que o “urbanismo prescritivo” pode ser responsável por uma paisagem urbana estéril por excessiva normalização paramétrica. Reportando à realidade da RAEM todas essas situações estão presentes e permitem este aval. Nas zonas da cidade não sujeitas a Plano de Pormenor praticou-se “urbanismo prescritivo” na última metade do séc. XX por influência de Hong Kong, onde a ocupação foi resultado de um algoritmo que tinha a área do lote como variável mais definidora. Por via da disparidade das dimensões dos lotes e da possibilidade de se aglutinarem lotes para uma única edificação, a imagem urbana resultou aparentemente desregulada e deveras acidental. Como resultou totalmente homogénea por normalização da única variável em presença, i.e. a dimensão e a configuração do lote, inscritas na mesma operação urbanística, como é o caso do Bairro do Hipódromo. Por outro lado, o “urbanismo descritivo” aconteceu por via do recurso a soluções tradicionais ou a projectos tipo, que respeitavam planos marginais de fachadas. Disso, o Porto interior foi o exemplo mais relevante, todavia mais delapidado. Como também aconteceu por via de Planos de Pormenor, que é o caso do Plano dos Novos Aterros do Porto Exterior (o NAPE) e o Plano de Fecho da Baía da Praia Grande. O primeiro pautado pelas regras da matriz geométrica abstracta e racional, o segundo por uma matriz geométrica extraída da paisagem local. Fora de qualquer uma destas situações de urbanização, as ocupações são resultado de instrumento de planeamento urbano ainda prévio designado por “zonamento”, o qual significa apenas bolsas de território afectas a uma determinada finalidade. Não é ainda molde de urbanização, muito menos garante de paisagem urbana qualificada. No Projecto de Plano Director para a RAEM que se encontra em consulta, as novas zonas habitacionais da Zona A dos Novos Aterros tem esta descrição visual: E, face aos elementos de interpretação atrás descritos, o mesmo tanto pode antever um modelo de “urbanismo descritivo” a que as edificações devem obedecer, todavia sem render uma paisagem urbana interessante ou qualificada, ou antes um resultado estéril de “urbanismo prescritivo”, por excessiva normalização paramétrica. Não sendo nem uma coisa, nem outra, estamos perante um resultado ainda prévio de apenas “zonamento” para a finalidade habitacional. porque era este o nosso arquétipo de casa, e agora passámos a representar premeditadamente em “cruz” porque esse passou a ser o novo, recorrente, e aparentemente único arquétipo de casa. A questão releva porque, muitas vezes, é somente e exactamente “zonamento” o que se pratica e se concretiza, por falta de exercício de morfologia urbana. A questão também releva porque é exactamente preocupação do Projecto de Plano Director a preservação da paisagem, nomeadamente a preservação dos avistamentos notáveis, mas não a criação de paisagem e de avistamentos novos igualmente notáveis, nomeadamente de zonas residenciais. A questão é em tudo semelhante à preocupação na defesa do património histórico, sem cuidar da relevância do que se constrói hoje, e de acrescentar património histórico ao futuro. Da mesma forma que se almeja que os nossos padrões de consumo se norteiem cada vez mais por essencialidade, a edificação a realizar no futuro, com capacidade de ser duradoura, deve pautar-se pela confiança naquilo que é desejável persistir.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesA quarta vaga [dropcap]A[/dropcap] pandemia de covid-19 surgiu no início deste ano e ainda não deu sinais de estar a chegar ao fim. Em algumas zonas, a pandemia tem registado um padrão de altos e baixos, como é o caso de Hong Kong, que enfrenta agora uma terceira vaga. Ainda não se sabe se a fronteira entre Hong Kong e Macau vai ser reaberta. A segunda fase do cartão de consumo electrónico, implementada pelo Governo de Macau, termina em Dezembro, mas a maioria dos residentes da cidade já tinha gastado a quase totalidade das 5.000 patacas no final de Setembro. Actualmente, Macau ainda enfrenta um grave declínio económico e, apesar da retoma da política de vistos individuais implementada pela China, o número de turistas do continente decresceu substancialmente, quando comparado com o fluxo habitual antes da pandemia. Para além disso, a maior parte destes turistas vêm a Macau fazer compras o que não contribui para as receitas da indústria do jogo. Os casinos continuam praticamente vazios. Segundo os promotores de jogo, vêm muitos menos jogadores da China para Macau, porque o Governo Central está a fazer um controlo apertado de saída de divisas, na medida em que a economia chinesa sofreu também um forte revés devido aos efeitos da pandemia. Como as vacinas contra a COVID-19 estão ainda em fase de ensaios clinícos e o virus continua a sofrer mutações, sendo que a sua origem permanece desconhecida, é muito provável que venhamos a enfrentar uma quarta vaga de infecções. Possivelmente, só quando todos desenvolverem anti-corpos a pandemia possa finalmente terminar. Se houver uma quarta vaga de covid-19, acredito que todos a vão conseguir superar. Mas já quanto à quarta vaga de distúrbios politicos que acompanharão a pandemia, não posso afirmar o mesmo porque os vírus políticos são muito mais terríveis e complicados de combater do que os biológicos, e encontrar uma cura para aqueles é sem dúvida muito mais difícil. O falecido académico americano, Samuel P. Huntington, fez uma previsão no famoso livro, A Terceira Vaga: Democratização, onde afirmava “…não é previsível que venha a haver uma quarta vaga de democratização durante o século XXI. Avaliando pelo que se registou no passado, os dois factores decisivos que vão determinar a futura consolidação e expansão da democracia são o desenvolvimento económico e a liderança política”. Será que a covid-19 vai fazer desencadear uma quarta vaga de democratização? Alguns analistas afirmaram que o impacto económico da covid-19 se iria fazer sentir seis meses após o aparecimento do primeiro surto. A indústria do jogo em Macau, a Cathay Pacific Airways de Hong Kong e o multinacional HSBC Bank, encontram-se todos em estado de letargia, e o mercado imobiliário da China está à beira do colapso. Quando o sector industrial e o sector financeiro na China deixarem de estar em sintonia, vai desencadear-se uma reacção em cadeia que devastará a economia. O que me parece particularmente preocupante é a questão da liderança política quando esse dia chegar. As perturbações sociais de longa data em Hong Kong afectam as relações sino-americanas, criando um efeito-borboleta. Cada decisão tomada pelos líderes políticos pode provocar vagas gigantescas e muitos decisões erradas podem ter consequências devastadoras. Um tsunami político é mais assustador do que um tsunami verdadeiro ou do que um tsunami económico. Os habitantes de Macau não têm campo de manobra, por isso vão ter de confiar na liderança do Chefe do Executivo. A recuperação da vitalidade da economia, a possibilidade de se controlar uma provável quarta vaga da pandemia, são questões que vão depender do desempenho económico e político dos líderes mundiais, bem como a possibilidade de virmos a acolher uma quarta vaga de democratização.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA economia digital na China (II) “Users turned on their phones and went straight to WeChat to chat with friends, read their posts, and install apps within WeChat, effectively making it an alternate operating system.” Shaun Rein The End of Copycat China: The Rise of Creativity, Innovation, and Individualism in Asia [dropcap]O[/dropcap]s estrangeiros, as pessoas consideradas curiosas e normalmente também ricas, começaram a tornar-se um incómodo, uma espécie de “grilos falantes” sempre prontos a apontar os defeitos da China. Os estrangeiros foram logo catalogados expressivamente. O tempo parecia ter-se esgotado, o século da humilhação chinesa era um passado a ter em conta. Nesses anos, a sorte do mundo apareceu muito mais clara em Pequim do que em Washington. E entretanto, o país estava a mudar à sua velocidade habitual e cada vez mais pessoas na China começavam a ligar-se à Internet com os seus telemóveis. Huateng não podia perder a oportunidade de adaptar a sua ideia (o sistema de mensagens QQ) às circunstâncias alteradas e em 2011 o WeChat chegou e estabeleceu-se no mercado chinês, confirmando a consagração do novo pilar da sociedade chinesa, o smartphone. O WeChat determinou a passagem dos chineses do PC para a navegação móvel (hoje 90 por cento dos utilizadores ligados à Internet na China ligam-se ao smartphone) e revelou a gigantesca quantidade de dados que podem ser recolhidos no mercado chinês. Por outro lado, a explosão da Internet colocou um grave problema de orientação, que decidiu enfrentar o problema de frente, fechando a possibilidade de acesso a ferramentas ocidentais. A motivação? Facebook, YouTube, Twitter e similares arriscaram-se a “poluir” o espírito socialista chinês. Desligado e fechado seria o fim. A “Grande Firewall”, uma porta gigantesca entre a Internet chinesa e o resto do mundo, só poderia ser aberta ou fechada por vontade superior. Algumas coisas podiam entrar, outras não. Afinal, Deng Xiao Ping tinha avisado os seus sucessores que “Abrir as portas trará tanto ar como moscas”. A máquina de reprovação armou-se gradualmente com uma série de ferramentas que funcionaram tão bem que as tornaram apetitosas mesmo para governos estrangeiros (o “Great Firewall” foi uma inspiração para ferramentas semelhantes em uso na Rússia e na Turquia). Os líderes chineses fizeram bem, pois o controlo apenas fomentou um mercado digital interno próspero, despojado da concorrência irritante das super-empresas estrangeiras, nas quais as start-ups começaram logo a lutar pelo domínio e a inovar constantemente as suas ofertas. Não houve grandes protestos sobre o controlo, porque os chineses sempre se interessaram por jogos ou informações práticas online. Este clima nascido do confronto com o Ocidente e a sua crise económica está na base do nascimento do WeChat e, mais geralmente, da vida tecnológica chinesa, enquanto os Estados Unidos estavam ocupados a encontrar inimigos em todo o mundo e a Europa começava a voltar-se contra si em busca de uma improvável estrutura política comum, os chineses lançaram as bases do seu actual sucesso. A China com o maior mercado interno do mundo, selado pela entrada de produtos estrangeiros, ao longo dos anos Pequim começou a pensar em formas de desenvolver uma indústria local verdadeiramente capaz de inovar. Tal como aconteceu com a Grande Muralha a partir de um instrumento defensivo, o enorme trabalho ao longo do tempo tornou-se útil para os transportes e negócios. Foi perto dos vários “portões” do muro que os mercados cresceram e o comércio floresceu. Mas em 2011 o processo não foi certamente concluído. Um ano após o aparecimento do WeChat, teve lugar mais um ponto de viragem política na China, pois em 2012, o presidente Xi Jinping chegou ao poder, como sendo um líder carismático que decidiu investir o futuro do país em Inteligência Artificial e o desejo de ver a China estabelecer-se como o país mais avançado tecnologicamente do mundo até 2030. Um grande sucesso para um país que acabou por questionar os seus apaixonados estudiosos sobre o destino louco dos finais do século XIX. Joseph Needham, um famoso sinólogo, fez a si próprio uma pergunta que ao longo do tempo se tornou o chamado “problema Needham”: como é possível, questionado por muitos estudiosos, que uma civilização muito superior e à frente da civilização ocidental, a certa altura, tenha perdido completamente o encontro com a história, para ser falsificada pelo processo levado a cabo no outro lado do mundo pela Revolução Industrial? Como é possível que o país que inventou a pólvora a utilizasse para fogo-de-artifício e não como arma de guerra? As histórias do amor chinês estudam-na. É por isso que os chineses não têm qualquer intenção de perder este encontro com as novas possibilidades tecnológicas que se avizinham. A crise das exportações e o impulso do país à inovação tecnológica é a situação que está na origem do nascimento do WeChat. Mas qual é o momento fundamental que marca a afirmação definitiva do WeChat? A história da candidatura tem o seu momento mais importante no Dia de Ano Novo de 2014, quando o WeChat se estabelece no mercado chinês porque desafia (vencer) a empresa chinesa número um do mundo, o Alibaba. O Alibaba é o rei indiscutível do comércio online e é uma empresa de categoria mundial. Nas suas muitas lojas online pode-se comprar um saco de batatas fritas mas também um Boeing ou alugar uma pessoa que pode visitar familiares idosos no seu local (especialmente em tempos recentes a piedade filial confucionista recuperou popularidade, mas nem todos estão convencidos). O Alibaba é também uma empresa financeira, uma espécie de banco e durante o Ano Novo Chinês de 2014, com um movimento estratégico, o WeChat permitiu aos seus utilizadores enviar “envelopes vermelhos” virtuais, os envelopes tradicionais contendo dinheiro, o principal presente do final do ano chinês, permitiu aos seus utilizadores ligar o perfil do WeChat à conta bancária. Muitos envelopes vermelhos virtuais começaram a circular e em geral a moda, ainda em voga contínua, de transferir dinheiro com comodidade. Durante a passagem de ano, cinco milhões de pessoas penduraram a sua “carteira” WeChat na sua conta bancária. Jack Ma, o fundador do Alibaba, não aceitou muito bem. O Alibaba tem o seu sistema de pagamento online. Chama-se Alipay e está também muito presente no Ocidente, em lojas e até em táxis. Jack Ma foi forçado a admitir um terrível desastre tendo definido o movimento de marketing do WeChat como o “Pearl Harbor” para pagamentos online, particularmente para a sua empresa, e depois de contabilizar as suas perdas e foi obrigado a perseguir o WeChat noutros campos de batalha para não ficar para trás, e a 7 de Agosto de 2019, no Dia dos Namorados na China, o Alibaba inaugurou o serviço Alipay que permite fazer todos os documentos para o casamento (uma característica que, como vimos, o WeChat oferecia há algum tempo). A guerra de 2014 entre o WeChat e o Alibaba fez emergir dois aspectos importantes para compreender o actual esforço chinês no mundo dos Grandes Dados e da Inteligência Artificial sendo o primeiro, o dinamismo empresarial e a capacidade criativa para explorar alguns dos elementos mais tradicionais da sociedade chinesa no mundo digital; sendo o segundo, o valor dos dados, o verdadeiro tesouro chinês em termos de Inteligência Artificial. Kai-Fu Lee, chinês de Taiwan, guru da inovação tecnológica e chefe de uma empresa de capital de risco que investe no sector da Inteligência Artificial da China, chamada de a Arábia Saudita dos dados, no sentido de que os chineses sempre a tiveram mas não sabiam que a tinham. Para que máquinas inteligentes possam processar o comportamento “humano”, é necessária uma quantidade impressionante de dados. Em alguns casos, o desenvolvimento ou não de uma aplicação pára mesmo em frente à necessidade de mais dados. Este não é o caso da China e os seus dados não são apenas muitos, mas são também de qualidade, porque não só registam os comportamentos online das pessoas, mas também acompanham o utilizador na vida aparentemente offline. A história que levou o WeChat a ser o que é, faz parte da história recente mais vasta do seu país e o seu sucesso é inerente à lógica da própria sociedade chinesa. Não é coincidência que o WeChat, fora da China, não tenha a mesma funcionalidade. Mas a forma como o WeChat amarra os seus utilizadores, mantendo-os no seu mundo e gerindo todos os dados, criou um caminho que o Ocidente observa com muito cuidado, de tal forma que tenta imitá-lo. No futuro próximo, em que se poderá tornar o Facebook (e todas as aplicações que controla, incluindo Instagram e WhatsApp)? Por outras palavras, como pode um gigante tecnológico ocidental inspirar-se num gigante tecnológico chinês ainda maior? Qual é o futuro, segundo o fundador do Facebook? Mensagens privadas, os “grupos”, olhando para o mundo tecnológico chinês, Zuckerberg percebeu que é dentro de grupos e mensagens privadas que a riqueza futura do Facebook pode potencialmente ser criada; não só em termos de publicidade, mas também e sobretudo em termos de, por exemplo, transferências de dinheiro, compras directas e, claro, muitos dados. O nosso futuro online será cada vez mais dentro de grupos (como acontece no WhatsApp pois mesmo que os odiemos, pelo menos por palavras, estamos sempre presentes para criar ou aderir a novos). Se o WhatsApp ou o Messenger se tornasse como o WeChat, não só poderíamos trocar dinheiro, ou comprar imediatamente qualquer coisa sugerida por um amigo, como poderíamos fazer tudo a partir daí; não mais e-mails, mensagens, postagens e envio de documentos. Enquanto os utilizadores do Facebook vêem constantemente anúncios nos seus feeds de notícias, os utilizadores do WeChat só vêem um ou dois anúncios por dia nos seus MomentFeed, porque o WeChat não depende da publicidade para ganhar dinheiro, mas da taxa de pagamento e muito mais. O WeChat provou conclusivamente que as mensagens privadas, particularmente os pequenos grupos, são o futuro. O WeChat e a possibilidade de seguir o Facebook foram frequentemente discutidos, como uma espécie de “mundo” ou, permanecendo na esfera tecnológica, como um sistema operativo ao mesmo nível da Apple e do Android. O WeChat tem uma espécie de “home page” dentro da aplicação a partir da qual se pode pesquisar e pressionar em todos os mini-apps que quiser. O objectivo é o de certificar-se quando liga o seu telemóvel que o ecrã principal se torna o ecrã do WeChat, e não o ecrã do iOS ou do Android. Agora imagine ligar o seu smartphone e se o Facebook der estes passos, basta pressionar no Messenger e terá a porta aberta para todos os serviços, especialmente porque, como o anunciado em Maio de 2019 pelo próprio Zuckerberg, o Facebook, o WhatsApp e o Instagram poderão trocar mensagens uns com os outros num sistema de partilha total. Se tivesse o WeChat, teria visto tudo isto há muito tempo. Em Junho de 2013, enquanto nos Estados Unidos um dos acontecimentos que mudou a nossa era estava a ter lugar, dado que Edward Snowden, após revelar as modernas técnicas de recolha de dados da Agência Nacional de Segurança, refugiou-se em Hong Kong. Penso que foi o momento em que alguns grupos no WeChat registaram o seu pico histórico de actividade em comparação com as habituais mensagens de tempos, lugares e compromissos, pois um agente americano revelou um terrível trabalho de controlo, em violação de todos os conceitos de privacidade dos Estados Unidos. Um escândalo deste teor e magnitude por intromissão na privacidade das pessoas nunca teria acontecido na China, nem textos sobre o mesmo apareceriam nos meios de comunicação social! Os meios de comunicação social ocidentais acabaram por contar a história toda e tais acontecimentos foram seguidos pela China. Os chineses viram como algo sensacionalista, dados os Estados Unidos se vestirem de polícia do mundo quanto ao cumprimento dos direitos humanos e espiaram os seus cidadãos. E juntamente com esta certeza havia a suspeita de que o Ocidente faria tudo para encobrir o escândalo (ao contrário do que os meios de comunicação ocidentais fariam, se algo semelhante surgisse na China). Além disso, a partir desse mesmo momento, uma nova atenção aos dados e às suas potenciais utilizações começou a espalhar-se também na China; pois pretende-se uma nova relevância que começaria a penetrar no conceito de privacidade, “com características chinesas”. Com a revelação da vigilância em massa, Snowden tinha revelado algo em 2013 que agora se considera normal. Hoje, a recolha de dados, a verdadeira força vital do “capitalismo de plataforma”, é considerada como um dado adquirido tanto no Ocidente como na China. Apenas sete anos após o caso Snowden, o mundo das aplicações também se viu atacado pela omnipresença e utilização da recolha de dados. E desta vez, embora com menos clamor mediático, a China e o Ocidente encontram-se perfeitamente alinhados. De facto, em 2018, surgiram escândalos, sobre o processamento de dados por aplicações ou empresas que exploram o tráfego de dados das redes sociais. O escândalo da Cambridge Analytica viu os dados de cinquenta milhões de utilizadores americanos utilizados pela consultoria para fins eleitorais. Descobriu-se que, através da compra e venda de dados, a empresa Cambridge Analytica utilizou informações de perfis do Facebook para realizar uma campanha direccionada e personalizada, capaz de mover vários votos na corrida eleitoral para a presidência americana. O escândalo pôs em crise tanto o Facebook, cuja política de privacidade de dados demonstrou ter múltiplas falhas, como a Cambridge Analytica, que faliu pouco tempo depois. Também em 2018, do outro lado do mundo, o WeChat foi acusado de entregar enormes quantidades de dados e o pedido permitiria observar em tempo real dados sobre a quantidade de pessoas no mesmo local. Desta forma, a polícia pode avaliar se certos grupos podem ser “peculiares” e, portanto, potencialmente perigosos para a estabilidade social. Estas tendências têm frequentemente feito as pessoas clamar com o risco de um novo Big Brother. O seu sistema de aplicação de “reprovação” está agora muito avançado. Existe sempre um lado enigmático quer no WeChat, quer nas redes sociais ocidentais e com um discurso geral sobre a importância dos Grandes Dados na nossa sociedade actual. A China e o Ocidente há algum tempo que chegaram à mesma conclusão de que os dados são a verdadeira riqueza da nossa era. Os dados são utilizados para alimentar algoritmos e inteligência artificial, para prever comportamentos graças às redes neurais e, utilizando dados, qualquer país pode controlar o povo da melhor forma possível, e no Ocidente, as empresas e os partidos acreditam que podem controlar os prazos eleitorais, colocando o próprio conceito de democracia em grave crise. Sabemos que, os americanos e europeus atribuem grande importância à defesa da sua privacidade. Mas talvez nem todos os cidadãos americanos e europeus saibam que ao darem o seu consentimento à geolocalização de algumas aplicações (tráfego, clima, para medir as suas actividades físicas) os seus dados são analisados e revendidos aos interessados em “traçar o perfil” de futuros clientes. Ou para aqueles interessados, por exemplo, em investir num sector em vez de outro ou para que alguém vote em vez de outro (então e a democracia de que tanto se fala?). Em 2018, as investigações jornalísticas revelaram apenas que dados sobre os movimentos físicos de milhões de americanos, registados por várias aplicações, foram vendidos a terceiros. Num mundo que parece estar a caminhar cada vez mais para um novo bipolarismo, no entanto minado por potências regionais de diferentes forças, a China e os Estados Unidos serão os países que irão competir pelo desafio tecnológico global e pelos nossos dados, influenciando o resto do planeta. A tendência actual é extraordinária, porque o chamado “capitalismo de vigilância” está a aproximar de forma impressionante as duas grandes potências mundiais. A China e os Estados Unidos estão a apontar o caminho que será seguido pelos restantes países. A diferença entre o modelo chinês e o modelo americano/ocidental é de que no nosso mundo, os dados são geridos por empresas que os utilizam para fins privados, enquanto na China é o Estado que tem a informação dos seus cidadãos. Embora estes dois tipos de gestão de dados não sejam tão díspares na realidade. Por exemplo, muitas empresas americanas têm sido acusadas de fornecer os seus dados às autoridades governamentais. Agora, tentemos fazer um esforço imaginativo de que todos os dados que podem ser recolhidos chegarão de facto àqueles que estão interessados em os ter. Imaginemos que chega a um Estado, mesmo através de empresas privadas. E imaginemos que, através desses dados, o Estado pode decidir como organizar a nossa vida, satisfazendo as nossas necessidades, desenvolvendo outras, a partir do território circundante.