A saúde mental e o sexo

[dropcap]D[/dropcap]ia 10 de Outubro celebrou-se o dia da saúde mental. Foram imensas as publicações que trouxeram alguma consciência para o tema. Até poderia parecer que o sexo não tem nada a ver com isso, mas tem bastante.

Até 1973 a homossexualidade fazia parte do manual de doenças psiquiátricas, e até 1992 ainda se considerava uma doença pela organização mundial de saúde. A sexualidade humana está envolta em muitas amarras ideológicas, heteronormativas, que criam limites de um suposto normal e de um suposto desviante, ou psicopatológico. Uma vida de não-conformismo com uma visão do sexo e género tradicionais, exige uma luta constante por legitimidade, visibilidade e normalização. Não é por acaso que muitos estudos mostram a maior prevalência de ideação suicida em jovens LGBTQI. A forma como as sociedades ainda não acolhem a diversidade sexual traz consequências sérias à subjectividade. Um desajuste que ainda é fonte de conflito e de mau-estar. O problema não é o não-conformismo, o problema é que os outros não sabem ainda recebê-lo.

Neste dia da saúde mental não basta pensar nas psicologias fora da norma, mas nas condições que fazem com que sejam entendidas como tal. Sou eu que estou mal? Ou são os outros que não conseguem receber-me?

Alguns académicos defendem a inclusão da sexualidade nos modelos de saúde e bem-estar. Principalmente porque o sexo como prazer não é elaborado o suficiente. A literatura mostra os benefícios do sexo para a saúde mental, como por exemplo, no alívio do stress, na criação de auto-estima e no processo de vinculação com o outro. O sexo está no meio do que julgamos intimidade e relação. Mas raramente vemos esse tipo de discurso nos canais oficiais – normalmente vemos o foco no sexo, como procriação, e na prevenção de comportamentos de risco. Discursos oficiais também podiam explorar o sexo como potencial mecanismo para reestruturar as nossas emoções e vivências se existir aceitação identitária e sexual – que é tanto um processo individual como relacional. De novo, as psicologias dependem tanto do que acontece dentro de nós, como com o outro-macro-ecológico que perpetua significados do que é expectável ou não. O sexo está no centro destas dinâmicas.

Queria, contudo, ressaltar que, ao fomentar um discurso em que o sexo é tudo de bom, e que as pessoas saudáveis se entregam ao prazer com mais regularidade, corremos o risco de excluir a assexualidade como uma forma, igualmente saudável, de se viver. Quando se tenta relacionar o sexo e o bem-estar é necessária uma gestão e análise cuidada dos limites que se criam e se re-criam do que deve ser normal ou não: e como se inclui ou se exclui certas vivências.

O sexo como objecto social e como experiência vivida ajuda a propor uma visão integrada do bem-estar. A saúde mental ainda tenta dicotomizar o mundo entre normalidades e desvios, sem olhar para os espectros do bem-estar de forma contínua, tal como a sexualidade tenta propor. Só fazendo uso de uma visão integrada destas dinâmicas é que conseguimos dar resposta ao desafio de se estar neste mundo de diversidades e adversidades, onde a normalidade é continuamente, e felizmente, contestada.

13 Out 2020

Juiz de fora

[dropcap]O[/dropcap] Artigo 87 da Lei Básica de Macau estipula que esta Região Administrativa Especial pode contratar juízes estrangeiros. Em Maio deste ano, celebrou-se uma cerimónia para assinalar a contratação de dois juízes de outras nacionalidades.

O Artigo 82 da Lei Básica de Hong Kong ( HKBL) aponta no mesmo sentido. O Hong Kong Court of Final Appeal (HKCFA) pode convidar juízes de outras jurisdições onde seja aplicada a common law, sempre que necessário. O HKCFA indicou Lord Patrick Hodge como juiz não permanente, baseado neste artigo da HKBL.

A comunicação social de Hong Kong anunciou esta contratação e publicou os antecedentes pessoais e profissionais do juiz no passado dia 5. Hodge é escocês e tem 67 anos. Formou-se em Direito em 1983. Foi nomeado para o Queen’s Counsel em 1996 e para o Supremo Tribunal do Reino Unido em 2013. Assumiu o cargo de Vice-Presidente do Supremo Tribunal em Fevereiro de 2020. Hodge é ainda Professor Honorário da Universidade de Stellenbosch, na África do Sul, e da Faculdade de Ciência Política e Direito da Universidade de Xangai e lecciona nas duas Universidades. Hodge participou na reforma administrativa do sistema jurídico escocês entre 2006 e 2008 e fundou o Scottish Court Service. A avaliar pelo curriculum, Hodge possui uma experiência substancial, quer em tribunal, quer a nível administrativo e pedagógico. Em termos gerais, tem uma experiência muito alargada e bastante rica.

A Chefe do Executivo de Hong Kong, Carrie Lam, afirmou que Hodge é altamente considerado e tem uma excelente reputação. A sua integração vai ajudar a reforçar a confiança na independência do sistema jurídico de Hong Kong. Carrie Lam acredita que Hodge pode dar uma excelente contribuição para o HKCFA.

A fim de implementar o Artigo 82 da HKBL, e de acordo com o regulamento do Hong Kong Court of Final Appeal, é fornecida uma lista de juízes não permanentes de Hong Kong e de outras jurisdições onde é aplicada a common law. Existem actualmente na cidade quatro juízes não permanentes de Hong Kong e treze juízes não permanentes de outras jurisdições. Geralmente os juízes não permanentes de Hong Kong são patrocinados por juízes permanentes que se retiraram do HKCFA. Os juízes não permanentes de jurisdições onde vigora a common law são nomeados de acordo com as suas especialidades nessas jurisdições.

Depois de Hodge ter aceitado a sua nomeação, o número de juízes não permanentes de outras jurisdições subiu de 13 para 14. Os julgamentos levados a cabo no HKCFA, são presididos por cinco juízes, que incluem o Presidente do Tribunal, três juízes permanentes, um juiz não permanente de Hong Kong e um juiz não permanente de outra jurisdição. Todos os magistrados emitem o seu parecer e a decisão é tomada após votação.

Como já referi, o HKCFA selecciona os juízes não permanentes de outras jurisdições de acordo com as suas especialidades. Segundo a informação divulgada pela imprensa, Hodge é especializado em direito civil e em direito comercial.

Esta integração permite que juízes estrangeiros julguem casos locais. Não é um procedimento habitual na maior parte dos países. Quando as Leis Básicas das Regiões Administrativas Especiais foram elaboradas, o Governo chinês caucionou esta tradição de Hong Kong. Demonstra que o Governo Central quer implementar a política “um país, dois sistemas” e mantém o estado de direito quer em Hong Kong quer em Macau, o que é fantástico.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
12 Out 2020

O regresso de Sócrates

[dropcap]O[/dropcap]s portugueses estão fartos de ouvir falar de José Sócrates, uma criatura que subiu das irregularidades na Câmara Municipal da Covilhã com projectos na mão que eram autênticos mamarrachos que nenhuma edilidade do mundo aprovaria até à cadeira de primeiro-ministro deste Portugal endividado até ao tutano. Especialmente as dívidas monstruosas que três gerações futuras irão pagar no que respeita às escandalosas Parcerias Público-Privadas (PPP) que tanta tinta corruptiva fez correr. As PPP de Sócrates são um escândalo e ainda bem que foi preso por alegados crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e mais umas dezenas de acções criminosas, antes que a criatura avançasse para mais pontes sobre o rio Tejo, TGV e aeroportos. Um megalómano que soube enriquecer possivelmente devido às notas que caíram com a chuva nos seus terraços habitacionais, em especial o de Paris, onde gastou milhões só para remodelar o imóvel adquirido num dos bairros mais chiques da capital francesa. As PPP’s são um dos maiores cancros da nossa economia e que irão levar anos e anos para serem pagas. Uma mina para os amigos de Sócretes, uma criatura tão poderosa no expectro sócio-políItico-judicial que o seu julgamento talvez seja realizado se um dia Portugal passar a ser uma região autónoma de Espanha…

E a que propósito estamos a escrever sobre o medíocre veraneante da Ericeira? É que na semana passada assistimos a um escândalo no seio do governo e da Presidência da República que deixou o país atónito. Vítor Caldeira era há 25 anos o presidente do Tribunal de Contas. Um homem de bem, profissional exímio, um exemplo de transparência e independência, mas… que de vez em quando lá estava Caldeira a criticar certas decisões do governo socialista, o que em democracia é absolutamente saudável. O Tribunal de Contas não foi criado para ser um yes man do governo, antes pelo contrário. Este organismo tem a obrigação de velar pela seriedade das acções governativas e indicar todas as lacunas que as despesas oficiais possam apresentar. Mas em Portugal tudo é diferente. Quem não está com o poder, leva… já dizia há muito o ex-ministro socialista Jorge Coelho. E desta feita, o primeiro-ministro, António Costa, refastelado no cadeirão do seu gabinete do palácio de São Bento, pegou no telefone e vai daí:

– É o senhor presidente Vítor Caldeira?
– Sou sim, senhor primeiro-ministro! Faz o obséquio de dizer…
– É para lhe dizer que já não o reconduzo no lugar. Termina aqui o seu trabalho…
– Mas?!… Está lá?!… Estou?!

A notícia correu célere. O exemplar presidente do Tribunal de Contas tinha sido demitido por telefone, atitude nada cordial. As conjecturas não se fizeram esperar, nomeadamente a mais triste e incómoda para quem chefia um governo que diz respeito aos milhares de milhões de euros que aí vêm a caminho oriundos da União Europeia para fazer frente aos mais diversos e espampanantes projectos e adjudicações que nunca poderão ter a adversidade do Tribunal de Costas. Obviamente, uma conjectura grave.

Entretanto, rapidamente o primeiro-ministro anunciou o substituto de Vítor Caldeira. Pior a emenda que o soneto. Uma escolha que recaiu num socratino. José Tavares é dado pela Polícia Judiciária como muito próximo do ex-secretário de Estado de José Sócrates, Paulo Campos, um dos principais suspeitos nas investigações às PPS’s e que sempre foi o braço-direito de Sócrates nos chamados cambalachos com o venezuelano Hugo Chavez e o líbio Muhamar Kadaffi. José Tavares é mencionado no inquérito às Parcerias Público-Privadas, caso onde se investigam prejuízos de cerca de 3,5 mil milhões de euros para o Estado, numa alegada prática de corrupção e de outros ilícitos criminais. A proximidade entre Paulo Campos e o novo presidente do Tribunal de Contas é atestada com diversos emails trocados entre o ex-secretário de Estado de Sócrates e José Tavares, então director-geral do Tribunal de Contas, em 2009 e 2010. José Tavares terá inclusivamente participado em reuniões secretas com o governo de José Sócrates para tentar contornar o chumbo que os próprios juízes conselheiros do Tribunal de Contas fizeram a quase todos os contratos das subconcessões rodoviárias lançados pelo então ministro Mário Lino e Paulo Campos.

E os mais diversos políticos da oposição e o povo observador destas temáticas políticas em geral perguntam-se como pode existir tão pouca seriedade ou tanto compadrio na nomeação de um cargo de suma importância para uma governação transparente e profícua. Lá diz o ditado que à mulher de César não basta ser séria, há que parecer…

*Texto escrito com a ANTIGA GRAFIA

12 Out 2020

Plano Director II – Centro, para que te quero?

[dropcap]F[/dropcap]oi apenas no último quartel do séc. XX que se iniciaram infra-estruturas na Europa que permitiriam a necessária e efectiva reabilitação das qualidades que são intrínsecas ao centro das cidades, entretanto exaustos ou abandonados. Nomeadamente o estabelecimento de transportes colectivos de condução automática e generalizada à periferia, inclusivamente aos aeroportos, e que levariam os residentes a prescindir da utilização de automóveis próprios na cidade.

A tarefa enfrentou dificuldades semelhantes à de levar no passado o caminho de ferro ao centro de cidades já consolidadas, todavia em cidades já maiores, mais consolidadas, mais densificadas e mais intensificadas.

Foi essa a génese das linhas expresso de metropolitano urbano e suburbano, escavadas mais fundo às já existentes, que teriam estações de correspondência no centro da cidade e onde necessariamente foram sacrificados quarteirões para construção dessas estações e de instalações auxiliares ou complementares.

Foi também quando os transportes colectivos passaram a ser planeados em modo “seamless”, i.e. contínuo, com ligações de correspondência cómodas e resguardadas da intempérie.

Foi para isso que se demoliu em 1971 o mercado Les Halles no centro da cidade de Paris e se lançou mais tarde mão à obra de Potsdamer Platz em Berlim em 1990, imediatamente à reunificação da Alemanha e à queda do muro, e que foi considerada o maior estaleiro que a Europa alguma vez conheceu.

Ou seja, os castros históricos da cidade poderão permanecer imutáveis, mas os centros da cidade contemporânea não. Ou se aperfeiçoam dia a dia, ou se degradam também dia a dia.

À escala de Macau já se efectuaram duas intervenções semelhantes, uma no Tap Seac, outra na Praça Ferreira do Amaral, mas onde muito pouca coisa concorreu nessas oportunidades.
No caso de Berlim sequer foi necessário empreender demolições, pois a Segunda Guerra Mundial se encarregara disso. Potsdamer Platz era por onde o muro de Berlim passava e onde toda essa cintura fora limpa de destroços no pós-guerra, mas não foi reconstruída, para vigilância e segurança da nova linha de fronteira.

Mas é também em Berlim onde melhor se percebe o que o centro significa para uma cidade, exactamente por via de dele ter sido privada.

Com a divisão no pós-guerra do território alemão e da sua capital pelas forças aliadas, apenas a França, a Inglaterra e os Estados Unidos aderiram a que as suas ocupações integrassem o mesmo novo estado alemão.

A repercussão disso em Berlim foi que apenas os sectores da cidade ocupados por esses aliados se unificassem e pertencessem ao novo estado Alemão Federal, todavia separados do sector soviético da cidade, o qual tinha continuação para o território do outro novo estado alemão a que pertenceu, a Alemanha Democrática.

A questão releva porque o centro de Berlim estava no sector soviético e aí permaneceu como o centro de Berlim, capital da República Democrática Alemã. Os sectores francês, inglês e americano eram constituídos por periferias da cidade original, e passaram a relacionar-se entre si como troços de uma cidade sem centro, e onde lugares junto ao muro, outrora bairros de prestígio muito perto do centro, como Potsdamer Platz e Kreuzber, passaram a ser as traseiras de uma cidade nova.

Daqui também se extrai que Berlim Oriental teve condições para ser a capital da República Democrática Alemã, mas Berlim Ocidental não teve condições para ser a capital da República Federal Alemã.
Mais ainda releva o facto de que foi nestas mesmas condições que o município de Berlim Ocidental geriu urbanisticamente a cidade, durante mais de 50 anos, sem cuidar de a resolver.

Efectivamente a sanação dessa situação não passava por planeamento urbanístico ou por reordenamento territorial. Passava antes por restabelecimento de outras condições cuja base não era de ordenamento territorial, todavia necessárias para que planeamento urbanístico se cumprisse com sentido.

No mesmo ano de 1990 em que as repúblicas alemãs se reunificaram e o muro de Berlim caiu, a obra de Potsdamer Platz foi imediatamente lançada e essa foi a oportunidade e o principal instrumento que serviu para “coser” o tecido urbano original, reunificando e reapetrechando.
Efectivamente retirar ou desactivar o centro de uma cidade é o mesmo que desorganizar, desarticular ou descomandar um organismo.

Por outro lado, o oposto, i.e. o excesso de concentração e de intensificação dos centros, e que se designa pode macrocefalia, por analogia ao que acontece com outros organismos, poderá ser outra forma de disfuncionalidade, se os instrumentos necessários para essa gestão não estiverem disponíveis, não produzirem resultados eficazes ou forem desproporcionais aos recursos do território.

Nessas situações poderão prosseguir medidas de descentralização, que não passa por repetir o centro, antes de intensificar outros centros de hierarquia inferior ao abrigo da “teoria dos lugares centrais”, ou especializar esses centros, sendo que existiram sempre funções que são reservadas ao centro que se encontra no topo dessa hierarquia.

É também assim que se administram estruturas governamentais, nisso o ordenamento territorial não é muito diferente, pelo que não é difícil obter o mesmo entendimento por parte de quem governa territórios.

O Projecto do Plano Director apresentado para a RAEM caracteriza-se por “Um Centro, Uma Plataforma, Uma Base” e propõe o uso de “portais”, “centros modais”, “cinturas” e “núcleos” para criar a nova estrutura espacial urbana.

Esses termos preenchem o que se descrevem atrás a respeito de ligações com outras regiões (portais), especialização articulada de centros (núcleos e centros modais), assim como novas acessibilidades, se bem que só periféricas (cinturas). Nada se menciona a respeito do centro que organiza, articula, norteia ou comanda todo este organismo.

As designações utilizadas são “Centro Mundial de Turismo e Lazer” que antes corresponde a uma especialidade extensível a toda a Região Administrativa Especial, “Centros Modais de Cooperação Regional”, todavia todos localizados na periferia e “Centro Histórico” incluído na zona consolidada da península de Macau, para a qual não foi definida nenhuma estratégia.

É isso o que reveste o projecto de Plano Director mais em sentido de Plano de Urbanização de novas zonas, e menos de Plano Director de toda a região.

O projecto contempla que se preservem as actuais zonas comerciais concentradas na Avenida de Almeida Ribeiro e na ZAPE, destinadas essencialmente às actividades de comércio e serviços, nomeadamente as actividades comerciais, os escritórios, as actividades financeiras, de retalho, de restauração, de convenções e exposições, entre outros.

Tudo funções que caracterizam um CBD (Central Business District), mas nada sobre a sua intensificação, o seu reapetrechamento ou a sua actualização como centro de um organismo com um novo desenvolvimento urbano. Ou seja, algo que evolui em sentido de microcéfalo, de que não se conhece exemplo em urbanismo.

A medida mais sugere ser temporária, e que esse centro passe entretanto a ser noutro local, ou sequer na RAEM, e que o actual centro só não será para implodir porque incluiu um centro histórico classificado património mundial.

O mesmo é dizer que o actual centro evoluirá em sentido de castro histórico, mas isso também não prescinde de dever ser funcionalmente e acessivelmente apetrechado, por não é exclusivamente arqueológico ou museográfico.

Mesmo que a intenção seja de entregar o centro e os bairros antigos à estratégia económica neoliberal, que foi o modo mais generalizado como as cidades conseguiram conduzir renovação urbana no passado recente, essa massa económica carece de apetrechamento e de interfaces.

A pergunta simples, com alcance de aperfeiçoamento de Plano Director, é:
– À chegada a Macau, para onde se vai apontar o sinal de “centro”, e como lá se chega?

11 Out 2020

Como um farol

[dropcap]H[/dropcap]abituamo-nos a saber que certos faróis dominam as encostas da terra. Lá em cima uma luz que aclara o tempo. Que tem tanto de meteorologia como de calendário. E avisa quem vem lá. Senão o farol, o sino de uma torre, um quebra-luz. Um tambor. Uma bandeira.

Henrique de Senna Fernandes representava o domínio de toda uma comunidade sempre com relutância em distinguir de onde vinha. Senna Fernandes era, por inteiro, a peça que unia o labirinto. Que o endireitava e lhe aprumava as pétalas, elevando as suas rosas. A sua presença abraçava toda a ideia de um passado. De uma regra de partilha que culminava na união entre os povos. E o mundo fez-se assim. Mais completo. Como quem olha para o Céu e diz: “Só mais um bocadinho”. E esse bocadinho durou 87 anos menos dez dias.

Henrique de Senna Fernandes nasceu em Macau, no dia 15 de Outubro de 1923. Na mesma volta da Terra nascia em Cuba o escritor italiano Italo Calvino. O filósofo francês Michel Foucault viria ao mundo exactamente três anos depois. Isto para quem quer acreditar na precisão dos astros, que ditam a personalidade do ser humano e lhe definem o rumo. O que é certo é que todos elegeram a escrita como o seu dever no mundo.

Dentro de Senna Fernandes, um rumorejar de realidades diversas que se escreveu nas entrelinhas da herança ancestral portuguesa, goesa e chinesa, que já se prolonga por dois séculos e por muitas gerações.

Foi essa álgebra que equacionou e definiu os passos de uma criança e o pôs a crescer num enclave tropical onde a portugalidade moldou a essência do cenário. Uma cidade calma, onde a vida simples acontecia e os governadores desembaraçavam os éditos directamente do seu palácio.

Henrique crescia na Praia Grande repleta de juncos e vapores alimentados nos despojos das caravelas. O mar a bater em território intocado ainda sem aterros, sem a abrupta mão do homem. Do outro lado, o interior, a viagem para a China, a pequena distância, na pega de uma tancaneira, com passagem fugidia pela Rua da Felicidade, onde outros sentidos se consumiam.

O ardor pela escrita começou cedo, aos 11 ou 12 anos, que anunciavam o despertar da puberdade e o remate da inocência. Do pai recebeu a amizade das letras, com o sabor dos livros que lhe despertavam a imaginação e o levavam para bem longe da sua península, nessa altura sem pontes e sem extensões. Aí disciplinou a sua ânsia e alongou o seu mundo.

Antes do liceu, a atenção de um professor exaltou-lhe as ideias, incitando-o a aprender mais, a ler com entusiasmo e a procurar enredos e esclarecimentos para a vida que badalava como sinos. Depois, a escrita mais a sério, desenfreada, a rabiscar cadernos com histórias que o encantavam. Normalmente com raparigas, que desde pequeno enfeitiçaram o seu traço, definindo toda a trama da sua literatura ainda por nascer.

No pano de fundo uma guerra. O Japão a assolar Hong Kong. A família a perder a prosperidade e a escrita a tornar-se o esconderijo de uma brincadeira muito mais séria. O seu olhar atirado para os outros a indagar os seus actores. À procura de falas e de amores proibidos, que lhe acercavam a alma. A misturar vivências, juntando os discordes da sociedade. Entretendo-se com eles, atirando-os ao ar, deixando-os a fermentar dentro de um baú, que se foi enchendo com os seus contos que revelavam muito mais do que uma juventude, formando, daí para a frente, uma personalidade que foi aprendendo a caminhar à sombra das suas personagens. Marinheiros, dançarinas, homens das leis. Outros fora delas.

Depois chegou a vez de Portugal, com o seu inusitado deslumbramento. Anos complicados em Coimbra, a debater-se com as intransigências de um mal amado curso de Direito, mas imprescindível para o seu futuro. Colega de Agostinho Neto, Carlos Wallenstein e do seu conterrâneo Carlos d’Assumpção, que com ele partilhava a ilustre ascendência bem-nascida em Macau. Desse período ficou o espanto e o júbilo das raízes portuguesas. Mais tarde conseguiu formular sentimentos aglutinando as suas duas origens, dizendo: “Se Portugal é a minha pátria, Macau é a minha mátria”, sempre com ironia por uma coisa que só se pode rever nas nuvens do céu. Senna Fernandes, apesar de tudo, sabia de onde vinha e conhecia o lugar para onde ia, porque aí tinha nascido.

De regresso ao território macaense o Direito deu-lhe a subsistência. Com escritório aberto na Almeida Ribeiro pôde delinear o seu rumo com pleno à vontade. A advocacia dava-lhe a liberdade financeira para construir os seus castelos e as suas princesas. Amante da boa vida, partiu para uma carreira dada a experiências e ensinamentos, formando no seu cargo de professor na Escola Comercial Pedro Nolasco – onde seria também director – os andamentos de centenas de macaenses e estudantes da sua língua-mãe. Lugar onde não faltaram os preceitos que nenhum compêndio sabia descrever. Conhecimentos de uma vida de muitos degraus que complementaram com dedicação a educação dos seus filhos.

À parte, ao sabor das ventoinhas no tecto, a sua escrita ganhou toda a consistência. Nos livros plantou os seus amores, a memória de desejos fugazes e proclamou a paixão assolapada pelo ente feminino que o ajudou a definir como nenhum outro a ambivalência do ser macaense com os seus intricados enredos apaixonados que envolviam orgulho, saudade e esperança. Do seu engenho saltaram “Nam Van” e “Mong-Há”, ambos livros de contos, e os seus mais brilhantes “Amor e Dedinhos de Pé” e “A Trança Feiticeira”, que ganharam o galardão de ingresso na grande tela do cinema.

Figura interventiva na sociedade de Macau, o escritor macaense – distinção que se deveria escrever sempre com maiúscula – nunca deixou de apontar o dedo à ineficácia de Portugal na elaboração de um plano de futuro para o território, que deixava passar os seus governadores como quem mudava de casaco, nunca se importando certeiramente com os alicerces da casa que foi construindo.

A família Senna Fernandes, apesar de alguns receios, acreditou sempre em Macau e aqui continuou a viver depois da passagem de testemunho para a China, país que nunca deixou de abraçar a figura da comunidade macaense como vínculo cravado na história e modelo de uma cultura única no mundo, de tolerância pacífica e interligação memorável. Da qual Henrique Senna Fernandes, para além das palavras que o tornaram eterno, foi o verdadeiro paradigma. No Homem, na compreensão e na herança que deixa.

Senna Fernandes foi dignificado quatro vezes pela administração portuguesa, recebendo a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique (1986), a Medalha de Mérito Cultural (1989) e a Medalha de Valor (1995), concedidas pelo governo de Macau, e o título de Grão-Oficial da Ordem de Sant’Iago de Espada, recebido das mãos do presidente Jorge Sampaio, em 1998. Seria ainda agraciado, já pela administração chinesa, com a Medalha de Mérito Cultural (2001) e com diversos títulos Honoris Causa, que confirmaram todo o carinho e importância concedidos pelas gentes da sua terra.

O advogado e escritor deixou viúva, sete filhos, nove netos e dois bisnetos. Senna Fernandes deixa também obra inacabada e uma imensa saudade em todo o fulgor expressivo de Macau, que do lado de lá da sua encosta nunca deixará de iluminar. Como um farol, o sino de uma torre ou um tambor.

11 Out 2020

Henrique, a palavra – sempre

[dropcap]U[/dropcap]m dia ante a solicitação de resumir a literatura francesa do seu tempo, André Gide pensou e concluiu: “De nós todos, só ele sobreviverá”. Falava de George Simenon, o autor de mais de cem livros, quase todos do género policial, criador da figura do inspector Maigret, mais vivo e real na sua enticidade do que quantos personagens por esse mundo fora… O autor dos “Faux monnaieurs”, referia-se ao génio do contador de histórias.

O que nós queremos da literatura é o mesmo que queremos da vida: aventura, romance, grande história no cenário de magníficas paisagens.Se me dessem a regalia de levar um só livro para um longo degredo no deserto, por isso levaria, por certo, “As Mil e uma Noites”…

Eis a chama que nos fascinava em Henrique de Senna Fernandes – arquivo vivo e inesgotável de histórias, episódios, personagens da comédia humana da velha Macau, que sobrevivia para nosso deleite ao fluir refulgente do seu verbo evocador, arauto de uma retentiva de memórias que lograva a alquimia de tornar presente o “morto” passado. Ouvi-lo era como estar nos coxins de Haroum Al-laxide, fascinados sem cansaço com a narrativa hipnótica de Sherazade… por mil e uma noites.

A primeira vez que o encontrei, no seu escritório da Almeida Ribeiro, ia para o convidar para escrever para a Revista de Cultura do ICM, e passaram-se cinco horas como cinco minutos… Nasceu aí a minha grande paixão, o meu primeiro fascínio por Macau. Henrique era assim, era isto, que é raro – encarnação da alma de um lugar. A força jorrante do seu verbo evocativo, de tão densa e impaciente de exprimir-se, embargava-lhe momentaneamente a voz, mas isso mesmo tinha o poder de mais nos empolgar a atenção, à vivacidade e fluência, nos seus assomos expansivos e suspensões mágicas.

Henrique, meu amigo, obrigado por nos ter deixado para a eternidade o retrato dessa “Macau eterna”, uma Macau que te antecedeu mas não no olvido letal, porque se perpetua nas tuas obras escritas. Henrique, “o contador de histórias”: Ficará, para sempre aqui, no coração da cidade uma praça vazia e uma cadeira vazia, à espera da tua voz.

Repeti agora as palavras de admiração (e despedida já…) que te disse em público e tive a graça de serem por ti ouvidas:

Henrique, meu Amigo, és o símbolo vivo, e o derradeiro, dessa Macau eterna, porque essa esvai-se, esbarronda-se todos os dias sob nossos olhos. E é quando os tempos nos encenam espectáculos como este, que nós mais valorizamos a Memória, intangível fio que entretece os fragmentos do tempo, nos alicerça a identidade que nos salva de perecermos nas vagas letais, de nos descaracterizarmos em amnésias esquizofrénicas.

Serás, Henrique, talvez, o abencerragem simbólico daquela Macau eterna… Serás…
Mas venha o que vier, por mais espalhafatoso em arquitecturas, mais embasbacante em números e estatísticas, mais engordado em tamanhos que não em grandeza – aquela Macau sempre nos contemplará do mais alto firmamento, sempre mais alta e sublime que arranha-céus e orçamentos, porque foi projecto universal de quem sonhou, com ela e através dela, a unidade essencial do género humano, as famílias humanas todas em ecúmena fraterna.

11 Out 2020

Onsen

[dropcap]É[/dropcap] quase meia noite a aproveito os últimos minutos do banho termal no terraço do hotel, com desafogada vista para o mar e até para o célebre portão de um dos mais simbólicos santuários xintoístas do Japão, a erguer-se sobre águas tranquilas e sob estrelas luminosas e um brilhante quarto crescente, mas coberto pela estrutura protectora das obras de renovação em curso, coisa para durar uns dois anos, tal a delicadeza do objecto. O tanque de água quente onde me estendo é pequeno mas suficiente, que o hotel tem nestes dias procura limitada e os banhos escassa utilização. Mesmo com os simpáticos descontos proporcionados pela campanha de subsídio ao turismo interno implementada no Japão, o confortável hotel normalmente bastante caro tem pouca gente e foram raros os outros hóspedes que encontrámos, mesmo no acolhedor restaurante do estabelecimento, onde de resto tivemos oportunidade de degustar tranquilamente magníficas iguarias locais.

Há muito que não viajava, naturalmente. Coincidências das vidas pessoal e profissional tinham feito de 2019 ano de inusitada movimentação, durante o qual calhou estar em 10 países da Europa e da Ásia, mesmo não contando com escalas em viagem, coisa inédita e que certamente não se repetirá nos futuros previsíveis.

Mas há farturas que acabam por dar em fome, por assim dizer, e 2020, o ano da grande pandemia global, é todo o contrário: tempo de fronteiras fechadas, grandes restrições à mobilidade international e algumas condicionantes às deslocações internas, hotéis fechados, restaurantes em crise, enfim, toda a soberba indústria das viagens e do turismo subitamente encerrada e sem soluções à vista. Também eu, naturalmente, passei o ano entre a casa e o emprego, ainda que fosse dos privilegiados que mantiveram o trabalho (e o rendimento) em pleno – ou até mais, na realidade.

Este foi então um tranquilo regresso à tranquilidade do “onsen”, o banho japonês com tradição milenar num país onde as nascentes de água termal são incomparavelmente mais abundantes do que em qualquer outro lugar. Ainda que haja nascentes a correr livremente na natureza, a maior parte dos banhos utiliza fontes naturais integradas em unidades hoteleiras. A maioria são os “ryokan” japoneses, de quartos amplos e preparados para o serviço de refeições, o chão em tapetes “tatami” e as camas em tradicionais “futons”, uma espécie de saco-cama. Mas há cada vez mais hotéis “convencionais”, com quartos e camas ao estilo europeu, que também oferecem serviço de banhos termais. Desta vez ficámos alojados algures a meio-caminho: um quarto com cama em estilo europeu e refeições em restaurante mas tapetes “tatami” e espaço suficiente para entreter uma hóspede com 3 meses de vida e a inerente volatilidade de humores, na sua primeira pequena viagem. O banho, em todo o caso, segue as estritas regras da etiqueta japonesa: ambiente recatado e silencioso a convidar à introspecção, separação dos balneários por sexo, nudez total e lavagem dos corpos antes da entrada na água, lugar de meditação e não de lavagem. Neste caso, havia também banho ao ar livre, vista magnífica e ninguém por companhia – um regresso paradisíaco a ambiente tão tradicional do Japão.

Este regresso à actividade turística no Japão vai-se fazendo com também com tranquila lentidão, à falta de alternativas razoáveis. Com o país ainda fechado à mobilidade internacional (com muito raras excepções), é o turismo interno que vai vagamente animando a economia de um sector em agonia que se prevê prolongada.

Há subsídios do governo para promover o turismo que tornam os preços bem mais apetecíveis mas há também uma cultura generalizada que impõe longas jornadas de trabalho e curtas férias (mesmo que isso pouco contribua para a produtividade da economia). Também há precauções generalizadas em relação a possíveis contágios, que o vírus está longe de estar extinto. Neste caso, apesar de se tratar de uma pequena ilha com fácil acesso (menos de 10 minutos de barco desde zona urbana), notável atractividade nacional e internacional e preços manifestamente baixos, o número de visitantes era baixo, não havia qualquer tipo de congestionamento e os riscos para a saúde pública eram mínimos.

Este modesto incentivo à recuperação do turismo centrada no mercado doméstico contrasta com o Verão europeu, onde se franquearam as portas à chegada de turistas internacionais, com mais ou menos restrições, mais ou menos atabalhoamento, mas em quantidades suficientes para se criarem congestionamentos diversos em transportes e respectivas infra-estruturas, incluindo estações e aeroportos, além de hotéis, restaurantes, bares e zonas centrais de animação estival. Não será a única causa mas certamente contribuiu bastante mais para o aumento do número de casos de infecções por covid-19 a que hoje se assiste em muitos países europeus do que para a recuperação das economias em geral ou do turismo em particular. Percebem-se mal os critérios europeus e a falta de aprendizagem com o que passa e o que se faz na Ásia, onde os contágios começaram com pelo menos um trimestre de antecipação. Tem sido assim desde o princípio desta pandemia. Uma lástima.

9 Out 2020

Plano Director II – Centro, para que te quero?

[dropcap]N[/dropcap]o ordenamento territorial da tradição ocidental, que se admite ser a matriz da cidade de Macau, e em aspectos em que a civilização chinesa sequer difere, a cidade não é um território de produção, mas a sua representação concentrada e centralizada, nomeadamente administrativa e económica, assim como o interface desse território que representa.

Não é por acaso que estados optaram por fixar, ou por relocalizar as suas capitais nos centros mais geométricos dos seus territórios.

Em causa está necessariamente a acessibilidade ao território que a cidade representa, de que serve de interface, e é daí que se retira o sentido da expressão que “todos os caminhos vão dar a Roma”.

Outras modalidades existiram em que as cidades não foram a representação económica e administrativa de um território de produção, mas o próprio território de produção.

Foi isso o que caracterizou o ordenamento territorial das civilizações maia, asteca e khmer, mas também condição que autores Costanza, Graumlich, Steffen, Tainter e Turchin, entre outros, atribuem ter resultado em incapacidade urbana de lidar com o crescimento e com a mudança, e o subsequente declínio e extinção.

Foram efectivamente as tradições urbanas de alta densidade e de matriz grega e romana, que caracterizam o chamado Velho Mundo, que se revelaram mais capazes e mais resilientes, fazendo uso eficiente do espaço, atingindo recorrentemente a saturação, mas também desenvolvendo capacidade instrumental para lidar com o crescimento e a mudança, para se adaptarem e para evoluírem.

Chegados aqui, fácil é reconhecer que às cidades é intrínseco um sentido de espaço tanto de representação como de invenção, e é isso que nutre as componentes artísticas que as cidades tendem a desenvolver e pelas quais são conhecidas.

Por sua vez, as cidades são territórios que, só por si, também carecem da sua própria representação, a qual serve de interface com outros sectores da mesma cidade, assim como com as outras cidades, e a que chamamos “o centro”, onde designadas funções desejavelmente e necessariamente se “conCentram”.

No caso especial de Macau nunca existiu propriamente um território que Macau representasse, mas o centro de Macau sempre representou Macau, sem sombra de dúvida.

Muita da capacidade instrumental de que no passado foi necessário lançar mão não se prendeu apenas com o crescimento e com a saturação das cidades, mas também com a mudança de paradigmas nomeadamente de transporte, mas sempre persistindo ou prosseguindo a ideia de centro, que não necessariamente o castro histórico primitivo.

Efectivamente sempre foi grande a determinação de manter consolidada a ideia de centro de cidade, independentemente do que o centro representasse.

Tanto que, logo pela alvorada do transporte ferroviário, as estações centrais não foram construídas na periferia das cidades já consolidadas. Antes foram construídos viadutos, como também foram abertos túneis, para que o comboio chegasse ao centro das cidades, onde se contruíram elegantes “hotéis de gare”, geralmente pertencentes à mesma companhia concessionário do caminho de ferro, e de onde se rasgaram elegantes bulevares que conduziam à praça do município, “a sala de visitas da cidade”.

Se o transporte fosse o barco e não o comboio, a gare era então marítima, mas não se dispensava o hotel elegante junto à gare, nem o bulevar que conduz à sala de visitas da cidade”.

Foi isso que existiu em Macau. A gare marítima foi o cais 16, o hotel elegante foi o Grand Hotel (kok chai), o bulevar que se rasgou foi a Av. Almeida Ribeiro, e a sala de visitas o Leal Senado.

Mas também condições que atingiram nova saturação e necessidade de nova intervenção instrumental, senão por via novo paradigma, como aconteceu com o transporte aéreo. Aí as novas gares (os aeroportos) já se localizaram necessariamente na periferia.

O transporte urbano mais generalizado passou a ser o automóvel que rapidamente saturou as cidades. Aos aeroportos chegava-se predominantemente de automóvel ou de táxi. Para isso, existiam baias a que chamaram “kiss and ride”, onde se largavam e apanhavam os passageiros.

Poucas foram as cidades que cuidaram do acesso entre os aeroportos e o centro da cidade, como se cuidou na era do comboio.

Conjuntamente com outros factores, as lojas elegantes e as sedes comerciais de prestígio começaram a abandonar os centros das cidades, os hotéis aí existentes baixaram de categoria, os residentes passaram a ser de outro grupo socio-económico, em muitos casos a criminalidade instalou-se, e os centros outrora elegantes, passaram a ser lugares degradados.

A continuar…

9 Out 2020

As atividades antropogénicas e o decréscimo da biodiversidade

[dropcap]A[/dropcap]o longo dos cerca de 4,5 mil milhões de anos de existência do planeta Terra, as várias espécies animais e vegetais sofreram cinco grandes extinções em massa. As modificações que o clima tem vindo a sofrer ao longo do tempo desempenharam um papel importante em quase todas essas extinções. A grande exceção talvez tenha sido a última, que ocorreu há cerca de 66 milhões de anos, e foi atribuída ao choque de um asteróide com o nosso planeta.

A maioria destas cinco extinções em massa ocorreram ao longo de milhares de anos, sem qualquer envolvimento da espécie humana, pela simples razão de que ainda não existia.

A grande influência do Homem sobre a natureza começou no início do Holocénico (época geológica que está a decorrer), há cerca de 12 mil anos, quando foram dados os primeiros passos na agricultura, estimando-se que a população humana nessa altura não excedia cinco milhões. Antes de se dedicarem a esta atividade, os nossos ancestrais limitavam-se a ser caçadores-recoletores, ou seja, viviam da caça e da recolha do que a natureza lhes disponibilizava espontaneamente, na forma de sementes, frutos e plantas silvestres.

Acontece, porém, que a espécie humana tem vindo a aumentar, por vezes exponencialmente, e, como resultado disso, a natureza não se consegue recompor da degradação que desde então tem vindo a ser alvo.

Muitas espécies de animais e plantas têm vindo a desaparecer, e já se fala na sexta extinção em massa, atribuída a causas antropogénicas. Trata-se de um assunto controverso, mas a realidade é que o desaparecimento de muitas espécies tem ocorrido principalmente devido à caça e pesca exaustivas, destruição de habitats por fogos florestais e desflorestação acelerada para exploração pecuária e agrícola. A maioria das cinco grandes extinções ocorreu durante milhares de anos, enquanto que a que presumivelmente está a ocorrer se verifica apenas desde a Revolução Industrial, o que, em tempo geológico, não é mais do que a duração de um piscar de olhos. Desde então deu-se início a uma injeção anual de milhões de toneladas de gases de efeito de estufa na fina camada gasosa em que vivemos, a atmosfera, e de efluentes que são sistematicamente despejados nos rios, mares e oceanos, o que, certamente, tem contribuído para extinção de espécies a um ritmo cada vez mais acentuado.

O relatório Living Planet Report 2020, da World Wide Fund for Nature (WWF) é bem claro sobre a influência humana na biodiversidade. Esta organização recorre ao Índice Planeta Vivo (Living Planet Index – LPI) para contabilizar a perda da biodiversidade a nível global. Este índice dá-nos a medida do estado da diversidade biológica a nível global e é baseado nas tendências populacionais de espécies de vertebrados terrestres, de água doce e marinhos. Foi adotado pela Convenção da Diversidade Biológica (Convention of Biological Diversity – CBD) como um indicador do progresso de medidas eficazes e urgentes para deter a perda de biodiversidade. A evolução deste índice reflete o ritmo alarmante da perda da diversidade da vida na Terra, o que se traduz no declínio médio, entre 1970 e 2016, de 68% das populações de mamíferos, aves, peixes, répteis e anfíbios.

Esta é a grande preocupação dos que pensam, não no futuro imediato, mas no que será o nosso planeta, onde, a pouco e pouco, numerosas espécies da fauna e flora selvagens se vão extinguindo, havendo o risco de, num futuro não muito longínquo, restarem apenas escassos exemplares em reservas, parques e jardins zoológicos. A ocorrência, ou não, da sexta extinção em massa é ainda um assunto controverso, mas não há dúvida que o desaparecimento de espécies está a ocorrer a um ritmo muito mais acelerado do que em qualquer outra altura desde a extinção dos dinossauros e de outra megafauna, há cerca de 66 milhões de anos.

São cada vez mais frequentes os incêndios florestais não só na Amazónia, Pantanal (Brasil), Indonésia, Oeste Americano, Europa Meridional e Austrália, mas também em regiões onde não seriam previsíveis esses acontecimentos com tanta frequência e intensidade, como recentemente na Sibéria, Alasca e Região Ártica.

A extinção de espécies, causada pelo homem, é uma realidade que não podemos ignorar. As redes sociais e os meios de comunicação difundem com grande frequência imagens lancinantes de florestas e de cadáveres de animais calcinados, ou animais em agonia devido aos fogos florestais. As imagens obtidas pelo fotógrafo brasileiro Ueslei Marcelino são exemplos de testemunhos desta realidade, que alertam os mais distraídos para os dramas causados pelos incêndios. Uma delas, a de um pequeno macaco agarrando a mãe agonizante, faz lembrar a célebre escultura Pietá, de Miguel Ângelo. Segundo veterinários da cidade Porto Velho, capital do Estado brasileiro de Rondónia, esses pequenos animais foram atropelados ao fugirem de um incêndio na Amazónia.

O mais grave é que há governantes de grandes potências que contribuem para acelerar o desaparecimento irreversível de numerosas espécies. Apesar da grande resistência da maioria da comunidade científica, esses governantes têm vindo a demitir cientistas de postos importantes por estes discordarem das suas políticas. É o caso, por exemplo, do presidente do Brasil, que demitiu Ricardo Galvão, Diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) entre 2016 e 2019, pelo simples facto de ter divulgado dados sobre a desflorestação da Amazónia. Em contrapartida, a prestigiada revista científica britânica Nature apresentou-o como o primeiro de uma lista das dez personalidades mais relevantes para a ciência em 2019.
Ricardo Galvão, diretor do INPE (2016-2019)

Também o cientista Carlos Nobre, investigador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, em declarações à BBC News Brasil, desmentiu o que o presidente do Brasil afirmou no discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU, em 22 de setembro de 2020. Segundo Bolsonaro, a maioria dos incêndios na Amazónia são provocados por caboclos e índios, o que foi contrariado por Carlos Nobre, que afirmou serem os grandes agricultores os verdadeiros autores desses incêndios. Segundo este cientista, a floresta amazónica está prestes a atingir o ponto de não retorno, a partir do qual aquele ecossistema perderia a capacidade de se regenerar.

A estação quente e seca 2019/2020, na Austrália, foi caracterizada por fogos florestais que causaram dezenas de vítimas humanas e destruíram milhões de animais, alguns dos quais correm o risco de extinção, como os coalas, no leste do país.

Há mesmo quem preconize, no meio científico, que já estamos em plena época geológica do Antropocénico, termo de origem grega com o sentido de “época de dominação da espécie humana”. Pelo menos esta é a opinião de alguns cientistas (nomeadamente Eugene F. Stoermer, limnologista estado-unidense, e Paul Crutzen, holandês, um dos laureados com o Prémio Nobel da Química de 1995), que argumentam com o facto do impacto ambiental da sociedade humana ser de tal modo intenso que podemos ter entrado numa nova era geológica. Decorrem ainda discussões sobre este assunto, tendo sido mesmo criado um grupo de trabalho (Anthropocene Working Group), no âmbito das atividades da União Internacional das Ciências Geológicas (International Union of Geological Sciences – IUGS). De acordo com recomendações da maioria dos elementos deste grupo de trabalho, o Antropocénico é estratigraficamente real, pelo que se deve proceder à sua classificação como época geológica com início em meados do século XX.

Em plena época do hipotético Antropocénico, será que ainda estamos a tempo de travar a progressiva destruição da biodiversidade? A resposta não é fácil, mas talvez ajudasse deixar de se dar tanta importância ao Produto Interno Bruto (PIB), e passar a recorrer, para avaliar o progresso dos países, a outros indicadores, como o Índice de Desenvolvimento Humano (Human Developmet Index – HDI) ou o Índice Planeta Vivo.

7 Out 2020

O esguicho

[dropcap]O[/dropcap] esguichar, ou a ejaculação de quem tem vulva, tem sido objecto de grande interesse. Não é por acaso que a procura por estes conceitos tem aumentado de ano para ano em sites de pornografia, sobretudo por mulheres. Isto é provavelmente sintomático da dúvida que teima em insistir. Será que existe? O que é que é? Como se identifica? Certamente que existem mulheres que ejaculam porque têm pénis. E essa ejaculação não deixa mistério algum por desvendar. A ejaculação da vulva, por outro lado, não está tão bem explicada.

Certas vulvas vêem acontecer uma espécie de ejaculação, especialmente depois do orgasmo. Estima-se que isso pode acontecer em 10 por cento a 50 por cento das mulheres. Costumam descrevê-la como um libertar de líquido que pode molhar a superfície de contacto de forma mais ou menos intensa. Há quem o descreva como um esguicho (squirt), com alguma pressão, ou uma fonte, até 150 ml de líquido. A revisão histórica parece mostrar que há 2000 anos já se escrevia sobre esta possibilidade, tanto no ocidente como no oriente.

Em textos taoistas já se falava no poder libertador e regenerador da ejaculação da vulva.
A investigação aponta para várias teorias do que realmente se passa. Há quem diga que este esguicho é só urina – como um estudo mostrou que a bexiga estava vazia depois do orgasmo – ou que pode ser confundida com incontinência do coito, quando há perda de urina durante o sexo. Esta possibilidade, contudo, recebeu muita contestação e retaliação de quem esguicha. Não podia ser só isso. Uma análise mais cuidada mostrou que o liquido poderá ter uma percentagem de urina, sim, mas em pouquíssima quantidade. Na verdade, este líquido também terá quantidades variáveis de PSA, uma proteína comummente encontrada no sémen de quem tem pénis. Há mulheres que podem ter tecido de próstata na parede da frente da vagina que justifique a segregação desta proteína pela uretra. Chamam-se glândulas de Skene e nem toda a gente as tem.

Contudo, no imaginário contemporâneo do sexo, colocou-se o ejacular da vulva num pedestal. Consideram-na numa espécie de meta última para provar a capacidade de sentir prazer e proporcionar prazer – como se todas as pessoas tivessem a mesma propensão para fazê-lo. Só que ao mesmo tempo, para as vulvas ejaculadoras, há vergonha e desconforto por todo o aparato inesperado de molhar tudo à volta. Enquanto que algumas pessoas se sentem empoderadas por ejacular e fazer ejacular, outras enchem-se de complexos.

Isto tem chegado a um ponto que a indústria pornográfica tem procurado actrizes que consigam retratar o esguicho em filme. Há quem se veja forçada a encontrar formas criativas de compensar a dificuldade de ejacular com obrigatoriedade, o que torna o momento muito artificial e pouco fidedigno. Ao mesmo tempo, visto que é um suposto líquido com urina, os legisladores temem que se equipare com o urinar. Urinar, em contexto pornográfico já é demasiado “perverso”. Há países, como o Reino Unido, que censuram a ejaculação da vulva em vídeo por causa disso.

Ainda que a ejaculação da vulva traga uma conversa de milénios, só agora é que se renovou um interesse mais científico e popular sobre o tema. Como qualquer objecto sexual está envolto em discursos de libertação e vergonha que levam ao dualismo nosso conhecido do sexo. Ora é a prova máxima da lógica competitiva do sexo, ora mais uma forma de repressão e desconforto com o outro. Mas como tantas outras coisas no sexo, não há nada mais saudável do que explorar estas particularidades do corpo, individualmente e em conjunto, para a normalização da sensação de prazer, intimidade e entrega.

6 Out 2020

De volta ao local do crime

[dropcap]C[/dropcap]hen Tongjia, o homem que matou a namorada em Taiwain, dando origem à emenda da Lei dos Condenados em Fuga, publicou no dia 2 uma gravação de 23 segundos, com o apoio de Guan Haoming, Secretário Geral do Ministério da Educação de Hong Kong e da Igreja Anglicana, onde mais uma vez pede desculpa aos pais da vítima. Neste registo, salienta que continua a querer regressar a Taiwan para se entregar à justiça e que o seu advogado está a fazer todas as diligências necessárias.

A mãe da jovem falecida afirmou numa entrevista que não tem a certeza de que a voz que se ouve na gravação seja mesmo de Chen Tongjia. No ano passado, Chen Tongjia afirmou repetidas vezes que queria regressar a Taiwan para se entregar, mas isso nunca aconteceu. Não é por causa de uma gravação que ela vai passar a acreditar nas suas afirmações. Futuramente, se o caso vier a ser julgado em Taiwan, ela pensa deslocar-se até lá para testemunhar.

A mãe de Pan Xiaoying, visivelmente perturbada, adiantou ainda que tem intenção de comprar o bilhete de avião para que Chen Tongjia se possa deslocar a Taiwan e deseja providenciar-lhe todo o apoio necessário. Vai também pedir em Tribunal que, por se ter entregado, a pena seja atenuada.

Numa entrevista, um advogado taiwanês salientou que, segundo a lei do país, como o homicídio foi descoberto pelos investigadores e não porque Chen Tongjia o tenha confessado, o seu regresso não implica comutação da pena. Em casos de homicídio, o réu pode enfrentar pena de morte, prisão perpétua, ou pena superior a 10 anos. Neste caso, é muito pouco provável que Chen Tongjia seja condenado à morte, porque esta pena só é atribuída na presença de crimes brutais, ou de assassinatos em série e quando o criminoso não demonstra sinais de arrependimento. Mas se Chen Tongjia regressar voluntariamente a Taiwan e se entregar, dará provas de arrependimento. Todos estes factores poderão ajudar a reduzir-lhe a pena.

No momento em que escrevo este artigo, ainda não havia qualquer notícia sobre o regresso de Chen Tongjia a Taiwan; mas seja como for, pela gravação, podemos deduzir que Chen Tongjia espera voltar e pôr um ponto final neste assunto. Se proceder assim, permite que a falecida descanse em paz e dará um sinal a todos, quer em Hong Kong quer em Taiwan, que está pronto a admitir os seus erros e a sofrer as consequências.

É com esta atitude positiva que os pais de Pan procuram que seja feita justiça à memória da filha. No entanto, o que é raro na atitude desta mãe é ter tido a coragem e a abertura de espírito para afirmar que irá interceder por Chen Tongjia durante o julgamento. É evidente que deve ter assumido esta posição depois de muita luta interior. Insistir em resolver os conflitos através do sistema jurídico, demostrando simultaneamente o seu perdão é algo que merece o nosso respeito.

Há alguns anos, em Hong Kong, houve também um caso de uns pais que perdoaram os assassinos dos filhos. Foi em 1985 e provocou uma enorme comoção. Depois de meses de investigação, a polícia identificou finalmente os assassinos dos dois jovens. Segundo a lei da época, este crime era punido com prisão perpétua; mas porque alguns dos réus eram menores de idade, o Tribunal absteve-se de proferir a sentença tendo delegado a decisão na Chefe Suprema de Estado à altura, a Rainha de Inglaterra. Depois do regresso de Hong Kong à soberania chinesa, a decisão foi transferida para o Chefe do Executivo da cidade. Nessa altura, a família dos jovens escreveu ao Chefe do Governo afirmando que já tinha perdoado os assassinos. Os prisioneiros acabaram por sair em liberdade após cumprirem a sentença. Expressaram publicamente a sua gratidão pela intervenção da família da vítima na redução da pena e a importância do perdão que lhes permitiu expulsar os seus próprios demónios.

Se Chen Tongjia regressar a Taiwan para se entregar, todos irão sentir que este processo, que se arrasta há tanto tempo, vai chegar ao fim. Devido à sua bondade, a mãe de Pan perdoou Chen Tongjia e deu-lhe uma oportunidade de se regenerar. Ultrapassar o ódio com amor e deixar o desgosto para trás é uma lição digna de ser aprendida.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
5 Out 2020

#paremdepartilhar

[dropcap]C[/dropcap]omo dizem os distópicos das redes sociais, estas redes vieram explorar as fragilidades e dificuldades humanas. Nos vários problemas já identificados, como notícias falsas, polarização política, câmaras de eco, o crescimento do autoritarismo e conservadorismo, está o sexo no seu pior também.

Há uma prática comum entre sei lá eu quem – porque felizmente, não é coisa que me chegue às caixas de entrada – onde se partilham vídeos, áudios e imagens sensacionalistas. A ânsia pelo escândalo é tão grande que carregar no botão para partilhar o choque é inevitável. Cria-se uma corrente de partilha sem fim. Nem sempre se sabe se os conteúdos partilhados são fidedignos ou se foram consentidos pelos autores ou protagonistas. O Zuckerberg bem tenta dicotomizar o público do privado com um pacote de aplicações sociais. O facebook é público, é como estar com os vizinhos e os amigos num bar, o whatsapp é privado, e é como estar em casa com a família. Esta dicotomia que nos tentam impingir desresponsabiliza muitas das coisas que acontecem na suposta esfera privada do whatsapp. Lugar esse onde são partilhados conteúdos sexuais mais à vontade. Nas redes sociais, supostamente, públicas, as políticas para controlar e denunciar conteúdos desadequados já é muito mais apertada.

Pessoalmente não acho nada de errado em partilhar conteúdos sexuais, quando há consentimento na interacção. Querem enviar nudes? Querem enviar dick pics? Viva a sexualidade positiva e aberta. Mas as práticas que aqui vos trago não são bem essas. Muitos dos vídeos e imagens de sexo que andam a ser partilhadas não são consentidas. A história típica é a do ex-namorado que, raivoso, partilha os vídeos de sexo que foram gravados para uso pessoal do casal. A chamada pornografia de vingança, para além de ser crime, já levou muitas mulheres ao suicídio. Repito: mulheres já se suicidaram porque as suas imagens vieram a público. Os interesseiros e coscuvilheiros – que só prova que muita gente deve ter o seu ‘quê’ de voyeurismo – alimentam estas correntes, e esse é o outro factor problemático na equação.

Quando estas correntes aumentam de proporção com reencaminhamentos constantes e exponenciais, são trazidas para as redes sociais, para os jornais e os cafés. O voyeurista plebeu intromete-se na esfera privada e íntima do sexo, de onde certas narrativas começam a surgir, e o discurso não vos surpreenderá. Dou-vos o exemplo do caso do vídeo de sexo no comboio da CP. O evento foi gravado por terceiros e partilhado por todo o lado. A identidade da participante foi divulgada, e claro, o que é que aconteceu? Bullying à séria. Os rapazes que participaram não foram escrutinados na praça pública da mesma forma. Este duplo critério não tem nada mais, nada menos, que laivos de machismo resistentes e persistentes nas sociedades liberais contemporâneas. As mulheres só podem ser um híbrido esquisito entre virgem e devassa, e são condenadas por serem uma e a outra.

Movimentos como #cortaacorrente (muito melhor do que o hashtag que eu inventei) alertam para a responsabilização individual e colectiva de não alimentar toda esta parvoíce. Assim que se recebe um vídeo, pode-se denunciar, e não alimentar a corrente de partilhas de onde veio, e para onde tenderá a ir. Denunciem conteúdos que não sabem de onde vieram ou se são consentidos, não partilhem coisas a torto e a direito. As partilhas têm consequências: e para muitas raparigas, este pequeno contributo pode salvar-lhes a vida.

29 Set 2020

Adopção para as calendas

[dropcap]A[/dropcap]lguns dos leitores possivelmente já tentaram adoptar uma criança. Na maioria dos casos porque num casal, o homem ou a mulher não puderam ter filhos após o veredicto clínico. Mas têm um desejo enorme de ter um filho ou uma filha. Há casais que já adoptaram três e quatro filhos. Em Portugal é difícil. Em Portugal é um martírio, um desespero, um sofrimento mental que já levou muitas mulheres à depressão profunda. Tudo isto porque a burocracia é superiormente exagerada. As exigências são as mais variadas e concludentes. Obviamente que o casal é analisado pelos serviços estatais e competentes para o efeito de uma adopção de uma forma criteriosa. O casal tem de ter condições de sobrevivência do eventual filho adoptivo, um bom rendimento mensal, uma residência condigna, um comportamento exemplar. E não são só os casais que desejam adoptar a serem analisados, pois, os seus progenitores também são alvo de uma avaliação por parte dos técnicos da Segurança Social. Pais e avós têm de ter rendimentos suficientes para o caso de acontecer algo de imprevisível ao casal que adopta.

Em Portugal reina a burocracia até ao mais alto grau do desalento dos interessados em adoptar uma criança, tenha a mesma três ou oito meses, ou já com seis ou sete anos. A burocracia é o verdadeiro cancro de uma adopção. E não só a burocracia estatal. Por vezes, o problema reside na atitude do pai, mãe, avô ou avó da criança que foi institucionalizada porque os pais não tinham condições para o sustento. Um dos membros da família da criança, em muitos casos, rejeita-se a assinar a documentação imprescindível para a efectivação da adopção. E assim, ficam as crianças anos e anos a aguardar uma solução. E as crianças institucionalizadas sentem um sofrimento contínuo porque não recebem o carinho de uns pais, não recebem a educação devida, não recebem o hábito de pertencerem a uma família, diríamos mesmo que sem estarem abandonadas estão ao sabor do nada. As de sete e oito anos sofrem imenso nas escolas. Onde está o teu pai? Onde está a tua mãe? Quem é aquela que te veio trazer? Quem é que te vem buscar? Onde moras? São perguntas dolorosas que essas crianças ouvem a todo o momento nos intervalos das aulas. E como as crianças, infelizmente, são cruéis umas para as outras, assim que se sabe na escola que determinado colega está institucionalizado porque foi abandonado pelos pais, ai Jesus, é um fartote de chacota: Olha ele não tem pais! Olha ela não tem casa! Olha ele não sabe quem é mãe! Olha ela nunca viu o pai! Uma triste realidade. E as crianças institucionalizadas a aguardar que a burocracia ou a corrupção lhes arranjem uns pais que requereram a adopção há muitos anos.

Lamentavelmente, o ano passado 80 por cento das crianças que aguardavam adopção, apenas 20 por cento viram a sua situação resolvida e foram acolhidas para um novo lar onde passaram a ter um pai e uma mãe.

Uma tristeza quando neste Portugal os processos de adopção começam logo por ficarem na gaveta durante os três meses das férias judiciais. Três meses em que pára tudo nos tribunais, o que provoca um atraso significativo em todo o andamento que se deseja o mais rápido possível. Rápido? A maioria dos casos leva seis, sete, oito anos para ser resolvida. Um amigo meu juntamente com a sua mulher requereu há oito anos uma criança para adopção. Em todos os testes e avaliações de que o casal foi alvo a aprovação foi total. O casal tem todas as condições financeiras, e outras, para poder adoptar um filho. Esse casal ao fim de cinco anos esqueceu a pretensão e nunca mais pensou no assunto de poder ter um filho. Felizmente que agora, ao fim de oito anos, a Segurança Social informou-os que tinham um bebé para lhes ser entregue. Foi a alegria mais sentida na vida do casal. Demorou muito, mas neste caso a luz ao fundo do túnel tornou-se realidade e o casal está a viver os dias mais felizes da sua existência. Realmente, quando existe um desejo assoberbado não há ventos e tempestades que façam desistir definitivamente um casal de receber nos braços o que tanto sonhou.

Neste tema da adopção há surpresas. Alguns casais tentam conseguir ter um filho através do método in vitro e mesmo assim nada feito. Mas, surpreendente um dia mais tarde o mesmo casal que tentou por esse método consegue naturalmente que a mulher engravide. Todavia, uma assistente social transmitiu-me que para tristeza de todos que trabalham no seu departamento a mesma mãe após o nascimento de dois gémeos transmitiu que o namorado já tinha desaparecido e que ela estava desempregada e órfã, sem condições para criar os bebés e nesse sentido entregava os filhos para adopção. Dá que pensar. Tal como recentemente uma mãe foi deixar o seu recém-nascido à porta de uma igreja dentro de uma alcofa, bem tratado, bem alimentado, bem agasalhado, com um biberão ao lado e uma carta onde a mãe apelava que alguém criasse o seu filho com muito amor porque ela não tinha a mínima possibilidade. Que raio de país é este em que se apela a uma maior natalidade e depois não existem condições para muitas mães poderem sustentar e educar os seus filhos.=

27 Set 2020

Macau dissecado

[dropcap]O[/dropcap] tão esperado documento de “Consulta pública sobre o Projecto do Plano Director da Região Administrativa Especial de Macau (2020-2040)” foi finalmente publicado, estando a data limite de consulta pública marcada para 2 de Novembro. Já que em 2049 termina o período em que o regime da Lei Básica da Região permanecerá inalterada por 50 anos, o Projecto do Plano Director será uma base importante para determinar os 20 anos seguintes de Macau. Tentar saber se virá a haver uma nova ronda de consulta pública do Projecto do Plano Director, ou se as decisões tomadas para este Projecto do Plano Director serão repudiadas por um Executivo da cidade vindouro, como aconteceu com a rejeição da proposta de design conceptual para a nova Biblioteca Central de Macau pelo actual Governo, equivale a fazer futurologia, porque Macau é um lugar muito diferente de qualquer outro. Até mesmo o Edifício do antigo Restaurante Lok Kok, considerado de interesse arquitectónico e integrado na Lista do Património Cultural de Macau, foi demolido há uns anos.

As expectativas gerais em relação a este documento de Consulta, nunca foram muito elevadas. Em primeiro lugar, os conteúdos do Projecto do Plano Director são demasiado sucintos, limitando-se a apresentar descrições de ordem geral. Os pontos chaves do Relatório Técnico estão apresentados numa terminologia profissional. Este tipo de terminologia é habitualmente usado pelo Governo da RAEM em muitos dos seus documentos de Consulta, o que os torna incompreensíveis para os leigos. Quando lemos o documento de Consulta, ficamos com a impressão de que os conteúdos são positivos, mas na verdade não se avança com nada de concreto e o demónio pode estar escondido nas entrelinhas. Quando se trata de concretizar os projectos, os membros do Governo de Macau têm a palavra final. Por exemplo, há muitos anos atrás, o plano para a “criação de cinco terrenos de aterros novos em Macau” foi aprovado pelo Governo local e o então primeiro-ministro Wen Jiabao veio pessoalmente à cidade anunciar a sua aprovação. No entanto, uma das secretárias da RAEM propôs a suspensão do projecto de aterro da Zona D, um dos cinco terrenos de aterros novos. Estes procedimentos são simplesmente inacreditáveis.

No Artigo 3 do Projecto do Plano Director, sobre os Objectivos do Plano, declara-se “O Plano Director da RAEM visa atingir os objectivos do Plano Director do artigo 6.º da “Lei do planeamento urbanístico” (Lei n.º 12/2013) e os objectivos constam do Despacho do Chefe do Executivo n.º 234/2018, para criar uma cidade feliz, inteligente, sustentável e resiliente”. O recurso a uma série de adjectivos (feliz, inteligente, sustentável e resiliente) que traduzem qualidades mais ou menos subjectivas, faz com que o cidadão comum fique sem perceber de que forma o Executivo pretende atingir estas metas. Na verdade, o adjectivo “feliz” refere-se ao indíce de bem-estar bruto. Mas estarão actualmente os cidadãos de Macau felizes com as suas condições de vida, com os bens que possuem, com os seus salários, com as ligações sociais, a educação, as condições ambientais, a participação civíca, a administração do Executivo, o Serviço de Saúde, com o seu bem-estar pessoal, a segurança e o equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal? Por exemplo, com o recente endurecimento da “Lei da Habitação Económica”, vai ser muito difícil para a população de Macau vir a melhorar as suas condições de vida num futuro próximo. Enquanto a democratização do sistema político não for implementada, a participação das associações irá sempre inibir a participação pública. Desta forma, apenas um pequeno número de pessoas pode ter acesso à possibilidade de desenvolvimento sustentável.

Neste caso, como é que a administração governativa pode ser melhorada? Quanto à criação de “uma cidade resiliente”, no relatório da “Cidade da Oportunidade 2020”, recentemente publicado pela Fundação para o Estudo e Desenvolvimento da China, Macau aparece em terceiro lugar no tópico “Resiliência urbana”, o que não deixa de ser impressionante. No entanto, quando me apercebi que Hong Kong aparece em primeiro lugar, uma cidade onde a convulsão social ainda não terminou e Xangai figura em segundo lugar, com um Vice-Presidente da Câmara a ser investigado, senti arrepios na espinha.

No Relatório Técnico sobre preservação da vista bilateral da Capela de Nossa Senhora da Penha e do Lago de Sai Van, é recomendado que a altura dos edifícios a construir no futuro não ultrapasse os 62,7 metros que correspondem à altitude do topo da Colina da Penha. Se a recomendação sobre a altura dos edifícios for aceite, é possível que venham a aparecer construções desta dimensão junto à Capela de Nossa Senhora da Penha de futuro. Nesse momento, o que é que nos vai restar?

A “Obra de Construção da Travessia Pedonal ao longo da Avenida de Guimarães na Taipa” está em curso há mais de um ano. Recentemente, devido ao esforço conjunto de vários departamentos de construção, a Taipa tem sido alvo de enormes congestionamentos de trânsito. É uma dor de cabeça para os condutores e para a polícia de trânsito, que se esforça diariamente para criar alternativas de circulação. Quando a construção da travessia pedonal ao longo da Avenida de Guimarães vier a causar um problema semelhante na Taipa, para que o Projecto do Plano Director da RAEM possa ser aprovado à pressa, Macau vai assemelhar-se a alguém que está a ser dissecado por decisão arbirátria dos médicos. Nessa altura, os residentes da cidade serão os únicos a sofrer as consequências.

Enquanto cidadãos de Macau, devemos todos expressar as nossas opiniões sobre o Projecto do Plano Director da RAEM durante o período de consulta pública, e impedir que as associações e os peritos se pronunciem em nosso nome!

24 Set 2020

Plano Director I ½ – “What goes around, comes around”

[dropcap]N[/dropcap]uma sequência de tarefas toma-se ½ por algo não somente intercalado em ordem, mas algo que se instala, muitas vezes em sentido de crise, e que protela a tarefa seguinte.

No caso de 8½ de Fellini, a circunstância prendeu-se com o efeito alienatório da modernização na criatividade, o alegado bloqueio criativo que disso resultou, e a dificuldade em realizar um filme, na sequência de 8 já realizados.

No caso da RAEM, a circunstância prende-se com a consulta sobre Plano Director, e a crise coloca-se logo no início da sua discussão, com a dúvida de quem irá estar apto a intervir nesse Plano, por via de que nomeações e com que garantias. Isso face ao modo como sucessivas notícias, sobre o futuro da Biblioteca Central de Macau, formaram moldes institucionais de actuação profissional.

Em 30 de Agosto último o Executivo da RAEM anunciou que a Biblioteca Central de Macau não seria mais no edifício do antigo Tribunal e passaria a ser algures na península de Macau.

Em 10 de Setembro anunciou que seria exactamente no lote do Hotel Estoril no Tap Seac. Decisão que comunicou já suportado em quatro estudos alternativos, por ateliers internacionais.

Desejavelmente pensar-se-ia que qualquer destas notícias foram resultado de decisões tomadas e de estudos efectuados durante a noite. Razão por que os arquitectos que a RAEM já contratados para os mesmos objectos de estudo apenas puderam tomar conhecimento das novas circunstâncias no mesmo dia em que foram anunciadas.

Pressupõe-se também que os arquitectos estrangeiros consultados não foram informados de que já existiam arquitectos nomeados para o mesmo objecto de estudo.

Os arquitectos estrangeiros em causa pautam-se por desempenho admirável, só podem saber que os arquitectos não estão autorizados a atravessarem-se nas nomeações já formadas por um Dono de Obra a outro arquitecto, sem previamente consultarem o arquitecto já nomeado, desejavelmente obter a sua anuência e a relação contratual estar esclarecida.

Efectivamente a relação de um arquitecto com um Dono de Obra pressupõe-se ser de confiança, regulada por um contrato pautado por regras da boa fé, como qualquer contrato, com objecto próprio e objectivos exclusivos, pois dois objectos de arquitectura não podem ocupar o mesmo espaço, nem o mesmo programa é para ser realizado aqui e ali ao mesmo tempo.

Mas também algo com que os arquitectos da RAEM já atentaram quando, em abstracto, se atravessaram à nomeação feita ao arquitecto Siza Vieira, expressando interesse no mesmo objecto de “estudo”, e razão por que o Executivo da RAEM recuou, e prosseguiu com o concurso público de arquitectura para o antigo Hotel Estoril.

Com tudo isto fragilizaram-se moldes de intervenção respeitável, e abortaram-se 2 projectos em curso, que resultaram de 2 concursos públicos de arquitectura, a Biblioteca Central, no antigo edifício dos Tribunais, com assinatura do arquitecto Carlos Marreiros, e o Centro Juvenil de Actividades Culturais, Recreativas e Desportivas do Tap Seac no lote do antigo Hotel Estoril, com assinatura do arquitecto Chu Chan Kam.

Obviamente que nem as novas decisões foram tomadas, nem os novos estudos foram realizados durante a noite, pelo que, mesmo que o Executivo da RAEM não estivesse ainda em capacidade de apresentar aos órgãos de comunicação social toda a nova estratégia, sabia que a mesma afectava posições com uns, que era seu dever salvaguardar desde logo, eventualmente pedindo o mesmo sigilo que pedira a outros, e não confrontá-los como esse desenvolvimento, aquando da mesma apresentação pública. Não andou bem.Mas também a prática sequer é nova, ou mesmo exclusiva do Executivo.

Em 1999, antes da obra da nova sede da Assembleia Legislativa estar concluída, projecto que também resultou de um concurso público de arquitectura, o deputado Fong Chi Keong, na sombra, promoveu modificações à obra, que vieram a ser projectadas por Omar Yeung, arquitecto da sua confiança pessoal.

Essas modificações prosseguiram em projecto que só veio à luz em 2000, no dia seguinte à recepção provisória da mesma obra. Não na versão de um conceito ou ideia para discussão, mas já de projecto de obra, o qual pressupunha um acordo já formado, e pressupunha fases anteriores de projecto já aprovadas por “detrás dos panos”.

O arquitecto Omar Yeung, à data, também não se encontrava registado na DSSOPT, pelo que recorreu à assinatura do arquitecto Alan Kong.

Em 2006, essas circunstâncias foram observadas pelo órgão judicial administrativo da RAEM que contemplou a medida como “ajustada com a realidade social de Macau, por ser uma cidade pequena, com pouca população, que não consegue sustentar grande número de arquitectos qualificados e célebres”, assim como “permite que os arquitectos com fama mundial, mas não estão inscritos na DSSOPT, possam conceber projectos de construção em Macau, desde que o termo de responsabilidade seja subscrito por um arquitecto inscrito, elevando assim a imagem e o nome da RAEM”.

Admite-se que isso tenha sido proferido em abstracto, na medida em que o arquitecto Omar Yeung, só passou a ser famoso em Macau, e não por obra de arquitectura, depois de ter sido constituído arguido no caso Ao Man Long, todavia absolvido.

Mas proferido já em concreto a respeito dos actos da arquitectura, sendo que o mesmo não se admite, por exemplo, nos actos da advocacia.

Em verdade, a imagem e o nome da RAEM já foi elevada desde que parte do seu património construído foi reconhecido como património universal, nomeadamente reportando a épocas em que era uma cidade muito mais pequena, com muito menos população, e por artefactos de que sequer se conhece os autores.

Pelo que muito possivelmente deparamo-nos com o mesmo “efeito alienatório da modernização”. Aquele que já colocou um realizador em crise na realização de um filme, e que, na RAEM, coloca em crise a preparação, encomenda, desenvolvimento e construção de obra pública de arquitectura, desejavelmente respeitável e consequente, em todos os seus trâmites.

À data de todos estes factos, já a Associação de Arquitectos de Macau, a AAM, munira departamentos da RAEM com um documento que servia de guião para a organização e condução de concursos de arquitectura, cujas condições eram aquelas em que a AAM aceitava participar, e a falta era razão para alertar os arquitectos de não estarem reunidas condições para uma participação segura.

Como a AAM também sempre esteve designada, desde a sua génese, para representar os associados em situações que lhes geram vulnerabilidade e que são transversais a toda uma comunidade profissional, para que se reiterem os preceitos que assistem, e os arquitectos não tenham que enfrentar essas situações sozinhos.

Como também a mesma associação já tinha votado nas assembleias gerais da União Internacional de Arquitectos de que faz parte, uma directiva que regula a actividade dos arquitectos em nações de acolhimento, a qual se pauta por parcerias efectivas de trabalho com os arquitectos locais.
Efectivamente, “what goes around, comes around”, se disso não se cuidar, mesmo que passem 20 anos.

Algo que o arquitecto Carlos Marreiros optou por não cuidar durante o seu mandato de presidente da AAM, e consequência que hoje colhe por mero capricho do destino.

Efectivamente o exercício da arquitectura na RAEM é um verdadeiro complexo de contradições e de faltas convertidas em dívidas.

Faltas da RAEM, perante os residentes, pois a cidade carece de um tecido urbano visual e funcionalmente qualificado. Perante os arquitectos porque não proporciona um ambiente profissional em que as suas aptidões se desenvolvam. Prefere concursos de concepção/construção que reservam um valor perceptual baixo para pontuar a concepção arquitectónica. Organiza concursos de arquitectura que a nada conduzem, como se isso não constituísse frustração intelectual e financeira. Vê-se agora em necessidade de recorrer ao estrangeiro, para obter algo verdadeiramente qualificado.

Faltas dos arquitectos da RAEM perante a população da RAEM, sempre que não usaram as oportunidades que tiveram para gerar ou empreender algo relevante, e perante os seus colegas arquitectos sempre que se atravessaram nos seus objectos de estudo.

Faltas da Associação dos Arquitectos de Macau, por não cumprir o que está estabelecido nos seus estatutos, seja perante os associados, seja perante a população da RAEM, não produzindo as recomendações necessárias que um Executivo sensato escutaria para seu próprio resguardo.

E surge esta epifania, apenas a pretexto de uma biblioteca, mas que bateu forte, na alvorada de um Plano Director, perante a possibilidade de intervenientes e organizadores virem pautar-se por mais do mesmo, se outras garantias não existirem.

24 Set 2020

A economia digital da China (I)

“China’s biggest messaging app WeChat helped create 29 million job opportunities last year and has since helped stabilise the country’s employment situation in the time of the coronavirus pandemic.”
Yujie Xue

[dropcap]Q[/dropcap]uando o WeChat começou a espalhar-se na China com algum espanto, muitos residentes estrangeiros assistiram a um espectáculo nunca antes visto, pois os chineses andavam a falar com os seus smartphones, quase descansando os lábios sobre eles, como se fosse um tiro no queixo.

Enviavam mensagens de voz e corria o ano de 2011. O aparecimento deste hábito poderia marcar simbolicamente o início da era WeChat na China. Como tantas outras coisas que pareciam absurdas e apareceram primeiro na China, as mensagens de voz tornaram-se gradualmente habituais também no Ocidente. Nesse ano começou um período de grandes mudanças no mundo da tecnologia chinesa. Sabemos que as ferramentas tecnológicas que utilizamos mudam os hábitos pessoais, sociais e de trabalho, e no caso dos telemóveis até a nossa postura física (ombros ligeiramente curvados, olhando para baixo).

Na China, a mudança com o advento do WeChat mudou totalmente a abordagem à rede e, consequentemente, pouco a pouco, a vida quotidiana. Por exemplo, as mensagens de correio electrónico desapareceram rapidamente. O Gmail não fazia sentido, não tinha qualquer utilidade, excepto perder tempo à espera que as páginas fossem carregadas tão lentamente que levava à exasperação. Tudo passou para o WeChat, que provou ser rápido, imediato, uma farpa. Substituiu rapidamente até velhos hábitos por novas formas de relacionamento. Um grande clássico na China, por exemplo, eram os cartões-de-visita, mesmo no caso de actividades bastante fantasiosas e improváveis, era bom creditar a sua existência com um cartão-de-visita. E na China pode-se imprimir milhares deles por alguns yuans. Até os estrangeiros aprenderam rapidamente, pois recebiam o cartão com duas mãos e entregavam o seu da mesma forma. O WeChat marcou o fim de um mundo e até os cartões-de-visita desapareceram. Tornou-se habitual digitalizar o Qrcode em vez dos cartões-de-visita.

E começaram a digitalizar o Qrcode em todo o lado e a obter qualquer coisa como benefícios, descontos ou para participar em eventos. Foram inauguradas novas danças sociais como aproximar os telemóveis e digitalizar os Qrcodes uns dos outros, a forma de “conectar”. Novos hábitos e novos dilemas. A pessoa que digitaliza, ou a que é digitalizada é mais importante? Mas depois de tudo, veio a conclusão da mudança em curso. E veio como se fosse natural, como se todo o país estivesse à sua espera. A certa altura foi possível ligar a sua conta a uma conta bancária chinesa (obtida por ocidentais graças a muitos saldos burocráticos na fase inicial do WeChat, enquanto hoje tudo é mais rápido, mesmo que haja muitas mais limitações para os estrangeiros) e finalmente poder comprar qualquer coisa com o seu smartphone. A partir desse dia, até a carteira se tornou inútil. Mesmo os cartões de crédito, para aqueles que os possuíam, tornaram-se desnecessários.

O WeChat lançou o desafio aos chineses sobre dois conceitos, o tempo e a velocidade, transformando uma sociedade clamorosamente dependente do papel, carimbos, passos burocráticos numa sociedade subitamente sem dinheiro e sem a necessidade de imprimir e nada carimbar. Mas o que é exactamente o WeChat? Explicar a um ocidental pode ser complicado. Algumas pessoas tentam descrevê-lo como sendo a “aplicação de aplicações”, ou seja, contém dentro, o que estamos habituados a utilizar separadamente. Se o quisermos descrever através de uma comparação com o nosso mundo tecnológico, podemos dizer que é como um contentor gigante que reúne o Facebook, Instagram, Twitter, Uber, Deliveroo e todas as aplicações que utilizamos. É uma explicação que tem a sua lógica, mas não está completa. Em primeiro lugar porque, cada vez que se utiliza o WeChat, descobre-se novas funções recém-desenvolvidas, novos usos que depois podem transformar-se em novos hábitos.

É habitual, por exemplo, reservar exames médicos, pagar impostos ou contas através do WeChat; ou encontrar-se, andando pelas ruas das metrópoles chinesas, sem-abrigos que mostram aos transeuntes uma placa com um Qrcode para receber esmolas. As esmolas, também na China são feitas através do WeChat.

Além disso, se é verdade que o WeChat também pode ser descrito como uma soma de aplicações que conhecemos e utilizamos, também contém uma característica muito especial em comparação com as nossas aplicações, pois pode ser utilizado para pagar qualquer coisa. Cada conta WeChat está de facto ligada à conta bancária do utilizador e, através da leitura dos vários Qrcode, pode comprar tudo, desde uma viagem de táxi a fruta numa loja na rua, desde livros numa loja online a snacks postados via WeChat por um amigo no chat privado. Com o WeChat pode até fazer todos os cartões para o casamento.

E mesmo o divórcio, pois pressionar o botão do pedido é tudo o que é preciso para começar a papelada. O WeChat sabe tudo sobre quem o utiliza, conhece os movimentos tanto online como offline, graças à possibilidade de pagar qualquer negócio e ser tão “rastreado” mesmo quando pensa que não está no ciberespaço. O super apêndice acabou por criar uma espécie de ecossistema dentro do qual nada mais é necessário, porque é capaz de cuidar de todos os aspectos da vida quotidiana. Em algumas cidades, o perfil WeChat é utilizado como um documento de identidade. Tudo está dentro do WeChat e isto significa que na China, se não tiver “a aplicação de aplicações”, está completamente fora do mundo. Não descarregar o WeChat é uma escolha da vida real. Aqueles que tentam resistir, têm uma existência infernal.

Há quem decida viver sem a aplicação. O que motiva esta escolha é a certeza de que os seus dados serão recolhidos e utilizados, e não empregar a aplicação é uma forma quiça de “dignidade” ou não. Quem decidiu não usar e cada vez que recebe um novo cliente, este deve ser avisado dessa escolha, porque é dado por garantido que todos têm WeChat. Quando se viaja para o estrangeiro com os seus colegas, outros podem facilmente ligar-se ao WeChat utilizando o WiFi disponível, “mas se quiserem falar com quem não usa a aplicação têm de pagar para ligar ou enviar mensagens”. Até os familiares dos poucos que não usam a aplicação tentam que reconstituam os seus passos e descarreguem a aplicação.

Isto acontece porque quando falamos do WeChat não estamos a falar de uma simples aplicação pois dentro do WeChat navegamos, como se a aplicação fosse a própria rede, pois de facto existem “mini-programas” (como por exemplo o de um restaurante mongol ou uma loja de robots), ou seja, mini-sites inseridos dentro da aplicação, onde a vida de todo o sistema de Internet chinês tem lugar. E os serviços continuam a aumentar, tal como as aplicações. Eis um exemplo simples de um mini-programa que é o correspondente Instagram chinês e é uma das muitas aplicações, mas está dentro do WeChat. Parece ser uma coisa pequena, mas não é, numa economia que se baseia agora na exploração de “grandes dados”. O WeChat evoluiu para uma espécie de sistema operativo dentro do qual todos os programas funcionam.

É uma porta de entrada para tudo o que se pode fazer com um smartphone na rede e offline, capaz de canalizar uma enorme quantidade de dados e dinheiro de diferentes formas com publicidade também, mas a maior parte das receitas depende dos gadgets e jogos na aplicação, dos serviços premium para os utilizadores e especialmente da percentagem que assume cada pagamento. Mas não só, pois a quantidade de dados que a empresa possui fornece aos seus clientes comerciais (os produtores de “mini-programas”) uma personalização cada vez mais direccionada dos seus utilizadores. O WeChat tornou-se a memória histórica dos gostos, paixões, ideias, inclinações, potencial de gastos de mais de um milhar de milhão de pessoas e que sabe o que fazer com todos estes dados.

O impacto da “revolução tecnológica” chinesa não é apenas mensurável com a tentativa do Facebook de capturar os segredos comerciais do WeChat. O Ocidente neste momento é confrontado com produtos chineses de alta tecnologia no mercado mundial. A China é um concorrente dos países ocidentais pelo domínio do mercado de Inteligência Artificial, 5G e do mundo dos “grandes dados”. Por esta razão, é importante analisar o nascimento do WeChat, um evento capaz de fornecer chaves para estudar melhor o impacto do desenvolvimento chinês de alta tecnologia em todo o mundo. Para compreender porque é que o Facebook está interessado no WeChat, porque é que o Google teria cooperado com o governo chinês para criar um motor de busca, porque é que o “Great Firewall” (o sistema que bloqueia a visão do conteúdo indesejado) é uma espécie de guia para todos os Estados interessados no controlo da informação (especialmente na Europa Oriental), porque é que o próximo desafio entre a China e o mundo ocidental será o 5G e a Inteligência Artificial e o seu potencial de controlo científico, comercial e social, é necessário olhar cuidadosamente para a história dos actuais líderes do mercado chinês.

A história do WeChat e Tencent, a empresa que “inventou” a famosa aplicação, conta muito sobre o que a China é, o que poderíamos ser amanhã, e também esclarece a forma como as empresas chinesas foram capazes de tornar o seu know-how ocidental próprio para produzir novos produtos capazes de se imporem no mercado global. O universo tecnológico chinês é um território onde as empresas treinadas por uma concorrência muito dura se movem, onde não faltam golpes que são proibidos e onde se sente a presença constante do Estado. Neste sentido deve ser feito um esforço pois a China, para além de ser liderada por um governo forte, tem um mercado interno muito vivo, complicado e em constante mudança. A história do WeChat tem as suas raízes em Shenzhen, uma cidade do sudeste da China. Nos anos 1970, o então líder chinês Deng Xiaoping compreendeu a necessidade do país de entrar no mercado mundial para tirar a sua população da pobreza geral.

E como parte do plano de “aberturas e reformas”, a aldeia piscatória de Shenzhen tornou-se uma “zona económica especial” e, como tal, foi esmagada pelo rápido desenvolvimento. A passagem de centenas de milhões de pessoas acima do limiar da pobreza ao longo de duas décadas é um acontecimento único na história humana e explica em parte porque é que o Partido Comunista Chinês, o criador e líder deste processo, é ainda hoje tão central para a sociedade. Desde o final dos anos 1970, os agricultores ou camponeses tornaram-se progressivamente a força de trabalho especializada na produção manufactureira.

As grandes empresas estatais foram privatizadas, chegaram as primeiras joint-ventures com utilização de capital estrangeiro. Baixos salários, alta intensidade de trabalho, preços baixos nos mercados ocidentais – a “fábrica do mundo” estava em pleno andamento, moendo o PIB, inundando os mercados ocidentais com os seus produtos. Com o tempo, esta riqueza começou a circular e os que tinham melhores ligações puderam aproveitar ao máximo a enorme urbanização do país.

A produção industrial e imobiliária começou a estar cada vez mais ligada e apareceram os primeiros bilionários chineses, os que atraíram a maior atenção dos meios de comunicação ocidentais. Mas não é tudo pois nesses anos, os rebentos de uma classe média amadureceram, o que constitui um motor fundamental do país. As três gerações da família representam esta evolução de uma forma plástica, o avô era agricultor, o pai era comerciante de meias produzidas em Shenzhen, o filho tornou-se um empresário no mundo da tecnologia e produz micro baterias movida a energia solar. À medida que o destino das pessoas mudava, o mesmo acontecia com as cidades. Durante a década de 1970, Shenzhen tinha-se tornado um dos centros de fabrico do mundo a partir de um pequeno porto. Nos anos de 1990, começou a tornar-se uma incubadora de empresas tecnológicas.

Actualmente é considerado o Vale do Silício chinês (em Shenzhen tem os seus escritórios também a Huawei, uma empresa líder na produção de smartphones e infra-estruturas de rede). Em Shenzhen, em 1998, Ma Huateng, de 27 anos de idade, fundou a Tencent, uma empresa tecnológica cujo produto principal era um sistema de mensagens, QQ, inspirado por uma tecnologia israelita (ICQ, produzida pela empresa de arranque Tel Aviv Mirabilis) e muito semelhante ao “Messenger” do Microsoft Windows ou AOL (que no final dos anos de 1990 denunciou a Tencent por ter copiado o seu próprio Messenger). Mas Huateng pressentiu a possibilidade de melhorar a tecnologia israelita, graças à experiência adquirida na sua actividade anterior no negócio “pager”. Pony Ma, como ele próprio se chama e como Ma Huateng é conhecido em todo o mundo, decidiu acrescentar algumas características ao QQ e permitiu primeiro a cada utilizador aceder à sua conta a partir de qualquer computador da rede.

De facto, deve considerar-se que até pouco antes apenas se podia aceder à sua QQ a partir de um local fixo do qual a sementeira foi descarregada. Neste sentido, Pony Ma apenas adaptou a sua criatura ao progresso da rede no país. Até esse momento, de facto, os chineses ligavam-se à Internet principalmente em cibercafés, lugares famosos por serem frequentemente fetiches. Mas Huateng percebeu o potencial da Internet na China, o que resultou na explosão das vendas de computadores pessoais, computadores portáteis e redes privadas de Internet. É de recordar que em 2006, a ligação doméstica estava aliada à rede com um ADSL e custava quase 8 euros por mês e dentro de quatro anos, o WiFi estaria em todo o lado a um custo muito mais baixo.

Pony Ma foi capaz de capturar e explorar esta mudança de época. Em segundo lugar, graças a um acordo inicial com a companhia telefónica estatal da região de Guangdong (em 2001 tinha feito acordos em todo o país), Pony Ma permitiu também conversas entre computadores pessoais e o sistema de mensagens para telemóveis. Finalmente, colocou nos jogos de software, gadgets (os mais populares foram os avatares QQ) que deram vida aos lucros a Ma e aos seus associados que aumentaram ainda mais a partir daí, com a criação de uma plataforma QQ de bloggers. Mais uma vez, os lucros vieram dos gastos dos utilizadores para melhorar e personalizar o seu blogue. O processo de transformação da economia chinesa deu uma viragem fundamental em 2008, quando o contexto mudou completamente. A crise do subprime e, de um modo mais geral, a economia ocidental tinha levado a liderança chinesa a repensar o seu modelo de desenvolvimento baseado nas exportações. Até esse ano, o sucesso e crescimento da China dependiam quase exclusivamente da sua função de “fábrica do mundo”, ou seja, produtora de quantidades gigantescas de bens de baixo custo.

Em 2008, este sistema foi radicalmente alterado pois a queda nas encomendas de produtos chineses dos mercados ocidentais obrigou o governo chinês a alterar o seu sistema de produção económica. O mantra que acompanhou o crescimento da “sociedade harmoniosa” começou a ser “menos quantidade, mais qualidade”.

Também começou a ser concebido um abrandamento económico, a fim de garantir um desenvolvimento mais sustentável e, sobretudo, um maior impacto em termos de rendimentos. Graças aos recursos económicos acumulados nos anos anteriores e ao regresso de muitos chineses que tinham estudado e trabalhado no estrangeiro, o governo decidiu investir fortemente na inovação e nas novas tecnologias. Em 2008 teve início a transformação da China num país impulsionado pela economia digital.

Os líderes no poder tinham insinuado que o futuro do país passaria pelo mercado interno e a capacidade de inovação das empresas nacionais. O sentimento era o de viver num país em grande transformação, com uma energia ilimitada e uma população que começava a perceber que estava em meados do seu “século”. Parecia apto para encerrar o processo que tinha feito da China um lugar onde as competências estrangeiras eram muito procuradas; após a crise de 2008 no Ocidente, depressa se tornou claro que a China estava agora preparada para o fazer sozinha.

23 Set 2020

O ponto do marido, as episiotomias de rotina e as grávidas que ficam por ouvir

[dropcap]O[/dropcap] ponto do marido é uma prática obstétrica que não consta nos manuais médicos. Há quem diga que é um mito: e de facto há qualquer coisa de misterioso à volta deste ponto. Não há uma narrativa científica de como veio ou de como se propagou, ou se existe exactamente como ‘ponto do marido’ que se insinua. No imaginário e na preocupação das grávidas existe de certeza. No imaginário público existe cada vez mais, já que se torna mais comum discuti-lo e analisá-lo. Antes da peça publicada pelo jornal Público no início do mês de Setembro, eu era uma ignorante do ponto. Mas o ponto precisa de um contexto, e o contexto é o da episiotomia de onde surge, supostamente, como consequência.

No momento de parir, quando os profissionais médicos acham que o canal não está francamente aberto para possibilitar o nascimento, realizam um corte no períneo, que se chama episiotomia. Quando se sutura este corte, com vários pontos, diz-se que o ponto do marido é o ponto que está a mais. As motivações mais pessimistas para este ponto realçam a tendência de ver o corpo gestante ao serviço dos outros. O foco no prazer masculino numa altura como aquela é um claro exemplo. Mas há quem diga que este ponto serve para ajudar a criar mais estrutura no períneo, para que não fique laço e flácido. As boquinhas de que ‘aperta-se mais um bocadinho, porque ele vai gostar’ é, supostamente, gozo. Uma brincadeirinha. Ninguém faz pontos mais apertados a pensar nos homens, fazem-no porque traz vantagens a quem está a parir, supostamente.
Mas ainda há mais conteúdo por digerir. Como qualquer assunto que envolva sexo, genitais, género e bebés.

De acordo com a OMS, recomenda-se que a episiotomia seja feita em 20 por cento dos partos. Em Portugal – dados de Macau não são de fácil acesso – 70 por cento dos partos levam com esta prática. Os dados da China continental também apontam para a regularidade do procedimento. Em vez de usado quando estritamente necessário, é usado como rotina. Já é mau o suficiente que a episiotomia seja tão popular.

Agora, sair disso, ainda, pontos que podem trazer mais complicações – dor na relação sexual, infecções, incontinência e desconforto geral – sinaliza um total desrespeito pelas pessoas que estão a parir. Mito ou não, há coisas que acontecem que não deviam acontecer.

As associações pelos direitos da mulher na gravidez e no parto, como existe em Portugal, ajudam a esclarecer a desarmonia que existe entre o contexto hospitalar e médico e o que acontece no momento de parir. Tudo bem que os partos destes nossos homo sapiens sapiens não são particularmente fáceis. Parece que esta estrutura, ao evoluir para encaixar a nossa capacidade bípede, tornou os partos mais difíceis do que nos outros mamíferos. As ancas estreitaram-se para andarmos erectos e os problemas no parto começaram.

Contudo, esta não deverá servir como desculpa para tornar o parto mais médico e menos natural. Uma coisa são doenças que o nosso corpo não sabe combater, outra coisa é parir, e para isso, o nosso corpo deve ter algum conhecimento.

O suposto ‘ponto do marido’ e as episiotomias de rotina são sintomas da desvalorização da experiência da grávida em detrimento da prática médica. Só que estes domínios não devem ser incompatíveis. As associações, grupos e até partidos políticos andam a dar voz às experiências de parir que não são ouvidas, outras que nem conseguem falar. Pessoas com planos de partos que não os vêm respeitados, mulheres que nem foram avisadas que lhes fizeram uma episiotomia – só se apercebem quando o efeito da epidural passa e as dores dos pontos as ataca. Mulheres que desenvolvem complicações graves, e que poucos lhes dão ouvidos.

O mais surpreendente nisto tudo, é que, na minha pesquisa (pela diagonal, veja-se) em bases de dados científicas, parece que está tudo bastante alinhado. Não há mesmo evidência de que as episiotomias de rotina tragam mais vantagens às mães, aos bebés ou aos pais. Parece ser consensual que a episiotomia, como prática de rotina, é desaconselhada por completo. A forma como este saber científico não chega à sala de partos é que nos deixa confusos. Deixa-nos a ponderar, que forças serão estas, as que moldam e desvalorizam a representação e voz da mulher grávida e parturiente?

22 Set 2020

Ponto da situação em Hong Kong

[dropcap]N[/dropcap]o passado dia 16, o Governo de Hong Kong deu uma conferência de imprensa onde anunciou que cerca de 1.780.000 residentes se tinham voluntariado para participar no programa de testagem universal ao novo coronavírus, destes, apenas 42 apresentaram resultados positivos. O Executivo da cidade contribuiu apenas com a verba de 530 milhões de dólares de de Hong Kong para cobrir as despesas do programa, dos quais 370 milhões se destinaram a pagar os salários do pessoal médico e das equipas de apoio ao processo de testagem.

O programa foi levado a cabo pela equipa de testagem do ácido nucleico, vinda do continente expressamente para este fim. Uma vez terminado o processo, cerca de 600 membros da equipa regressaram ao continente. Ao chegarem à China, ficaram todos sujeitos a uma quarentena de 14 dias. Os investigadores responsáveis sugeriram que a testagem se deveria repetir na passagem do Outono para o Inverno, para controlar o novo surto epidémico. Afirmaram ainda que enviarão de novo as equipas para Hong Kong sem qualquer hesitação. Estas palavras aquecem-nos o coração.

Hong Kong tem actualmente 7,5 milhões de habitantes. Apenas 1,78 milhões participaram neste programa, ou seja, cerca de um quarto da população. Como salientámos no artigo da semana passada, o sucesso deste programa não é apenas determinado pelo número de participantes, mas sim pelos portadores assintomáticos identificados com sucesso, porque basta um para pôr em causa o esforço de controlo da epidemia em Hong Kong. Só identificando os portadores e quebrando as cadeias de transmissão, se conseguirá que a vida das pessoas volte ao normal.

Hong Kong precisa de equipas de apoio para implementar este programa. Numa certa medida, indica que o sistema de saúde da cidade não consegue suportar acções de larga escala. Este facto é digno de alguma reflexão. Quando o vírus apareceu, ao contrário do que aconteceu em Macau, o Governo de Hong Kong não foi capaz de implementar o plano de fornecimento generalizado de máscaras à população. Depois de muitos esforços, apareceu finalmente a máscara com filtro de cobre, mas o seu fabrico deu origem a uma polémica.

As máscaras com filtro de cobre são produzidas apenas por um fabricante e as pessoas questionaram a transferência deste negócio do sector público para o sector privado. Além disso foi também posta em causa a eficácia destas máscaras em termos de protecção. As máscaras foram também criticadas pela sua aparência, dizia-se que pareciam “roupa interior”. Como a população continua a crescer em Hong Kong e os vírus são cada vez mais perniciosos, o Governo local deve colocar o seu foco no fortalecimento do sistema de saúde e na prevenção e combate às epidemias.

Para além das medidas sanitárias já anunciadas, o Governo de Hong Kong vai aplicar 24 mil milhões de dólares locais no terceiro fundo de combate à epidemia. Depois deste anúncio, muitas pessoas criticaram a redução de verbas o que significa que quem se encontra em situação difícil vai receber menos apoio. O Secretário da Administração declarou que depois de contabilizar as verbas do fundo de apoio, o Governo espera que o próximo ano fiscal venha a ter um deficit de 300 mil milhões. No entanto, ainda existem mais 800 mil milhões das reservas fiscais fiscal, o equivalente às despesas do Governo de Hong Kong durante 12 a 13 meses.

O que quer isto dizer exactamente? Para simplificar, significa que se o Governo de Hong Kong não tiver receitas durante um ano, estes 800 mil milhões podem ser gastos para suportar as despesas. Mas, nesse caso, as reservas ficam a zeros. A cidade ainda não conseguiu erradicar a epidemia. Podemos vir a necessitar de um quarto fundo de apoio. Os três primeiros foram respectivamente de 30 mil milhões, 130 mil milhões e 24 mil milhões, num total de184 mil milhões. Perante a necessidade de um quarto fundo de investimento, e com as reservas em baixo, onde é que o Governo pode ir buscar o dinheiro necessário para apoiar as pessoas e a economia?

Para além do mais, a economia da cidade ainda não recuperou. Muitas empresas não estão a laborar na totalidade devido ao alto risco de transmissão da infecção. Mesmo depois do fim da pandemia, a economia ainda vai levar algum tempo para se restabelecer. Ninguém sabe quanto tempo vai ser necessário. Durante o período de recuperação, o Governo vai certamente receber muitos pedidos de apoio. Tendo isto em consideração, os 800 mil milhões das reservas fiscais, não são uma grande margem. Será que nessa altura teremos de considerar seriamente os conteúdos do Artigo 107 da Lei Básica de Hong Kong que estipula “equilibrar as despesas e evitar os déficits”?

O melhor que o Governo de Hong Kong pode fazer para já é combater a epidemia e recuperar a economia o mais rapidamente possível. Ao mesmo tempo, terá de pensar cuidadosamente sobre a forma de melhorar a sua situação financeira. Para isso terá simplesmente de “aumentar as receitas e reduzir as despesas.” O principal veículo para o aumento das receitas é a subida dos impostos. Mas, nas circunstâncias actuais, tal será impossível. Contar apenas com a redução de despesas é uma forma muito simplista para o melhoramento da situação fiscal.

A China e Macau conseguiram efectivamente achatar a curva epidémica, a indústria do jogo em Macau em breve estará a facturar normalmente, pelo que as receitas do Governo voltarão a aumentar. Se Hong Kong quiser alterar a sua situação financeira, terá de procurar novas fontes de rendimento, para ter mais dinheiro e reforçar o sistema de saúde.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
21 Set 2020

Ai, Portugal, Portugal

 O anti-benfiquismo é político

[dropcap]A[/dropcap]qui em Portugal está tudo a ficar doido. Estou à vontade a escrever sobre o Benfica porque até sou portista. Mas, na verdade a loucura absolutamente anti-benfiquista é uma campanha política porque tem sido ao longo da semana passada um fartote de críticas por parte de políticos destacados e de personalidades que não gostam do primeiro-ministro António Costa. Temos em jogo, sem árbitro, uma panóplia de noticiários radiofónicos e televisivos, já não falando da imprensa, que tem abordado o facto de António Costa e Fernando Medina, presidente da edilidade lisboeta, terem sido escolhidos por Luís Filipe Vieira como fazendo parte de uma lista com mais 498 nomes para apoio à sua futura recandidatura à presidência do clube encarnado. E digo que está tudo doido ao criticarem Costa e Medina quando estas duas personalidades sempre foram sócios do Benfica e convidados a assistir aos jogos na tribuna do estádio da Luz. Então, um sócio de um clube não tem o direito e a liberdade de escolher um candidato? Não pode fazer parte de uma comissão de honra do seu candidato preferido? A demagogia tem imperado nas críticas dos mais distintos quadrantes nas redes sociais. Alvitram os detractores que a o cargo de primeiro-ministro e de presidente de Câmara é incompatível com o apoio a um candidato a presidente de um clube de futebol. Que o candidato Luís Filipe Vieira tem processos em tribunal e dívidas bancárias. Mas o que tem a ver o cu com as calças?

Para sermos sérios temos que concordar que António Costa e Fernando Medina são sócios do Benfica e nessa condição têm acompanhado as vitórias e derrotas do seu clube, vibrado com os golos como os sócios de outro qualquer clube, têm tomado conhecimento das dificuldades em dirigir um clube com a grandeza do Benfica, sabem dos balanços financeiros anuais, ocupam-se com a vida do clube e, talvez, por isso, é que preferem determinado candidato a dirigir os destinos do clube. Se Luís Filipe Vieira tem problemas judiciais, isso é uma questão com os tribunais. Nada tem a ver com a política. Se Vieira na qualidade de candidato à presidência do Benfica escolheu 500 sócios para a sua comissão de honra porque não vieram à baila os outros nomes? Naturalmente, que houve uma intenção de matar dois coelhos com uma cajadada. Assim, os alvos das críticas têm sido Luís Filipe Vieira e António Costa. Vieira porque se tem processos no Ministério Público não tem credibilidade e seriedade para dirigir o clube, com os críticos a esquecerem-se do que diz a lei ao referir que até em julgado todo o cidadão é inocente. Por outro lado, António Costa leva pela medida grossa porque é o secretário-geral do Partido Socialista e é importante para os políticos adversários mancharem a sua imagem o mais possível com a mira de em futuras eleições poderem destroná-lo, esquecendo-se que as sondagens dão os socialistas perto da maioria absoluta.

É óbvio que a proximidade entre a política e o futebol causa sempre polémica, mas neste caso, o primeiro-ministro fez muito bem em afirmar que não tem nada a dizer sobre o assunto porque a sua posição no clube da Luz nada tem a ver com a sua participação política na vida pública. Só que assistimos a posições descabidas e intencionais com o fim de denegrir a imagem de Costa. Acusam-no de promiscuidade, que os negócios do futebol são sujos e ilegais, que se Luís Filipe Vieira está a contas com a justiça também António Costa ao apoiar um dirigente com problemas judiciais passa a ter o mesmo carisma. Nada mais errado. O que tem o primeiro-ministro a ver com contratações ou vendas de jogadores, com obras no complexo do Seixal, com os funcionários do clube que andaram ligados ao mundo da droga, com as pesquisas ilegais efectuadas pelo hacker Rui Pinto? Que eu saiba, nada. Sendo assim, há que ter um pouco de seriedade mental ao acusar-se uma pessoa com um cargo de Estado sem ter os fundamentos legais. Direi mais, sem eu ter qualquer ligação partidária: António Costa teria todo o direito de mover uma queixa-crime contra os principais adversários políticos que deixaram na praça pública a ideia de que o socialista primeiro-ministro era igual ao “vigarista” Luís Filipe Vieira. Há acusações e insinuações intoleráveis. Não pode valer tudo em política e na rivalidade clubística. Quem não for benfiquista deve respeitar o bom nome do clube representado pelos seus directores eleitos. Se não se gosta de um primeiro-ministro e pretende-se efectuar uma luta política, arranjem-se argumentos políticos com veracidade para essa mesma luta. A semana que passou fica tristemente marcada pela demagogia e radicalismo demonstrado por certas facções políticas e desportivas. Portugal não pode continuar a assistir à destruição do carácter sem qualquer lógica de quem ocupa lugares cimeiros no espólio político.

O mais lamentável é que Luís Filipe Vieira acabou por retirar os nomes dos sócios benfiquistas António Costa e Fernando Medina da comissão de honra para a sua recandidatura alegando que a “companha difamatória e ofensiva” contra as duas individualidades e contra ele próprio “está a ultrapassar todos os limites”. Os detractores ganharam o jogo, sem árbitro.

20 Set 2020

Avante! pelas novas economias

[dropcap]E[/dropcap]m tempos de pandemia global, a edição deste ano da Festa do Avante! não foi apenas mais que um festival, como nos outros anos: desta vez foi também mais do que uma acção política e mediática, o que tem sido amplamente discutido, e foi ainda mais do que uma alternativa económica que merece e importa discutir, o que não tem sido o caso. Esclareço que não sou membro nem dedicado simpatizante do partido que organiza o evento, mas que sou praticante de longa data da Festa: não é que tenha estado logo na primeira edição, no exíguo espaço da antiga FIL, mas tive a sorte de ter pais com a sensatez necessária para me levarem às duas edições seguintes, no Vale do Jamor, e depois de continuar por conta própria, na Ajuda, com um grupo de amigos a rumar do Algarve a Lisboa em tempo de férias. Menos sensatamente, até me desloquei a Loures, quando já era estudante na capital, e várias vezes estive na magnífica Quinta da Atalaia, onde o evento acabou por se instalar em definitivo. Recomendo vivamente, portanto, ainda que circunstâncias da vida neste precário planeta me tenham levado a paragens bastante distantes e hoje inacessíveis, com as vigentes restrições à mobilidade.

Foi, no entanto, uma edição muito pouco recomendada, como se viu. Escuso de me alongar sobre este assunto, tão amplamente discutido e com base em tão fraca informação, mas retenho o detalhe que me parece mais relevante: a falsa informação, difundida por ignorância, preguiça ou má-fé, não é exclusivo da internet ou das chamadas “redes sociais”: na realidade, o suposto tratamento de excepção alegadamente atribuído à Festa por conveniência de acordos políticos entre o governo e o Partido Comunista não foi apenas agitado por partidos opositores, com agendas mais ou menos populistas: foi assim tratado também pela imprensa de referência planetária, sem investigação, sem contraditório, sem nada que se pareça com jornalismo. Não seria preciso grande trabalho para se perceber que não houve qualquer excepção, apesar da gritaria generalizada.

Menos discutida foi a questão económica: não a relevância que a Festa possa ou não ter para as finanças de quem a organiza, também ela tanto e tão pobremente discutida, mas o modelo económico em que a sua produção assenta – ou de como é relevante a economia da partilha e as formas de regulação que ultrapassem (pela esquerda, naturalmente) o mercado, em ocasiões como a que vivemos, em que uma pandemia toma conta do planeta, põe em causa incertas e desreguladas globalizações e questiona – ainda mais – a eficácia do papel dos mercados enquanto reguladores da afectação de recursos necessários às necessidades humanas: da economia, portanto. Sobre esse “fecho do mercado” e suas implicações escrevi em crónica anterior e aí referia a situação de miséria para a qual caminhava larga parte da população trabalhadora, sobretudo a que vive de formas precárias de contratualização (ou de não-contratualização, tão frequentemente), dependente de instáveis fluxos de procura. Em particular, todos as pessoas que vivem da produção de espectáculos e intervenções culturais dirigidas a um público começavam na altura a sofrer as consequências desta paralisação do sistema económico e desde então a sua situação só se agravou. A Festa do Avante! também deu a isso uma resposta que não mereceu grande discussão e reflexão, mas que voltará inevitavelmente.

As regras impostas para a salvaguarda da saúde pública na prestação de serviços (incluindo a realização de eventos) que impliquem a concentração física de pessoas num determinado local são necessárias e inevitáveis mas também é inevitável que destruam (ou, no mínimo, que perturbem muito significativamente) toda a lógica económica tida em conta quando se planeou um determinado “modelo de negócio” associado à prestação de um determinado serviço (o que pode incluir a produção de eventos culturais e espectáculos). Em condições normais, todo o investimento que é feito (aquisição ou aluguer de edifício e equipamentos permanentes ou temporários, mobiliário, decoração, comodidades várias, contratação de pessoas, aquisição de matérias-primas ou produtos intermédios, divulgação e publicidade, seguros ou diversos serviços técnicos mais ou menos especializados), implica também um cálculo sobre a rentabilidade futura, uma previsão do que poderão vir a ser as receitas, uma expectativa mais ou menos realista sobre a capacidade de o projecto em questão, seja ele qual for, gerar rendimento suficiente para cobrir todos esses custos. Ao implicar uma significativa redução na ocupação dos espaços, a nova regulamentação põe em causa toda a eventual racionalidade económica que suporta os projectos actualmente em funcionamento – e para isso não parece mecanismos económicos baseados no funcionamento dos mercados que permitam resolver os problemas.

A realização da Festa do Avante! mesmo nas adversas condições económicas a que obrigam as restrições em vigor para eventos públicos suscita pelo menos duas questões de relevo para se discutirem formas de regulação económica: por um lado, se há receitas significativamente mais baixas e os custos de produção são mais altos, a variável de ajustamento mais razoável é o lucro de quem promove o evento – e esse é mais facilmente regulado numa organização sem fins lucrativos do que numa empresa em que, por definição, a maximização do lucro é assumida como o objectivo central (e daí as empresas organizadores de grandes eventos como os festivais de verão terem cancelado tudo); por outro lado, a partilha voluntária de recursos (incluindo tempo de trabalho gratuito) entre quem decide apoiar o evento permite operar sobre outra variável económica (os custos de produção, que são, apesar de toda a selvajaria precarizante, menos flexíveis numa empresa com fins comerciais).

17 Set 2020

A Covid-19 e as desigualdades sociais

“What is true of all the evils in the world is true of plague as well. It helps men to rise above themselves.
Albert Camus

 

[dropcap]O[/dropcap] vírus da Covid-19 está a tentar destruir-nos, moralmente, psicologicamente e fisicamente. Quero acreditar que não terá sucesso, mas temos de aprender com o que nos está a acontecer.

Devemos insistir que muito mais dever ser investido na saúde pública e na investigação, por exemplo, o que é exactamente o oposto do que se tem feito. No entanto, também não creio que seja suficiente. Considerando que estamos perante uma pandemia, as respostas não podem ser apenas locais, regionais ou estatais.

Devem ser globais. Precisamos de reflectir sobre a direcção que seguimos, e não podemos deixar de repensar a relação entre nós, seres humanos, e a natureza que nos acolhe. Uma natureza que nos pode proteger mas que também nos pode destruir, como nos mostrou muitas vezes.

Esta pandemia é também o resultado de uma subestimação da ligação entre o bem-estar humano e a protecção dos ecossistemas e da natureza selvagem. Quanto mais cedo compreendermos, mais cedo seremos capazes de nos defender contra ameaças futuras. Porque, estou convencido que está tudo muito bem atado, demonizado, rejeitado ou loucamente amado senão venerado. É quase mais rápido do que a luz e percorre distâncias muito longas em segundos. É por vezes sincero, outras vezes mentiroso. É capaz de perceber a particularidade, mas não a essência. No mundo digital, anti-físico, onde as distâncias são encurtadas e estamos todos mais próximos, é onde vivemos nestes estranhos dias. É aí que nos podemos ver, ouvir, mas não tocar. Não consigo sentir a brisa leve no rosto, a superfície aveludada de uma flor ou o cheiro de um jasmim para além do que existe neste ecrã.

É aqui mesmo, o lugar onde vivemos apenas a meio caminho, este limbo que abençoamos e amaldiçoamos ao mesmo tempo porque não temos alternativa. E para dizer que quando éramos livres de escolher, escolhemo-lo demasiadas vezes. Na vida temos de aprender a apreciar o que temos e não esperar o que nos falta. Por isso, agora que não temos alternativas, não há problema. Mas lembremo-nos de escolher amanhã.

A greve digital e a luta pelo ambiente O mundo digital sempre dividiu a opinião pública mas, há que reconhecê-lo, nunca antes se revelou tão fundamental. Os doentes isolados podem dizer adeus às suas famílias, por exemplo. As crianças e os jovens podem continuar as suas actividades educativas, podemos ter a certeza de como os nossos amigos e familiares estão, alguém pode continuar a trabalhar e receber um salário.

A dimensão virtual também está a revelar-se útil para os activistas ambientais. A escolha deste meio, obviamente, vem da necessidade de não desaparecer e ser esquecido e, ao mesmo tempo, da vontade de permanecerem unidos. A Covid-19 privou de facto as reuniões para o futuro de algo fundamental, ou seja, dos espaços de agregação. Ainda agora, depois de anos de lutas ambientais e de ignorar relatórios científicos, tínhamos finalmente conquistado a atenção do mundo, da imprensa, dos Estados e da ONU.

Agora mesmo deveríamos ter estado ainda mais presentes e urgentes, especialmente depois dos resultados falhados do Cop25 em Madrid em Dezembro de 2019. O vírus chega e diz-nos: PAREM. A primeira observação fundamental que podemos fazer, verificável em textos científicos, é que os animais podem actuar como reservatórios de parasitas e vírus que, explorando condições de contacto estreito entre o homem e os animais selvagens, podem fazer saltar as chamadas “espécies”.

Foi assim que se desenvolveram geralmente as grandes epidemias da história humana, desde a praga de 1348 e 1630 até ao Ébola ou SAR. Os vírus são organismos capazes de se reproduzir com taxas de crescimento exponenciais e em muito pouco tempo. Para o fazer, porém, precisam de uma célula chamada “hospedeiro”. Estes microrganismos patogénicos são revestidos de proteínas e gorduras com estruturas complementares às das células que os podem hospedar: para simplificar, é como se tivessem uma chave e a célula hospedeira tivesse a fechadura certa. Isto significa que os vírus podem entrar nas células através deste mecanismo de bloqueio de chave, infectá-las e eventualmente modificá-las de modo a que comecem a replicar o material genético viral em vez do seu próprio material.

Além disso, alguns vírus são capazes de escapar ao sistema imunitário o tempo razoável para infectar células suficientes no corpo que atacaram, sem que este seja capaz de se defender. Neste ponto, o organismo hospedeiro pode teoricamente infectar outros indivíduos mesmo de espécies diferentes, desde que estes não sejam demasiado diferentes a nível genético. Caso contrário, a chave e a fechadura não coincidem e nesse caso… estamos salvos! Infelizmente, não é o fim da história. Precisamente porque se multiplicam em milhões num espaço de tempo muito curto, os vírus podem facilmente sofrer mutações e modificar o seu genoma, adaptando-se a novos ambientes e produzindo chaves diferentes. Muitas destas mutações não atingem o seu objectivo, mas algumas podem ser as correctas para infectar novas espécies.

A probabilidade de isto acontecer aumenta quando as espécies em questão têm uma composição genética semelhante. Por exemplo, é o caso dos porcos e das aves, que são bastante semelhantes em termos genéticos aos humanos, para não mencionar os primatas, como os chimpanzés, com os quais partilhamos 98 por cento do genoma. Cada novo hospedeiro que o vírus patogénico consegue conquistar é uma chave extra na sua posse. Se um vírus tiver a sorte de fazer a espécie saltar com o homem… bingo! Será confrontado com milhares de milhões de indivíduos que gostam de viver em sociedades e de viver em cidades com uma densidade populacional muito elevada. São milhares de milhões de organismos em constante movimento que viajam de uma extremidade do globo para a outra. É assim que se desenvolve uma pandemia. As doenças que os animais nos transmitem são chamadas zoonoses e, em geral, o nosso sistema imunitário não tem a informação para as combater. De acordo com a revista científica “The Lancet”: “Mais de 60 por cento das doenças infecciosas humanas são causadas por agentes patogénicos partilhados com animais selvagens ou domésticos. As zoonoses emergentes representam uma ameaça crescente para a saúde global e causaram prejuízos económicos de centenas de milhares de milhões de dólares nos últimos vinte anos”.

Existe realmente uma ligação entre a pandemia que enfrentamos e o nosso modo de vida? Podemos aprender alguma lição com ela? Sim, tanto quanto se pode ver, existe uma ligação. As alterações no uso do solo antropogénico conduzem a uma série de surtos de doenças infecciosas e eventos de emergência.

Modificam a transmissão de infecções endémicas típicas de uma determinada área do planeta. Estes condutores incluem invasões agrícolas, desflorestação, construção de estradas e barragens, irrigação, modificação de zonas húmidas, mineração, concentração ou expansão de ambientes urbanos. Estas mudanças causam uma cascata de factores que exacerbam o aparecimento de doenças infecciosas. Para além da Covid-19, há vários exemplos de doenças causadas pela acção humana contra a natureza, incluindo a leishmaniose e a febre-amarela.

A violação de ambientes não contaminados coloca o homem em contacto com novos seres vivos e, enquanto novas espécies podem ser descobertas, existe o risco de entrar em contacto com vírus e parasitas para os quais não desenvolvemos defesas imunitárias. Além disso, muitas espécies selvagens vêem-se obrigadas a abandonar o seu habitat invadido e, em busca de abrigo ou alimento, tendem a aproximar-se dos centros urbanos. Existem várias causas relacionadas com a questão ambiental que podem ter causado e facilitado a propagação do coronavírus pois as alterações climáticas que modificam o habitat dos vectores animais destes vírus, intrusão humana num número crescente de ecossistemas virgens, sobrepopulação, frequência e velocidade de circulação de pessoas.

Claro que, de momento, não temos qualquer certeza sobre como este nível de propagação do vírus foi atingido. Está mesmo a ser questionado se o primeiro surto ocorreu na China. O que podemos certamente ver, no entanto, é que desde que o confinamento começou e a grande maioria das pessoas deixou de sair e muitas fábricas e actividades de produção, assistimos a uma redução drástica da poluição por dióxido de azoto em todo o mundo. Os países e regiões que foram primeiro sujeitas às medidas mais restritivas houve uma redução enorme de CO2 causada pelo tráfego de veículos. O encerramento de escolas, escritórios e lojas levou a uma redução ainda maior de dióxido de carbono devido aos sistemas de aquecimento em apenas uma semana. A diminuição para níveis mínimos de tráfego aéreo fez reduzir de forma brutal as reduções de CO2! Alguns de nós não terão sequer escapado às imagens difundidas nos jornais e nas redes sociais das águas transparentes de rios que atravessam algumas cidades Europeias, dos golfinhos que reapareceram ou de coelhos e lebres que se apropriaram de parques.

A natureza está presente em todas as nossas cidades e, se lhe dermos espaço, voltará para nos visitar e para nos lembrar que poderíamos viver pacificamente juntos. Esta deve ser uma das reflexões a trazer para a agenda, quando pudermos recomeçar de novo. As emergências que vivemos e a agitação de hábitos a que tivemos de nos adaptar não são o resultado de uma escolha livre e de uma verdadeira mudança na nossa mentalidade, mas medidas necessárias para lidar com uma ameaça à nossa saúde. A pandemia não é, nem pode ser, uma coisa boa na luta contra as alterações climáticas. Houve uma redução nas emissões e na poluição, depois de todos termos tido de nos fechar de um dia para o outro, é verdade, mas não é obviamente um exemplo virtuoso a seguir.

Uma sociedade com emissões zero não é uma sociedade onde tudo deve ser congelado, onde nada é produzido e onde não há socialidade. Pelo contrário, é o oposto! Queremos uma sociedade que não se feche, que evolua, que olhe para o futuro e utilize os seus meios para produzir melhor e de forma mais sustentável para o planeta e para os seres vivos que o povoam. Se, uma vez terminada a crise, fizermos um esforço para mudar um pouco os nossos ritmos, se investirmos e empenharmos numa estrutura produtiva menos invasiva, se deixarmos à natureza o seu espaço, poderá voltar a ser um aliado e não um perigo. Com a Covid-19, estamos a tomar nota de como uma partícula minúscula pode prejudicar o funcionamento de todo o tecido social, económico e produtivo que construímos ao longo de centenas de anos.

O tamanho de um vírus é da ordem de um nanómetro (ou seja, um bilionésimo de metro). Contudo, um organismo tão pequeno é capaz de nos pôr a todos de joelhos, no mesmo nível e forçados a respeitar as mesmas regras. Talvez este caso esteja a reformular as ilusões de grandeza e poder do homem, que se sentia o governante absoluto do que o rodeia. O coronavírus está a abrir-nos os olhos para a fragilidade dos nossos sistemas face a grandes catástrofes, e isto assusta-nos. Mas existem outras ameaças, igualmente graves, às quais devemos prestar atenção. Basta pensar nos incêndios que devastaram vastas áreas da natureza, desde a Amazónia até à Austrália.

Estas ameaças provêm de um desequilíbrio na relação entre o homem e o ecossistema e estão todas ligadas. Estamos perante um cenário que nos mostra onde iremos parar se optarmos por não mudar os nossos hábitos. Utilizemos então a paragem forçada das nossas actividades para reflectir. Sobre o quê? Sobre a possibilidade do presente poder tornar-se um período de transição para um futuro diferente. Mais sustentável, consciente e solidário. Como vamos ser diferentes depois da Covid-19? Ainda que o coronavírus nos faça a todos iguais quando confrontados com os riscos e as regras que temos de seguir, permanecemos muito diferentes tanto na forma como enfrentamos este momento difícil como nos meios que temos para o fazer.

Há muitas pessoas que estão desempregadas e que não sabem se poderão pagar o arrendamento do próximo mês. As pessoas que se encontram em dificuldades financeiras desde muito antes do surto da pandemia que lutam para fazer compras e que não têm um computador ou uma ligação à Internet permanecendo muito isoladas. Pessoas solitárias sem familiares ou amigos com quem falar, idosos e deficientes que não têm ninguém para os cuidar. Para não mencionar as muitas pessoas sem casa, numa altura em que um telhado parece ser a única coisa realmente necessária.

Se reflectirmos sobre o amanhã, poderemos perguntar se seremos capazes de construir uma sociedade diferente, se nos lembraremos das dificuldades que tantas pessoas estão a enfrentar, não só por causa do coronavírus, mas por causa do sistema que temos alimentado. Um sistema que só pensa no sucesso, no lucro, na produção e deixa os mais fracos para trás. Uma estrutura como esta não é sustentável, nem ambiental nem socialmente. Os dois aspectos, de facto, estão intimamente ligados e influenciam-se um ao outro. De acordo com o último Relatório Social Mundial 2020 intitulado “Desigualdade num mundo em rápida mudança” e publicado pelo Departamento de Assuntos Económicos e Sociais da ONU, a diferença entre o rendimento médio dos 10 por cento mais ricos e dos 10 por cento mais pobres da população mundial é actualmente 25 por cento maior do que seria se o nosso planeta não estivesse doente. Por outras palavras, as alterações climáticas afectam o fosso de rendimentos ao aumentarem as desigualdades sociais.

Os números mostram também que não afecta todos da mesma forma. Ficou provado que o aumento das temperaturas melhorou as economias dos países mais desenvolvidos, ao mesmo tempo que travou o crescimento, com consequências desastrosas, dos mais pobres. Além disso, no que diz respeito às desigualdades sociais, não nos referimos apenas às diferenças entre países, mas também à falta de homogeneidade, muitas vezes enorme, entre os habitantes de um mesmo Estado. No Bangladesh, por exemplo, muitas famílias de baixos rendimentos vivem em bairros de lata normalmente localizados em zonas baixas. Durante o ciclone de 2009, uma em cada quatro famílias pobres foi atingida pela tempestade, enquanto uma em cada sete famílias mais ou menos ricas foi afectada. O mesmo aconteceu, em 2009, com o Furacão Katrina em Nova Orleães pois as pessoas que vivem em bairros da classe trabalhadora, ou seja, famílias de baixos rendimentos, sofreram os piores danos.

Esta pandemia está a confrontar-nos com outra prova importante que são as desigualdades sociais que não são apenas um problema para os países pobres, mas também para o Ocidente opulento. Será que o sabíamos? Talvez sim, mas tornou-se realmente difícil ignorá-lo. A questão é se não seremos capazes de o esquecer? Seremos capazes de insistir que o crescimento económico tome uma direcção e um ritmo diferentes? Que investimos mais em instalações que trabalham para o bem-estar das pessoas e do planeta, tais como saúde, educação, investigação científica e experimentação de novas tecnologias?

Seremos capazes de nos concentrar na sustentabilidade, ecologia, solidariedade e igualdade entre os seres humanos? Por um lado, receio que, uma vez fora da crise, o primeiro pensamento para muitos, especialmente entre os grandes líderes mundiais, será o de regressar à produção e ao consumo como antes. Pelo contrário, mais do que antes, para compensar o que foi perdido neste período de inactividade e renúncia e para produzir tanto num curto espaço de tempo, é improvável que os caminhos sejam diferentes e mais sustentáveis do que os utilizados até agora. Especialmente se a nossa procura de bens, em vez de diminuir por nos termos tornado mais conscientes, aumentará ainda mais, juntamente com as desigualdades.

Receio que, em vez de retirarmos lições do que aconteceu, nos comprometamos a consumir indiscriminadamente o que resta do mundo não contaminado e natural, acabando por gerar uma crise ainda pior do que a actual. Por outro lado, é de estar animado por ver tantos exemplos de mulheres e homens que, cada um à sua maneira tentam dar uma contribuição solidária e algo aos outros para tornar este momento difícil um pouco mais suportável. Desde os médicos e profissionais de saúde que se sacrificam todos os dias para salvar as nossas vidas, aos voluntários que cuidam dos que estão sozinhos e incapazes de sair, aos que doam e recolhem alimentos para os sem abrigo e os mais necessitados, até aos que oferecem formação online gratuita.

Todos dão o que podem, de acordo com as suas possibilidades. Tudo dá esperança de um futuro melhor, e é também graças a estas pessoas que podemos estar cada vez mais convencidos de que o nosso compromisso de defender o planeta não é em vão. Queremos um mundo melhor e estamos dispostos a fazer a nossa parte. Mais cedo ou mais tarde, porém, regressaremos às nossas vidas, para povoar os parques, ruas e praças. Espero que estas pessoas indiquem o caminho.

17 Set 2020

A Revolução Liberal de 1820 & Macau – 200 anos da primeira revolução contemporânea

[dropcap]A[/dropcap]s Invasões Francesas – Junot, Soult, Massena (a mais destrutiva) e até a de Marmont – a Guerra Peninsular – que coincide com a Guerra da Indepêndencia Espanhola (factos que ocorrem entre 1807 e 1814) – a fuga da rainha D.Maria I, do príncipe regente D. João – proclamado rei D. João VI a 6 de Fevereiro de 1816 – e, parte da corte, da nobreza e alguma alta magistratura – à volta de 15 mil pessoas –, “Cofres vazios, moeda sem valor e juros proibitivos” – vivia-se numa iminente suspensão de pagamentos, a bancarrota. Um país arruinado e exausto, que vivia sob a alçada da tortura, censura, repressão e miséria.

Foi a 24 de Agosto de 1820 – fez 200 anos – que um grupo de patriotas se pronunciou no Porto, em favor da “regeneração da pátria”, do “regresso do rei”, pela “salvação da Pátria através da razão e da justiça”. Afastaram a “Regência”. Morreu o Portugal velho (poder absoluto), nasceu o Portugal novo (começou a era da cidadania, das liberdades cívicas e da igualdade perante a lei).

A 21 de Novembro de 1806, a França decreta o “Bloqueio Continental”. Em finais de Novembro de 1807, o Príncipe Regente, a Rainha, a Corte e grande parte da administração portuguesa, fogem para o Brasil, para escapar às tropas napoleónicas, que já invadiam Portugal. O País ficou entregue a um conselho de “Regência”, com a protecção da Grã-Bretanha, que configurou o País como um simples protectorado, e que não queria perder o controlo de uma rota comercial que lhe era extremamente vantajosa, útil – a do vinho do Porto, que dominava desde o princípio do século XVIII. A Grã- Bretanha vinha da (1812 – 1815), tinha um grande “poder” mercantilista, era já uma grande “potência” mundial, mas precisava de equilibrar a sua economia. Portugal tornou-se “uma possessão comercial inglesa arruinada” A “ordem” do bloqueio era isolar economicamente as Ilhas Britânicas, sufocando as suas relações internacionais.

Junot entra em Lisboa sem resistência uns dias após a partida da “corte”. Entretanto, Napoleão e a Espanha assinam um tratado para “retalhar” Portugal. A Espanha ocupou o Norte e o Sul e o exército francês o Centro. O acordo foi “Sol de pouca dura”, já que, em Maio de 1808, uma insurreição em Espanha leva à retirada dos exércitos espanhóis e a declarar a França como inimigo.

Este exemplo inspirou os portugueses. No princípio do século XIX, o Estado português vivia do comércio entre o Brasil e a Europa – era pouco, mas já era um passo na nossa autonomia económica, já que, no século XVIII, Portugal “só” vivia do ouro do Brasil, abandonou-se a agricultura e não se apostou numa industrialização do País. Com invasões e guerras, aumentaram as despesas, diminuíram as receitas, e o País cai numa situação económica precária – a falência.

De 1808 (da passividade) a 1820 (à revolta) sopram ideais da Revolução Francesa e rupturas das cortes de Cádiz. Errâncias que inspiram “um desejo absurdo de sofrer” – fome, violações, miséria, violência, pânico, rebeliões. Era insustentável viver sob o domínio inglês. Os escombros das invasões. O pronunciamento militar em Espanha, em Abril de 1820, a tortura/assassínio dos “grandes que oprimiam” os colaboracionistas da “Regência”, a criação de milícias para combater inimigos, o aparecimento de uma nova elite letrada, tudo se viveu, tudo se aprendeu, tudo deu azo a um mau estar constante que levou o povo a dizer “Basta!”. Como dizia Agustina Bessa-Luís, uma “Revolução há-de ser também uma revelação”.

Em 1815, enquanto os vencedores de Napoleão discutiam o futuro da Europa, em Viena, após a decapitação do , depois de vitórias sucessivas, esbarrando apenas na Rússia e em Portugal (com o auxílio inglês) – , a 16 de Dezembro, D. João VI “decretava a elevação do Brasil a reino, equiparando-o a Portugal”. Chamou ao Brasil as melhores tropas portuguesas (5 000 soldados, pagos por Lisboa), com a ambição de conquistar a “Banda Oriental”, do que é hoje o Uruguai. Começa uma nova fase da “nossa” presença no mundo, aquilo a que mais tarde se viria a designar como a “americanização” da monarquia portuguesa, tornar o Brasil no “grande império da América do Sul”.

Já em 1817, houve uma conspiração frustada a favor de um governo constitucional contra a regência inglesa que governava em nome do rei D. João VI, no Brasil. No dia 18 de Outubro desse mesmo ano, no campo que desde 1755 se chamava de Santana, o povo assistiu ao espectáculo, que durou 9 horas – do meio-dia às nove da noite -, do enforcamento, por traição à pátria, de onze desses sublevados. Só não assistiram à execução do cabecilha – o general Gomes Freire de Andrade (herói de quinze campanhas napoleónicas), que foi sacrificado nessa mesma manhã, mas fora de Lisboa – para não haver distúrbios – no campo de Alqueidão, junto a São Julião da Barra. “Tu, que deste aos homens tudo o que tinhas e viveste de mãos abertas acabas enforcado com o rótulo de traidor” – lamenta Matilde de Melo, mulher de Gomes de Freire d’Andrade. A partir de 1879, este campo passou a designar-se Mártires da Pátria.

Para este “episódio” da História convém ter presente o livro “Felizmente Há Luar”, de Luís de Sttau Monteiro. Recriada em dois actos, a história relatada na obra é baseada na tentativa falhada da “revolta” de 1817. O tema central do livro é a figura do General Gomes Freire de Andrade e a sua condenação à morte, levada a cabo pelo regime do marechal William Beresford, com o apoio da Igreja. A malícia, o humor, a ironia, a crítica mordaz, trocista, sarcástica, o escárnio, de tudo um pouco Sttau Monteiro deita mão para enobrecer/empobrecer a triste “sina” dos portugueses: “Vê-se a gente livre dos Franceses, e zás! Cai na mão dos Ingleses! E agora? Se acabarmos com os Ingleses, ficamos nas mãos dos Reis do Rossio” (Conselho de Regência); o desprezo de Beresford por Portugal – “E as àrvores… quem não viu as àrvores da minha terra, nunca viu árvores”; o substituir a monarquia absoluta pela constitucional – “a conspiração destina-se a implantar neste Reino o sistema de Cortes”. Denominada por Sttau Monteiro como apoteose trágica, nela o autor “Recorre à distanciação histórica para projectar uma luz reveladora sobre o presente”, uma espécie de dissertação ética, em que um facto histórico serve para denunciar as repressões políticas, perseguições e injustiças em Portugal na década de 60 – um incentivo à revolta. O livro foi publicado em 1961 e foi, desde logo, censurado pelo Estado Novo.

Macau não ficou indiferente à partida do Príncipe Regente para o Brasil. “Entendeu, então, o Senado (…) ser da sua obrigação, enviar, nessa ocasião, um representante seu ao Rio de Janeiro, para apresentar, em seu nome e no da cidade, ao Príncipe Regente, efusivas congratulações pela sua chegada ao Rio de Janeiro” – Luís Gonzaga Gomes, em <Páginas da História de Macau>.

O escolhido para representar a cidade foi o vereador António Joaquim de Oliveira Ramos, mas por impedimento deste foi nomeado o morador Raimundo Vieira Pereira, no entanto, quem finalmente desaguou na capital brasileira foi um comendador, de seu nome Domingos Pio Marques.
26 de Dezembro de 1818 foi a data marcada para a celebração da aclamação de D.João VI. Do cartaz das festas, o “número” mais importante das comemorações foi o acto solene de aclamação de D. João VI, que se efectuou pelas 15H00, no Salão Nobre dos Paços do Concelho, atestado de nobreza, clero e povo. A cerimónia, que se prolongou durante a tarde, viria a terminar com a subida ao palco do capitão mor, que clamou: “Real, real, real, pelo mui alto e poderoso senhor D. João VI, nosso Senhor. Imediatamente, o Governador (Castro Cabral) repetiu, em voz alta, por três vezes:” – em <Páginas da História de Macau> de Luís Gonzaga Gomes. Durante três dias, três, a cidade viveu em grande regozijo. As iluminações eram deslumbrantes. Uma banda deliciava os ouvidos da população em .

Em 1820, no Porto, dá-se finalmente o golpe de misericórdia. O exército revoltou-se, tomou e deu o poder aos burocratas e magistrados (os liberais). As ideias iniciais eram criar um sistema representativo (fez-se por sufrágio indirecto e universal), que desse voz ao povo – em oposição ao que até aí se passava, o poder dos reis portugueses era absoluto: “o rei fazia a lei, executava a lei, e interpretava a lei, julgando-a em susprema instância” -, controlar despesas, legislar, entregar o poder judiciário aos juízes e o executivo ao rei e aos ministros, e voltar a submeter o Brasil aos superiores interesses de Portugal. “Havia mil maneiras de adiar, distorcer ou simplesmente não cumprir o que as cortes determinavam”, como os dependiam do exército, não se atreveram a cortar despesas. Pretendia-se a transferência do poder do monarca para o povo.

A 3 de Agosto de 1821 – após treze anos de ausência – “uma nau, duas fragatas e seis outras embarcações provenientes do Brasil”, ancoram no rio Tejo, frota que transportava o rei D. João VI, o seu séquito de 400 pessoas e os seus bens. O Rei só pode desembarcar depois de se ter comprometido a jurar as bases da Constituição, resultantes do movimento iniciado no Porto, em 24 de Agosto de 1820. Após os actos públicos oficiais, D. João VI partiu para o convento das Necessidades, onde o aguardavam os deputados às Cortes Constituintes. Houve eleições para as Cortes Constituintes. Estas reúnem-se regularmente a partir de Janeiro de 1821 e, a 23 de Setembro de 1822, é jurada a primeira Constituição Portuguesa – é a primeira Revolução Contemporânea. Nasce uma nova ordem, a da “vontade da nação, do exercício da cidadania e do sistema parlamentarista”. O Rei deixou de ter o poder de veto ou dissolução e deixou de ser o chefe do Estado. Um novo “credo político” instala-se em Portugal, o liberalismo. Nada voltou a ser como dantes, Portugal mudou de face.

Após 1822, o Rei dissolveu as Cortes, aboliu a Constituição, numeou o seu filho D. Miguel generalíssimo do exército português e D. Pedro, no Brasil, entra em rebelião aberta com Portugal. A 7 de Setembro de 1822, o Brasil, que não queria voltar ao seu estatuto colonial, revolta-se nas margens do rio Ipiranga, em S.Paulo, e dá o toque final, o “Grito do Ipiranga”, a Independência do Brasil.

Já a estava prestes a ser aprovada, é que chegam a Macau os “ecos” da “Revolução” Liberal. O Leal Senado reúne-se a 19 de Agosto de 1822, para, “em assembleia-geral e por sufrágio popular, eleger os novos membros da Câmara. No dia 24 o novo regime demócratico foi consagrado por um Te Deum cantado pelo Bispo D. Fr. Francisco de N. Senhora da Luz Chacim (1804 – 1828), em que foi pregador o dominicano Padre António de S. Gonçalo de Amarante (fundador do periódico Abelha na China)” – Beatriz Basto da Silva, na Os liberais substituem os conservadores. O Ouvidor de Arriaga demite-se, figura enigmática “tão turtuoso quanto astucioso”. É ordenado o novo governo municipal, sendo restaurada a independência do Leal Senado, perdida pelas “Providências” de 1783. Isto porque, com elas, e uma vez mais cito a autora da , “o Ministro das Colónias, Martinho de Melo e Castro por instigação do ex-Governador das Índias, Salema e Saldanha, reformou o poder do Governador”. Vivia-se então no reinado de D. Maria I. O Governador poderia, a partir daí, impor o seu veto sobre qualquer moção senatorial, só com o seu voto. Foi a 4 de Abril de 1783 que apareceram essas “Providências”, emanadas de Lisboa, por ordem da Rainha, que “cerceavam o poder do Senado em favor do Governador e, ordenava ainda que se tomassem contas ao Senado e que este não tomasse qualquer decisão sem que fosse ouvido o Governador” – Padre Manuel Teixeira, na <Topomínia de Macau>.

A 22 de Janeiro de 1822, José Baptista de Miranda e Lima escreve uma carta, em nome dos liberais, ao Rei e às Cortes, pedindo a restauração do Senado à situação anterior a 1873 – “Um Senado que a tudo era Superior”. Macau passa a ser, entre 1 de Julho a 23 de Setembro de 1823, governado pelo Senado.

O “poder” governativo português em Macau – salvo algumas excepções -, sempre lutou/apoiou as instituições e princípios democráticos. Assim sendo, o Senado (o poder/assembleia do povo) recuperou o antigo sistema municipal: os poderes legislativo, excutivo e judicial, tendo sido retirado ao Governador (Castro Cabral) toda a responsabilidade administrativa. O Senado governou Macau até 9 de Janeiro de 1834, data em que foi publicada a “Nova Reforma Administrativa Colonial”.

A “22 de Fevereiro de 1835, o Senado foi dissolvido pelo novo Governador – Bernardo José de Sousa Soares Andrea, investido de plenos poderes como Governador Civil. Daí em diante, apenas competiriam ao Senado os assuntos municipais, embora ainda fosse chamado de Leal Senado” – em de Montalto de Jesus.

Essa tendência revolucionária e liberal veio a ter repercussões em todas as colónias portuguesas. Sob uma “nova” ordem liberal, Macau exigiu, desde logo, a “dissolução do batalhão do Príncipe Regente (que tinha sido criado a 13 de Maio de 1810) e a sua substituição por uma guarda municipal, a isenção de Macau do pagamento de subsídios a Goa e a Timor, o direito para os cidadãos nascidos em Macau usufruírem do privilégio de ocuparem cargos civis e militares e não menos importante, o levantamento das restrições sobre a imprensa” – em de Geoffrey C.Gunn. Nasce a uma quinta-feira, no dia 12 de Setembro de 1822, “A Abelha na China”, periódico liberal, o primeiro jornal de Macau, com a finalidade de informar e orientar a opinião pública sobre a nova ordem Constitucional. O seu último número seria a 23 de Setembro de 1823, num total de 67 edições. O levantamento das restrições à lei de imprensa era de 1821.

São dos anos mais cinzentos – será que o cinzento nivela todas as diferenças – e intensos vividos em Macau, nessa época de ruptura. Há o golpe e o contra-golpe de Arriaga. O Governador e o Ouvidor (Arriaga) são detidos e encarcerados. Há a condenação e fecho da “Abelha na China”. Vive-se um mau estar permanente entre conservadores e liberais.

A partir de 23 de Setembro de 1823 “forma-se um Governo de salvação” – um “Governo de Triunvirato”: o Bispo (D. Fr. Francisco), o Ouvidor, (demitido/ausente) – que é substituído por um vereador, e o Sargento-mor João Cabral (o militar de maior patente). Este Governo dura até 28 de Julho de 1825.
Só em 1825 é que foi jurada, em Macau, a .

D. João VI morre a 10 de Março de 1826 (58 anos), envenenado.

Nasce uma “nova” era num já longo caminho da identidade e da cultura democrática em Macau – a preservação da “Memória”. Tempos próximos, mas já tão abandonados na “Memória” – desenraizamento (?). Sussuros de outras vozes adulteradas por “novos” ventos, inacreditáveis estes “novos” ventos, ventos de mudança. Dúvidas (?) Temos de tresler o sentimento da ausência, o sobressalto da razão. Restam-nos dúvidas, interrogações, perplexidades – um regresso ao passado -, um reencontro com a História.

16 Set 2020

O legado de Shere Hite

[dropcap]M[/dropcap]orreu Shere Hite. Pode ser desconhecida por muitos, mas o seu legado não é. Foi a impulsionadora de um estudo à escala nacional para explorar o sexo no feminino. O que é que as mulheres querem? Como é que as mulheres se vêm? Publicou o que se popularizou como o Relatório Hite, – ao que o Hugh Hefner, da Playboy, alcunhou de relatório Hate. Nos anos 70, sugeriu, depois de uma análise de 3000 relatos escritos por mulheres de toda a América, que o que as mulheres querem na cama, não é necessariamente o que os homens querem. Os orgasmos não são facilmente alcançáveis com penetração, e que o clitóris é a rainha do orgasmo e do prazer.

Todas as suas conclusões e ideias foram recebidas com muita contestação. Muitos assumiram que era uma ode ao ódio. Ódio contra os homens, claro. O sentido de ameaça era tal que a norte-americana renunciou à sua nacionalidade e passou a viver na Europa. As ameaças de morte não paravam, pelo correio e pelo telefone. A Europa foi o único lugar receptivo às suas ideias do sexo, da vagina, do clitóris e do orgasmo.

Chegaram a acusá-la de destruidora de lares quando, numa outra obra, reflectiu acerca do papel desigual das mulheres na relação heterossexual. Ao reflectir sobre as desigualdades do sexo e do género, a sociedade em geral achou que ela estava a pedi-las. O mundo da investigação também não se acanhou em acusar todo o seu trabalho como não científico e inválido. A sua amostra podia ter limitações. Mas 3000 participantes é um número muito mais generoso do que as três mulheres Vienesas que serviram de exemplo e inspiração para a teorização de Freud – era a comparação que ela costumava usar.

Para piorar tudo, era muito gira, e fazia uso disso. Tinha aquele ar de Marilyn Monroe, com cabelos loiros e lábios pintados de vermelho. Só que não era uma tonta, como a maioria das personagens da Marilyn, era uma intelectual. Uma combinação que poucos esperavam. Até para pagar as exuberantes propinas da Universidade de Columbia trabalhou como modelo para fazer face às despesas. Posou para a Playboy.

Também foi fotografada para anunciar as famosas máquinas de escrever Olivetti, que se aproveitavam do machismo da altura para as publicitar. ‘A máquina é tão inteligente que elas não precisam de o ser’, era o slogan usual. A Shere, ao perceber que a sua imagem estava associada a tamanha parvoíce, juntou-se às manifestações que criticavam o anúncio em que ela própria aparecia. Foram esses encontros que moldaram a sua perspectiva intelectual ao assumir-se como feminista. Foi aí que começou a querer dar primazia às vozes e experiências das mulheres de baixo para cima, elevando a mundanidade do orgasmo e do prazer. Foi decisiva no desenvolvimento do pensamento feminista quando se quis preocupar com quando e como é que as mulheres têm um orgasmo.

Li algures que o seu legado já nos está tão enraizado no pensamento que dificilmente conseguimos perceber o choque e a reverberação das suas ideias na altura. Os desafios agora até podem ser outros, mas lá no fundo continuam a ser os mesmos. No sexo há uma falta de legitimação naquilo que se sente – e tal como na história (e luta) do orgasmo feminino, a tentativa de elevar a arte da entrega, da sensação e do prazer é tão contemporânea como há 40 anos atrás.

16 Set 2020

Testagem universal em Hong Kong

[dropcap]O[/dropcap] Governo de Hong Kong lançou recentemente um programa de testagem universal da população. No momento em que este artigo foi escrito, já tinham sido testadas 1.625.000 pessoas, tendo-se registado apenas 18 casos positivos. Será este plano efectivamente bom?

Esta acção decorreu entre os dias 1 e 14 deste mês. Às 8.30h da manhã de dia 12, já tinham sido testadas 1.625.000 pessoas, oriundas de cerca de 140 centros comunitários.

Este plano destina-se a identificar os “portadores invisíveis” do vírus; de forma a conseguir “identificação, isolamento e tratamento precoces” impedindo que Hong Kong seja afectado pela doença. Desta forma, a actividade económica pode ser retomada com cautela, para que a vida da população de Hong Kong possa voltar ao normal.

Segundo os dados lançados este ano pelo Hong Kong Census and Statistics Department, a cidade tem cerca de 7,5 milhões de habitantes. No passado mês de Julho, o Governo de Hong Kong declarou que o laboratório público e os cinco laboratórios privados da cidade, apenas conseguiam testar 10.000 amostras por dia. Com base neste número, seriam necessários 750 dias para testar toda a população, ou seja, mais de dois anos. Na quadro actual, em que um vírus altamente contagioso nos ameaça, sem uma vacina que o trave nem medicamentos suficientemente eficazes que tratem as suas vítimas, Hong Kong procurou ajuda junto da Mãe Pátria – a China, para aumentar a sua capacidade laboratorial e deu início à testagem universal.

A 2 de Agosto começaram a chegar do continente grupos de membros da equipa de testagem do ácido nucleico, num total de 600. Com esta ajuda, Hong Kong passou a ter capacidade para testar 300.000 amostras por dia. A frase “a união faz a força” ilustra bem o trabalho que está a ser feito por estas equipas.

Esta acção chegou ao fim, dando origem a diversos comentários na cidade. A seu favor, está sem dúvida a possibilidade de detectar precocemente os portadores assintomáticos. Por outro lado, os críticos apontam que os custos foram muito altos e os benefícios escassos. Os críticos assinalam ainda que a testagem universal violou o princípio de “prevenção e controlo racionais”.

A testagem universal equivale a deitar dinheiro à rua. Como já assinalei, no momento em que escrevo este artigo, já tinham sido testadas 1.625.000 pessoas e apenas foram detectados 18 portadores do vírus assintomáticos, uma percentagem de 0,0011%. Cada teste custa 100 dólares de Hong Kong, o que representa um total de 162.5 milhões de dólares de Hong Kong. Investir este montante para encontrar 18 infectados, significa que foram gastos 9.027 dólares de Hong Kong milhões por cada um. Vale a pena gastar 9.027 milhões para encontrar um infectado? Actualmente não existe vacina contra o novo coronavírus, nem um medicamento para tratar a pneumonia que este pode provocar. Testar os grupos de alto riscco é sem dúvida um método eficaz de “prevenção e controlo racionais “, mas mesmo depois da implementação desta acção, é impossível parar a transmissão comunitária. No entanto, é importante identificar os portadores assintomáticos porque eles podem transmitir a doença a muitas pessoas. Temos que admitir que a decisão de proceder à testagem universal foi um passo difícil que o Governo de Hong Kong deu.

É evidente que o número de pessoas saudáveis excede largamente o de pessoas infectadas. Mas sem o resultado do teste não se podia ter a certeza absoluta deste resultado. Desta forma, não se pode afirmar que testar pessoas saudáveis seja um desperdício de dinheiro. O Professor Yuan Guoyong da Faculdade de Medicina da Universidade de Hong Kong, afirmou que, apenas um portador do vírus por identificar pode fazer perigar todo o trabalho de prevenção da epidemia. Além disso, Hong Kong já está a combater esta epidemia há muito tempo e a situação está longe de estar controlada. A testagem universal parece ser a única resposta possível de momento.

O Serviço Público não tem funções lucrativas. A assistência médica acessível e o apoio ao bem estar social são disso exemplo. É errado avaliar esta acção apenas pelos seus custos. É uma avaliação injusta para o Governo de Hong Kong e ainda mais injusta para o Governo da Mãe Pátria – a China, porque o Governo Central pagou os testes e forneceu as equipas. A China pagou e colaborou.

Como é evidente, durante o período que em decorreu a testagem, as pessoas circularam e fizeram a sua vida normal. Desta forma, uma pessoa que acusou negativo de manhã pode ter sido infectada na parte da tarde.

Quanto a isto não há nada a fazer. Além disso, como o número de testados não chegou aos 3 milhões, menos de 40 por cento da população de Hong Kong, a representatividade dos testes é questionável.
Hong Kong é vizinho de Macau, se os portadores assintomáticos não tiverem sido todos identificados as duas cidades podem ficar em perigo. Assim, quem chega a Macau vindo de Hong Kong, ainda terá de ficar em quarentena durante 14 dias. Embora Hong Kong esteja também a preparar a implementação de códigos sanitários, a avaliar pela actual situação, isso ainda deve levar algum tempo. Enquanto esperamos pelo aparecimento de uma vacina e de medicamentos eficazes, devemos continuar a manter o uso de máscara, a lavagem frequente das mãos e a promoção o distanciamento social. É uma forma de nos protegermos a nós e aos outros, e a melhor forma de protegermos a sociedade.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
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15 Set 2020