David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesPagamento fácil Recentemente, a comunicação social anunciou que a Autoridade Monetária de Macau vai implementar um novo serviço – o Simple Pay. Os bancos de Macau lançaram diferentes softwares para telemóveis, permitindo os pagamentos através destas plataformas. Estamos perante o pagamento electrónico, que é possível ser realizado de várias formas. A utilização do cartão de crédito para fazer compras online é um dos exemplos. Tele-contas, também conhecidas como carteiras electrónicas, são a forma mais comum de pagamento electrónicos. De acordo com os dados da Autoridade Monetária de Macau, em 2019, efectuaram-se 16,49 milhões de pagamentos a partir de carteiras electrónicas, que movimentaram 1,23 mil milhões. Nos primeiros três trimestres de 2020, o número de operações disparou para 40,85 milhões, que envolveram transacções no valor de 4,01 mil milhões; o número de movimentações aumentou 2,47 vezes, e o volume de transacções 3,26. A taxa de crescimento é espantosa. Estes dados demonstram que as contas electrónicas se estão a tornar cada vez mais populares em Macau. Com este rápido crescimento, existiam até agora em Macau sete ou oito aplicações para telemóvel que permitiam criar carteiras electrónicas, mas que impossibilitavam os pagamentos se o banco do cliente fosse diferente do banco do comerciante. Tratava-se de um desajuste. O Simple pay veio solucionar este desajuste. O processo é dividido em dois passos. No primeiro, o comerciante pode utilizar qualquer terminal bancário para aceitar os códigos QR das diferentes contas virtuais associadas a diferentes bancos locais. Assim sendo, independentemente do banco a que está associada a conta virtual do cliente, o pagamento pode ser realizado. Em segundo lugar, o cliente pode usar qualquer tipo de carteira electrónica local para identificar o código QR do comerciante. Depois de completar estes dois passos, o desajuste é eliminado, porque ambas as partas têm acesso ao código QR uma da outra. Cada dia que passa mais pessoas utilizam smartphones. As carteiras electrónicas agilizam o pagamento. Não existe troca de dinheiro vivo e por isso a margem de erro é baixa. O registo dos pagamentos é claro. A eficácia dos caixas aumenta. Estas várias conveniências podem fazer aumentar o consumo, e consequentemente ajudar a que Macau se venha a tornar uma cidade inteligente. É claro, que os pagamentos virtuais também podem trazer desvantagens. As carteiras electrónicas são uma forma de pagamento electrónico. A ligação sem fios à internet requer um sinal. No momento do pagamento, se o telemóvel não receber sinal da operadora e a loja não tiver Wi-Fi, o cliente naturalmente não será capaz de pagar. Em terceiro lugar, a taxa de manuseamento das carteiras electrónicas é um problema. Os comerciantes que aceitam o pagamento com carteiras móveis, precisam de pagar uma taxa. Presumindo que essa taxa é de 2%, sobre um consumo de $100, o comerciante apenas receberá $98, e claro que quanto maior for o pagamento maior será a taxa; isto equivale a um ónus extremamente pesado para o comerciante. Se o montante do pagamento aumentar, significa que o cliente compra os mesmos bens com um preço mais elevado; a carteira electrónica aumenta a conveniência do pagamento mas simultaneamente os custos. Além disso, se o volume de transações não for elevado, por exemplo, $10, o lucro do comerciante vai depender de um rápido e elevado volume de negócios. Mas se o comerciante precisar de usar o terminal para introduzir várias informações por cada pagamento, acaba por perder rapidez nas transacções. A taxa de manuseamento das carteiras electrónicas é também um problema para os trabalhadores de certas indústrias. As carteiras electrónicas reduzem o uso de dinheiro vivo em restaurantes mas também reduzem as gorjetas que os empregados obtêm normalmente pelos seus serviços. Um estudo recente demonstrou que os jovens de Macau escolhem o pagamento eletrónico como primeiro método de pagamento. Entre eles, 47% gastam duas ou mais horas por dia a navegar nas plataformas de e-shopping, 30% sentem-se entusiasmados quando compram online, e 5% não conseguem pagar as despesas. Além de explicar os padrões de consumo dos jovens, os resultados do inquérito são também um indicador que aconselha os jovens a não fazerem compras apenas pela conveniência e rapidez dos pagamentos eletrónicos, se desta forma estiverem a prejudicar o seu orçamento. A tecnologia tornou mais fácil os pagamentos. Mas, ao mesmo tempo, os jovens devem compreender o valor do dinheiro. A facilidade dos pagamentos electrónicos não deve ser motivo para consumirem ser qualquer controlo. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog:http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Carlos Morais José A outra face VozesA lentidão do papel Queria ser lento como o papel mas tudo me ultrapassa. Tudo se esvai, tudo se esgaça. As coisas tendem a desaparecer no digital. Passar como se não tivessem importância, apesar de transportarem os sentimentos mais básicos. Lembro-me de uma carta que nunca cheguei a escrever. Era suposto que ela deslizasse pelo mundo devagar. Que fosse de barco pelos oceanos, que fosse entregue em mão por um carteiro. E gostava da ideia de uma carta te perseguir, meu amigo, ainda que eu não soubesse bem onde realmente estás e qual a tua verdadeira morada — eu escrevi “João em Almada”, como se fosse para mim. Mesmo que a carta nunca te chegasse, talvez te perseguisse, talvez te procurasse e, por um acaso mero, te encontrasse. Aí talvez a lesses e nela ainda reconhecesses o teu amigo, ainda que ferido do muito tempo que a carta demorou para chegar. Sim, eu gostava desta ideia: da impossibilidade da certeza, da carta que viaja de navio, de avião, de comboio, de carrinha. Talvez a carta nunca te encontre, talvez tudo o que eu escrevi nunca seja lido e a tua vida não mude realmente. Mas, penso eu delicado, talvez o carteiro saiba onde geralmente te deitas e das maleitas que a missiva talvez pudesse evitar. Podia mandar-te um email – e entredentes o faço – mas preferia a carta lenta, paciente nos transportes, manuscrita verdadeira, sem a versão altaneira que pela net te envio. Isto não passa de um rio onde nunca pela segunda vez me banharei. E assim pretendo ser rei de um reino já esgotado. A carta segue e eu espero, tu talvez esperes, ainda que o faças sentado, distraído, entretido a dobar, para sempre o mesmo novelo. Queres lá tu saber de mim, a não ser no digital e na rede social que tão depressa nos une como o vento nos esquece. Dá para negócios, bem sei. E não tens de me lembrar. Estou aqui a afinar a minha certa fortuna. Existem as apostas, o lance da sorte pedante, impante de ter certezas que se afundam pelas mesas. Mas existe aquela parte esquecida que o papel dava à vida. A parte táctil, o toque da árvore nos dedos, o deslizar da faca a rasgar o envelope. A folha que ainda pouco se mostra, a caligrafia adivinhada. A tua letra, a minha letra. “Espero que esta carta te encontre bem de saúde”, dizia-se. Assim começava o discurso. Lento. Pausado. Por vezes apaixonado. Mas com ritmo de mar que avança e se despenha em sucessivas ondas de encontro à falésia. Sem pressas. Seguro de ter o seu lugar, de sempre acabar por abraçar a costa. A carta que nunca chegou e, por essa simples razão, houve um mundo que mudou. A carta – lida à luz da tocha, do candeeiro hesitante, vela bruxuleante, sol de inverno magoado. A carta que há-de chegar; da espera, na estação férrea, no cais marítimo, no terminal de autocarros. E ela por ali virá, dia há que chegará e nas mãos de alguém brilhará tanto que será dia de lua noiva e não a noite rente da solidão. “Ainda penso em ti, meu amor. Fazes-me falta. E esta guerra que não termina.” Não terminou nunca. “A política é a guerra por outros meios.” Interminável. Mas o papel cumpre-se como cegamente se cumpre um destino. O papel é lento, sedento de leitura e a caligrafia incerta uma prova de vida torta. A vida descrita, a tinta azul ou negra, a vida possível de descrever a quem se gosta. A mão já trémula, hesitações. Risco ainda uma palavra mas esse risco é a prova do meu cuidado por ti porque, por vezes, saem ásperas as palavras. E não é isso que eu quero. Quero-te dizer que estou bem, ainda que chore sobre o papel, que penso em ti, que és importante para mim. E a carta leva os meus beijos. Vai lenta, talvez não chegue. Não sei. Algo de mim vai nela e deste lado fico morto, despido nas frases que te escrevi. O papel viaja lentamente e repete-se. Provavelmente, nunca te encontrará, meu amigo. Agrada-me a ideia de uma carta minha a perseguir-te, a procurar-te pelas cidades, pelos campos, pelos quartéis, já suja de carimbos vários, de mãos generosas de gorduras, do latido irado dos cães do outro lado dos portões. A minha carta é lenta e, provavelmente, nunca às tuas mãos chegará. Mas nela mora ainda a beleza das coisas impossíveis. E todas as crenças digitalmente perdidas.
Hoje Macau Ai Portugal VozesA palhaçada do fascismo Por André Namora Assistimos a uma não campanha eleitoral para as eleições presidenciais. Mais uma vez a pandemia fez das suas. O governo decretou o confinamento. O povinho não mostrou qualquer civismo e responsabilidade. Saiu tudo à rua e de confinamento ao ar livre aconteceu tragédia. A campanha eleitoral não existiu. Os candidatos iam suspendendo as acções já agendadas. O governo e o país assistiram à desgraça de verem o número de óbitos e de infectados a subir assustadoramente. Os dias passaram a ser de uma constante surpresa com mais de 200 mortos em 24 horas. Os candidatos a presidente da República, em número demasiado na esquerda política e com pouco sumo de mudança política passaram a limitar-se a umas mensagens nas televisões. O Partido Socialista deixou o país incrédulo em não apoiar um candidato próprio e ainda por cima em não dar o seu aval à socialista Ana Gomes em detrimento de Marcelo Rebelo de Sousa. Porque não venham com a história da chamada liberdade de voto porque não pega. O actual presidente Marcelo obviamente que será reeleito e por larga vantagem. Só não sabemos uma coisa: é se a abstenção é significativa e poderá provocar uma segunda volta. Com quem? Bem, isso é outra conversa. Andam dois passarões a disputar a mesma presa do segundo lugar, a candidata Ana Gomes e o “bocas” que fez Portugal voltar a falar e a pensar naquilo que já ninguém imaginava – no fascismo. O homem André Ventura apareceu como o “palhaço” da moda política: dizer mal de tudo e de todos, mas deixando um rasto bem visível de que a extrema-direita europeia estava a financiar as suas campanhas. Extrema-direita com a cabeça de fora não se imaginava que passasse a ser uma realidade. Falar em fascismo e aparecerem ideias autenticamente fascistas, racistas e xenófobas é uma realidade na companha do homem que aprendeu política no PSD. O homem insulta, ofende, diz que vai ser presidente, governante, autarca, diz tudo e mais alguma coisa sem lógica, mas com o perigo de angariar apoios nos descontentes. Acontece que os portugueses estão zangados com muitos actos governativos, especialmente pelo que não se faz pelos mais desprotegidos. E aqui é que o homem bate forte numa onda de populismo como nunca se vira nas hostes do CDS ou do PSD. Portugal está triste, preocupado e de luto. Morre muita gente com a covid-19, os hospitais do norte ao sul do país estão em ruptura, sem mais camas e profissionais de saúde. Nenhum governo alguma vez se preocupou que poderíamos ser alvo de uma catástrofe. Nesse sentido, deviam-se ter construído mais hospitais e valorizado o trabalho dos profissionais de saúde. O número de óbitos, que nos últimos dias ultrapassou os 220 por dia, criou o medo permanente em toda a gente, excepto nos inconscientes que até andam pelas ruas sem máscara. E é neste ambiente nacional de tristeza e preocupação que o candidato Ventura provoca o impensável: regressaram as manifestações idênticas aos da década de 1970, com protestos de “Fascismo nunca mais” e “Fascismo não passará”, sempre que ele aparece numa cidade. Em todos os locais onde o candidato se desloque os protestos contra a sua presença fazem-se ouvir. Em Setúbal, a polícia teve de intervir porque a caravana automóvel do candidato Ventura foi alvo de grande ostracismo por um grupo de opositores de etnia cigana. Onde está a noção de confinamento para o candidato Ventura, quando todos os outros candidatos suspenderam as actividades de rua? O homem só sabe gritar que há o bem e o mal. É óbvio que ele e o seu grupelho se acham a parte boa da população e tem o desplante de anunciar que vai vencer as eleições numa segunda volta, quando se sabe há anos que Marcelo Rebelo de Sousa será reeleito logo à primeira votação. No entanto, a campanha presidencial teve momentos de grande elevação com as posições de candidatos como Ana Gomes, Marisa Matias, João Oliveira e Tino de Rans. Souberam trocar palavras que não ofendiam, não insultavam, simplesmente demonstraram que em política não podem ser todos iguais nem anunciar as mesmas medidas. Os debates nas televisões tiveram sobriedade, cordialidade e em certos casos nas entrevistas realizadas aos candidatos, estes souberam, com clareza, manifestar o que poderia mudar em Portugal. Durante esta campanha eleitoral ficou uma nódoa negra, a mais negra da campanha: a posição do candidato Ventura contra a comunidade cigana. A maioria dos ciganos trabalha à sua maneira, alguns já têm cursos superiores, há dias conheci um que é veterinário. Os ciganos não merecem os insultos do candidato Ventura que anunciou que os ciganos nada fazem e que vivem à custa do dinheiro do povo. É mentira. Conheço vários casais de ciganos que se levantam todos os dias às cinco da madrugada para se deslocarem nas suas carrinhas para vender os seus produtos nos mais variados locais onde se realizam feiras de rua. Há ciganos que trabalham em empresas de distribuição, nas obras de construção civil, nos armazéns de hipermercados e nos mais variados tipos de trabalho. O candidato Ventura disso não fala e nada diz sobre o prejuízo que têm os ciganos, tal como todos nós, devido ao confinamento e de não poderem ganhar dinheiro para sustento das famílias que normalmente são numerosas. O candidato Ventura mostrou ao país uma única teoria: a palhaçada do fascismo, que até teve a presença em Portugal da líder fascista francesa Le Pen. No meio disto tudo, com as escolas também encerradas, o povo apenas deseja que a pandemia termine e que Marcelo Rebelo de Sousa tenha um novo mandato especialmente virado para a defesa dos mais desprotegidos no nosso país.
João Romão VozesUm ano em covid Comecei relativamente cedo, não tanto como quem vive em território chinês, mas quase: já se completou um ano desde que comecei a ter contacto próximo com os efeitos da presença do covid-19 nas nossas sociedades. Esse primeiro contacto foi logo bastante esclarecedor: estava eu em Sapporo, no Norte do Japão, e começava nessa altura a trabalhar à distância (mesmo sem vírus) num projecto de investigação com uma colega chinesa a viver em Busan, na Coreia do Sul. Em Dezembro já se tinham identificado na China os primeiros casos deste problema ainda difícil de definir e ainda mais de enfrentar, e nós estávamos ambos nas proximidades geográficas deste epicentro. No início de Janeiro, a minha colega foi visitar a família à China, com viagem marcada muito antes, e tornou-se na primeira pessoa minha conhecida a viver um confinamento: duas semanas sem poder sair de casa, todo o tempo que durou a viagem, desde que aterrou até que saiu de território chinês. Regressaria então à Coreia e tornava-se também na primeira pessoa que conheci a passar por uma quarentena: outras duas semanas fechada em casa, agora em território coreano. No total foi um mês, o que hoje parece um período de reclusão e isolamento relativamente curto banal, mas que na altura constituía radical novidade a irromper subitamente nos quotidianos das sociedades modernas, habituadas a outras liberdades e intensas mobilidades. Apercebi-me também cedo de que estar forçosamente confinado em casa não implica necessariamente ter mais disponibilidade para trabalhar: operam ao mesmo tempo outros mecanismos fisiológicos e psicológicos que de alguma forma neutralizam a aparente boa vontade dos relógios e dos calendários para nos oferecer tempo para trabalhar. Havia de perceber mais tarde que, um pouco por todo o lado, todos demorámos a transformar esta reclusão forçada em processos produtivos, fossem eles quais fossem. Nos finais de Janeiro o vírus chegaria à cidade onde eu vivia, Sapporo, a capital da região de Hokkaido, destino turístico de grande notoriedade no mercado chinês, que nesse mês organiza o seu maior evento, o Festival da Neve, com esculturas em gelo de grandes dimensões a ocupar o parque central da cidade. Foi um funcionário de apoio ao evento o primeiro a ser noticiado como infectado na cidade, numa altura em que a propagação se contava ainda em escassas unidades por semana e se sabia exactamente como as coisas se tinham passado. Ainda assim, a China era perto e a informação sobre o ambiente de terror que lá se vivia – com mais de mil milhões pessoas confinadas e enormes cidades transformadas em desertos – era suficiente para se começarem a antecipar respostas possíveis se e quando o vírus chegasse. Isso era no Japão, evidentemente, ou na Coreia, ou em Singapura, ou na generalidade dos países asiáticos. Na Europa e na América era tempo de contar anedotas xenófobas sobre a fraca qualidade do “vírus chinês”. Continua a pagar-se muito alto o preço desta arrogante negligência. Noutras cidades japonesas foram aparecendo casos isolados mas seria Hokkaido a ter o crescimento mais rápido dos contágios, levando o governo regional a decretar um “estado de emergência” para a região assim que se registaram quase 10 casos durante três dias consecutivos. Na altura eram cerca de 50 as pessoas infectadas mas já grandes os receios. Na nossa política de emergência doméstica, decretámos rapidamente um recolher quase obrigatório, só com as excepções inevitáveis por motivos profissionais, que a situação de gravidez que vivíamos nos pareceu requerer. Numa das poucas cidades em apareceram casos de infeções havia de realizar-se em Fevereiro uma conferência para a qual já tinha pago inscrição e viagem e que decidi cancelar. Tendo em conta o carácter que me pareceu excepcional da situação, ainda tentei ser reembolsado pelo pagamento da inscrição. Debalde, que a organização – por acaso posicionada no campo do “pensamento crítico” na área dos estudos turísticos – se remeteu escrupulosamente às datas regulamentares. Ainda enviei por email ligações para notícias sobre eventos já na altura cancelados em diferentes países, mesmo na distante Europa, mas o que recebi em resposta foi outro texto da imprensa, em que um comentador classificava como “histérica a xenófoba” a reacção de medo em relação à propagação do vírus. Por coincidência, havia de encontrar o nome do meu interlocutor em sérios e graves publicações e debates científicos relacionados com os efeitos da pandemia no turismo. O moderno charlatão não se passeia só pelas redes sociais. Depois de uma fase em que a situação parecia contida, uma segunda vaga de contágios havia de chegar ao Japão, numa altura em que felizmente tinha que mudar de cidade: Hokkaido voltava a estar na liderança das preocupações pandémicas, enquanto no meu novo destino (Hiroshima) muito poucas notícias havia do vírus. Em todo o caso, as regras de prudência e confinamento doméstico só interrompido por motivos inevitáveis e inadiáveis havia de se manter. O novo trabalho havia de começar, a propagação do vírus havia de se agravar, as aulas passariam subitamente a ser dadas online, a nossa filha chegaria com o solstício, e tudo foi correndo com relativa tranquilidade, nessa altura em que já na Europa se tinha demonstrado com evidência a incúria com que se lidou com o assunto, quer enquanto continente (ou enquanto União), quer por parte de cada um dos países: nem máscaras, nem ventiladores, nem planos para encerramento de voos (só em Abril e para reabrir no verão), nem estratégia para confinamentos gerais ou parciais em que se garantissem regras de tele-trabalho, abastecimentos domésticos de produtos essenciais ou transportes públicos em segurança para quem precisa. Rigorosamente nada foi antecipado, preparado ou planeado nos 3 ou 4 meses que passaram entre a identificação do vírus na China e a sua chegada à Europa. Recentemente vivi a terceira vaga, mais forte que as anteriores, e que desta vez atingiu mais fortemente a região de Hiroshima. Pela primeira vez, houve encerramento generalizado de restaurantes e comércio não essencial e apelos (não obrigatórios mas amplamente seguidos) a recolhimento doméstico. O programa de apoio ao turismo interno que tinha sido accionado foi suspenso. Mas aparentemente este confinamento que vivemos no Natal e Ano Novo (e continua a prolongar-se, enquanto recomendação, até ao início de Fevereiro) teve os seus resultados: numa cidade com mais de um milhão de habitantes, os casos diários de novas infecções voltaram a estar abaixo da dezena, quando tinham estado perto da centena durante quase dois meses. O momento é de relativa mas desconfiada tranquilidade: a vacinação generalizada ainda está longe e não se sabe se está a chegar uma nova vaga de infeções. Na Europa, entretanto, vive-se por esta altura o momento mais dramático e violento desta crise. Não havia mesmo necessidade nenhuma.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesBatom Vermelho O batom vermelho precisa de contexto, muito para além de explicação. O batom vermelho, para além de muita coisa, é um símbolo de sensualidade. Para mim foi sempre um fetiche do glamour hollywoodesco dos anos 50. Valeu-nos a Marilyn Monroe e Elizabeth Taylor para tornar o batom vermelho bem mais comum do que qualquer outro. Mas o batom teve (e tem) uma vida para além desta sensualidade cinematográfica. Nasceu de práticas e vivências centenárias (milenares?) para chegar a um momento onde ainda é, de algum modo, polémico. Há um pluralismo aparente nos lábios encarnados, mas uma consistente assumpção: a da sexualidade no feminino e a sua história de luta por legitimidade. Na Grécia Antiga as mulheres eram identificadas como prostitutas porque usavam uma cor vermelha nos lábios. Nos tempos medievais os lábios vermelhos eram sinais do demónio, de imoralidade e da heresia. Foi a rainha Elizabeth de Inglaterra que lhe deu moda e visibilidade, por mais tóxico que fosse (nesta altura ninguém sabia que o mercúrio o era). As sufragistas tinham como arma e símbolo de sororidade os seus lábios vermelhos. Uma espécie de indicador de união e resistência – que durou até aos tempos da segunda guerra mundial. O Hitler tinha um ódio especial por esta cor de lábios. Foi assim que o batom vermelho se tornou parte da indumentária das mulheres pelos Aliados e a sua produção nunca foi parada. De tantas estórias e história voltada, os lábios vermelhos foram pela visibilidade e contestação. Dá nas vistas, ressalta, vira-cabeças. Chateia muita gente, mas dá espaço a muita outra. Para além disso, há secções de pornografia dedicadas ao fetiche com este tão icónico batom. O batom vermelho nunca deixou de ser cultural, político e sexual. Quando, recentemente, os lábios vermelhos foram acusados de serem sinal de brincadeira – opondo-se a seriedade, entendi eu – mobilizaram-se os muitos batons vermelhos que estavam guardados nas gavetas. Reclamou-se o uso do batom com o poder que a cor vermelha tem, sem medo de ser visível. Mobilizou-se este passado de resistência que nem eu tinha consciência que existia. Um batom vermelho nunca foi só um batom vermelho. A resistência com este tão singelo objecto de maquilhagem uniu as pessoas de forma incrivelmente bonita. Não querendo ser pessimista, contudo, é preciso estender este gesto, e esta conversa a outros domínios. Vale a pena reflectir acerca dos batons que ficam, e ficaram, por usar. Os muitos contextos em que o batom vermelho ainda é mal visto, criticado e simbolicamente desprezado. Tenho eu tanto espaço para usar um batom vermelho como a outra pessoa que está ao meu lado? A que nível de normalização do batom vermelho nos encontramos? Pode um homem cisgénero pintar os lábios de vermelho para ir para o trabalho? Será que uma mulher racializada pode usar um batom da mesma forma que uma mulher branca? A luta pelo batom vermelho está longe de estar terminada. Ainda que nos apareçam pessoas e ideias que põem em causa as conquistas que há muito pensámos terem sido travadas, não percamos o foco das muitas outras lutas que ainda estão por travar. A luta actual contra o re-surgimento de valores conservadores precisa de ser enquadrada nesta outra em que as oportunidades e liberdades ainda não são de todos. Nunca comprei outro batom na minha vida, senão o vermelho. Nunca soube muito bem porquê, mas talvez a nível inconsciente percebesse que a resistência está na visibilidade e a contestação está tanto nas palavras como nos gestos.
Hoje Macau Ai Portugal VozesNa gaiola outra vez Por André Namora Aí está a chamada tradição do Natal transformada em confinamento. Todos achavam que a celebração eucarística da família à mesa com bacalhau e peru é que tinha de acontecer. Em primeiro lugar estava a oportunidade de dizer à covid-19 que passasse ao lado da malta porque as festas eram importantíssimas… nem sequer o alerta de certos especialistas clínicos a avisar que os ajuntamentos familiares no Natal iriam provocar grandes dissabores traduzidos em números astronómicos de infecção e aumento do número de óbitos, permitiu que as pessoas não aderissem às festas natalícias. De nada serviu, os médicos atentos ao que se vai passando por esse mundo sabiam que as festas iriam dar bronca. Festas que foram do conhecimento das autoridades com 100, 300 ou 500 pessoas. Tudo na maior. Toca a banda e abre o garrafão que é Natal ou ano novo. A Guarda Nacional Republicana ainda entrou por umas quintas a dentro e acabou com o festim. Numa delas, havia mulheres e homens nus numa piscina interior aquecida em plena orgia do tipo grego com uvas e outras bolas nas mãos. No interior do salão com lareira manjava-se javali e veado cozinhados com vinho tinto. Resumindo: estava tudo bêbedo sem se darem conta que o coronavírus andava por lá a marcá-los à distância para passadas duas semanas enviá-los para o hospital, na secção chamada de covid. A propósito, de falarmos sobre a covid-19 e o aumento estonteante do número de infectados e de mortes que levaram o governo a decretar novo confinamento à população, há que registar o excelente e sacrificado trabalho dos profissionais de saúde pública, especialmente os enfermeiros e assistentes sociais. As secções nos hospitais onde são instalados os doentes com a pneumonia covid são geridas com uma seriedade espantosa. Qualquer profissional está equipado dos pés à cabeça com bata especial plastificada, uma touca, dois pares de luvas, sapatos especiais, óculos de plástico, máscara profissional, todo este material que ao deixarem a secção onde se encontram os doentes com a covid são atirados fora para recipientes próprios para cada tipo de objectos utilizados. Os enfermeiros merecem os nossos maiores aplausos pelo trabalho que realizam. É proibido entrar nos hospitais mas tive a oportunidade de ver um vídeo que um profissional hospitalar realizou e vê-se que felizmente não se está a brincar em serviço. Quem brinca com o povo são os políticos tão incompetentes que até eles apanham a covid-19, como foi o caso da ministra do Trabalho e da Segurança Social. Por sinal, quando a vi toda gaiteira e a falar sem máscara, disse para comigo “esta não se safa à covid”. Dito e feito. Mas, a verdade total neste aspecto não vem a público: há mais governantes e assessores infectados e incrivelmente, pelo menos um deles, sabia que estava positivo e foi “trabalhar” para o Ministério onde se encontram centenas de colegas. A irresponsabilidade tem sido grande, o governo perdeu o controlo da pandemia, os médicos que sabem da matéria não têm sido levados a sério e assim estamos com cerca de 150 mortes por dia. Quem diria que chegávamos a um ponto tão trágico e tão triste e mesmo assim foi decretado um confinamento da treta. Qual confinamento? As escolas estão abertas, os pais saem à rua para ir levar e buscar os filhos aos estabelecimentos de ensino, os supermercados estão abertos, as pastelarias estão abertas servindo o cafezinho numa mesa colocada à entrada e onde os ajuntamentos de clientes são uma realidade, as padarias não param de vender toda a espécie de pão, as mercearias estão cheias dos clientes habituais lá do bairro, os cabeleireiros estão fechados mas as marcações telefónicas levam a que no interior o trabalho não pare. Resumindo: as ruas estão cheias de “confinamento”, uns foram à farmácia, outros ao hipermercado, alguns dizem que vão ao dentista, outros que vão à consulta que o médico marcou há duas semanas, há muitos a passear o cãozinho, à porta do talho vêem-se as filas de carnívoros, enfim, são tantas as excepções ao confinamento que estou certo que o número de infectados e de mortos não vai baixar. Por outro lado, tenho um vizinho que já trocou o seu Mercedes pelo último modelo. É proprietário de uma agência funerária e disse-me que nunca imaginou ficar tão rico. Só os funerais dos muçulmanos dão-lhe um lucro astronómico porque é das poucas agências que sabem tratar dos rituais inerentes à religião de Maomé. O confinamento que foi decretado na passada sexta-feira é um fiasco e tristemente o civismo das pessoas ainda não alcançou uma plataforma de compreensão de que esta pneumonia covid não brinca com os humanos, simplesmente trata-lhes da saúde enriquecendo as agências funerárias. As pessoas não entendem o que é uma pandemia, não querem compreender a gravidade deste tipo de vírus e até há quem brinque aos testes. Hoje dá negativo, no dia seguinte deu positivo, tem que ficar 15 dias confinado, mas depois de mais um teste volta a resultar negativo e aí vai ele para a rua porque as eleições estão à porta e há quem queira continuar a ser presidente da República. O que me apetecia era ter uma fábrica de gaiolas onde pudesse meter esta passarada toda… *Texto escrito com antiga grafia
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO infundado apocalipse climático “What’s really behind the rise of apocalyptic environmentalism? There are powerful financial interests. There are desires for status and power. But most of all there is a desire among supposedly secular people for transcendence. This spiritual impulse can be natural and healthy. But in preaching fear without love, and guilt without redemption, the new religion is failing to satisfy our deepest psychological and existential needs.” Michael Shellenberger Apocalypse Never: Why Environmental Alarmism Hurts Us All Estamos a viver uma era de preocupação, especialmente um medo das alterações climáticas. Uma imagem resume esta época que é de uma rapariga com um letreiro a dizer que “Morrerás de velhice ou de alterações climáticas”. Esta é a mensagem que os meios de comunicação estão a perfurar as nossas cabeças, pois as alterações climáticas estão a destruir o nosso planeta e ameaçam matar-nos a todos. A linguagem é de apocalipse. Os noticiários referem-se à “incineração iminente do planeta” e os analistas sugerem que o aquecimento global pode fazer com que a humanidade se extinga em poucas décadas. Recentemente, fomos informados que a humanidade tem apenas uma década para salvar o planeta, fazendo de 2030 o prazo limite para salvar a civilização. E, portanto, temos de transformar radicalmente todas as grandes economias para acabar com a utilização de combustíveis fósseis, reduzir as emissões de carbono a zero, e estabelecer uma base totalmente renovável para toda a actividade económica. As crianças vivem no medo e alinham as ruas em protesto. Os activistas estão a isolar as cidades e os aeroportos para aumentar a consciência de que toda a população do planeta está a enfrentar “hecatombe, morte e fome”. Em 2017, o jornalista americano David Wallace-Wells escreveu uma longa e aterradora descrição do impacto do aquecimento global para a revista New York. Embora o artigo fosse geralmente considerado pelos cientistas como exagerado e enganador, o mesmo argumento foi publicado em forma de livro, em 17 de Março de 2020, com o título “The Uninhabitable Earth: Life After Warming”, que se tornou um bestseller. O livro revela um alarmismo sem falhas: “É pior, muito pior, do que se pensa”. Da mesma forma, no seu livro de 2019, “Falter: Has the Human Game Begun to Play Itself Out?”, o naturalista americano Bill McKibben, líder da organização ambientalista 350.org, advertiu que o aquecimento global é a maior ameaça à civilização humana, pior até do que a guerra nuclear. Pode acabar com a humanidade não com uma explosão, mas “com o rebentar de um oceano em ascensão”. Uma prateleira gemeria sob o peso de livros recentes com títulos e mensagens deliberadamente aterradoras. É assim que o mundo acaba com secas e ondas de calor e os furacões que estão a convergir na América. Os meios de comunicação social reforçam a linguagem extrema, dando amplo espaço aos activistas ambientais, e envolvendo-se no seu próprio activismo. O New York Times adverte que “em todo o mundo as alterações climáticas estão a acontecer mais rapidamente do que os cientistas previam”. A capa da revista Time diz-nos: “Fiquem preocupados. Estejam muito impressionados”. O jornal britânico The Guardian foi mais longe, actualizando as suas directrizes de estilo, pelo que os repórteres devem usar os termos “emergência climática”, “crise climática”, ou “ruptura climática”. O editor do jornal acredita que “alterações climáticas” não é suficientemente assustadora, argumentando que “soa bastante passivo e suave quando aquilo de que os cientistas estão a falar é uma catástrofe para a humanidade”. Sem surpresas, o resultado é que a maioria de nós está muito preocupada. Uma sondagem de 2016 revelou que em países tão diversos como os Emiratos Árabes Unidos e a Dinamarca, a maioria das pessoas acredita que o mundo está a piorar, e não a melhorar. No Reino Unido e nos Estados Unidos, dois dos países mais prósperos do planeta, um espantoso 65 por cento das pessoas são pessimistas quanto ao futuro. Uma sondagem de 2019, revelou que quase metade da população mundial acredita que as alterações climáticas irão provavelmente acabar com a raça humana. Nos Estados Unidos, quatro em cada dez pessoas acreditam que o aquecimento global levará à extinção da humanidade. Há consequências reais para este medo. As pessoas estão a decidir, por exemplo, não trazer crianças ao mundo. Uma mulher disse a uma jornalista: “Eu sei que os humanos são difíceis de procriar, mas o meu instinto agora é proteger os meus filhos dos horrores do futuro, não os trazendo ao mundo”. Os meios de comunicação social reforçam esta escolha; os países querem saber “como se decide ter uma criança quando as alterações climáticas estão a intensificar. Se os adultos estão preocupados de forma disparatada, as crianças estão aterrorizadas. Um inquérito do Washington Post de 2019 mostrou que das crianças americanas entre os treze e os dezassete anos de idade, 57 por cento sentem medo das alterações climáticas, 52 por cento sentem raiva, e 42 por cento sentem-se culpadas. Um estudo académico de 2012 com crianças com idades compreendidas entre os dez e os doze anos, de três escolas de Denver, revelou que 82 por cento expressaram medo, tristeza e raiva ao discutir os seus sentimentos sobre o ambiente, e que a maioria das crianças partilhava opiniões apocalípticas sobre o futuro do planeta. É revelador que para 70 por cento das crianças, a televisão, os noticiários e os filmes foram fundamentais para formar os seus pontos de vista aterrorizantes. Uma criança de dez anos, diz sobre o futuro que já não haverá tantos países por causa do aquecimento global, porque ouve falar no Discovery Channel e canais científicos como se em três anos o mundo pudesse inundar-se com o calor e ficar demasiado quente. Estas descobertas, se válidas em todo o país, sugerem que mais de dez milhões de crianças americanas estão aterrorizadas com as alterações climáticas. Como resultado deste medo, em todo o mundo as crianças estão a faltar às aulas para protestar contra o aquecimento global. Porquê assistir às aulas quando o mundo vai acabar em breve? Recentemente, uma aluna dinamarquesa da primeira classe perguntou seriamente à sua professora: “O que vamos fazer quando o mundo acabar? Para onde iremos? Para os telhados?” Os pais podem encontrar uma montanha de instruções e guias online com títulos bastante sugestivos. E assim, representando o verdadeiro terror da sua geração, uma jovem segura um sinal que diz “Vou morrer de alterações climáticas”. As alterações climáticas são um problema real. Ao contrário do que ouvimos, os resultados climáticos básicos têm-se mantido notavelmente consistentes ao longo dos últimos vinte anos. Os cientistas concordam que o aquecimento global é principalmente causado pelo homem, e que tem havido poucas mudanças nos impactos que projectam para a subida da temperatura e do nível do mar. A reacção política à realidade das alterações climáticas sempre foi deficiente, o que também se tem vindo a apontar há décadas. Existem formas mais inteligentes para enfrentar o aquecimento global. Mas a conversa mudou drasticamente nos últimos anos. A retórica sobre as alterações climáticas tornou-se cada vez mais extrema e menos ancorada à ciência actual. Ao longo dos últimos vinte anos, os cientistas climáticos aumentaram cuidadosamente o conhecimento sobre as alterações climáticas, e nós temos mais fiáveis dados do que nunca. Mas, ao mesmo tempo, a oratória que vem dos comentadores e dos meios de comunicação tornou-se cada vez mais irracional. A ciência mostra-nos que os receios de um apocalipse climático são infundados. O aquecimento global é real, mas não é o fim do mundo. É um problema controlável. No entanto, vivemos agora num mundo onde quase metade da população acredita que as alterações climáticas irão extinguir a humanidade, tendo alterado profundamente a realidade política. Faz-nos duplicar em políticas climáticas pobres. Faz-nos ignorar cada vez mais todos os outros desafios, desde as pandemias e a escassez de alimentos até aos conflitos e disputas políticas, ou subsumi-los sob o signo das alterações climáticas. Esta singular obsessão com as alterações climáticas significa que estamos agora a passar de desperdiçar milhares de milhões de dólares em políticas ineficazes para desperdiçar triliões de dólares. Ao mesmo tempo, estamos a ignorar cada vez mais os desafios mais urgentes e muito mais fáceis do mundo. E estamos a assustar crianças e adultos sem sentido, o que não é apenas factualmente errado mas moralmente repreensível. Se não dissermos para parar, o actual falso alarme climático, apesar das suas boas intenções, é provável que deixe o mundo muito pior do que poderia estar. Precisamos de deixar o pânico, olhar para a ciência, enfrentar a economia, e abordar a questão racionalmente. Como é que reparamos as alterações climáticas, e como é que a priorizamos no meio dos muitos outros problemas que afligem o mundo no topo da qual está a Covid-19 que não é fruto das alterações climáticas? As alterações climáticas são autênticas, e causadas predominantemente pelas emissões de carbono dos seres humanos que queimam combustíveis fósseis, e devemos combatê-las de forma inteligente. Mas para o fazer, temos de parar de exagerar e de argumentar que é agora ou nunca, e parar de pensar que o clima é a única coisa que importa. Muitos defensores do clima vão mais longe do que o apoio da ciência. Sugerem implicitamente ou mesmo explicitamente que o exagero é aceitável, porque a causa é tão importante. Depois de um relatório da ONU sobre o clima de 2019 ter conduzido a reivindicações exageradas por activistas, um dos autores científicos advertiu contra o exagero. Escreveu que arriscaríamos a afastar o público com conversas extremistas que não são cuidadosamente apoiadas pela ciência. Apesar de tudo está certo. Mas o impacto de reivindicações climáticas exageradas vai muito mais fundo. Dizem-nos que temos de fazer tudo de imediato. A sabedoria convencional, repetida ad nauseam nos meios de comunicação, é que só temos até 2030 para resolver o problema das alterações climáticas. Isto é o que a ciência nos diz? Não é! É o que nos diz a política. Este prazo veio de políticos que fizeram uma pergunta muito específica e hipotética aos cientistas e que basicamente consiste no que será necessário para manter as alterações climáticas abaixo de um objectivo quase impossível? Não surpreendentemente, os cientistas responderam que fazê-lo seria quase impossível, e chegar perto de qualquer meta exigiria enormes mudanças para todos os sectores da sociedade até 2030.Imagine uma discussão semelhante sobre mortes no trânsito. Nos Estados Unidos, quarenta mil pessoas morrem todos os anos em acidentes de viação. Se os políticos perguntassem aos cientistas como limitar o número de mortes a uma meta quase impossível de zero, uma boa resposta seria fixar o limite de velocidade ao equivalente a três quilómetros por hora. Ninguém morreria. Mas a ciência não nos diz que devemos ter um limite de velocidade de três quilómetros por hora, apenas nos informa que se queremos zero mortos, uma forma simples de o conseguir é através de um limite de velocidade de três quilómetros por hora fortemente imposto. No entanto, é uma decisão política para todos fazerem as contrapartidas entre limites de velocidade baixos e uma sociedade conectada. Actualmente e com exclusão da Covid-19 e todas as suas possíveis estirpes a nossa atenção única apesar dos muitos desafios globais, regionais e mesmo pessoais são quase inteiramente subsumidos pelas alterações climáticas. A sua casa está em risco de inundações por causa das alterações climáticas! A vossa comunidade está em risco de ser devastada por um ciclone devido às alterações climáticas! As pessoas estão a morrer à fome no mundo em desenvolvimento por causa das alterações climáticas! Com quase todos os problemas identificados como causados pelo clima, a solução aparente é reduzir drasticamente as emissões de dióxido de carbono a fim de melhorar as alterações climáticas. Mas será esta realmente a melhor maneira de ajudar? Se quiser ajudar as pessoas nas planícies aluviais do Mississippi, do Nilo ou outro qualquer grande rio a reduzir o risco de inundações, existem outras políticas que ajudarão mais rapidamente, de forma barata e eficazmente do que a redução das emissões de dióxido de carbono. Estas poderiam incluir uma melhor gestão da água, a construção de diques mais altos, e regulamentos mais eficazes que permitam a algumas planícies aluviais inundar de modo a evitar ou aliviar inundações noutros locais. Se quiser ajudar as pessoas no mundo em desenvolvimento a reduzir a fome, é quase tragicómico concentrar-se na redução do dióxido de carbono, quando o acesso a melhores variedades de culturas, mais fertilizantes, acesso ao mercado e oportunidades gerais para sair da pobreza os ajudaria muito mais rapidamente e a um custo menor. Se insistirmos em invocar o clima a cada curva, acabaremos muitas vezes por ajudar o mundo de uma das formas menos eficazes possíveis. Não estamos à beira da iminente extinção. Na realidade, muito pelo contrário. A retórica da desgraça iminente desmente um ponto essencial, pois em quase todas as formas que podemos medir, a vida na Terra é melhor agora do que era em qualquer outra altura da história. Desde 1900, temos mais do que duplicado a nossa esperança de vida. Em 1900, a esperança média de vida era de apenas trinta e três anos; hoje é de mais de setenta e um. O aumento tem tido o impacto mais dramático no pior momento do mundo. Entre 1990 e 2015, a percentagem do mundo que praticava a defecação aberta caiu de 30 para 15 por cento. A desigualdade na saúde diminuiu significativamente. O mundo é mais literato, o trabalho infantil tem vindo a diminuir, estamos a viver num dos tempos mais pacíficos da história. O planeta também está a ficar mais saudável. No último meio século fizemos reduções substanciais na poluição do ar interior, anteriormente o maior assassino ambiental. Em 1990, causou mais de 8 por cento das mortes; isto reduziu quase metade para 4,7 por cento, o que significa que 1,2 milhões de pessoas sobrevivem todos os anos e que teriam morrido. O aumento do rendimento agrícola e a mudança de atitudes em relação ao ambiente significaram que os países ricos estão cada vez mais a preservar as florestas e a reflorestar. E desde 1990, mais 2,6 mil milhões de pessoas tiveram acesso a fontes de água melhoradas, elevando o total global para 91 por cento. Muitas destas melhorias surgiram porque ficámos mais ricos, quer como indivíduos quer como países. Durante os últimos trinta anos, o rendimento médio global por pessoa quase duplicou. Isto conduziu a diminuições maciças na pobreza. Em 1990, quase quatro em cada dez pessoas no planeta eram pobres. Hoje é menos de uma em cada dez. Quando somos mais ricos, vivemos melhor e vidas mais longas. Vivemos com menos poluição do ar interior. Os governos providenciam mais cuidados de saúde, proporcionam melhores redes de segurança e aprovam leis e regulamentos ambientais e de poluições mais fortes. É importante notar que o progresso não terminou. O mundo foi radicalmente transformado para melhor no século passado, e continuará a melhorar neste século. A análise dos peritos mostra que é provável que nos tornemos muito melhores no futuro. Os investigadores que trabalham para a ONU sugerem que até 2100 os rendimentos médios aumentarão talvez para quatrocentos e cinquenta por cento dos rendimentos actuais. A esperança de vida continuará a aumentar, para oitenta e dois anos ou possivelmente para além de cem anos. À medida que os países e os indivíduos enriquecem, a poluição atmosférica irá reduzir ainda mais. As alterações climáticas terão um impacto global negativo no mundo, mas diminuirão em comparação com todos os ganhos positivos que temos visto até agora, e continuarão a ver-se no presente século. A melhor investigação actual mostra que o custo das alterações climáticas, se nada fizermos, será de cerca de 3,6 por cento do PIB global. Isto inclui todos os impactos negativos; não só o aumento dos custos das tempestades mais fortes, mas também os custos do aumento das mortes por vagas de calor e das zonas húmidas perdidas devido à subida do nível do mar. Significa também, que em vez de verem os rendimentos aumentar para 450 por cento até 2100, poderão aumentar “apenas” para 434 por cento, o que é claramente um problema. Mas também não é uma catástrofe. Como o próprio painel climático da ONU o afirmou que para a maioria dos sectores económicos, o impacto das alterações climáticas será pequeno em relação aos impactos de outros factores [tais como] alterações na população, idade, rendimento, tecnologia, preços relativos, estilo de vida, regulação, governação, e muitos outros aspectos do desenvolvimento socioeconómico.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesLuz ao fundo do túnel Podemos olhar para 2020 como um dos mais negros da nossa História, ou como o ano em que despertam as primeiras luzes da alvorada. Não sei se algum dos meus leitores viu o filme “Doze Macacos”? A trama é a seguinte, um vírus mortal escapa inadvertidamente do laboratório causando a morte da maioria da população mundial. Aos sobreviventes não resta outra opção senão ocupar o subsolo. A Organização Mundial de Saúde (OMS) provou, na forma como lidou com a pandemia, não passar de uma organização incapaz de lidar com a defesa da população a nível global perante a ameaça que representa o novo coronavírus (SARS-CoV-2). Se assim não fosse, a nova variante da Covid-19, identificada no Reino Unido e na África do Sul, já há muito teria sido detectada e eliminada. Se os cientistas da OMS não conseguem encontrar a origem do SARS-CoV-2, mais valia afirmarem que o vírus surgiu de um “buraco negro” no espaço. Estou convencido que muitas pessoas iam acolher esta versão com entusiasmo. Os “buracos negros” políticos e económicos podem ser encontrados a cada esquina deste planeta. 2020 foi um ano difícil para Macau. Quanto a Hong Kong, se conseguir sobreviver, já terá alcançado uma vitória. A economia de Hong Kong continua letárgica e a esperança de vir a ser a região que mais rapidamente iniciará a retoma económica na Ásia, já se desvaneceu. Se não fosse o apoio do turismo da China continental, a situação de Macau teria sido ainda pior. No entanto, até quando é que o Governo consegue aguentar uma política de preços promocionais para promover o turismo local e quando é que poderemos vir a ter um vislumbre do fim do buraco negro? O Governo da RAE suspendeu o depósito de verbas nas contas individuais do regime de poupança central devido à queda abrupta das receitas fiscais, o que provocou o descontentamento de muitos cidadãos. Para mais, o Chefe do Executivo não convocou novos elementos com vontade de integrarem o Conselho Consultivo para os Assuntos Municipais, tendo simplesmente renovado os mandatos de 25 dos actuais membros deste Conselho, atitude que foi criticada por pessoas fora do sistema. Não podemos deixar de nos interrogar se as próximas eleições para a Assembleia Legislativa, agendadas para este ano, não virão a ser um jogo político com um resultado sabido de antemão. Para alcançarmos o fim da escuridão, precisamos de gente determinada e inovadora. Em 2020, para além de submersa na “fadiga anti-epidemia”, a sociedade de Macau não conseguiu vislumbrar quaisquer saídas noutros aspectos. Tudo gira à volta da “Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”, não parece existir outro caminho para além deste. Se assim continuarmos, mesmo que a primeira luz da manhã surja no horizonte, Macau não vai encontrar o caminho para sair da escuridão. Não é assim tão difícil sair da escuridão, o que é difícil é perceber a importância de lá sair. Durante muito tempo, Macau viveu nos casinos onde a luz do Sol não entra nem pode ser vista. As indústrias tradicionais da cidade desapareceram, e o sector da manufactura acabou por morrer. A cidade foi entregue ao circuito do consumo. Torna-se muito difícil voltar a enveredar pelo caminho da inovação e do empreendedorismo. E mesmo que surja uma luz no fundo do túnel, haverá sempre alguém que a vai querer obstruir para que não perturbe a paz da escuridão. Podemos comparar esta situação a um edifício com elevadores. Morar nos andares superiores é gratificante, mas quando todos os elevadores se avariam, ter de subir as escadas até ao topo é sem dúvida um grande desafio. E quantas pessoas em Macau estão à altura deste desafio? Com o arranque da vacinação contra a SARS-CoV-2 a nível global, estima-se que em meados 2021, quando o número de pessoas infectadas rondar os 100 milhões, a pandemia comece a decrescer. Em Setembro, altura em que as eleições legislativas de Macau e de Hong Kong terão lugar, os resultados de ambas vão indicar se estas cidades irão ou não sair do buraco negro em que se encontram mergulhadas. Quando uma pessoa consegue produzir uma centena de sons diferentes, é um prodígio; quando centenas de pessoas só conseguem produzir um único som, é um triste facto social. Se virmos a luz mas não a tentarmos alcançar com determinação suficiente, ficamos encerrados na escuridão.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesContratempos da vacina (III) Actualmente, a forma mais eficaz de combater o novo coronavírus é através da vacinação. A responsabilidade legal dos laboratórios que produzem vacinas, ou seja, a garantia do produto, é naturalmente o primeiro passo na questão da responsabilidade legal neste âmbito e merece a nossa atenção. Hoje vamos continuar a discutir a responsabilidade das empresas que produzem vacinas. A responsabilidade do pessoal médico será analisada mais tarde. Em circunstâncias normais, o desenvolvimento, produção, testagem e inoculação das vacinas, leva cerca de dez anos. A situação actual é de grande urgência, e este intervalo de tempo teve de ser reduzido para dez meses, o que inevitavelmente cria nas pessoas um sentimento de alguma insegurança. Ruud Dobber, executivo sénior da AstraZeneca, um laboratório britânico, tornou claro que as farmacêuticas não se podem responsabilizar por efeitos secundários ao fim de muitos anos. Assim sendo, actualmente em muitos países está a ser debatida a responsabilidade dos laboratórios e os seus pedidos de protecção legal. Carrie Lam, Chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK), afirmou que se o Governo não aceitar as condições propostas pelas farmacêuticas, terá dificuldade em comprar vacinas. Estas empresas requerem imunidade legal, caso o produto cause efeitos secundários, e as pessoas que são vacinadas não estão dispostas a ver-se privadas dos seus direitos. Este dilema está a ser abordado do ponto de vista legal de três formas diferentes. A primeira não considera sequer a possibilidade de ignorar a responsabilização legal das farmacêuticas. Se alguém tiver uma reacção adversa após ter sido vacinado, pode processar a farmacêutica, mas a protecção legal do pessoal médico mantém-se. A segunda forma é a que foi adoptada pelo Public Emergency Act, nos Estados Unidos. Os laboratórios terão de assumir a responsabilidade criminal, mas são dispensados da responsabilidade civil. A terceira forma vai de encontro ao National Child Vaccine Injury Act 1986, também dos Estados Unidos. As farmacêuticas não têm de indemnizar a vítima directamente, esta indeminização é retirada de um Fundo para a Vacinação. É difícil dizer qual destas três abordagens é a melhor. A RAEHK acrescentou recentemente uma emenda à legislação e adoptou um modelo em que conjuga a segunda e a terceira formas, para lidar com a eventualidade de reacções adversas após a vacinação. O Governo de Hong Kong vai avançar com a criação de um Fundo para a Vacinação. Se alguém sofrer uma reacção adversa rara ou inesperada, que resulte em incapacidade para o trabalho ou que afecte a sua vida de alguma forma, desde que fique comprovado por um painel de especialistas que essa reacção foi directamente provocada pela vacina, existe lugar a uma indemnização. Por enquanto ainda não estão determinadas, nem as circunstâncias que permitem o direito à indemnização nem os valores implicados. O Governo de Hong Kong também assinalou que, embora os contratos com as farmacêuticas incluam algumas excepções, se estiverem em causa negligência, fraude, ou más condutas, etc., não haverá qualquer isenção de responsabilidade. Neste caso, o Governo está particularmente bem habilitado para lidar com esta questão devido há emenda efectuada ao Regulamento de Prevenção e Controlo de Doenças (Utilização de Vacinas) a 24 de Dezembro de 2020. O Artigo 10(2) isenta as farmacêuticas da responsabilidade civil no que respeita a eventuais efeitos adversos das vacinas. Mas este artigo não as isenta da responsabilidade criminal. Se existir fraude ou má conduta, as farmacêuticas continuam a ter responsabilidade criminal. O Artigo 10(4) também estipula a exclusividade da jurisdição dos Tribunais de Hong Kong na audição de casos relacionados com este assunto. Determina que apenas os Tribunais de Hong Kong têm o poder de ouvir os queixosos que processem os laboratórios. O Artigo (4) merece uma análise mais detalhada. Imaginemos que um residente de Hong Kong, que designaremos por A, é vacinado na cidade e apresenta posteriormente uma reacção adversa. A vacina foi produzida pelo laboratório B no país C. A apresenta queixa num Tribunal de Hong Kong, que irá julgar o caso. Seria estranho se este Tribunal não possuísse jurisdição que abrangesse este tipo de queixa. Como a vacina é produzida pelo laboratório B, no país C, o conflito deveria ser regulado pelas leis desse país. Desta forma, A podia escolher um advogado do país C e processar o laboratório B nesse país, e aí pedir para ser indemnizado. Nestas circunstâncias, poderá o Artigo 10(4) impedir A de apresentar uma queixa no país C? Pode o Tribunal do país C recusar o caso de A por causa do Artigo 10(4)? No fundo, o essencial é compreender que os residentes de Hong Kong podem apresentar queixa num Tribunal da cidade, caso tenham sofrido alguma reacção adversa à vacina, independentemente do país onde está sediado o laboratório e do país onde a vacina foi fabricada, desde que tenham sido vacinados em Hong Kong. Mas, se um residente de Hong Kong que esteja fora da cidade, e que designaremos por D, (assumindo que está no país E) for vacinado nesse país e tiver uma reacção adversa. Pode D apenas dar início ao processo em Hong Kong devido ao Artigo 10(4)? E ainda, se um estrangeiro (designado por F) tiver uma reacção adversa depois de ter sido vacinado em Hong Kong, pode recorrer aos Tribunais de Hong Kong? Quanto mais pessoas forem vacinadas, maior será a responsabilidade legal das farmacêuticas. Emboras as clausulas de excepção protejam estas empresas, privam dos seus direitos os vacinados. Criar um Fundo de Vacinação é uma forma equilibrada de proteger ambas as partes. Embora já esteja muita gente a ser vacinada e de início o Fundo ainda não disponha de verbas avultadas, apenas muito poucas pessoas sofrerão reacções adversas às vacinas. Desde que este Fundo seja bem gerido, os problemas podem ser resolvidos. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog:http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Hoje Macau Ai Portugal VozesA pandemia tem de ir morrer longe Por André Namora Li muito do filósofo escocês David Hume, um homem excepcional que faleceu em 1776. A sua principal obra foi a “Investigação sobre os Princípios da Moral”. Cada vez que mais o lia mais discordava com ele, apercebendo-me que eu era uma formiga intelectual ao pé de um elefante. O genial David Hume teorizava sobre questões epistemológicas – aquelas que tratam da natureza do conhecimento. Seus pensamentos foram revolucionários o que o levou a ser acusado de heresia pela Igreja Católica por ter ideias associadas ao ateísmo e ao cepticismo. Compõs a famosa tríade do empirismo britânico, sendo considerado um dos mais importantes pensadores do chamado iluminismo escocês e da própria filosofia ocidental. Dizia que era impossível provar a existência de Deus. Opôs-se particularmente a Descartes e às filosofias que consideravam o espírito humano desde um ponto de vista teológico-metafísico. Assim David Hume abriu caminho à aplicação do método experimental aos fenómenos mentais. A sua importância no desenvolvimento do pensamento contemporâneo é considerável. Somente no fim do século XX os comentadores se empenharam em mostrar o carácter positive e construtivo do seu projecto filosófico. Mas, ó André, a que propósito vens com filosofias? Não seria empírico falares sobre o que nos desgosta em Portugal? Precisamente, apresentei-vos David Hume porque ele escreveu uma vez que nada se destruía ou tudo desapareceria. Discordei logo dele. Primeiramente, não concebo que muitas coisas não se destruam quando, por exemplo, entre milhares de factos, estamos desde Março a aturar e a sofrer com uma pandemia que já matou milhões de pessoas em todo o mundo. O confinamento foi terrível e levou um amigo meu ao suicídio, o que aconteceu com tantos humanos que não aguentaram o enjaulamento caseiro e a progressiva deterioração na relação com a companheira ou vice-versa, tendo, alguns, os filhos pelo meio a enlouquecer o cérebro dos pais. Uma pandemia que nos trouxe a covid-19, algo ainda hoje inexplicável. O Coronavírus pulula pelo mundo há anos e a ciência tem andado sempre no seu alcance e no seu controlo. De repente, foi denominado de covid-19 e começou a matar humanos por todo o mundo, particularmente nos EUA, Brasil, China e Índia. As especulações são imensas: guerra entre americanos e chineses com o objectivo da destruição económica, anulação de metade da população de velhos no mundo em especial porque os governos já não têm dinheiro para pagar as reformas e para sustentar os organismos de apoio à saúde, uma tentativa da China de colocar Donald Trump na ordem ou no jazigo, farmacêuticas e laboratórios que viram a porta aberta para a angariação de biliões de dólares, enfim, uma panóplia de teorias de conspiração que levou às mais variadas opiniões de especialistas, cientistas, simples clínicos, comentadores de televisão e até políticos, esses incompetentes que nem das suas tutelas entendem quanto mais de uma pandemia. Ainda bem que já estamos em 2021, um novo ano que nos leva a ter esperança que tudo poderá melhorar. É uma esperança, porque se um rochedo dos Himalaias ou da Serra da Estrela dá razão a David Hume em nunca se destruir e assistirem à vivência milenar de gerações atrás de gerações, também temos de pensar que o vírus tem de desaparecer para Júpiter ou Saturno, mas que não nos mate mais. Agora assistimos ao negócio das vacinas. Esperemos que a ciência ganhe a batalha e que o inacreditável da criação de uma vacina em tão pouco tempo possa dar o efeito desejado, mesmo que seja um dos maiores negócios lucrativos do globo. O ano que terminou nem queremos lembrá-lo. Mudou o mundo, as pessoas, as estruturas, os pensamentos, os investimentos. Mudou a estabilidade de milhares de empresas. Deixou milhares no desemprego. Obrigou patrões pela primeira vez a despedirem trabalhadores fiéis de dezenas de anos com as lágrimas nos olhos. Obrigou jornais e revistas a encerrar. Obrigou casais a divorciarem-se porque a maioria dos homens nunca esteve habituada a não sair à noite para tomar um copo com as amigas e amigos. Obrigou os políticos a mentir nos números de infectados e de óbitos no respeitante à covid-19. Obrigou os médicos e enfermeiros a trabalhar como nunca pensaram e a sofrer desmesuradamente por se sentirem impotentes quando os seus doentes lhe morriam nos braços devido a esse vírus maldito. Por aqui, em Portugal, ai, meus leitores de Macau. A situação é horrível. Não houve Natal, não se festejou a passagem de ano, os restaurantes têm ido à falência, os hotéis estão vazios, os táxis estão sem clientes, os cabeleireiros nem sabem se os seus clientes mais idosos morreram ou não saem de casa desde Março. Meus amigos, que conhecem Portugal, dizer-vos que aquelas tascas maravilhosas à beira das estradas que serviam bifanas e pregos de provocar a lambidela dos dedos também têm encerrado as portas. Estão a morrer quase 80 pessoas por dia. O recorde de infectados chegou quase aos oito mil em 24 horas. Que o novo ano venha cheio de sorte, fé, amor e saúde! Que encha os nossos dias de força, de coragem e de pessoas de luz nas nossas vidas! Que nos ajude a manter o foco e a fé no que realmente importa! Que alivie o peso das lutas e nos traga paz! Que nos faça acreditar que aconteça o que acontecer, há sempre um sol por detrás dos dias escuros e nublados… há sempre! E que todos nós, em 2021 possamos dizer: fuck… estou a viver o melhor ano da minha vida, Desculpa, meu admirado David Hume, algo tem de terminar para bem de todos nós. Não podemos continuar a sofrer como tem acontecido desde Março do ano passado. A pandemia tem de ir morrer muito longe… *Texto escrito com a antiga grafia – Artigo escrito em 3/01/2021
João Romão Vozes2020 ainda não acabou Com inusitada prudência e generalizada desconfiança se foi celebrando, mais ou menos silenciosa e tristemente, a entrada em 2021, o ano que se segue ao da pandemia global que por muito tempo ficará na memória de toda a gente como o que trouxe o coronavírus à nossa intimidade e que, em maior ou menor escala, nos roubou a proximidade dos relacionamentos, pessoais, profissionais ou circunstanciais, remetendo grande parte da nossa vida afectiva para etéreos universos digitais e impondo, para quem pode, processos de trabalho à distância, geradores de novas incertezas e ansiedades mas ainda assim largamente preferíveis ao risco da convivência em espaços públicos ou às tragédias pessoais e colectivas do desemprego. Em todo o caso, mesmo com o notável progresso que a ciência parece ter proporcionado com o desenvolvimento acelerado de vacinas aparentemente eficazes e seguras, nenhum dos problemas que o covid-19 trouxe às sociedades contemporâneas está sequer perto de ficar resolvido. Na realidade, novos problemas vão acumular-se: apesar da mudança do calendário, 2021 não só nos obrigará a viver com os mesmos impactos imediatos da omnipresença de um vírus altamente letal e contagioso, como nos trará ao quotidiano os primeiros sinais dos impactos de médio-prazo que esta pandemia nos obriga a viver. Ainda que se vislumbrem soluções médicas – inevitavelmente lentas – o novo ano será sobretudo tempo de juntar novos problemas às dificuldades que a pandemia nos trouxe e que vão persistir. Ainda que o vírus continue entre nós – e em força – algumas marcas do que será uma sociedade pós-covid começam já a ser evidentes: recessão económica generalizada, falências, desemprego, concentração de riqueza, aumento da pobreza, intensificação das desigualdades sociais e reforço dos desequilíbrios de poder do capital sobre o trabalho num contexto de enfraquecimento da capacidade de intervenção e regulação dos estados. Apesar da imensa profusão de estudos, relatórios técnicos e produção científica que vou acompanhando nos domínios que por motivos profissionais me são mais familiares – desenvolvimento regional, planeamento urbano e economia do turismo – nenhuma destas questões parece ser vista como uma preocupação central ou mesmo como uma característica razoavelmente relevante no processo de reorganização de processos produtivos e relações sociais que possa resultar da erradicação definitiva do infame vírus que tão abrupta e categoricamente colocou a economia global em inevitável quarentena e as comunidades planetárias em justificado pânico. Na maior parte dos casos, o que leio sobre o assunto em contributos de ciências sociais diversas ou em documentos de orientação política parece na realidade mais próximo da ficção do que da análise científica. Neste caso, diria mesmo, muito mais próximo da má ficção científica, a que se deixa fascinar cegamente pelo brilho de prometidos radiosos futuros nutridos por progressos extraordinários das tecnologias – no caso as digitais, naturalmente, com a sua parafernália de redes, sensores, conexões, interações, dados (“big data” e outras magníficas formulações), análises em tempo real, simulações, enfim toda uma parafernália de instrumentos que tornarão mais “inteligentes” (“smart”, na mais modesta expressão inglesa) as nossas cidades, economias e vidas quotidianas – mas que pouco se atrevem, afinal, a explorar as contradições, conflitos, exclusões ou tensões sociais e psicológicas que comunidades e pessoas estão a enfrentar com cada vez maior intensidade, como seria próprio da boa ficção científica. Tomo como exemplo recente relatório publicado pela OCDE (Organizações para a Cooperação de Desenvolvimento Económico), que graças aos seus portentosos recursos e experiência acumulada mobiliza quadros técnicos de indiscutível qualidade e sapiência para a produção de informadas e sólidas análises que em grande medida enquadram e definem o essencial das opções de política económica dos países mais desenvolvidos do planeta. Em estudo publicado nos finais de 2020 (OECD Regions and Cities at a Glance 2020) aborda-se também este futuro que se considera próximo para as sociedades pós-covid, enfatizando a importância dessas tecnologias digitais, as virtudes do tele-trabalho, a reorganização dos serviços de saúde, a aceleração da transição para uma economia pós-carbono ou a renovada atractividade de zonas rurais e pequenas áreas urbanas em tempos de alta conectividade digital e generalizada preocupação com a proximidade física. Como de costume, ficam de fora as questões de poder ou as assimétricas situações de vulnerabilidade que diferentes pessoas ou grupos sociais têm que enfrentar. Quando muito, referem-se assimetrias regionais na resiliência com que se reage a este devastador impacto. E no entanto há evidentes assimetrias dentro de cada região, de cada cidade, de cada comunidade. Aprofundaram-se com a generalização da pandemia e vão aprofundar-se à medida que avançamos por 2021. Estão ligadas, reforçam-se mutuamente e constituirão um ciclo que marcará durante mais tempo a economia da catástrofe que estamos já a viver. O ponto de partida é o do costume: uma recessão económica global, prolongada e generalizada, com os decorrentes encerramentos de empresas, evitáveis e inevitáveis, a marcar o ritmo dos despedimentos, da subida do desemprego e da desvalorização do trabalho, sempre proporcional ao aumento do desespero. Ao mesmo tempo, a contemporânea mobilidade de capitais permite reorganização quase instantânea, mobilização de recursos financeiros para os negócios mais adequados a cada circunstância – e também os há em tempos de pandemia ou outras crises, como temos visto abundantemente. Mais uma vez, crescem as fortunas multi-milionárias do planeta, acelerando e intensificando a concentração de riqueza e aprofundando desequilíbrios e desigualdades de classe. Este aprofundamento dá-se num contexto específico, em que os estados se vão encontrar particularmente vulneráveis, a ter que suportar custos imprevistos para a contenção dos impactos imediatos da pandemia (saúde, subsídios, apoios sociais, etc.) e a ver reduzidos os seus recursos (menores receitas fiscais como consequência da recessão económica). O resultado é mais do que económico e traduz-se em mais um passo significativo para a reconfiguração do poder a que temos assistido desde os anos 1980, em maior ou menor grau consoante as geografias mas com evidente tendência planetária: um sistemático desequilíbrio na relação entre o poder do capital (cada vez mais concentrado) e o valor do trabalho (cada vez mais isolado), num contexto de sistemático enfraquecimento da capacidade de intervenção e de regulação dos estados. Os anos pós-covid já começaram e parecem ir reforçar ainda mais estas tendências globais, mesmo antes da erradicação do vírus. A reconfiguração das cidades, sociedades e quotidianos vai ser feita gradual mas implacavelmente e de acordo com os interesses de quem vem acumulando e concentrando poder. São coisas que parecem interessar pouco na discussão pública, no entanto.
Olavo Rasquinho VozesO acordo de Paris na era pós-Trump Passados cinco anos após a entrada em vigor do Acordo de Paris, o presidente Donald Trump deu instruções para que os EUA se retirassem, o que veio a concretizar-se em 4 de novembro de 2020, data em que formalmente se deu a quebra do compromisso. Recorde-se que o Acordo de Paris é um tratado internacional no âmbito das atividades da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (United Nations Framework Convention on Climate Change-UNFCCC), que tem como objetivo a tomada de medidas, pelos Estados aderentes, no sentido de que o aumento da temperatura média do ar seja inferior a 2 graus centígrados no final do século XXI e, tanto quanto possível, inferior a 1,5 graus, tendo como referência os níveis pré-industriais. Este tratado internacional foi aprovado por 195 países em 12 de dezembro de 2015 e entrou oficialmente em vigor em 4 de novembro de 2016, altura em que 55 países que produzem 55% das emissões globais dos gases de efeito de estufa (GEE) o ratificaram. De acordo com projeções do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC), estima-se que, se a temperatura média do ar aumentar 2 ou mais graus celsius até ao fim do século, dar-se-á a fusão de grande parte do gelo da Gronelândia, Antártida, Oceano Ártico, assim como dos glaciares que ainda persistem, nomeadamente nos Alpes, Himalaias, Andes e Islândia. Este degelo implicaria um fluxo de água líquida que provocaria a subida do nível médio do mar de forma significativa, o que faria com que vastas zonas litorais do nosso planeta se tornassem inabitáveis, não só devido às marés astronómicas mais pronunciadas, mas também às marés de tempestade frequentemente associadas a depressões muito cavadas, como por exemplo os ciclones tropicais (tufões e furacões). O degelo no Oceano Ártico não contribuiria diretamente para a subida do nível médio do mar, na medida em que a água líquida proveniente da fusão do gelo, menos denso, iria ocupar o mesmo espaço do gelo submerso. No entanto, sendo o poder refletor do gelo muito maior do que o da superfície líquida, o degelo de vasta áreas implicaria menor reflexão da radiação solar e uma maior absorção pela superfície líquida do mar e, consequentemente, um aumento da sua temperatura. O ar, em contacto com o mar, também teria tendência para aumentar a sua temperatura, potenciando o aquecimento global. Os modelos de previsão do clima entram em consideração com esta realidade, além de outros parâmetros (nebulosidade, fluxo energético associado a correntes marítimas, etc.), de maneira que os resultados que nos dão são uma aproximação do que poderá ser a realidade futura. Numa das suas primeiras declarações, Joe Biden realçou a intenção de regressar ao Acordo de Paris, o que não implica a sua ratificação automática, na medida em que esta depende do senado. Este órgão tem constituído frequentemente uma barreira às intenções dos Presidentes dos EUA. Por exemplo, durante a administração de Bill Clinton, o senado impediu a ratificação do Protocolo de Quioto, com a argumentação de que seria potencialmente prejudicial para a economia americana, apesar de ter sido assinado pelos EUA em novembro de 1998. Isto apesar de o Vice-Presidente Al Gore ter sido um dos principais paladinos da importância desse Protocolo. Os EUA também não têm sido um bom exemplo de cooperação internacional noutras áreas. Foi o que aconteceu com o Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia, que entrou em vigor a 1 de julho de 2002, após a ratificação do Tratado que lhe deu origem, por 76 países, entre os quais a Rússia e 19 membros da NATO. Os EUA, que sempre tiveram uma atitude ambígua em relação a este tribunal, acabaram por assinar o Tratado em 31 de dezembro de 2000, no final do mandato da administração Clinton. Acontece, porém, que a Administração Bush, que lhe sucedeu, anulou a adesão em maio de 2002, alguns meses antes do Tratado ter entrado em vigor. A saída de Trump da presidência dos Estados Unidos da América constitui uma esperança para os que acreditam que o Acordo de Paris possa vir a ser bem-sucedido. Isto não só por os EUA serem a segunda maior potência responsável pela emissão de GEE a nível global, mas também pelo facto de os seguidores de Trump se sentirem desmoralizados pela sua derrota eleitoral. Talvez seja o caso do seu duplo sul-americano, Bolsonaro, que provavelmente se sentirá agora mais isolado após a queda do seu ídolo. Curiosamente, ambas as personalidades, Trump e Bolsonaro, têm sido apoiadas por equipas constituídas por negacionistas das alterações climáticas, por vezes com aspetos que, se não fossem trágicos, seriam anedóticos. Steve Bannon, o antigo conselheiro e diretor da campanha eleitoral de 2016, de Trump, teve recentemente um comportamento de tal forma abjeto, que algumas redes sociais removeram o vídeo de sua autoria onde sugeria a decapitação de Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA, e de Christopher Wray, diretor do FBI, e a exibição das suas cabeças à entrada da Casa Branca, como “um aviso a burocratas federais”. Essa figura sinistra, Steve Bannon, esteve também em contacto, em 2018, com Eduardo Bolsonaro, filho do então candidato Jair Bolsonaro, tendo-se prontificado para prestar consultoria informal na área da análise de dados na Internet, o que terá ajudado a manipular a opinião pública através notícias falsas nas redes sociais. Também movimentos europeus de extrema-direita têm vindo a usufruir do apoio de Steve Bannon. Coerentemente com as suas ideias negacionistas, o então candidato a presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, manifestou durante a sua campanha eleitoral a intenção de o Brasil se retirar do Acordo de Paris, apesar de o Congresso o ter ratificado em agosto de 2016. No entanto, mediante pressão política, acabou por desistir da ideia. Durante a vigência da administração Trump, os EUA tomaram outras atitudes inamistosas para com a comunidade internacional. Assim, além da saída do Acordo de Paris, também se retiraram de outros pactos e fóruns multilaterais, nomeadamente da UNESCO e do acordo nuclear com o Irão. A decisão de retirada da UNESCO, que está em sintonia com a aversão de Trump ao multilateralismo, tomada em outubro de 2017, foi justificada pela necessidade de a organização necessitar de uma reforma profunda e de deixar de manifestar preconceitos anti-israelitas. A administração Trump iniciou também o processo de saída da Organização Mundial da Saúde (World Health Organization – WHO), da qual os EUA são membro desde 1948, ano da entrada em vigor da sua constituição. Acontece, no entanto, que a retirada não se poderá concretizar antes de julho de 2021, altura em que a administração Biden já contará com meio ano de exercício. Se a nova administração conseguir impor a sua vontade, a intenção de Trump será frustrada. Tenhamos esperança que a nova administração dos EUA consiga impor a vontade de regressar ao Acordo de Paris e que a COP26, a realizar em Glasgow em novembro de 2021, venha a constituir um marco histórico na concretização dos esforços da comunidade científica, no sentido de que se caminhe para um futuro mais promissor no que se refere à sustentabilidade do nosso planeta. *Meteorologista
Tânia dos Santos Sexanálise VozesCelebrar o extraordinário O ano velho foi atípico. Forçou mudanças, restringiu a liberdade, o toque e o contacto foram desaconselhados e até proibidos. Recordar os primeiros momentos do surto é recordar a incerteza de tudo o que estava a acontecer – e agora chegámos aqui. Aqui estamos no ano novo (do calendário gregoriano) e muitos foram os votos pela normalidade que conhecíamos. A esperança de um regresso às viagens, prazeres e liberdades têm invadido os discursos. Não admira. A pandemia trouxe tempos difíceis onde os problemas do mundo só se exaltaram. Muita gente não tinha uma casa onde se abrigar, apesar do confinamento obrigatório. As desigualdades sociais tornaram-se mais óbvias. A “casa” tornou-se o refúgio de muitos e o pesadelo de outros, que não se sentiam seguros e protegidos. O confinamento foi romantizado pelos que podiam, os outros tiveram que se aguentar. As âncoras deixaram de estar visíveis. A bem ou a mal foi o tempo de parar. Na viragem do ano também vieram as resoluções de sempre. Algumas delas focadas na transformação do corpo e na futilidade da imagem (que as redes sociais pioram sempre). Vários estudos mostram que só 10 por cento das pessoas conseguem cumprir as suas resoluções de ano novo. E isso é simples de explicar – para a mudança acontecer é preciso preparação, e essa é escassa. Tanto a nível individual como colectivo. A pandemia que o diga: no momento em que a prioridade foi a saúde e a vida humana, tudo se baralhou. Parecíamos umas baratas tontas. Novas prioridades exigiram novas normas: a custo de quê? Agora volta-se ao normal não-normal, que só afunda o que nos separa. Artificia-se um colectivismo nacional/regional para garantir economias e formas de vida. Prevalecem soluções e perspectivas tecnocráticas do funcionamento social onde só há espaço para o que interessa (a alguns). Em tempos de crise discrimina-se o essencial de um suposto acessório. Os gestores são mais importantes que os artistas, dizem eles. A obrigação é necessária e o prazer é um luxo, dizem eles. Sonha-se com a normalidade antiga sem grande consciência que era ela o problema também. Um 2020 marcado pela pandemia só foi disruptivo porque não o vimos como sintomático do estilo de vida contemporâneo. As coisas estavam más, mas eram finamente toleradas. A normalidade contribuiu para a desflorestação, a crescente invasão de ecossistemas e para a transmissão zoonótica do vírus – de onde outros vírus virão. Foi dos vícios e artifícios do antigamente que se agravaram as dificuldades sociais violentamente sentidas, e que vão continuar. Pelo menos parou-se. Podia ter sido uma oportunidade para re-imaginar um mundo diferente, um espaço para o recomeço. Foi extraordinário assistir ao sentido de comunidade que se desenvolveu a vários níveis – ainda que não tenha durado muito. Ajudavam-se os vizinhos e o “essencial” parecia ser importante. A humanidade estava latente no trato, ainda que cumprindo distanciamento social e protegido de máscaras. Provou-se a resiliência e a criatividade com serenatas e concertos à janela, entre muitas outras coisas. O vislumbre de um mundo radicalmente diferente poderia prometer um ano 2021 radicalmente diferente. O ordinário só é familiar, não é imutável. O extraordinário é o trunfo dos tempos e pode ser que 2021 assim o seja.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesContratempos da Vacina (II) A semana passada, analisámos cinco vacinas contra a covid-19 e algumas reacções alérgicas que eventualmente podem provocar, como paralisia facial e outras reacções adversas. Como é impossível provar cientificamente que estas reacções estejam directamente relacionadas com a toma da vacina, não se pode afirmar com cem por cento de certeza que exista uma relação causa efeito. No entanto, é necesssário ter muito cuidado antes de tomar a vacina. Os pacientes devem ter conhecimento da sua história clínica, e os médicos devem estar preparados para a eventualidade de uma reacção alérgica. Após a vacinação, é preciso haver um certo resguardo e esperar algum tempo para garantir que não sobrevêm quaisquer sintomas negativos. Em média, são necessários mais de dez anos para desenvolver uma vacina, mas estas levaram apenas dez meses a ser criadas, produzidas e administradas. Se estas vacinas garantirem protecção num período entre 3 a 5 anos, só no final deste intervalo de tempo se poderá ter um conhecimento mais aprofundado do seu funcionamento. Até lá, não podemos saber ao certo a sua eficácia, nem quais serão os efeitos secundários. Uma vacina desenvolvida em tão pouco tempo vai deixar uma série de questões em aberto. A responsabilização legal dos produtores das vacinas é outro assunto que merece a nossa atenção. O tempo recorde em que estas vacinas foram produzidas deu margem para os laboratórios poderem estudar as reacções adversas que podem eventualmente desencadear? Até que ponto é que estas reacções adversas podem prejudicar a saúde a médio e longo prazo? Os laboratórios farmacêuticos não têm respostas para estas perguntas. Onde reside a sua responsabilidade legal? O fabricante tem a responsabilidade de garantir que o seu produto não provoca reacções adversas. Se a vacina provoca uma reacção negativa e quem a recebe precisa de tratamento médico, estão criadas as condições para um processo legal. A pessoa prejudicada pode pedir uma indemnização ao laboratório. A responsabilização legal dos fabricantes varia de país para país. Em situações de emergência, os Governos desobrigam os fabricantes da responsabilidade legal. O Reino Unido é disso exemplo. O Reino Unido garantiu protecção legal aos laboratórios farmacêuticos, para evitar que possam ser alvo de processos na sequência da administração das vacinas. Esta protecção é alargada ao pessoal de saúde e aos fabricantes de medicamentos. Ruud Dobber, administrador sénior do AstraZeneca, um laboratório farmacêutico britânico, deixou bem claro que é impossível os laboratórios responsabilizarem-se pelos efeitos secundários das vacinas muitos anos após a sua administração. Desta forma, em todo o lado, os laboratórios devem estar a debater esta questão e a solicitar a protecção dos respectivos Governos. O Governo de Hong Kong declarou que pode desobrigar os laboratórios das suas responsabilidades legais no que respeita a esta vacina. Carrie Lam, a Chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Hong Kong, afirmou também que se o Governo não aceitar as condições colocadas pela indústria farmacêutica, vai ser muito difícil adquirir vacinas. A União Europeia também declarou que a responsabilidade do produto tem estado no centro das negociações com a indústria farmacêutica. O Public Readliness and Emergency Preparedness Act 2005 dos Estados Unidos estipula que um produto que seja usado para controlar uma crise de saúde pública, pode ficar isento de processos legais. O National Childhood Vaccine Injury Act 1986 dos EUA também estipula que se alguém se sentir lesionado após ter recebido uma vacina, pode apresentar queixa contra o Secretário do Departamento de Saúde e de Serviços Humanos no Tribunal Federal e pedir para ser indemnizado através dos capitais do Fundo para a Vacinação. Este Fundo é financiado pelo Governo e por uma taxa de 75 cêntimos que os laboratórios pagam por cada dose de vacina que produzem. As diversas leis regulam a responsabilidade dos produtores de vacinas em diferentes graus e também acarretam consequências diferentes. O primeiro caso é o de Hong Kong. Até ao momento em que escrevia este artigo, não havia notícia de que Hong Kong tivesse isentado os produtores de vacinas da responsabilidade legal. Assim, se alguém tiver uma reacção adversa após ter sido vacinado em Hong Kong, pode processar o laboratório. A população não foi privada dos seus direitos legais nesta matéria. A segunda situação ocorre nos Estados Unidos. O Public Readliness and Emergency Preparedness Act 2005 estipula que o fabricante tem de assumir responsabilidade criminal, mas está isento da responsabilidade civil. A terceira está relacionada com o National Child Vaccine Injury Act 1986 (Estados Unidos). Este conjunto de leis permite que as vítimas reclamem uma indemnização, mas essa indemnização é paga pelo Fundo para a Vacinação, sem que os laboratórios tenham de arcar com a despesa. Esta disposição protege as vítimas e as farmacêuticas. É difícil determinar qual destes três modelos é o melhor. É inegável que as afirmações de Ruud Dobber exprimem claramente que as farmacêuticas não podem correr o risco de se vir a responsabilizar por todas as reacções adversas que as vacinas possam causar ao longo dos anos, e é justificável que peçam protecção legal. Mas também é razoável que uma pessoa que tenha sofrido uma reacção adversa após ter sido vacinada, peça uma indemnização. Com os dois lados nos pratos da balança, o Governo britânico aprovou uma legislação que priva o público da possibilidade de processar as farmacêuticas. Não estará a inclinar-se para o lado dos fabricantes? Será uma postura razoável? Como a comunicação social não avançou qualquer informação sobre os conteúdos da legislação, não nos podemos pronunciar em profundidade. No entanto, esta legislação que priva as pessoas que recebem as vacinas dos seus direitos é uma séria violação do direito de ser ressarcido em caso de danos. O US Public Readliness and Emergency Preparedness Act 2005 isenta os laboratórios de responsabilidade civil e o Fundo para a Vacinação do National Child Vaccine Injury Act 1986 parece ter criado um equilíbrio entre os interesses da indústria farmacêutica e os interesses do público. Embora muitas pessoas venham a ser vacinadas e o Fundo não possua verbas muito avultadas de início, devemos ter em conta que são muito poucos os casos que apresentam reacções graves após a vacinação. Desde que este Fundo seja devidamente administrado, acredito que o problema pode ser resolvido. Continua na próxima semana. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog:http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Hoje Macau VozesDiscurso de Ano Novo do Presidente Xi Jinping Camaradas, amigos, senhoras e senhores, saudações a todos! O ano de 2021 está a chegar. Da capital da China, Pequim, apresento os meus votos de Ano Novo a todos! 2020 foi um ano extraordinário. Diante da repentina pandemia de coronavírus, colocámos as pessoas e as suas vidas em primeiro lugar para interpretar o grande amor entre os humanos. Com solidariedade e resiliência, escrevemos a epopeia da nossa luta contra a pandemia. Durante os dias em que enfrentámos as dificuldades juntos, vimos os espíritos heróicos marchar a direito para a linha de frente, firmes nos seus postos com tenacidade, assumindo a responsabilidade de passar por tudo, sacrifícios com bravura e momentos emocionantes de ajuda mútua. Dos trabalhadores médicos ao exército popular, dos cientistas aos trabalhadores comunitários, dos voluntários aos que construíram os projectos, dos idosos aos jovens nascidos depois das décadas de 1990 e 2000, inúmeras pessoas cumpriram as suas missões à custa das suas vidas e protegeram a humanidade com amor sincero. Eles juntaram as suas forças, criando num poder tremendo, e construíram uma muralha de ferro para salvar vidas. Muitos foram os que marcharam em frente sem hesitar, muitos revezamentos foram realizados de mãos dadas, muitas cenas expuseram momentos comoventes, e tudo isto ilustra vividamente o grande espírito de luta contra a pandemia. A grandeza é forjada no comum. Os heróis vêm do povo. Cada pessoa é notável! As nossas condolências para todos os que infelizmente foram infectados com o coronavírus! Saudamos todos os heróis comuns! Tenho orgulho da nossa grande pátria e povo, bem como do nosso inquebrantável espírito nacional. É em tempos difíceis que a coragem e a perseverança se manifestam. É após ser polido que um pedaço de jade fica mais fino. Superámos o impacto da pandemia e alcançámos grandes conquistas, coordenando a prevenção e controlo, e no desenvolvimento económico e social. O 13º Plano Quinquenal foi integralmente cumprido. O 14º Plano Quinquenal está a ser formulado de forma abrangente. Estamos a acelerar o ritmo para estabelecer um novo padrão de desenvolvimento e a implementar em profundidade o desenvolvimento de alta qualidade. A China é a primeira grande economia do mundo a conseguir um crescimento positivo e espera-se que o seu PIB em 2020 atinja o novo nível de 100 triliões de yuans. A China tem uma boa colheita na produção de grãos há 17 anos consecutivos. A China produziu avanços em explorações científicas como o Tianwen-1 (missão a Marte), o Chang’e-5 (sonda lunar) e o Fendouzhe (submersível tripulado em alto mar). A construção do Porto de Livre Comércio de Hainão prossegue com vigor. Também derrotámos severas inundações. Com militares e civis, indiferentes aos perigos e às dificuldades e permanecendo unidos, conseguimos minimizar os danos das cheias. Inspecionei 13 províncias e fiquei feliz ao ver as pessoas implementar cuidadosamente as medidas de prevenção e controlo do coronavírus, correndo contra o tempo para retomar o trabalho e a produção, sem poupar esforços para promover a inovação. Em todos os lugares assisti a cenas vibrantes de pessoas confiantes e resilientes que aproveitavam ao máximo cada minuto. Em 2020, a China realizou a conquista histórica de estabelecer uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos e obteve um sucesso decisivo na erradicação da pobreza extrema. Lançámos o ataque final à fortaleza da pobreza rural enraizada e quebrámos esse “osso duro de roer”. Ao longo de 8 anos, sob o padrão actual, a China erradicou da pobreza extrema quase 100 milhões de habitantes rurais afectados e todos os 832 condados empobrecidos conseguiram elevar-se acima dessa pobreza. Nestes anos, visitei 14 áreas contíguas de extrema pobreza. Muitas vezes me lembro dos esforços incessantes das pessoas e da contribuição sincera dos quadros responsáveis pela erradicação da pobreza. Ainda precisamos permanecer de ser tenazes como um bambu profundamente enraizado nas rochas, manter os pés no chão e trabalhar duramente para pintar um quadro magnífico de revitalização rural e marchar constantemente em direcção ao objectivo da prosperidade comum. Este ano, celebramos o 40º aniversário da Zona Económica Especial de Shenzhen, entre outras, e os 30 anos do desenvolvimento e abertura de Pudong em Xangai. Quando eu estava na costa sul, e a maré da primavera subia pela margem colorida do rio Huangpu, a minha mente ficou repleta de uma miríade de pensamentos. Os testes-piloto tornaram-se modelos e forças liderantes, e as experiências para inovar tornaram-se nas forças principais da inovação. A abertura e a reforma criaram milagres de desenvolvimento. No futuro, devemos aprofundar ainda mais a reforma e expandir a abertura com maior coragem e criar mais destas “histórias de primavera”. Não estamos sozinhos na Grande Via porque o mundo inteiro é uma família. Depois de um ano de dificuldades, podemos compreender mais do que nunca o significado da humanidade como uma comunidade global com um futuro partilhado. Recebi muitos telefonemas de amigos da comunidade internacional, antigos e novos, e participei de muitas conferências à distância. O que mais discutimos foi permanecermos unidos no combate à pandemia. Ainda temos um longo caminho a percorrer na prevenção e controlo da pandemia. Pessoas de todo o mundo devem dar as mãos e apoiar-se umas nas outras para dissiparmos as sombras da pandemia e lutarmos por uma melhor “casa na Terra”. 2021 verá o 100º aniversário do Partido Comunista da China. A sua jornada de 100 anos avança com um grande ímpeto. Cem anos depois, a sua aspiração original permanece ainda mais firme. De Shikumen em Xangai ao Lago Sul na cidade de Jiaxing, o pequeno barco vermelho (onde o primeiro congresso do PCC foi realizado) trouxe grande confiança ao povo e esperança à nação. O barco cruzou rios turbulentos e baixios traiçoeiros, viajou através de ondas e tsunamis, tornando-se num grande navio que navega pelo desenvolvimento estável e de longo prazo da China. O PCC tem a sua eterna grande causa em mente e o centenário apenas inaugura o início da sua vida. Pretendemos colocar em primeiro lugar as pessoas, permanecemos fiéis à nossa aspiração original, mantemos a nossa missão bem presente, quebramos as ondas e navegamos para a nossa jornada em frente e, certamente, realizaremos o grande rejuvenescimento da nação chinesa. Na encruzilhada histórica dos “Dois Objetivos do Centenário”, a nova jornada de construção abrangente de um país socialista moderno está prestes a começar. A estrada à frente é longa; o esforço é o único caminho a seguir. Temos lutado, rasgado por entre silvas e espinhos, cruzado dez mil rios e milhares de montanhas. Continuaremos o nosso esforço, marcharemos para diante com coragem e criaremos uma glória ainda mais brilhante! Neste exacto momento, as lanternas festivas foram acesas e os familiares reúnem-se para o reencontro. O Ano Novo está a chegar. Desejo que nossa terra seja esplêndida, nosso país próspero e nosso povo viva em paz. Desejo a todos um ano harmonioso, suave e auspicioso, cheio de felicidade! Obrigado!
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesO Expresso da Política A Assembleia Legislativa de Macau esteve no início do mês focada no debate das linhas de acção sectoriais das Linhas de Acção Governativa, com a presença dos secretários e respectivos directores de serviços. Acredito que quem tiver prestado atenção às transmissões directas da TDM ou às notícias dos jornais, deverá concordar comigo que, mais do que debates, estas sessões são sobretudo trocas de perguntas e respostas entre os deputados e os membros do Governo. Nota-se a ausência de debates interactivos e acalorados e paira no ar um consenso geral. Em comparação com os confrontos que se verificam no Conselho Legislativo de Hong Kong, a relação entre o Executivo e a legislatura na Assembleia Legislativa de Macau é muito harmoniosa. A Assembleia Legislativa assemelha-se a um carro que leva passageiros à boleia, ou seja, os deputados que desta forma completam a jornada de quatro anos desta legislatura. Esta viagem termina em Agosto de 2021, mas não houve melhorias na política ecológica de Macau, a vida parlamentar na Assembleia tem permanecido tão calma e imperturbável como o Lago Nam Van, que acabará por secar ou tornar-se um depósito de águas estagnadas e pestilentas. Se a Assembleia Legislativa de Macau é um carro que leva passageiros à boleia, o Conselho Legislativo de Hong Kong é um comboio expresso. A Chefe do Executivo, Carrie Lam, pediu que o Governo Central interpretasse a Lei Básica da RAEHK, o que causou a anulação do mandato de quatro deputados do campo pró-democracia. A anulação destes mandatos provocou a demissão de todos os deputados pró-democratas, numa manifestação de protesto contra esta decisão. A situação deixa o Conselho Legislativo de Hong Kong sem representantes da oposição. Apesar disso, Carrie Lam foi ao Conselho Legislativo apresentar o seu programa como se nada tivesse acontecido. Na aparência, a relação entre o Executivo e a legislatura de Hong Kong melhorou consideravelmente, com todas as propostas de lei apresentadas pelo Governo aprovadas sem qualquer problema. Este “comboio expresso” é bom ou mau para Hong Kong? Um comboio expresso sem travões acaba por ter um acidente e provocar a morte dos passageiros, sobretudo se o maquinista insiste em continuar a alimentar a “fornalha”. Para fazer uma boa viagem à boleia é preciso conseguir um carro que vá na nossa direcção, causar boa impressão ao condutor e seguir as suas instruções, só desta forma conseguiremos chegar ao nosso destino sem problemas. Para viajar num comboio expresso não existem tantas condições. Só precisamos de comprar o bilhete e mostrar o nosso documento de identificação. Depois de mostrar o bilhete ao revisor, passamos a cancela, entramos no comboio e ocupamos o lugar na carruagem que nos está destinada, depois é só seguir viagem sem paragens pelo meio. No decurso de uma viagem no comboio expresso já não podem entrar mais passageiros até ao destino final. E o que é que acontece a quem não conseguiu apanhar boleia e tem de viajar de comboio expresso? A experiência de Mahatma Gandhi na Índia pode servir de exemplo. Quem viu o filme “Gandhi” deve lembrar-se que este estadista, que ao tempo exercia advocacia, foi expulso de um comboio na África do Sul devido à cor da pele. Gandhi viajava em primeira classe, e possuía um bilhete válido, mas por não ser branco não lhe foi permitido ocupar aquele lugar. Mas, na altura, ninguém ia imaginar que a história do Império Britânico e do Hindustão iria mudar a partir do momento em que Gandhi saiu do comboio. Muitas pessoas enfatizam constantemente a importância da segurança nacional, e eu acredito que o homem que expulsou Gandhi do comboio nunca pensou que na verdade estava a praticar um acto que iria pôr em risco a segurança nacional. Numa sociedade sem igualdade, sem justiça, abertura e probidade, a segurança nacional acaba inevitavelmente por ser posta em risco. Imaginem se sempre que o comboio pára numa estação, só podem entrar aqueles que estão acostumados a apanhar boleia e os que de alguma forma têm acesso privilegiado ao expresso, o que vos parece que os que ficam de fora vão fazer? Quem fala de patriotismo sem ter noção da situação no seu todo, acaba por prejudicar o país. Em Setembro do próximo ano, vão realizar-se eleições para o Conselho Legislativo de Hong Kong e para a Assembleia Legislativa de Macau. Esperemos que para o efeito, se perfilem candidatos com capacidade, aspirações e ideais, e que as eleições decorram num ambiente de igualdade, justiça, abertura e livres de corrupção, para que os eleitos possam vir a falar em nome do povo, supervisionem e prestem assistência ao Governo, para tornar a sua acção mais eficaz. Só desta forma se pode garantir a segurança nacional, sem temer que ela possa ser posta em causa por um pequeno círculo de pessoas com interesses instalados.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesPerguntas Natalícias Inconvenientes Para muita gente no mundo o Natal significa tempo em família. Para outra gente o Natal significa tempo com aquelas pessoas com quem partilhamos ADN, mas com quem não gostamos de estar na mesma sala. Famílias são assim, esse conceito aberto que gravita entre harmonia, conforto e disrupção – é a complexidade que lhe dá um certo charme. Um dos acontecimentos clássicos natalícios é o do constante questionamento por parte das famílias: então e namorado/namorada? Então e filhos? No Natal discute-se a vida romântica e a procriação, sem rodeios e censuras, não fosse esse o dia do parto de uma virgem. A maioria dos filmes e séries românticas natalícias partem desta interação em particular. O enredo vai, muito provavelmente, girar à volta do desespero de se arranjarem parceiros românticos para satisfazer as ansiedades das famílias que não se vêm multiplicadas em outras famílias como elas. Clássico. Todo este questionamento, no entanto, é problemático por várias razões. O conceito de família tende a ser bastante limitador e inflexível. Não só se baseiam em expectativas heteronormativas de relacionamentos românticos – desrespeitando todas as outras formas de romance que não são entre um homem e uma mulher – mas como desrespeitam todas as outras formas de estar no mundo, e em família, que podem não implicar relacionamentos românticos. Os solteiros são sacrificados, criticados e escrutinados porque não oferecerem essa tal normalidade. Muitas famílias também não aceitam a transição, o não-binarismo, as performances de género que as cabecinhas retrogradas acham fora da caixa. Nu e cru: no natal fala-se muito de sexo, mas com pruridos. Depois há a pergunta dos filhos à qual já fui pessoalmente vítima inúmeras vezes e em várias situações familiares. Outro clássico natalício deveras preocupante. Lá porque o útero pode gerar vida, não quer dizer que a detentora do útero o queira. Caso existam desses perguntadores por aí, vale a pena relembrar que ter filhos é uma escolha e não uma obrigatoriedade da vida. Para as pessoas que não podem ter filhos, fazer essa pergunta não só é dolorosa, como cruel. Apela-se à sensatez no que toca à privacidade e, muitas vezes, à dificuldade destas questões da procriação, da fertilidade e das desigualdades de género que ainda se vivem à custa da parentalidade. Partir do princípio de que a pergunta dos filhos é inócua, só mostra o caminho longo por percorrer para a mudança. O Natal pode ser um grande stressor porque a família não é necessariamente uma zona de conforto e porque o sentido de família continua contíguo a uma representação antiga e desactualizada. Ter consciência disto talvez ajude os muitos Natais por aí que não são perfeitos como as lenga-lengas natalícias nos fazem querer. Num ano em que existem dificuldades acrescidas nestes encontros familiares, esta eterna busca por perfeição é cada vez mais desmistificada. Para quem precisar, as perguntas natalícias inconvenientes já fizeram com que se escrevessem listas de possíveis respostas à letra. Basta procurarem. Não há nada como atrapalharem a dinâmica familiar natalícia com o azedume comum de quem está farto de se justificar à frente da mesa do bacalhau e das rabanadas. “O mundo já está cheio de gente estúpida de qualquer forma” – toma lá, Tia Alberta.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesContratempos da vacina (I) Durante a última semana as vacinas contra a COVID estiveram na ordem do dia em todo o mundo. Várias vacinas estão a ser produzidas em massa e está para breve a sua distribuição em muitos países e regiões. Actualmente existem cinco vacinas reconhecidas. A primeira, à base de ácido ribonucleico, foi desenvolvida pela Pfizer, uma empresa farmacêutica norte-americana e pela BioNTech, uma empresa alemã. O Reino Unido foi o primeiro país a aprovar a utilização da vacina. No passado dia 11, a vacina foi também autorizada nos Estados Unidos pela US Food and Drug Administration. Esta vacina usa pela primeira vez uma nova tecnologia e tem de ser conservada a uma temperatura de 70º graus negativos. Só pode ser guardada no frigorífico durante cinco dias. A julgar por estas condições, percebe-se que o transporte vai levantar algumas dificuldades. A segunda vacina é da Moderna, outra empresa norte-americana. Esta já pode ser conservada a 20 º negativos, durante seis meses. Também pode permanecer num frigorifico doméstico até 30 dias. A US Food and Drug Administration aprovou-a no passado dia 17. A terceira foi desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela AstraZenca, uma empresa farmacêutica britânica Esta vacina usa um vector viral não replicável e pode ser conservada a uma temperatura entre os 2 e os 8º Celsius, factor que facilita bastante o seu transporte. A quarta, a CoronaVac desenvolvida pela Sinovac, uma empresa chinesa de ciência e tecnologia, é feita a partir dos métodos tradicionais contendo estirpes modificadas do agente patogénico. Esta técnica é amplamente utilizada, por exemplo, na vacina contra a raiva. A quinta, é a vacina russa Sputnik-V. Foi desenvolvida pelo Centro Nacional de Epidemiologia e Microbiologia Gamaleya em Moscovo, e foi registada no Ministério da Saúde da Federação Russa, a 11 de Agosto. O Presidente Putin anunciou que a filha tinha tomado a vacina. A Sputnik-V foi testada em cerca de 80 pessoas durante dois meses, passando rapidamente a fase de ensaios clínicos e registo. As vacinas trazem grandes benefícios na supressão das epidemias. No entanto, algumas pessoas tiveram reacções adversas após terem sido inoculadas. No Reino Unido, houve dois casos. Ambos tinham várias alergias. Depois de terem tomado uma injecção de epinefrina, recuperaram. Nos Estados Unidos também ocorreram alguns casos. Uma mulher de meia idade, que trabalha na área da saúde, foi vacinada dia 15 deste mês. Passados dez minutos, começou a ter dificuldade em respirar e aceleração do ritmo cardíaco. Mesmo após receber uma injecção de epinefrina, os sintomas continuaram a surgir. Depois de ter passado um dia nos Cuidados Intensivos, teve alta, mas o médico disse-lhe que nunca mais podia tomar esta vacina. No Reino Unido quatro pessoas desenvolveram paralisia de Bell, depois de terem sido vacinadas. Actualmente estão todas recuperadas. Nestes últimos casos, não existem provas científicas que demonstrem que estas reacções estão directamente relacionadas com a vacina. Cientificamente, não é possível estabelecer a relação causa efeito entre a paralisia facial e a vacina. June Raine, uma representante da Agência Reguladora do Medicamento e e Produtos para a Saúde do Reino Unido (MHRA – sigla em inglês), assinalou que, após a vacinação, a maior parte das pessoas não vai ter reacções alérgicas, um pequeno grupo terá algumas reacções moderadas e que as reacções graves vão ser raras. As vacinas protegem as pessoas de infecções virais. Os seus benefícios superam largamente os riscos. Estas vacinas vão de encontro aos critérios extremamente exigentes da MHRA, no que respeita a segurança, qualidade e eficácia. O facto de terem surgido estas reacções alérgicas, é um alerta para a necessidade de ter em atenção a história clínica do paciente antes da vacinação. Se houver um historial alérgico as equipas médicas podem assegurar a medicação necessária para combater estas reacções. As reacções adversas à vacinação não são novidade. Por regra, leva mais de dez anos a desenvolver uma vacina. Esta vacina teve o seu prazo de desenvolvimento encurtado para dez meses. Geralmente o período de protecção de uma vacina varia entre os 3 a 5 anos. O ciclo de vacinação começa com a inoculação e termina com o fim da protecção. Só nessa altura se podem ter dados mais precisos sobre a sua eficácia, efeitos secundários, etc. A actual situação de emergência forçou os investigadores a apressar o desenvolvimento desta vacina e a saltar algumas etapas habitualmente necessárias, para que a vacinação possa começar a partir deste momento. Na próxima semana analisaremos as questões legais relacionadas com o assunto. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog:http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Carlos Morais José VozesA nova era por haver Ao longo destes 21 anos de RAEM, as instruções de Pequim têm sido cruciais para garantir algum desenvolvimento nesta região “governada pelas suas gentes”. Aliás, algo que percebemos é que sem elas a comunidade portuguesa aqui residente teria muito mais dificuldade em encontrar um espaço de subsistência. Lembramo-nos, por exemplo, do ano de 2003, no qual o Governo Central determinou que Macau seria uma ponte para os Países Lusófonos o que, em grande parte, justifica a nossa presença e utilidade enquanto peças desse processo que, infelizmente, ainda não conheceu a desenvoltura desejada, na medida em que tem encontrado escolhos locais que vão do desinteresse à oposição. O estabelecimento do Fórum Macau tem conhecido altos e baixos. Estes últimos devem-se, sobretudo, à sobranceria de alguns decisores locais e a escolhas menos felizes para a liderança deste processo. Os altos acontecem quando Pequim resolve “puxar algumas orelhas”, como aconteceu por ocasião da visita do primeiro-ministro Li Keqiang, em 2016, 13 anos depois do estabelecimento do Fórum, cujo discurso estabeleceu 19 (!) pontos que faltavam realizar para que Macau atingisse, minimamente, aquele desiderato. A verdade é que temos de analisar com especial cuidado e atenção as “quatro expectativas” que o Presidente Xi Jinping aqui deixou, quando do seu discurso em Dezembro de 2019, e que, oportunamente, o actual Chefe do Executivo Ho Iat Seng relembrou na sua intervenção de ontem. Contudo, não basta analisar e relembrar: antes de mais, é preciso executar. Em primeiro lugar, o Presidente sublinhou a necessidade de “melhorar a qualidade da governação”, nomeadamente através da modernização dos processos burocráticos, aproveitando o desenvolvimento das novas tecnologias. Contudo, Xi chamou especialmente a atenção para que o “estado de direito” seja rigorosamente respeitado como “princípio básico da governação” e que, nesse contexto, os melhoramentos se realizem. Isto é, no nosso entender, que não dêem somente privilégios aos privilegiados e que estes encontrem na lei as fronteiras para a sua acção, descartando a possibilidade de inusitadas benesses só para alguns, em geral os mesmos. É que, como dizia o jovem Carson Fong, na nossa edição de ontem, a maior parte da população tem consciência do que realmente se passa nos bastidores. Em segundo lugar, Xi Jinping referiu a diversificação económica sustentada, sobretudo, nas relações com o exterior, devendo Macau aproveitar as possibilidades criadas pela iniciativa nacional “Uma Faixa, Uma Rota” para potenciar os negócios locais, quer com os Países Lusófonos quer no contexto da Grande Baía. Ao disponibilizar uma enorme fatia de terra na Ilha da Montanha (Henqin), Pequim pouco mais pode fazer para proporcionar aos investidores e empreendedores de Macau possibilidades competitivas, assim aqui exista suficiente visão e capacidade de aproveitar oportunidades de negócio que ultrapassem o âmbito do Jogo e da especulação imobiliária, as duas áreas que têm satisfeito enormemente as ambições financeiras dos privilegiados locais. Em terceiro lugar, e talvez o mais importante, o Presidente recomendou que se coloque em primeiro lugar a população e a melhoria da sua qualidade de vida. Para Xi, “tem de estar muito claro que o objectivo do desenvolvimento é melhorar a vida das pessoas. Assim, a RAEM precisa de adoptar arranjos institucionais mais justos, mais equilibrados e que beneficiem todos, para que os frutos do desenvolvimento possam ser partilhados por toda a comunidade.” Nós não diríamos melhor, mas, durante anos, insistimos neste discurso. Macau, inexplicavelmente devido ao seu extraordinário PIB per capita, apresenta deficiências nas áreas da saúde, educação, trânsito, habitação, meio ambiente, etc. O dinheiro, por muito tempo, não tem sido alocado à melhoria dos sistemas públicos, nomeadamente na área da saúde, mas deslocado para o privado, servindo os interesses de alguns, ao invés de servir o interesse geral. A demora na construção do Hospital da Taipa é o sintoma mais grave deste problema. Em quarto lugar, Xi Jinping falou da preservação da harmonia social, entendendo que tal objectivo só pode ser conseguido se o Governo escutar a população através de consultas sobre os problemas prementes, que devem ser resolvidos de forma coordenada e não unicamente por decretos desligados da realidade e das aspirações das pessoas. O Presidente não esqueceu o facto de que na RAEM habitam várias comunidades, sublinhando que “sendo um lugar onde as culturas chinesa e ocidental se encontram, Macau está bem posicionado para promover trocas entre pessoas e aprendizagem mútua entre culturas”. Oiçam o Presidente Xi, é o nosso voto para a governação de Macau. É que se, segundo ele, “nenhuma força externa tem o direito de nos ditar seja o que for”, também os desejos egoístas de alguns, que unicamente pensam em si e nos seus, não devem ter o direito de condicionar o desenvolvimento de Macau e a melhoria da qualidade de vida da generalidade da população. Aos 21 anos, a RAEM atinge uma outra maioridade. Tal acontece num momento de crise provocado pela pandemia, mas as crises são também momentos de reflexão e de afastamento de percursos menos próprios. Esperamos que o governo de Ho Iat Seng, como foi ontem prometido no discurso, siga as vias traçadas por Xi Jinping e inaugure agora uma nova era de desenvolvimento conjunto que contemple todos e transforme Macau numa região onde seja permitido que o potencial financeiro e humano disponíveis atinja níveis nunca vistos nesta cidade multicultural que muitos exemplos, de desenvolvimento, cultura e tolerância, tem para dar ao país e ao mundo.
Hoje Macau Ai Portugal VozesOs SEF matam Opinião de André Namora Ai, Portugal que deixas os teus filhos tão envergonhados, revoltados e tristes. Durante a semana, imaginem, só se falou num caso com nove meses de existência, quando inspectores dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) assassinaram alegadamente um cidadão ucraniano. O problema é que o caso veio à baila agora porque tem sido encoberto, deturpado e aldrabado desde o início e porque se estão a descobrir mais casos de violência extrema contra imigrantes. Chegou-se ao ponto de o relatório da autópsia e uma declaração de óbito terem sido falsificadas. Só se falou que um cidadão ucraniano que pretendia entrar em Portugal foi violentamente agredido até à morte por inspectores dos SEF em serviço no aeroporto de Lisboa e que uma vigilante já confirmou à Polícia Judiciária. Casos deste tipo são graves em qualquer país do terceiro mundo. Os SEF transformaram-se num poder independente que tem cometido as maiores ilegalidades e barbaridades. Sobre o cidadão ucraniano que pretendia entrar em Portugal, à sua chegada os funcionários de uma empresa de segurança privada que opera junto dos SEF do aeroporto de Lisboa detectaram logo que o indivíduo sofria de epilepsia. Nada fizeram para que fosse assistido clinicamente, a não ser atá-lo nos pés e nas mãos com fita adesiva. Mas, uns funcionários de segurança podem torturar um visitante do nosso país? Onde estão os vários directores e chefes dos SEF que nada sabem do que se passa nas instalações do organismo? A própria directora-geral que se demitiu passados nove meses e que já foi para Londres com um “tacho” no consulado português vencendo 12 mil euros mensais, não tinha que se demitir imediatamente após o conhecimento do óbito do ucraniano? O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, não tinha que ter tomado uma posição radical contra as chefias dos SEF mal soubesse que tinha sido morto um cidadão estrangeiro em instalações da sua tutela? Aliás, há ainda em Macau quem se lembre de Eduardo Cabrita como director dos Serviços de Tradução Jurídica do governo macaense. Era um jurista exemplar, funcionário competente, digno, educado e nunca entrou nos cambalachos dos seus camaradas socialistas de serviço em Macau. Cabrita poderia ter dado um bom ministro da Justiça, mas até hoje tem andado a deambular por onde o seu íntimo amigo António Costa lhe ordena. Pois, presentemente está o país envergonhado e chocado. O cidadão ucraniano depois de estar maniatado por vigilantes, foi alvo de espancamento com bastões até à morte. Mas estamos em que país? As facetas jihadistas já fazem regra? A tortura e o assassínio processam-se em instalações do Estado? Um médico, uma enfermeira, inspectores dos SEF, vigilantes de uma empresa de segurança ajudam a deturpar e a abafar um crime? Uma autópsia informa que se tratou de um ataque cardíaco? Uma certidão de óbito é falsificada? Uma viúva sem apoio de ninguém paga do seu bolso a transladação dos restos mortais do seu marido para a Ucrânia? O Estado não contacta com a viúva a fim de lhe comunicar quanto lamentava uma tragédia destas e comunicar que a senhora seria indemnizada? Mas, afinal o que são os SEF? Só vos digo que suspendi a leitura das redes sociais. O meu coração quase não aguentou quando li queixas de cidadãs estrangeiras que foram assediadas, expoliadas e maltratadas sem direito a terem um advogado ao seu lado. Quando fiquei a saber que nestes SEF há muitos anos que chineses, russos e brasileiros, por exemplo, tiveram de despender milhões de euros para obterem o chamado “visa gold” que lhes deu direito à residência no nosso país. Incrédulo fiquei quando li que uma cidadã brasileira ou praticava sexo com o interlocutor funcionário dos SEF ou, então, entregava três mil euros para que a sua documentação fosse assinada oficialmente. Nas redes sociais pode ler-se as mais diversas queixas de imigrantes que só agora tiveram a coragem de denunciar o sofrimento que os SEF lhes proporcionaram. Inclusivamente lemos que a Ordem dos Advogados, na pessoa do seu bastonário, ao longo dos tempos teve conhecimento de inúmeras e variadas queixas dos seus associados contra os SEF. Não, senhor Presidente da República. Não, senhor primeiro-ministro. Não, senhor ministro da Administração Interna. Este caso está nas bocas do mundo. A imprensa estrangeira chamou à primeira página que “funcionários do Estado português mataram estrangeiros visitantes”. Tem havido muitas situações de violência e tortura nos SEF. Ninguém sabe quantos imigrantes já teriam morrido às mãos de inspectores dos SEF. Ninguém sabe ainda qual a razão da demissão da directora-geral dos SEF passados nove meses. Ninguém sabe a razão de tantos processos disciplinares a inspectores e ainda a semana passada demitiu-se também o inspector-coordenador dos SEF. Constatar junto de um advogado que sem corrupção de muito dinheiro nada se conseguia resolver nos SEF é chocante, deplorável e obrigatoriamente a ter de levar as mais altas autoridades a tomar uma posição de fundo e de limpeza nos quadros de um organismo criminoso. O mesmo advogado salientou-me que uma cliente sua foi obrigada a assinar que vinha para Portugal trabalhar sem visto e sem contrato, quando a senhora vinha a Portugal por uma semana a fim de cumprir uma promessa em Fátima. O caso dos SEF ultrapassa toda a compreensão de um português que ainda pensava que a oficialidade estatal era minimamente séria. Não, os SEF têm de ser reestruturados de alto a baixo e tem de se remover a maioria dos seus funcionários que esteve ligada ao licenciamento ou aprovação de qualquer processo ligado à regularização de cidadãos estrangeiros. Os SEF matam e isso tem de terminar imediatamente. Talvez o general que foi nomeado como novo director dos SEF saiba castigar as tropas mal comportadas… *Texto escrito com a antiga grafia
Carlos Morais José Editorial VozesUm melhor futuro A RAEM faz hoje o seu vigésimo primeiro aniversário. 2020 foi um annus horribilis, devido ao aparecimento da pandemia, que paralisou Macau e a sua economia, porque esta cidade muito depende da livre circulação de pessoas. Por isso, o actual Chefe do Executivo, no seu primeiro ano, teve de se defrontar com este problema, ao invés de colocar em marcha as medidas que indiciariam os propósitos da sua governação. Também por esta razão, é com alguma expectativa que aguardamos pelo seu discurso de hoje. Todos compreendemos já que estamos perante um Governo que alterou, em muito, o estilo a que o anterior nos habituara. Por um lado, as mensagens passam muito mais claramente; por outro, mostrou-se decisivo na forma como nos protegeu da pandemia, apesar de tal ter afectado muitos dos interesses instalados e que nos habituáramos a ver sobrepostos ao próprio bem-estar da população. Macau conheceu nestas duas décadas um brutal crescimento económico. Mas, infelizmente, nem sempre esse movimento foi acompanhado por uma condicente distribuição da riqueza e, sobretudo, por um melhoramento significativo da qualidade de vida da população. A nossa cidade confronta-se com problemas de diversificação económica, habitação, trânsito, saúde, educação, cultura e meio ambiente. Estamos atrasados em relação a muitas outras cidades da República Popular da China, apesar de dispormos de um rendimento per capita muitíssimo superior. Logo, há que concluir que faltou alguma capacidade de liderança e de priorização do que realmente é importante, a saber, o bem-estar da população, sem excepções. O que não tem faltado a Macau é o apoio incondicional do Governo Central, fundamental para a manutenção da harmonia e da paz social, bem como para o fortalecimento económico da região. Tudo indica que, sob a liderança de Ho Iat Seng, poderá existir um desenvolvimento e aprofundamento do princípio “um país, dois sistemas”, que constitui a base do funcionamento da RAEM, em termos económicos, jurídicos, civis e políticos. Nesta fase, mais importante que as questões eleitorais, que entendemos poderem constituir uma ameaça real para o equilíbrio da RAEM, será a transparência democrática, uma justa distribuição da riqueza comum, o acesso às decisões que, definitivamente, deverão ser tomadas em favor dos interesses da maioria e não somente de alguns, cujo enriquecimento excessivo tem colocado entraves a um real desenvolvimento. É por isso que aguardamos com alguma expectativa o discurso de Ho Iat Seng, no sentido de nele recolhermos pistas que nos permitam compreender por que via seguirá Macau na próxima década. Ou seja, se realmente estamos perante um virar de página ou se ficaremos mais uma década a marcar passo, enquanto o mundo à nossa volta, nomeadamente o país do qual a RAEM faz parte, parece caminhar decisivamente na direcção de um melhor futuro.
João Romão VozesCapital bronco Corre entre as inúmeras iniciativas da democracia peticionária em que vivemos uma “Carta aberta por um investimento urgente em Ciência em Portugal”, que subscrevi com mais 8000 pessoas, até à data. Os proponentes atiram à cabeça com os dramáticos números que evidenciam o problema: 92% de investigadores sem salário e 95% de equipas sem projectos, alvitrando propostas para o enfrentar: aumentar de imediato o pacote financeiro para financiamento de projectos, garantir a curto prazo pelo menos 15% de aprovação das candidaturas a bolsas e projectos de investigação (actualmente anda por metade ou menos) e a médio prazo um plano que garanta um investimento anual de 3% do PIB em ciência e tecnologia, uma ambição, aliás, enunciada desde os anos 1990 – há umas 3 décadas, portanto, ainda que continuemos nuns parcos e miseráveis 1,4%. Também nas áreas da cultura e das artes se alvitraram propostas, muitas e variadas, antes e durante a pandemia que vivemos actualmente. São igualmente actividades que vivem do trabalho intelectual e criativo e onde predominam a precariedade e a incerteza, a impossibilidade de se planearem trabalhos com a distância necessária e a estabilidade suficiente para que se desenvolvam ideias, consolidem equipas e redes de colaboração, promovam contactos regulares com os públicos interessados e por interessar. Também aqui há reivindicações orçamentais que se vão arrastando nos tempos: 1% para a cultura, que nem sequer é pedir muito. Nos tempos que correm, a ciência e a cultura têm aliás muito em comum com outras áreas menos criativas das políticas públicas nacionais: também na educação, na justiça, na habitação, na segurança, nas florestas, na saúde, estão por vislumbrar horizontes de esperança, ideias para uma transformação qualquer, caminhos possíveis para um futuro diferente. Não há nada, há um discurso triste e pobre, limitado à tentativa de ir resolvendo problemas antigos e novos que se vão criando, conformado ao triste fado das restrições orçamentais, que ano após ano vão servindo também como álibi para essa falta de perspectivas e soluções. Se é verdade, que a economia não dá grandes sinais de que possam ser muito diferentes os orçamentos públicos para os anos que aí vêm (na realidade, vão certamente diminuir), também é verdade que tem havido governos e governantes com muito mais criatividade e ideias do que outros. Retomo o foco na ciência, assunto que me diz directamente mais respeito, até porque boa parte da minha vida profissional se fez nestes caminhos e tenho no percurso um pleno de bolsas bastante improvável: uma bolsa de mestrado ainda no início dos anos 1990, quando o incipiente desenvolvimento científico do país ainda estava neste nível; voltei à academia no final dos anos 2000 e vim a obter uma bolsa de doutoramento; continuei a fazer investigação nos anos 2010, financiada por uma bolsa de pós-doutoramento. Parte bastante razoável destes trabalhos foi feita no estrangeiro e tive oportunidade de observar que a minha sorte (não há outra forma de definir o acaso de se ficar em 6º lugar num concurso e ter uma bolsa ou ficar em 7º e já não ter) era ainda assim de uma pobreza confrangedora se comparada com as condições de trabalho oferecidas como norma a investigadores noutras geografias. Por exemplo, na Holanda, onde passei grande parte do tempo em que fazia o doutoramento, qualquer investigador nesse nível era contratado pela Universidade com um salário que era o dobro do valor das bolsas em Portugal – um privilégio de uma minoria, já que na realidade a maior parte dos doutorados paga propinas e faz investigação nas horas livres dos seus empregos. Este problema é, ainda assim, pequeno em comparação com o que há-de vir. Os orçamentos públicos para financiar a investigação científica são curtos e não se vão alterar significativamente. A evolução demográfica não faz prever que o número de docentes universitários vá crescer significativamente. O sub-financiamento crónico e generalizado das universidades limita, não só a contratação de novos docentes, como as oportunidades de progressão na carreira: há pessoas a dirigir centros de investigação, mestrados ou doutoramentos que ficam décadas na categoria de “professores auxiliares” até, eventualmente, atingirem o nível de “associados” (já o de “catedrático” começa a parecer um título do passado, inacessível para quem começa hoje a investigar). Só para comparar brevemente, o meu primeiro contrato permanente numa universidade japonesa foi logo com o professor associado, posição que certamente não atingiria até à reforma se por acaso tivesse tido alguma oportunidade de continuar a minha vida profissional em Portugal. Não haverá lugar para muito mais ou para muito melhores oportunidades para trabalhar em investigação e no ensino superior públicos mas continuará a aumentar o número de pessoas a fazer doutoramentos: são cada vez mais as que concluem licenciaturas e mestrados com qualificações e vontade para o fazer e é total a disponibilidade das universidades para as acolher, enquanto “estudantes” de doutoramento, toda uma categoria desqualificadora do seu trabalho, definida logo à partida: não são investigadores profissionais a quem se deve um salário, como é norma em países onde se olha para a ciência e para o conhecimento como parte importante e significativa da riqueza do país: são pessoas a investir no seu próprio processo educativo e que por isso devem pagar generosas propinas. Uma ínfima minoria terá a sorte de conseguir uma bolsa com a qual terá uma vida vagamente remediada. Esta falta de horizontes para quem quer viver da ciência terá alguma relação com as políticas públicas que a determinam mas também – ou sobretudo – com as dinâmicas privadas da economia. Os recursos públicos a distribuir dependem sempre da capacidade de a economia gerar riqueza e o aumento dos orçamentos da ciência, da cultura, da habitação, da justiça, ou de qualquer outra urgência social e económica, dependerão sempre dos aumentos de produtividade, do reforço das capacidades tecnológicas, enfim, da possibilidade de se gerar mais valor com os recursos disponíveis. Não vai haver haver mudanças a curto prazo, portanto, que estes processos são lentos e os progressos, no nosso caso, quase inexistentes. Restaria a opção empresarial, solução relevante e óbvia noutras geografias, onde é frequente investigadores em doutoramento discutirem se preferem continuar as carreiras em universidades ou empresas. Em Portugal essa discussão não existe: as empresas não têm interesse nenhum nesta imprestável mão-de-obra, que no universo empresarial português só muito remotamente terá acesso a um posto de trabalho razoavelmente condizente com as suas qualificações. Há um dado que demonstra com evidência que nem a mão de obra altamente qualificada tem lugar na economia portuguesa, nem esta vai conseguir em breve gerar significativamente mais riqueza: em 1999, apenas 4% das exportações portuguesas era feita com produtos de alta intensidade tecnológica – um valor ridículo em comparação com os 20% registados para o conjunto dos 27 países que hoje constitui a União Europeia; passados 20 anos (2018), tudo continua mais ou menos na mesma – Portugal mantém os seus 4% e esse é o valor mais baixe entre os 27 países da UE, que agora tem ligeiramente menos (18%), face aos notáveis progressos da China. Produtos de alta intensidade tecnológica não requerem apenas máquinas sofisticadas: requerem também essa mão-de-obra altamente qualificada que a economia portuguesa sobranceiramente dispensa. Ou, na realidade, que o capital desperdiça: a economia é composta destes dois factores produtivos fundamentais, sem os quais não funciona – capital e trabalho. Nas últimas décadas, a classe trabalhadora em Portugal – com o suporte inevitável do Estado, aliás – fez um magnífico esforço de valorização e modernização, olhemos por onde olhemos os indicadores possíveis: além do crescimento contínuo e sistemático dos doutoramentos, tínhamos em 2019 20% da população com o ensino superior (7% em 2000) e 23% com o ensino secundário (11% em 2000). Quem trabalha, esteva à altura destas circunstâncias. O capital, onde está o poder de decisão sobre investimentos e processos produtivos, é que continua amarrado à sua histórica tacanhez. O mais bronco da União Europeia, sugerem os números.
Mário Duarte VozesPlano Director VII Da Morfologia Urbana Do Traçado Hipodâmico ao Desenho Paramétrico O sistema de planificação urbana mais recorrente na história do urbanismo é o da quadrícula, que remonta ao séc. V BCE, e é atribuído a Hipódamo de Mileto, a quem Sócrates se refere como o fundador do urbanismo. Consta de uma malha urbanística regular que se tornou conhecido por Sistema Hipodâmico. O sistema consiste na organização das cidades através de ruas dispostas numa matriz ortogonal, criando blocos (ou quarteirões), em que todos os edifícios habitacionais (insulæ), públicos e religiosos, ou praças, se encaixam nessa malha. Supõe-se que foi utilizado pela primeira vez na reconstrução de Mileto em 479 BCE, na Jónia (actual Turquia) após a sua destruição pelos Persas, onde Hipódamo trabalhou activamente. Experiência que veio a ser utilizada no planeamento da cidade portuária do Pireu (Atenas), e a que Alexandre, o Grande, recorreu na construção de Alexandria, assim como na maior parte das cidades coloniais gregas. O mesmo modelo voltou a ter relevância no renascimento com o filósofo francês René Descartes, não apenas na sua génese geométrica, mas na vertente da representação matemática do espaço. O mesmo sistema, ou grelha, passou a chamar-se também cartesiano, assim como tudo o que se pauta por características racionais e metódicas, e que se compreende simplesmente pela acção de pensar cientificamente. O período que dista entre estas duas gerações (a Antiguidade e o Renascimento) corresponde à época medieval do ocidente, e da crise de muitos modelos clássicos associados à vida urbana, em que a morfologia das cidades passaram a ser predominantemente acrópoles fortificadas, e o seu traçado passou a ser consequência apenas de uma topografia. Em Macau o modelo da acrópole repercutiu-se na cidade dentro de portas em torno de uma colina fortificada, como também foi utilizado o modelo cartesiano, em que todos os edifícios habitacionais, públicos e religiosos, ou praças, se encaixam nessa malha, na cidade fora de portas. Um sinal da persistência universal desse modelo urbano é a continuidade dos mesmos elementos, mesmo com a atribuição de finalidades de outras épocas. Por exemplo, a um dos quarteirões fora de portas encaixados nessa malha os romanos chamavam “Campo de Marte”, o qual permanecia livre, reservado para o acampamento de tropas em viagem, cuja entrada na cidade era origem de distúrbios, por isso não desejável. O elemento urbanístico persistiu, e serviu para acomodar mercados sazonais, jogos e eventos ao ar livre, ou mesmo a instalação da tenda das companhias de circo itinerantes. Em subsequentes períodos de matriz classicista chegou a invocar-se a designação “Campo de Marte” na toponímia das cidades, muito embora nenhuma tropa alguma vez aí se aquartelasse. O Tap Seac é o “Campo de Marte” de Macau, i.e. um quarteirão desocupado fora de portas, onde nenhuma aquartelamento alguma vez estacionou, mas que serviu e serve para eventos ao ar livre, apenas agora incompleto na pauta de eixos viários que completava o enquadramento da malha, e que era exactamente nisso onde residia a referência clássica urbanística. As malhas urbanas são moldes de compreendermos e nos orientarmos na cidade, sem precisarmos de conhecer todo o seu detalhe, na medida em que o sistema permite que a razão deduza e represente grande parte daquilo que não conhecemos da cidade. E porque na história do conhecimento ora prevalece a razão, ora os sentidos, foi também ao serviço de outras estratégias que o desenho das cidades assegurou a sua compreensão por via sensorial, nomeadamente visual. É essa uma característica da cidade barroca, onde os elementos de orientação passaram a ser os eixos visuais e a matriz do desenho passou a ser necessariamente radial. Nesse desenho urbano é essencial para a orientação de cada eixo visual fosse identificado por um elemento próprio para o qual aponta ao fundo, fosse a fachada de um edifício importante a onde esse eixo conduz, fosse um obelisco numa praça que servisse de rotunda de mudança para outras direcções. Na falta desses elementos ou de outros que a razão extraísse, estaríamos perdidos. Experiência do mesmo também temos em Macau em torno da Rotunda Carlos da Maia (os Três Candeeiros) onde vias que irradiam dessa rotunda se sobrepõem à quadrícula cartesiana. Da nossa experiência resulta que essa é a zona da cidade onde também facilmente nos perdemos, e que só retomamos a nossa orientação quando vemos a Rotunda Carlos da Maia ao fundo de uma rua, se não tivermos outras referências locais, nomeadamente de uma ou outra loja que já conheçamos. Razão por que a Rotunda foi há muito assinalada no centro por um cadeeiro eléctrico. O urbanismo contemporâneo acumula todas estes elementos e tradições de desenho urbano. A malha cartesiana continuou a ser o sistema com capacidade de gerar espaço urbano que corresponde ao que dele somos capazes de representar e de nos orientar, mesmo quando não o conhecemos. O aperfeiçoamento dessas malhas vem residindo principalmente nas orientações que tomavam e na aferição da dimensão e da proporção dos quarteiros, em função da geografia e das tipologias da construção em vista. Os grandes eixos diagonais passaram a designar-se por bulevares e passaram principalmente a assegurar a circulação mais rápida, sem prejuízo das suas funções cénicas, ao mesmo tempo exprimindo funcionalmente e esteticamente a contemporaneidade, no tempo em que todos os modos de circulação ainda coexistiam na mesma via. O domínio da gestão desses territórios urbanos determinava que a sua representação se fizesse por modelos simplificados, e que as regras da sua génese fossem também aquelas que estão ao alcance da razão humana processar. Foi por via de inteligência artificial que vem sendo possível trabalhar esses territórios com modelos numéricos que não só permitissem melhor representação do território urbano, mas também introduzir condições de génese para resultados mais bem ajustados e de melhor efeito para o funcionamento das cidades. Foi com o desenho paramétrico assistido por computador que passou a ser possível acrescentar e trabalhar logo de início níveis de informação que podem representar não só a topografia, como todas as condições laterais que afectam um território, sejam as que caracterizam o clima, ou as que resultam da presença de águas abertas ou de rios. Passou assim a ser possível que toda a capacidade de sistematização das malhas cartesianas, se “deformasse” em sistemas de referência diferentes dos ortogonais, que procuram as melhores pendentes do terreno existente, ou a gerar, para uma melhor drenagem, ou que distribuam a massa da edificação para melhor diferenciação da radiação térmica da massa construída e, consequentemente, melhor circulação e higiene do ar. Consequente e necessariamente, malhas urbanas caracterizadas por um desenho volumétrico que não é de altura uniforme, truncada para todo o volume de construção. Desenho paramétrico que resulta em novas categorias formais que são muito mais que mera gratificação estética, pois resultam de condições pertinentes, mais bem ajustadas e de vantagem para um território urbano. Inovação que não seria alheia ao espírito das Linhas de Acção Governativa do Chefe do Executivo para o ano de 2021, e do repto aos dirigentes e funcionários em geral da RAEM para actualizarem e inovarem os métodos e os procedimentos da acção administrativa e da administração dos bens públicos onde se inscreve a urbanização. A Carta de Atenas (1933), o manifesto seminal do “movimento moderno” da arquitectura e no urbanismo do séc. XX, já concluíra que “o planeamento urbano é uma ciência baseada em três dimensões, não em duas”.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesCartas de Amor Caras Gentes Amorosas e Sexuais, Por sugestão da Esther Perel, tentarei promover a escrita de cartas. A Esther Perel é das mais conceituadas terapeutas nestas coisas do sexo e dos relacionamentos românticos. Ela explora o equilíbrio entre a necessidade por liberdade e segurança quando estamos com alguém, e o seu espaço de contacto. As cartas não são nada mais, nada menos, que um processo para dar sentido aos outros e a nós próprios. Escrever materializa o que nos vai na cabeça de forma banal, mas também sistematiza as ideias e até dá expressão ao inexplicável. O poder maravilhoso das cartas é que elas são dirigidas a alguém. São um espaço de reflexão onde até podem ser exercitados cenários, possibilidades e mundos alternativos. A Esther Perel sugere que o truque está em distinguir o que deve ou não ser partilhado com o outro, especialmente se a carta tiver um endereço definitivo de envio. Se ficar para sempre na gaveta talvez não seja preciso esse cuidado todo. Deixem fluir. No outro dia encontrei uma carta da avó falecida que destilava a bílis pelo noivo que deixou a filha no altar. A carta cumpriu o seu propósito só por existir. Os dilemas relacionais do nosso dia-a-dia são de algum modo trabalhados nesta tentativa de contarmos a nossa história. A sugestão não podia ser mais simples, caras gentes, escrevam cartas. Cartas de amor às paixonetas correspondidas ou não, cartas de sexo e eróticas, cartas de conclusão, fecho, libertação e cartas de perdão. Ganham ainda mais pontos se escreverem à mão com boa ortografia – uma actividade em vias de extinção graças ao malfadado corrector digital. Uma máquina de escrever para o efeito também não soa mal. Esta é uma forma de relação com as palavras bem distinta das constantes mensagens curtas e instantâneas que nos enchem os telemóveis por todas as redes sociais existentes – e que de alguma forma têm permitido manter a superficialidade das relações e dos contactos. A intimidade com as palavras não é exclusiva de quem se sente mais confortável com elas. A relação com as palavras é única de cada um e revela mundos interiores riquíssimos onde se vive o sexo e o amor. Onde se vivem também os tabus, as fantasias, os bloqueios e as alegrias. Criar um espaço de expressão individual e relacional tem sido raro (apesar de ter cá para mim que a pandemia obrigou a maior honestidade emocional do que o normal), e a experiência sensorial do papel, da caneta e do movimento também. A empatia é trabalhada quando não se perde de vista a conexão, e apesar de existirem formas não verbais de fazer isso – tipo, sexo – as narrativas que partilhamos formam elos de ligação. Agora que estamos no final do ano e os correios por todo o mundo estão caóticos – muito graças ao consumismo desenfreado que infelizmente se multiplica – existirão certamente, cartas. Há uma parte de mim que gostaria que fossem daquelas cartas longas e emotivas de quatro páginas, para além do tradicional cartão de Natal, com a mensagem típica da época. Não vejo actividade mais oportuna para um ano que nos obrigou a muita reflexão, e em alguns casos, solidão e isolamento. Tudo bem que a internet foi uma salvação, mas deixem-me romantizar a simplicidade da escrita em papel, que quando enviada precisa do seu tempo para chegar ao destino, e depois, do seu tempo para regressar.