Livr(o)e

[dropcap style=’circle’]1.[/dropcap] Aprendi a ler muito cedo, porque quis. Na altura não tinha noção de que saber ler era meio caminho andado para o combate ao tédio, porque desconhecia a palavra. Também não sabia o significado de solidão, filha não única mas sem outras crianças em casa. Com os anos, os livros passaram a ser companhia constante, vício, virtude também. Inundavam as tardes abafadas e intermináveis de Verão. Apagavam as noites de insónia.
Os livros. Só mais tarde, muito mais tarde, percebi a libertação que me trouxe o acto da aprendizagem da leitura. Ler liberta. Ler é poder ir a todos os lados, conhecer todas as pessoas, incluindo aquelas que nunca vimos, que falam línguas que não conhecemos. Ler é prepararmo-nos para o que o mundo tem de diferente. Ler é liberdade.
Às tantas é esta liberdade toda que faz com que goste que a minha filha goste de letras, apesar de ainda não ter idade para saber ler. Gosto que ela goste de livros, que me roube os livros das estantes e brinque com eles, que goste dos livros dela. Quero que possa ler tudo, que todos os livros do mundo estejam ao seu alcance. A minha mãe viveu o tempo em que havia leituras proibidas. A mim foram-me dadas toda as letras que consegui apanhar.
Não conheço o teor dos livros que se vendem que nem ginjas em Hong Kong, e em Macau também, e que são proibidos na China. Os livros que, ao que dizem, são os responsáveis pelo desaparecimento de cinco pessoas que viviam num espaço que julgávamos ser de liberdade. Não sei se os livros são bons ou maus, se contam histórias verdadeiras ou falsas. Só sei que são livros. E que tudo o que se escreve – nos livros e nos jornais – é um exercício de liberdade. Uma liberdade que, quando viola os outros direitos que também temos, deve ser avaliada em sede própria. É assim que acontece nos sistemas que, julgávamos, se regem pelos princípios do Estado de direito.
É estranha a história de Lee Bo. Como é estranho o desaparecimento dos quatro colegas, em Outubro passado, que não mereceu a atenção de ninguém: umas quantas linhas na imprensa local e uma silenciosa reacção da comunidade dita internacional e mais livre. É estranha toda a narrativa, tudo aquilo que nos têm dito. E os livros no meio de tudo isto. Ler. Ser livre.

2. Eles dizem que foi uma bomba a sério, os outros desconfiam. Vivemos – nós, aqui perto, e os outros, mais longe – com um problema sério que tem sido olimpicamente ignorado pela tal comunidade internacional defensora da liberdade, não da dos livros, mas de outra liberdade qualquer cujos contornos, frequentes vezes, não consigo perceber.
Desde que vim para Macau que me comecei a interessar pelas questões coreanas. Afinal, é aqui ao lado. No início era a curiosidade que me despertava um regime que parou no tempo; depois, com os livros que fui lendo, a vontade de criar uma imagem de um país que dificilmente conhecerei de outra forma.
A Coreia do Norte é a prova de que o mundo é uma coisa muito mal-amanhada e muito mal resolvida. É a prova também de que o xadrez da política internacional é um jogo sujo que não serve ninguém – nem os povos que alegadamente estão representados, nem os povos sem voz, aqueles que só merecem a preocupação de meia dúzia de organizações não-governamentais e de outros tantos observadores indignados.
Pyongyang tem sido um problema conveniente que a China tem no quintal. Ontem lia especialistas na matéria, todos eles chineses, dizerem que dificilmente Pequim terá uma atitude interventiva em relação ao regime que tem vindo a proteger porque não só tem perdido influência na liderança sem tino de Kim Jong-un, como também passaria a contar com dilemas adicionais resultantes de uma eventual queda do regime. Mas, explicam também esses especialistas, um quintal com competências nucleares não serve a Pequim. E não serve ao resto do mundo.
O mundo tem, aparentemente, mais um problema para resolver – um problema com que os norte-coreanos, esfomeados e perseguidos, vivem há 60 anos. Pois. Essa coisa da liberdade.

8 Jan 2016

Ei. Você aí! Não viu…

[dropcap style=’circle’].[/dropcap]..um livreiro aí? Resolvi acabar a frase no início do texto senão o título ia ficar “de rabo cortado”, como no último texto publicado (cala-te boca). Mas até vem mesmo a calhar, já que falamos de rabos que após contados se apercebe da ausência de cinco deles, aparentemente vis propagadores do mal para uns (sabemos bem quem), e paladinos das liberdades e da democracia para outros (ainda a anunciar): [voz tenebrosa] livreeeeeeiroooos!!! Espera aí, livreiros??? Aqueles velhinhos corcundas com olhos de lupa que na indústria cinematográfica porno estão na categoria de “weirdo”? Essa agora, já não bastava que alguém com a pinta de Jason Chao fosse considerado “inimigo público número um” para certas sensibilidades, e temos “Os doze indomáveis livreiros”, que neste caso são cinco, e terão pavor de borboletas.
“Talvez eu esteja agora aqui a brincar com coisas sérias” – pensarão alguns. “O vosso problema é mesmo esse: pensam, e deviam abster-se dessa inglória e frustrada ambição”, responderei eu, que nada aqui é a brincar, “leidizangentelmén”. Não há nada pior do que me abster de ler notícias, escrever qualquer coisa ou ler mensagens (fiquei dez dias sem abrir o Facebook, pasme-se) desde o Natal até aos reis, e a primeira notícia com que dou de frente com a tromba quando resurjo ao mundo, é esta, do tipo: “Olha, já foste, acabou-se o que era doce”. Deveras. Quem é que podia adivinhar uma coisa dessas, depois de ter andado tanto tempo a brincar com coisas sérias?
Não vou aqui fazer nenhuma leitura política ou qualquer outra deste facto, mas o desaparecimento dos tais livreiros por razões com que nos fingimos surpreendidos são mais do tipo “andas-te a pedi-las”. E acreditem, depois de ter andado o último quartel do ano passado a deparar com pessoas A DESEJAR que acontecessem tragédias para depois usá-las para incriminar um certo grupo de outras pessoas, fiquei mais ou menos imune aos anti-corpos da “indignação”, aquela panaceia para todos os terrores mas administrada na forma de “vai lá tu que eu fico aqui a torcer por ti” – nem sei como é que ainda não se processou judicialmente certos personagens, que iam ao ponto de difundir notícias falsas com o óbvio intento de causar o pânico. Adiante que se faz tarde.
Assim, mal soube da notícia, fui inquirir um colega meu, orgulhoso patriota que nem disfarça – antes ostenta – a sua simpatia e intimidade com o Partido (aquele, “o único”): “Olha lá, onde é que puseste os livreiros desaparecidos? Atão qué isto, uh?”. Ao que ele então retorquiu, identificando de imediato a minha intenção: “Claro… naturalmente!”, e sem mover um nervo em sobressalto, tal era a certeza de que “digam o que disserem, não têm nada contra nós desta vez”. Muito na linha oficial do Partido (o tal), que na forte possibilidade de se dizer do lado do bem e estar a afirmar a verdade, tem adoptado este estilo tão cândido de fada dos nenúfares. É até bem possível que alguém o tenha feito por eles, e sem que eles o encomendassem – ou aprovassem, até. Que sorte e azar ao mesmo tempo, vejam só.
Talvez esta seja a versão em chinês do “quem anda à chuva, molha-se”, que no Ocidente tem paralelo numa certa elite que repete vezes sem conta anedotas sem graça para provocar quem dizem ser “maléfico”, mas que no fundo não é mais do que alguém como nós, e quem já andaram a encher até aos cabelos com provocações parvas. Imaginem só se certos tipos desatassem a molestar-vos a toda a hora, porque “ouviram dizer” que vocês faziam assim e eles assado, e “eles é que estão certos, e vocês são uns bárbaros”. Quanto tempo iam aguentar até ir ao focinho do primeiro que estivesse à vossa frente? Pensamento profundo, mas no fim fico com pena realmente dos livreiros-pessoas, e não dos livreiros-utensílios de arremesso político. Sabe-se lá onde estão, e se estão bem, e se não precisam de tomar de alguma medicação, ou se dormem em ambientes salúbres. Isso é que me preocupa. Falando como pessoa, é claro, para o resto estou nem aí. Vamos ver agora quem “vai à frente”, que a gente fica aqui a “dar a nossa poia moral”.
Para reflectir em 2016, já que 2015 ficou marcado pela queda no ridículo daquilo a que chamam “luta pela liberdade”, com manifestações por tudo e por nada, e sempre com aqueles figurões já com mais que idade para ter juízo, ostentando fitas à volta da mona pedindo “fleedom”. Especialmente encantadora foi aquela greve de fome que se ficou pelo jantar do dia seguinte, aparentemente ao melhor estilo do antigos filmes “B” da antiga colónia britânica, com muito “Amelican style”. “You pay now”. Sayonara.

7 Jan 2016

Coisas que não compreendo

[dropcap style=’circle’]À[/dropcap]medida que vamos ficando crescidinhos, tenho a sensação que em vez de percebermos mais vamos percebendo cada vez menos. Não sei se sente o mesmo mas comigo é o que se passa. Não vislumbro se é fruto de alguma condição somática ainda não diagnosticada o que, claro, me preocupa, por isso resolvi desabafar esperando que talvez você que agora lê esta minha confissão me possa dizer se estou, ou não, a perder o juízo. Ficam aqui um resumo das (muitas) coisas que não compreendo. Neste mundo e nos outros.

Não compreendo porque o Chefe do Executivo da RAEM ainda vai pensar num plano para a diversificação económica de Macau quando isso já foi pedido por Wen Jiabao e por Hu Jintao.
Não compreendo como se pode incrementar a diversificação económica em Macau e cortar os orçamentos dos departamentos do governo que, como se sabe, é o principal motor da economia local.
Não compreendo o que o Governo de Macau entende por diversificação económica.
Não compreendo como o governo de Macau só depois do anúncio das milhas marítimas vai pensar num plano para as águas territoriais. Terá sido uma genuína surpresa de Natal?
Não compreendo a draconiana lei do fumo na cidade do lazer quando, ainda por cima, aparecem cada vez mais opções alternativas (e melhores) nos países vizinhos sem proibições cabotinas como esta.
Não compreendo como a mesma cidade do lazer em vez de fechar ruas ao trânsito e de criar alternativas de transporte não poluente prefere aumentar os impostos sobre veículos, cavando mais divisão social e mantendo um mau ambiente.
Não compreendo como Macau ainda não tem autocarros amigos do ambiente.
Não compreendo porque há tantos autocarros parados com o motor ligado apenas para manter o motorista fresco à custa dos cidadãos que têm de levar com mais diesel pelas narinas acima.
Não compreendo porque a cidade do lazer não tem equipas para investigar os veículos poluentes e os motoristas encalorados como tem para fiscalizar os bandidos dos fumadores.
Não compreendo porque a zona nobre de Macau é dedicada ao estacionamento de autocarros.
Não compreendo porque o plano pecuniário de Macau é atribuído de forma igualitária e não ponderada.
Não compreenderei se o governo não disser o que vai fazer em termos de desenvolvimento económico e social com os 223 milhões que sobraram do apoio pecuniário.
Não compreendo como Macau continua a fazer planos dia a dia e ainda não conseguiu imaginar uma cidade para o futuro.
Não compreendo como o Chefe do Executivo da RAEM pode nomear para a AL indivíduos como Fong Chi Keong e não responder politicamente pelas barbaridades do sujeito.
Não compreendo a plataforma Macaense para a China e os países de língua Portuguesa.
Não compreendo como foi possível o canídromo ver a licença renovada.
Não compreendo porque é a marijuana considerada medicamento nuns países e droga proibida noutros.
Não compreendo a guerra contra a droga.
Não compreendo a relação entre os escândalos bancários em Portugal e o número de arguidos.
Não compreendo o acordo ortográfico.
Não compreendo a presença de um futebolista num panteão.
Não compreendo para que serve um Panteão.
Não compreendo a quantidade de inglesismos utilizados no português de Portugal quando existem palavras no léxico luso para os substituir.
Não compreendo o enorme “tempo de antena” que os média portugueses dão à política quando, no limite, isso faz com que as pessoas se enjoem da política.
Não compreendo como Portugal tem telejornais a abrirem com notícias de futebol.
Não compreendo porque os políticos portugueses mandam tantos bitaites sobre a bola mas quando devem intervir, como no caso dos direitos televisivos, ficam calados que nem ratos.
Não compreendo para que servem as conferências de imprensa da bola se a conversa é sempre a mesma jogo após jogo, ano após ano.
Não compreendo como se gasta tempo num telejornal em Portugal com a conferência de imprensa do bipolar presidente do Real Madrid a falar de treinadores de futebol.
Não compreendo os benfiquistas. Mesmo.
Não compreendo o número avassalador de medalhas que Cavaco já entregou.
Não compreendo como ninguém se apercebe das incongruências do Marcelo Rebelo de Sousa e já todos lhe estendem a carpete para Belém.
Não compreendo a paixão insensata pelo turismo em Portugal.
Não compreendo como antes o nosso dinheiro tinha correspondência directa com ouro e agora não. Nem de longe.
Não compreendo como a NATO ainda não puxou as orelhas à Turquia. No mínimo.
Não compreendo como a Comunidade Europeia tolera no seu seio governos como o húngaro ou o polaco sem lhes puxar as orelhas. No mínimo.
Não compreendo a incapacidade logística e organizativa da Europa para lidar com a crise de refugiados.
Não compreendo como ninguém debate os mapas desenhados a régua e esquadro pelas potências coloniais quando é claro que grande parte dos problemas de África e do Médio Oriente residem neles.
Não compreendo como o mundo actual produz que chegue e tem condições técnicas e humanas para cuidar de todos e continuamos em guerra e com tantos milhões a passarem fome e sem condições dignas para existirem.
Não compreendo porque os detentores do capital tudo fazem para aumentar a desigualdade social quando, a montante, desigualdade crescente implica problemas de rentabilização do capital.
Não compreendo como existem dirigentes de países que se eternizam no poder e o mundo tolera. Para além do Alberto João.
Não compreendo como o Brasil continua a não ser capaz de conter a destruição da Amazónia e ainda não teve qualquer tipo de sanção, ou ameaça de perder a soberania do território a favor das Nações Unidas (esta figura legal se não existe, não compreendo a sua inexistência).
Não compreendo como ninguém leva a sério os líderes sul-americanos que clamam pela dívida europeia sobre as riquezas roubadas durante a colonização, no mínimo como garantia de perdão das dívidas soberanas.
Não compreendo porque a China pretende mais território.
Não compreendo porque os países asiáticos, de uma forma geral, não atribuem a nacionalidade a estrangeiros nem a nados no próprio país que não sejam da mesma etnia.
Não compreendo porque o mapa-mundi do Mercator continua a ser utilizado como “o mapa” se já toda a gente percebeu que está grosseiramente errado nas proporções.
Não compreendo como se permitem indústrias privadas de armamento sabendo que o fito de qualquer indústria é expandir negócio.
Não compreendo como a guerra pode ser privatizada.
Não compreendo como depois do que os judeus passaram os israelitas façam agora parecido aos palestinianos.
Não compreendo como ainda nos dividimos por religiões e dentro das próprias religiões.
Não compreendo como a Arábia Saudita preside à Comissão dos Direitos Humanos da ONU.
Não compreendo as pessoas que concordam com o Donald Trump.
Não compreendo o que Donald Trump pretende dizer com “Make America Great Again”. Está a falar de que período? Da lei seca? Da Colonização? Da Guerra-civil? Do Apartheid? Do “Macartismo”? Do assassinato de Kennedy? Está a falar do quê, exactamente?
Não compreendo como um país tão grande como os EUA precisa de socorrer-se de herdeiros políticos (Bushes, Clintons, Flinstones…) na corrida à presidência.
Não compreendo como ninguém foi punido pelo escândalo das financeiro dos fundos imobiliários de Wall Street. Antes pelo contrário.
Não compreendo como o Federal Reserve Bank pode imprimir notas como se fossem panfletos de massagens em Macau.
Não compreendo os conservadores.
Não compreendo porque os americanos se referem a “afro-americans”, “native americans”, “italian-americans”, “irish-americans”, “asian-americans” e por aí fora. Fico sem saber quem são os americanos no meio de tudo isso.
Não compreendo os americanos de uma forma geral.
Não compreendo como alguém possa pensar que negócios como a Uber são o futuro se apenas promovem emprego precário e sem qualquer tipo de apoio social.
Não compreendo como os indianos ainda não perceberam que grande parte das violações provêm de uma sociedade sexualmente reprimida.
Não compreendo porque o sexo faz tanta confusão a tanta gente.
Não compreendo como se pode ilegalizar a prostituição.
Não compreendo porque os homens podem andar de tronco nú e as mulheres não.
Não compreendo porque o Paris-Dakar ainda se chama Paris-Dakar.
Não compreendo porque o governo Angolano pratica o nepotismo e tem medo de músicos.
Não compreendo porque existem carros que andam a muito mais de 120 km/h e praticamente em todo o mundo ultrapassar esse limite é ilegal.
Não compreendo porque não existem estradas onde se possa conduzir a mais de 120 km/h.
Não compreendo tanta coisa… Estarei doente? Será da idade?

MÚSICA DA SEMANA

“Shameless” – Groove Armada featuring Bryan Ferry
(…) I can read your lips
I can read your mind,
It’s all I want to hear,
Why am I so blind?

And the way we were
Fatefully entwined
In a shameless world,
Rock ‘n roll desire
(…)

7 Jan 2016

Balanço

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Olha-se para um 2016 cheio de potencialidade sexual, mas merecemos rever o 2015 que trouxe uns quantos triunfos ao sexo e ao género pelo mundo. Triunfos que trazem ao entendimento de que sexo é muito mais do que aquilo que se faz na escuridão do quarto e que se abrange pelas malhas macro-sociais da vivência humana.
1. Casamento Homossexual – 2015 viu a possibilidade legislativa do casamento homossexual tornar-se uma realidade para alguns países do mundo (onde outros ainda se encontram a lutar pela despenalização da homossexualidade). O grande exemplo foi os EUA que, quer queiramos ou não, se rege na sua influência cultural, por vezes bastante hegemónica, de internacionalização. Não que queira dar uma super credibilidade aos meandros cuturais do país (e assim muito por geral refiro-me à figura que o Donald Trump anda a fazer), mas constitui um passo importante para a visibilidade e a normatividade que casais homossexuais merecem.
2. Adopção por casais Homossexuais – Para adicionar à generalização de novas formas de família, a adopção por casais homoparentais já é uma possibilidade em muitos países por esse mundo fora – e ainda bem. Agora seria bom que outros países olhassem para Portugal e Colômbia que em 2015 trouxeram esta felicidade aos casais que tentam ter filhos e que querem ser reconhecidos pelo estado.
3. Penalização da mutilação genital feminina – Uma prática atroz que começa a ser legalmente penalizada, e que tem lutado contra formas culturais e crenças enraizadas por grupos de pessoas que acredita que é um rito de passagem necessário, e que assim as mulheres podem adquirir um bom dote e não serão socialmente excluídas. O argumento que tem tentado dissiminar-se por várias instituições nacionais e internacionais: o dote, que, normalmente, é uma vaca, pode dar leite e alguma carne mas morre, mais rápido do que se imagina – uma rapariga/mulher que tem a possibilidade de estudar e trabalhar nesse sentido poderá trazer dinheiro para a família toda a vida. Isto para alertar que a penalização é um grande passo, mas o cuidado tem de existir nas crenças que ainda são comunicadas entre as pessoas. A Gâmbia foi um dos países que viu a MGF ser penalizada em 2015.
4. 50 Sombras de Grey – 2015 foi também o ano que viu adaptado para o cinema o romance que ganhou em popularidade pelo grafismo sexual e pela grande curiosidade e procura que incitou de produtos sexuais de tendências sado-maso. Diz a indústria que, este ano, algemas, chicotes, pinças para mamilos, fatos de latex pretos ou mordaças foram muito mais procurados. Pela experimentação sexual tivemos esta referência cinematográfico-literária. E que venham mais.
5. A criação de uma casa-de-banho na Casa Branca – Esta não é uma casa-de-banho qualquer, é uma casa de banho neutra. Sem género. Isto para que a Casa Branca seja mais inclusiva aos trabalhadores e visitantes transgénero. Pena que não tenha sido publicitado mais fortemente. Este mundo precisa de casas-de-banho sem género associado, porque o binarismo complica-se, cada vez mais. E não tem havido estruturas que o têm acompanhado.
6. Miley Cyrus e a fluidez de género – Este foi o ano que muitos artistas pop vincaram a fluidez de género como uma necessidade de afirmação individual. Os exemplos são Miley Cyrus, Angel Haze entre outros, que vêm como necessária à sua definição pessoal e artística. Apesar de muitos considerarem-no como uma ‘fase’ ou uma ‘moda’ adolescente, mais útil será considerá-lo num debate que urge em ser desenvolvido pelas várias camadas sociais. 2015 não trouxe a moda de fluidez de género, mas a necessidade do reconhecimento da fluidez de género.
No geral, o ano teve realizações sexuais bastante positivas. O ano de 2016 trará muitas mais, certamente. Com alguma esperança, na escuridão do quarto também, que é um pouco mais difícil de aceder através de estatísticas, questionários ou artigos de jornal. Que o ano de 2016 traga realizações sexuais individuais e colectivas. Que se experimente novas formas de sexo, diferentes posições e diferentes expectativas. Que se puxe pela sexualidade dentro do limite do confortável. A todos, um 2016 muito sexy.

6 Jan 2016

Charlie, um ano depois

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão vale sermos politicamente correctos. Enquanto jornalistas, sabemos que somos os muitos odeiam, os que muitos esquecem, os maus da fita quando convém. Coordenar um jornal não é tarefa fácil, especialmente quando o conteúdo dita um determinado movimento, uma ideia defendida com unhas e dentes, seja ela qual for. O ataque ao Charlie Hebdo levou mais do que vidas – dentro e fora do jornal. Levou a que a liberdade de expressão – exagerada, dirão alguns – fosse violada mais um bocadinho. Mas fez também o mundo perceber que, concordemos ou não com o destaque que foi dado aos ataques ao Charlie, concordemos ou não com a sua forma de trabalho, há por aí questões bem mais fortes que devem merecer ser o centro das atenções: o fanatismo, a forma errada de julgamento do que é ter fé. O facto de que, seja o que for que escolhamos mostrar enquanto jornalistas, também nós – como vós todos – somos constantes vítimas de algo bem maior do que um atentado terrorista. Charlie hebdo
Somos vítimas de uma imposição que não queremos, somos vítimas da intolerância. Mas somos também os perpetradores da violência psicológica que nos divide todos os dias, enquanto nos exprimimos livremente sobre quem e o que quisermos. O Charlie Hebdo – como os jornalistas de todo o mundo – fê-lo publicamente. Seguindo uma linha criticada por alguns (por outros valorizada, não fosse estar vivo desta forma há mais de 20 anos) o Charlie Hebdo fez menos do que nós – enquanto pessoas – fazemos todos os dias: mostrou-se livre de qualquer religião, partido, nação. Por isso, contra todas as críticas, sejam eles – o Charlie Hebdo e as suas vítimas – um símbolo do quotidiano de milhares de outros: dos que sofrem com a guerra, dos que estão à mercê de terroristas, dos que morrem mesmo sem culpa. Sejam eles uma lição para todos nós, que alimentamos egos e conflitos sem muitas vezes nos apercebermos. Para todos nós que perdemos tempo a julgar o que não compreendemos e o que não queremos compreender, só porque podemos – e podemos sem que haja, por isso, consequências.
Joana Freitas

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]ma caricatura de quem não deve ser desenhado. Foi assim que começou um dos mais negros anos de ataques terroristas do século XXI. O tiroteio numa redacção francesa culminou com o assassinato em massa em cinco locais de Paris. Ancara, Beirute, Charleston, Kuwait, Bamako, Sousse. Todas cidades agora manchadas com sangue de inocentes que nunca pediram homens-bomba nem espingardas apontadas. A autoria remete, na maioria dos casos, para o Estado Islâmico, mas o terrorismo não tem cara nem alma: tem ideais distorcidos de cor, de religião, de etnia. As diferenças caracterizam a humanidade, mas é a igualdade que define os humanitários.
Leonor Sá Machado
[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] que nos mata é a cegueira. A maior cegueira de todas, “a dos olhos abertos”. Não é aquele nem os outros. Não é o vermelho, o azul ou o branco. Não é o veneno, a pistola ou a faca. É a cegueira. É fechar os olhos aos outros, rejeitar a diferença, desligar a mente. O que nos mata somos nós. Tu a mim, eu a ele, ela aos outros. O que nos mata é um mundo fechado dentro de nós mesmos, são as verdades únicas e absolutas. Um ano depois, o que nos mata continuamos a ser nós, continuamos com sangue nas mãos e com a mente suja. Ouvem-se os tiros, tapam-se os gritos.
Filipa Araújo

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á uma expressão em Chinês que diz “os bons conselhos são duros para o ouvido”. Criticar pode não ser uma maldade, é apenas o compreender de algo de forma diferente e dar uma opinião que é nossa. O jornal satírico Charlie Hebdo não deveria ter sido uma vítima do atentado terrorista de há um ano. Só mostrou aquilo com que não concordava. Sendo jornalistas, recebemos todos os dias críticas, positivas e negativas. Porque é que os jornalistas podem e devem escrever o que os outros dizem, mas os terroristas não conseguem aceitar opiniões críticas?
Flora Fong

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á um ano o mundo assistiu a um ataque bárbaro que devia envergonhar o mundo moderno e as suas instituições, e que lembra que a liberdade e a dignidade humana estão cada vez mais em risco. O desenho é uma arma, mas a morte e a violência não devem ser os meios usados para acabar com essa arma. Um ano depois, só podemos pedir ao Charlie Hebdo que continue com a mesma criatividade e coragem com as quais se mostraram ao mundo.
Andreia Sofia Silva

5 Jan 2016

…Rabo no chão

“[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]inheiro na mão, rabo no chão” – eis uma expressão chula que no seu sentido original faz referência ao pré-pagamento, ao “dinheiro à vista”, pelo que se pode imaginar que era mais utilizada em certos circuitos ditos “marginais”, e não propriamente na caixa de um supermercado ou num balcão de uma instituição financeira ou de crédito. No seu sentido mais lato, é mais uma das inúmeras referências que podemos encontrar no léxico popular à importância do vil metal – nada se faz sem dinheiro, porque vá-se lá imaginar porquê, ficou convencionado que sem ele é praticamente impossível adqurir bens ou serviços, ou traduzido para o idioma do “deixa-te lá de merdas”, serve para comprarmos as coisas de que gostamos e para, helas, “vivermos felizes” (Mas que raio de raciocínio este, e logo em plena quadra natalícia. Por outro lado, bah, que se lixe).
O dinheiro é também conhecido por pilim, bagalhoça, graveto, massa, carcanhol, bufunfa, guito, grana, e agora pensando bem, basta inserir qualquer palavra num contexto económico ou comercial para que esta adquira uma conotação com o capital: “Quando é que me devolves os paralelipípedos que te emprestei a semana passada”, é uma frase que qualquer pessoa interpreta como referência a uma dívida em numerário. Se ouvimos alguém conhecido a lamentar-se “andar com falta de chimpanzés frenéticos” porque está desempregado vai para uns bons seis meses, a mensagem subliminar que nos é transmitida leva-nos a evitar qualquer forma de diálogo com o indivíduo em questão. É esclarecedor o poder que ele tem, quando quase unanimente se afirma que “o dinheiro só dá problemas”, mas cria problemas ainda maiores na sua ausência. O dinheiro é de tal forma arrebatador que a expressão “estou teso” deixou de se aplicar à boa circulação sanguínea ao nível do tecido eréctil fálico, tendo caído “na bancarrota”, por assim dizer. Uma outra expressão, “não há dinheiro, não há palhaços”, remete-nos de uma certa forma para a inocência perdida, da sensação de que muito possivelmente alguém só nos tenta agradar ou é agradável connosco apenas pelo facto de não existir entre nós uma relação comercial, inter-dependência financeira, ou um interesse materialista. E fico-me por aqui nesta deambulação , ou não vá entrar pela floresta dos orgasmos simulados e afins, e… porra, fico por aqui. Edouard Manet, Déjeuner sur l'herbe
Isto tudo para dizer que neste ano que hoje termina estive em dois países que até há relativamente pouco tempo pensei que nunca chegaria a visitar, e que a única forma de poderem vir a ser um dia visitáveis seria com um “rebooting” completo, do género “aniquilação total de toda a população existente, e sua substituição por outra de modo algum semelhante com ela”. Falo do Myanmar, que no câmbio do “deixa-te lá de merdas” ainda é mais conhecido por Birmânia, e no Cambodja – dois lugares onde a simples presença física aumentaria exponencialmente a possibilidade de nos ser declarado óbito (não que essa declaração “à posteriori” nos fizesse lá grande diferença, entenda-se). Mas não há que o negar; para a geração das pessoas que têm hoje mais de 25 anos, a Birmânia e o Cambodja são tidos como locais nada recomendáveis para se fazer turismo. E aqui refiro-me à noção mais comum e “democrática” de turismo, aquele do tipo “estou de férias, quero fazer o que me apetecer sem que ninguém me chateie”. E de facto a Birmânia foi e vai sendo notícia devido à sua atribulada situação política, que balança ao som dos maiores sucessos do despotismo e da corrupção, enquanto o Cambodja, resumindo em poucas palavras, viu um terço da sua população dizimada em quatro anos de Governo de uns tais “Khmer Rouge”, nome dado ao grupo de babuínos facínoras, e graças aos quais o país tem como uma das suas atracções turísticas uns tais “campos da morte”. E não, o nome não tem origem numa qualquer lenda maluca envolvendo ninjas celestiais e imperadores voadores mais as suas concubinas. Eram terrenos de natureza rústica onde morriam pessoas como nós. Simples.
Mas tudo isso mudou e hoje posso dizer que andei de noite por becos e vielas nas entranhas de Rangum sem temer que me viessem impingir um Rolex da Candonga, e enquanto estive em Siem Reap não vi qualquer execução sumária em nenhuma das suas principais artérias, e em plena luz do dia. Vi gente feliz, simpática, afável, e tão prestável que fazia das tripas coração para se tentar fazer entender com os estrangeiros, um autêntico recital de orgasmos simulados (pronto, não consegui evitar, paciência), e tudo isto porquê? Lá está: “dinheiro na mão, rabo no chão”, e aqui existe o aliciante cambiante de que enquanto as nádegas estiverem suavemente pousadas na solidez desmilitarizada e desparasitada de vermes totalitaristas do asfalto, menos vontade estas pessoas têm de andar aos tiros, ou a rebentar com qualquer coisa “só para passar o tempo”. Descobriram que afinal era mais interessante vender qualquer coisa que se coma, vista ou use, satisfazer o consumidor, e ainda obter algum lucro no processo. E depois de acumulado essa lucro, compram uns dois ou três imóveis (estranhamente essa parece ser uma filosofia de vida regional). Posso mesmo afirmar que na Birmânia e no Cambodja se está a assistir ao contrário do que vamos vendo pelo Ocidente. Acho que chegaram ao ponto óptimo existencial, depois que atingiram o “nirvana” supremo que os fez pensar: “a política que se lixe; vou mas é trabalhar e fazer umas massas”.
A Birmânia deixou-me especialmente encantado. Num país onde ainda recentemente o líder do Governo dedicou um discurso de quase uma hora a um combate de boxe, e tudo porque apostou e perdeu, não vi um único motociclo nas ruas da capital do país, e em vez de ter esses machimbombos de duas rodas anarquicamente estacionados em toda a parte, os passeios de Rangum eram ocupados por vendilhões, de um lado e do outro. E como chegava a ser agradável deter-me e inquirir sobre cada espécie de comércio com que me deparava, quer do lado esquerdo, quer do outro, enquanto me pavoneava pelas ruas de um país onde tudo o que sabia da actualidade foi-me dado a conhecer pelo último filme da série “Rambo”. Uma boa surpresa, portanto.
E é com esta bonita imagem, com este sentimento de positividade que nos diz que de barriga e bolsos cheios dá menos vontade de fazer revoluções e tretas que tais. Para todos os leitores do Hoje Macau, um desejo de um ano que a expressão “estou teso” volte a ter o seu sentido original. Um feliz e próspero 2016, deste vosso servo.

5 Jan 2016

Sondar desejos

[dropcap style=’circle]N[/dropcap]o passado sábado, dia 2, o website de Hong Kong “Yahoo” publicou uma sondagem efectuada pelo APM (Sondagem 2016). O objectivo era determinar as expectativas dos habitantes de Hong Kong para 2016.
O APM é um centro comercial, muito conhecido em Hong Kong. A sondagem realizou-se a partir de 520 entrevistas. Metade dos entrevistados tinha menos de 27 anos. As principais conclusões foram as seguintes:

Afirmações
5% O desempenho geral de Hong Kong em 2016 será melhor do que em 2015.
59% O desempenho geral de Hong Kong em 2016 será semelhante ao de 2015.
31% O desempenho geral de Hong Kong em 2016 será pior do que em 2015.

O Apm comparou os dados da Sondagen 2016 com a homóloga de 2015, e revelou:

Percentagem de entrevistados Afirmações
43% O desempenho geral de Hong Kong em 2015 será melhor do que em 2014.
35% O desempenho geral de Hong Kong em 2015 será semelhante ao de 2014.
21% O desempenho geral de Hong Kong em 2015 será pior do que em 2014.

A recente sondagem revelou que o primeiro desejo dos habitantes de Hong Kong é a prosperidade económica, o segundo a paz social, sendo o terceiro o pleno emprego.
Até certo ponto, a Sondagem 2016 indica a forma de pensar de algumas pessoas de Hong Kong. Após a luta política, para o cargo de Chefe do Executivo em 2014, as opiniões ficaram mais polarizadas. Ninguém estava interessado em escutar as opiniões do adversário. A contenda deu origem a uma desconfiança mútua. Sem essa confiança e sem relações de alguma proximidade, não é de estranhar que as pessoas se preocupem com a paz social. O resultado das eleições para o Conselho Distrital, realizadas há já alguns meses, foram também inesperados. Muitos dos membros mais experientes do Conselho Distrital e alguns conselheiros, que também eram membros do Conselho Legislativo, não foram eleitos. O resultado indicou claramente que os jovens querem ter uma “voz” que os represente. E essa mensagem foi passada de forma muito clara.
Outra questão social muito sensível é a da habitação. Através dos números publicados recentemente pelo Governo da RAEHK, percebe-se perfeitamente que os terrenos disponíveis são limitados e que, portanto. será impossível solucionar o problema da habitação a curto prazo. Considerando este cenário, os resultados da Sondagem 2016 parecem ser compreensíveis.

Em Junho do ano transacto, dia 23, foi publicado o “Relatório de 2014 Sobre Níveis de Bem-Estar Nacionais”. O relatório usou o método “Gallup-Healthways Global Well-Being Index”, aplicado para medir os níveis de felicidade dos habitantes de 145 países.
O relatório indicava que o Panamá aparecia em 1º lugar”. Hong Kong ocupava a posição 120 e Macau não era mencionado.
O Global Well-Being Index é um barómetro global das percepções individuais sobre o próprio bem-estar e representa o estudo mais recente do género. Os dados foram recolhidos em 145 países e, em 2014, foram entrevistas mais de 146.000 pessoas.
Na altura, comentámos que o fraco posicionamento de Hong Kong no Relatório, demonstrava as muitas insatisfações dos seus habitantes. Podemos identificar os seguintes problemas em Hong Kong:
1. Preços de aluguer de casas elevado, um cidadão comum não consegue comprar a sua habitação,
2. Sistemas de pensões de reforma insatisfatório,
3. A questão do comércio paralelo afecta o relacionamento entre os habitantes de Shenzhen e de Hong,
4. Horários de trabalho muito sobrecarregados, que dificultam muito o lazer,
5. Espaço limitado e altos índices populacionais dão origem a poluição elevada, com consequências negativas para a saúde dos habitantes.
Se compararmos a sondagem 2016 do Apm com o Relatório que temos vindo a comentar, compreendemos que as questões relacionadas com as finanças e o emprego continuam a ser as principais preocupações dos residentes de Hong Kong.
Independentemente dos resultados de sondagens e relatórios, é preciso que o Governo e a população unam esforços para resolver os problemas. Não é uma tarefa fácil. Mas se prometermos a nós próprios, no primeiro dia de 2016, que vamos conseguir, então todos conseguirão.
Resta-nos desejar a todos um excelente 2016.

* Consultor Jurídico da Associação Para a Promoção do Jazz em Macau
Blog: https://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

4 Jan 2016

Domingo em cheio

[dropcap style=’circle]P[/dropcap]ara celebrar o 16º aniversário da transferência de soberania de Macau, que teve lugar a 20 de Dezembro, o governo da RAEM organizou as comemorações habituais e ainda, durante a tarde, um concerto no Estádio de Macau. No entanto, nem o ambiente festivo nem a música conseguiram abafar os gritos de protesto dos manifestantes. Seis grupos locais desceram à rua para demonstrar a sua insatisfação com a actuação do governo. Além disso, as pessoas que tinham comprado antecipadamente os apartamentos do edifício “Pearl Horizon”, que se encontra ainda em fase de construção, também se manifestaram, já que a empresa responsável não foi capaz de cumprir a construção dentro dos prazos legais e o governo, de acordo com a lei, fez questão em reclamar os terrenos destinados ao edifício. Os movimentos sociais, liderados pelos diferentes grupos e lutando por diferentes causas, chamaram a atenção quer do governo da RAEM quer do governo Central. Algumas pessoas chegaram a designar este aniversário como um “Domingo em Cheio” para manifestações.
O grupo de manifestantes com maior impacto foi, sem dúvida, o dos compradores dos apartamentos do “Pearl Horizon”. Mais de 1000 pessoas bloquearam a rua e confrontaram-se com os agentes policiais, que fizeram o que estava ao seu alcance para controlar a situação, tomando apenas as medidas necessárias para fazer face aos ataques às forças da autoridade. O trânsito foi seriamente perturbado e algumas pessoas cometeram actos menos próprios contra os media. Finalmente os manifestantes dispersaram de forma pacífica.
O caso do edifício “Pearl Horizon” deu origem a preocupações e debates ao longo das últimas semanas. Acredito que a maior parte das pessoas tem uma opinião sobre este assunto. Os compradores dos apartamentos acusam o construtor por não ter cumprido os prazos. O governo, pelo seu lado, reclamou os terrenos ao abrigo da Lei de Terras, para impedir que venham a acontecer mais casos semelhantes. A questão do edifício “Pearl Horizon” poderia abrir um precedente. Se o princípio orientador da Lei de Terras não for respeitado, os valiosos terrenos da RAEM podem ficar indefinidamente desaproveitados por construtores que aleguem o pretexto da “reserva de terrenos”.
Macau é uma sociedade que pretende ser um estado de direito. Como os construtores já deram início ao processo legal, o assunto será resolvido nesse âmbito. Quanto aos compradores dos apartamentos do “Pearl Horizon”, terão de ser pacientes e esperar por uma decisão.
No dia do aniversário, ocorreram confrontos na zona que circunda a Rua da Pérola Oriental. O Jardim do Mercado Municipal de Iao Hon foi também palco para protestos de outros grupos. Destes últimos, destacam-se, a Associação de Novo Macau (organizador de longa data das manifestações que têm vindo a assinalar o Dia da Transferência de Soberania) e, a recém-formada, Iniciativa de Desenvolvimento Comunitário de Macau. Muitas pessoas, inclusive oriundas da China continental, querem saber se estas duas organizações são antagónicas ou se se complementam e contrabalançam o movimento!
Pelo meu lado não estou preocupado com a possibilidade de conflito já que, quer o presidente, quer o vice-presidente, da Assembleia Geral da Iniciativa de Desenvolvimento Comunitário de Macau, são candidatos à Assembleia Legislativa pela Associação de Novo Macau. Os membros destas duas associações conhecem-se uns aos outros. Mesmo que possam ter pontos de vista diferentes, não deixam de partilhar os mesmos princípios democráticos e defender a sua implementação em Macau. Podem até aperfeiçoar-se mutuamente. De facto, no encerramento da manifestação, o presidente da Associação de Novo Macau, Chiang Meng Hin, foi convidado para proferir um discurso pela Iniciativa de Desenvolvimento Comunitário de Macau, ao passo que o deputado Ng Kuok Cheong falou durante o encontro da Associação de Novo Macau, a convite de Chiang. Por fim, as duas associações derem início aos protestos, lado a lado e de forma pacífica.
Só me senti desapontado por estas duas associações não terem sido capazes de combater a fraca participação popular nas manifestações. A ausência de participação massiva pode, eventualmente, ser explicada pelo mau tempo que se fez sentir nesse dia, ou pelo facto de os cidadãos terem perdido o interesse em se manifestarem contra o governo. Seja qual for o motivo, o “Domingo em Cheio” foi um símbolo do muito que há a fazer para melhor a actuação do governo. “A procura de mudanças através de reformas políticas e a concretização de um verdadeiro sufrágio universal” terão de ser objectivos para o aperfeiçoamento da administração governamental.

4 Jan 2016

Tempo e memória

[dropcap style=’circle]A[/dropcap]A passagem do Tempo incorpora em nós passado e memórias.
E no segundo que medeia entre o velho e o novo, acorre-me um outro tempo, neste mesmo lugar. Macau, a Calçada do Tronco Velho e um vetusto edifício que se foi nos vendavais gerados por gente que hoje nem memória são. À esquerda de quem sobe, o passante que olhasse para as primeiras janelas do rés-do-chão veria homens debruçados, manipulando pedaços de chumbo, e sentiria um forte cheiro a tinta. Aquele casarão era misterioso.
Bocas maledicentes segredavam rumores de que ali mandava um perigoso comunista, o republicano “Monteiro das barbas”, que para aqui se degredara para estar próximo dos camaradas do outro lado das Portas do Cerco.
Ali dentro trabalhava-se até muito tarde. Funcionava aí o “Notícias de Macau” que Hermman Machado Monteiro havia fundado em 1947, sucedendo ao “A Voz de Macau”, do Capitão Domingos Gregório da Rosa Duque.
Os tipógrafos viam-se da rua, compondo, letra a letra e com rapidez, colunas que se iriam encaixar umas nas outras de um modo tão anacrónico quanto, aos olhos de hoje, é a máquina de imprimir. 2 edificio do noticias de Macau à direita
Junto às janelas dos tipógrafos, comandados pelo senhor Jacob, que naquele tempo era assim que se tratavam os mais velhos, situava-se a porta de entrada. Esta dava para um largo átrio, em tijoleira vermelha, de luz coada, sábia medida para manter a frescura dos dias ardentes. Uma escada em L, que chiava, dava acesso ao andar superior onde havia dois caminhos a tomar. À direita, a zona da administração onde trabalhavam duas simpáticas senhoras. Um pouco mais à frente vislumbrava-se uma papaieira que anunciava o grande jardim, que confinava com a igreja de Sto. Agostinho. À esquerda, percorrendo uns escassos metros e abrindo uma porta de vaivém, chegava-se à sala da redacção com inúmeras mesas frente a frente, munidas de máquinas de escrever. Numa dessas mesas, Patrício Guterres matraqueava impiedosamente a sua Remington que um dia descobri já não ter letras nas teclas.
No gabinete que dava para a redacção, trabalhava Luis Gonzaga Gomes, vizinho de casa e a quem todos chamavam de “Inho” Gomes. De poucas falas e que, para minha surpresa, conseguia andar sem barulho, deslizando pelo sobrado antigo. Tão metido consigo, era quase uma sombra. Só mais tarde vim a ler os seus livros, com dedicatória aos meus pais, que publicou nas oficinas do jornal.
Chegavam aos poucos os senhores Anízio, Raul da Rosa Duque, José dos Santos Ferreira, meu tio Adelino da Conceição, Mário de Abreu e o Major Cabreira Henriques, que se detinha em longas conversas com meu Pai.
A sala da redacção ia ganhando vida à medida que as horas passavam e o senhor Jacob entregava linguados para serem corrigidos, que aquilo era obra para muitas horas.
O meu fascínio ia sobretudo para Hermman Machado Monteiro e o seu charuto. Falava pouco, como que pairava por lá, alentando com a sua presença toda aquela plêiade de gente.
Recordo que no Fim de Ano, naquela casa de sobrado que rangia, havia sempre uma ceia aberta a todos e brindes com Vinho do Porto.
Sabia que Hermman Machado Monteiro vivia no Hotel Riviera. Visitei uma vez, com meu pai, o seu quarto, enorme, com varanda para a Praia Grande.
Tinha dois poisos preferidos, onde gostava de reunir os seus colaboradores.
O restaurante do próprio Hotel Riviera, onde se reuniam em ampla e culta cavaqueira aqueles que seriam a Tertúlia do Notícias de Macau.
No Fat Siu Lao, onde ia com tanta frequência que ficou na ementa o “Bife à Monteiro”, fazia questão de reunir todo o pessoal que trabalhava no jornal, desde redactores, revisores, director e tipógrafos.
Nunca me perguntei se o jornal era viável. Acredito que não. Como não o era o Círculo de Cultura Musical que Luís Gonzaga Gomes dirigia. Mas outros elevados valores se levantavam.
O Dr. Pedro José Lobo, verdadeiro Mecenas no panorama cultural de então e figura a requerer estudo biográfico, era também assíduo nestas tertúlias. Era um amante da música e, além de compositor, podia dar-se ao luxo de ter uma rádio, a Rádio Vila-Verde, em chinês, na sua mansão, e a Rádio Vila-Verde em Português, na rua Francisco Xavier Pereira.
Meu pai, António Maria da Conceição, foi o último director do “Notícias de Macau”. Viu, ironicamente, fecharem-se as portas com a liberdade de Abril. Uma estranha comissão ad hoc desferiu o golpe final a um jornal que tinha por tradição juntar todos sem distinção. Meu pai escreveu o último editorial, à guisa de saudação final, que intitulou “Morituri te salutant”. Malhas que o Império tece…
Antes, a marcar o Tempo, penduravam-se calendários nas paredes. Hoje, perdura a Memória, essa intangibilidade desconhecida por tantos. Os anos sucedem-se e, no bolor do tempo, pouco permanece.
Que tenham um Bom Ano.

4 Jan 2016

Factos que marcaram 2015

[dropcap style=’circle’]1[/dropcap]. XI E O COMBATE ANTI-CORRUPÇÃO
O ano de 2015 assinala o reforço da luta anti-corrupção, cruzando os escalões cimeiros do Partido Comunista Chinês, a estrutura da administração pública e os CEO das empresas globais chinesas. Os observadores questionam-se se esta é uma estratégia de eliminação faseada de inimigos internos. Ou se é uma repetição das campanhas de rectificação da década de 1950 para ‘limpar’ o partido e o Estado dos colectores de subornos, do promotores de empresas familiares e dos agentes de transferência de fortunas e capitais para paraísos fiscais e países europeus. En passant, Xi viu crescer o número de inimigos internos, por ora recolhidos e que escolherão o tempo apropriado para o ajuste de contas. A corrupção é crónica na China. Foi grande no regime imperial; é gigantesca no Estado socialista. Enquanto o sistema judicial não for verdadeiramente independente ela crescerá na exponencial. As campanhas políticas são tigres de papel.

2. CHARLIE HEBDO E A CIDADE DAS LUZES

Paris tornou-se simbolicamente o alvo preferido dos terroristas islamistas. Num ano tiveram lugar dois atentados, de enorme violência, visando colher o maior número de vítimas, e estremecer as democracias europeias. Nova Iorque foi em 2001 o símbolo da senha niilista contra a civilização ocidental e a cultura de tolerância, inclusão, economia de mercado e consumo que a distinguem. Paris é, catorze anos depois, um novo alvo. Pelo que representa em termos de património do Renascimento e do Iluminismo, do laicismo, da arte, da música e da cultura em geral. As vítimas são danos colaterais. Os kamikazes, tochas humanas que se imolam à glória de um Deus sanguinário e uma vida para além da morte prenha de prazeres profanos. As razões religiosas (um mundo islamizado) um pretexto para uma operação calculada de cerco e ocupação militar. A Europa está em guerra.

3. UNIVERSIDADE DE SÃO JOSÉ

Depois de ter sido lançado, nos anos finais do período de transição, como um desígnio estratégico educativo de Portugal, o Instituto Inter-Universitário de Macau transformou-se, em 2009, na Universidade de São José. Ruben Cabral redefiniu-o como um projecto de âmbito regional. A instituição perdeu velocidade, em razão de polémicas constantes que levaram à demissão do reitor. O novo reitor, Padre Peter Stilwell, inverteu a estratégia de expansão do projecto. Eliminou cursos, dispensou docentes, suprimiu unidades de investigação e elegeu um só objectivo: a edificação de um grande campus. Sem alunos do continente, dada a inexistência de relações oficial entre Pequim e a Santa Sé, a USJ tornou-se uma pequena universidade da RAEM , sem amplitude e com reduzido número de alunos oriundos da Região Ásia-Pacífico. Suprimida a cooperação com a Universidade Católica Portuguesa, reforçou-se a dependência da diocese e dos seus interesses. A USJ é um projecto universitário a termo certo.

4. PS E ANTÓNIO COSTA

Depois de uma derrota significativa nas urnas, mas tirando partido da ausência de maioria absoluta, António Costa manobrou com tactismo. Negociou com comunistas e a esquerda radical um acordo de incidência parlamentar. A solução foi ratificada por Cavaco Silva, na ausência de alternativas. Atarantado com negociações constantes com os seus parceiros, Costa tem recorrido ao expediente de fazer aprovar no Parlamento as propostas mais radicais dos seus aliados marxistas. Apressou-se a empurrar para o fim do ano (2016) as medidas impostas pelo Tratado Orçamental. O ano de 2016 será farto em medidas populistas dirigidas ao crescimento dos salários e a estimular o consumo público e privado. Navegando à vista, Costa espreita o apoio tácito do novo Presidente para este conventículo oportunista. Os adversários não serão o PSD e o PP. Serão a Procuradora-Geral e o Presidente do Tribunal de Contas. Nos bastidores a nebulosa das empresas do PS e dos amigos espreitam o bolo dos contratos públicos.

5. TAM VAI MAN

Uma querela particular sobre o acesso a campas, num cemitério público, tornou-se o processo judicial dos dois últimos anos. Arrastando no caudal o presidente e outros três responsáveis de uma unidade orgânica virada para acorrer às necessidades mais imediatas da população. Interpelada, nos tribunais, a imparcialidade e competência dos quadros visados, a magistratura judicial sufragaria, em primeira e segunda instância, a inocência dos mesmos e a insustentabilidade da acusação do Ministério Público. A Justiça fez-se. Evitou-se o sacrifício artificial de um dos melhores quadros bilingues que tive oportunidade de ter como aluno nos Programas de Estudo em Portugal, na década de 1990. Destaco aqui, como amigo, a sua coragem, determinação e amor à verdade ao longo do processo. Apenas lamento a exploração política que interesses bem identificados na Assembleia Legislativa (e fora dela) fizeram deste assunto. Quinze anos depois da transferência de administração de Macau há quem ainda não compreenda que nada se ganha com o denegrir da administração.

6. BARACK OBAMA

Obama iniciou o seu mandato gerando enormes expectativas quanto à correcção dos erros da administração Bush, ao fim de intervenções militares no Iraque e no Afeganistão, ao encerramento de Guantanamo Bay e ao restabelecimento da credibilidade externa dos EUA. No plano interno, prometeu a recuperação económica, a criação de milhares de novos empregos, políticas sociais dirigidas aos mais pobres. Prestes a concluir o segundo mandato, o balanço é dividido. Se no plano interno, Obama conseguiu inverter a trajectória de declínio da economia, no plano externo o balanço é negativo. Quanto ao Iraque, coloca-se agora a necessidade de reforçar o contingente americano, no terreno. Guantanamo Bay continua por encerrar. Foi assinado um acordo com o Irão que não garante a anulação do programa de enriquecimento de urânio mas apenas o seu adiamento. Já noutro palco, permitiu a subida da competição militar chinesa no Pacífico Ocidental e o retorno da Rússia ao estatuto de grande potência, perdido em 1989. Ficará na história como o Presidente da retórica, da comunicabilidade mas de diminuta eficácia.

7. RAIMUNDO DO ROSÁRIO

Aposta pessoal de Chui Sai On para uma pasta essencial do executivo de Macau, Raimundo do Rosário tem deixado notas positivas quando ao estilo, às prioridades e à forma de agarrar os problemas. No primeiro, uma forma muito directa de identificar dificuldades, possíveis soluções e mostrar as condicionantes. Nas segundas, um enfoque nas questões da habitabilidade, na carência de novos espaços urbanos que levam tempo a conquistar, de acordo com um planeamento lógico. Na terceira, a ideia clara que os problemas de Macau nas áreas de habitação, do trânsito, dos equipamentos sociais são técnicos. Devem ser geridos de acordo com critérios técnicos. É desejável a consulta à população. São louváveis os milhares de opiniões recolhidas nestas. Mas no domínio das políticas públicas não há soluções milagreiras. Há soluções executáveis. Macau tem um problema dramático, de fragilidade da sua estrutura económica. A curva de declínio das receitas do jogo acentua a incerteza do seu futuro. Têm de se dar passos certos; não mergulhar em aventureirismos irresponsáveis.

3 Jan 2016

Urbanidades

[dropcap style=circle’]A[/dropcap]noiteceu cedo, como é habitual nesta altura do ano, embora aqui o calor retire ao bafo da vaca do presépio o conjunto de clichés que nos foram impondo. Estava fora, e isso também fazia alguma diferença nos hábitos.
A entrada do hotel patenteava uma árvore natalícia gigante. Um piano ecoava pelo enorme átrio onde se cruzava uma multidão díspar que, tal como eu, aproveitava a época para sair do repetitivo quotidiano.
Lá fora, onde de dia se nadava, acendiam-se velas que bruxuleavam no escuro, expressando os festivos desejos habituais.
Senti-me algo perdido naquela multidão enquanto esperava que nos agrupássemos para o jantar. Mas uma como que frequência chegou-me aos ouvidos na forma de um sinal quase insonoro, que se afirmava pelas vibrações que sobre mim exercia, como que uma membrana de uma coluna de som a vibrar. O fenómeno transbordou, percorreu-me a mente, os membros, o corpo. Subitamente, observei o que me rodeava de um outro modo, como se não fizesse parte daquele cenário.
Vislumbrei então, vindo na minha direcção, um homem estranho, que se movia deslizando, sem se lhe ver os pés. Tinha uma tez de cera, vestia uma sobrecasaca preta, gola de veludo, um colete escuro. O mais insólito era o cabelo frisado, já ralo, e uma barba longa, encimada por um bigode farto e branco, todo ele saído da era Vitoriana. Olhava-me fixamente à medida que se aproximava, atravessando as pessoas sem que elas dessem conta dessa extraordinária visão.
Não falámos. O extraordinário é que comunicou de uma forma que eu ouvia sem que houvesse som. “I bid you good evening, my dear fellow” disse-me, e cada palavra como que vibrava dentro da minha cabeça. “Good evening” respondi-lhe estupefacto, porque apenas pensara as palavras. Comunicávamos pelo pensamento, algo, para mim, deveras surpreendente.
“I have been around for quite a while but these days I find all this a little too odd for my liking” retorquiu. “Anyway, my dear sir, my name is Charles. You may call me Charles given these uninformal days you live in”. O ar era sisudo, as pálpebras descaíam sobre um olhar pesado, talvez mesmo cansado.
Aquele rosto era-me familiar, mas não com tanta idade. Arrisquei: “I presume, if my memory does not betray me, that you are Mr. Dickens, Mr. Charles Dickens”. O meu interlocutor fitou-me com um semblante algo triste. “In fact I created Ebenezer Scrooge, and since then all they know about me is the Christmas Carol. Well, I guess one cannot escape one’s destiny”. Tossiu, pigarreou, olhou para mim e disse: “Não sei porque estou a falar inglês quando posso falar qualquer língua”.
“Mas venha”. Agarrando o meu antebraço, começámos a elevar-nos por sobre as pessoas no átrio, dirigimo-nos para a enorme parede de vidro que atravessámos sem custo, olhei a piscina iluminada de velinhas flutuantes. Não senti medo. Acostumara-me à vibração que me percorria, como uma corrente de energia cuja origem era insondável. Ascendíamos sem parar, lentamente, numa trajectória oblíqua. Estávamos sobre o mar. Olhei para cima, mas fui interrompido: “Neste plano, ascender ou descender não tem significado. Não existe o acima nem o abaixo, o atrás ou o a frente, a esquerda ou a direita. Quando habitamos o humano, a nossa compreensão tem limites impostos pelo mundo em que crescemos e vivemos. A matéria ilude-nos e formata-nos. Escrevi sobre Ebenezer Scrooge e a sua avareza, que era material, e o seu arrependimento”. Olhei-o, enquanto continuávamos a subir. “Então quer dizer que neste momento estou materialmente tão… emaciado quanto o senhor?”. Sorriu-me, cofiou a barba e disse-me: “A morte material é uma realidade humana incontornável, mas tão natural como o nascimento. É a passagem pelo mundo plano e primário da matéria.
Apontou-me para o gigantesco globo que tínhamos à nossa frente, a lua, que nunca tinha visto assim, enorme.
Daí já podia contemplar um pouco mais do Universo. Não muito mais. Lendo o meu pensamento, pegou-me no pulso e deslocámo-nos a uma velocidade inimaginável. Abrandámos e, de súbito, estacámos no vácuo. Um panorama deslumbrante abria-se perante os meus olhos de mortal. Enormes galáxias em forma de nuvem, estrelas poderosas emitindo explosões de si próprias, planetas gigantes, outros menores, chuvas de meteoritos passavam perante o meu extasiado olhar.
“Veja, estamos num ponto do Universo em expansão. Aqui não existe nem bem nem mal, nem aqui nem em lado nenhum. Não há agendas nem desejos. A matéria é uma consequência, não um fim. Apenas os espíritos muito primários alimentam guerras e usufruem delas, falam de paz e lucram com ela, arrancam confissões, combatem por deuses diferentes ou por matérias que destroem o seu próprio habitat. Oprimem e orgulham-se disso. Agarram-se ao poder com ambas as mãos. Matam, matando-se. Criam o inferno, o verdadeiro inferno”
Olhou-me com o seu olhar entristecido, de pálpebras descaídas. “A matéria é energia acumulada. E isso é o que ilude no plano terrestre. Há outros planos de consciência, mas geralmente só se ascende a eles quando o espírito se liberta da matéria”.
“Aqui onde estamos, percorre uma energia extraordinária que se chama Amor. Mas esta não é perceptível à maioria dos que dele falam. É demasiado poderosa para ser compreendida por seres incipientes”.
E, sem mais, em um tempo que não é tempo, estávamos de volta ao átrio do hotel. Talvez não tivesse passado um segundo. Mas o que é o tempo? Fui cear com muitas interrogações e um olhar desconfiado para tudo o que o Natal representa de consumismo. Mas não deixei de, bem comportadamente, manifestar os meus votos de paz e amor.

29 Dez 2015

Sexy 2016

– Nunca gostei das festas.
– Festas?
– Sim, as festas natalícias. O tempo em que se festeja a possibilidade de procriação assexuada. Uma mitose espontânea, que nem a biologia sabe explicar muito bem.
– Pois. O Antisexo.
– Somos obrigados a ver a família e a fazer revisões anuais.
– Claro… e as recordações de 2015?
– Sexo a mais e sexo a menos, dependendo do mês. Cinema e umas leituras. Ainda tive umas viagens por aí. Momentos de genialidade alcóolica, mas raros, porque a regularidade levar-me-ia ao alcoolismo. O teu?
– O meu ano foi aborrecido. Pessoas aborrecidas, trabalhos aborrecidos, encontros aborrecidos. Não sei que te diga para além de que 2015 foi uma merda.
– De que signo és? Posso ver o que te reserva para o próximo ano. A astrologia não foi afectada pelo meu cepticismo.
– Eu só quero saber de sexo. Não quero saber de amor, quero saber de sexo. Não sei se é uma opção.
– Queres um 2016 exclusivamente sexual?
– Nem sei o que isso quer dizer, mas talvez.
– Queres foder todos os dias? Com pessoas diferentes? Ter a excitação de corpos novos contanstantemente ou ter o conforto de um a quem já lhe conheces os cantos.
– Talvez. Quero que 2016 traga a revolução no sexo ou… a re-significação do sexo. Justifico-me com a minha constante depressão, mas quero daquelas epifanias sexuais que tornam a metafísica do mundo reduzida ao glorioso acto de foder.
– Não sei se isso te faz um tarado ou intelectualmente interessante.
– Gosto de acreditar que faz de mim um e outro, em simultâneo.
– E vais chegar à restruturação do significado do sexo como, exactamente?
– Espero que com muito sexo e muita introspecção.
– Não percebo como é que chegaste a esta necessidade de filosofar sexualmente. Não que o sexo e a filosofia se oponham, mas tão pouco são compatíveis, talvez complementares. Parece que te obrigas ao dualismo razão/emoção com a desculpa que queres foder bastante.
– Se calhar deverias pensar o que queres que 2016 te traga, sexualmente. Talvez assim me compreendas melhor.
– Nem é preciso pensar muito: um menáge à trois. Sou muito mais prática a operacionalizar os meus desejos sexuais. Um menáge à trois ainda não está na lista de experiências sexuais vividas.
– Pois, ok. Tens algum amante regular agora? Quem seriam os participantes?
– Não, não tenho. Estou a pensar ser o elemento extra de um qualquer casal.
– E pronto?
– Pois.
– Vais o quê? Pôr um anúncio? ‘Disponibilidade para noite louca de sexo com casal que procure expandir a sua lista de experiências’.
– Epá… não faço ideia. Tu é que me pediste a resolução sexual para o próximo ano, ainda não ruminei a ideia. Não sei como se faz, ou como se começa, só sei que gostaria.
– Bem, se entretanto arranjar uma amante e ela estiver para isso, informar-te-ei com todo o gosto desta possibilidade.
– Achas que pode contribuir de alguma forma para a transcendência sexual que procuras para o próximo ano?
– Tenho a absoluta certeza de que sim.
– Depois como seria? Eu, tu e esta hipotética outra.
– Não sei. Imagino que jantariamos os três juntos, alguma conversa e intimidade não magoaria e depois… minha casa.
– Mas marcávamos um dia? Ou sairíamos várias vezes os três a ver no que dava? Se haveria química.
– Boa pergunta.
– Para além do mais, precisariamos de um encontro de discussão de logística. Definir o que é ou não permitido.
– Estás a destruir toda a minha fantasia pornográfica.
– Não percebo porque é que o meu pragmatismo o magoaria. Mas preciso de saber as regras, nós três precisamos de perceber as regras. Há risco de cairmos em constrangimento. Tipo, sexo vaginal depois de anal é expressamente proibido. Ainda pior inter-participantes.
– Tu… Já estiveste com uma mulher? Sabes como se faz?
– Como se faz o quê?
– Enfim, estar com uma mulher.
– Fazer-lhe um minete?
– Sim…
– Essa é mesmo uma preocupação real?
– Não, só curiosidade.
– Sabes tu?
– Acho que sim. Nunca se queixaram.
– Se de facto estás a propor-te como um participante para a minha experiência de 2016, porque não um homem?
– Hein?
– Eu, tu e um hipotético outro.
– Estás a destruir a minha fantasia pornográfica de novo.
– E dupla penetração? Não estou a ver o que seja mais pornográfico que isso.
– Pois, está bem. Mas não sei se conseguiria estar na presença de um pênis erecto, para além do meu.
– Ok. Entendi. E nós?
– Nós?
– Claro. Sei lá eu se o nosso tesão vale a pena.
– Isso é um convite para experimentar?
– Talvez.

29 Dez 2015

Cansados disto tudo!

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stamos cansados disto tudo. As recentes eleições em Espanha, em que o Podemos quase roubou o segundo lugar ao PSOE na primeira vez que foi a votos a nível nacional; em França, em que a votação expressiva na Frente Nacional fez os partidos políticos tradicionais unirem forças para travar o domínio absoluto do partido de Marine Le Pen em várias regiões do país; ou em Portugal, onde se assistiu ao reforço dos grupos parlamentares dos partidos da extrema-esquerda; são alguns dos sinais dados pelo eleitorado de que as pessoas estão cansadas da forma como têm sido governadas pelos partidos ao centro. Querem alternativas e estão disponíveis a dar o seu voto a forças lideradas por pessoas que têm uma aflitiva falta de experiência política ou que são marcadamente populistas. E toda a gente o sabe.
O centro-esquerda e centro-direita têm-se revezado no poder nas últimas décadas por toda a Europa. Esses partidos têm controlado as decisões no centro nevrálgico da política comunitária em Bruxelas. São eles, o chamado “centrão”, quem tem definido as grandes políticas que gerem a vida dos cidadãos no interior União, incluindo as questões mais ínfimas das actividades comerciais, da nossa existência económica, das nossas vidas. O resultado final tem sido uma normalização não apenas dos produtos que podem ser comercializados no interior da União Europeia mas de todos os aspectos da nossa vida colectiva: o que comemos, o que vestimos, o que gostamos.
Com a erosão da soberania económica, monetária e política, a normalização atinge elementos cruciais da gestão da coisa pública: aquilo que pode o Estado deter e como; o quanto pode o Estado endividar-se; que impostos pode cobrar. A criação do euro – uma divisa forte que morde os calcanhares ao dólar norte-americano enquanto reserva cambial – assim determinou. Mas, convém lembrar, não poderia ser de outra maneira. Sem estas limitações, o euro (agora a moeda comum de 19 Estados-membros) não funcionaria. Simplesmente. O problema aqui terá sido o da incapacidade de a União ter avançado para uma total harmonização fiscal. Porém as reservas expressadas, quer por muitos dos governos dos 28 quer pelas diversas opiniões públicas nacionais, não o permitiram.
O “centrão” tem contribuído para o desenvolvimento e estabelecimento de uma narrativa do “não podemos”: não podemos ter um défice orçamental superior a 3 por cento do Produto Interno Bruto, não podemos ter uma dívida pública superior a 60 por cento da mesma riqueza nacional. Todas essas regras, muitas delas pouco explicadas às diversas populações, foram contribuindo para o actual estado das coisas. De saturação.
É evidente que este cansaço não teria acontecido se a Europa hoje, no final de 2015, fosse ainda a Europa de meados de 2008, quando a crise financeira internacional não tinha ainda eclodido e o crédito internacional era ainda barato. Por outras palavras, se vivêssemos ainda hoje os tempos das vacas gordas. Apesar de alguns sinais de revitalização económica, o esforço a que foram sujeitas as diversas economias “intervencionadas” pela Troika não parece ainda ter chegado ao fim. De que a tormenta ainda não passou. E de que os efeitos da crise social vão prolongar-se no tempo. Pelo menos, no tempo útil da vida profissional de quem tem agora 45 anos, se encontra desempregado e não tem perspectivas de ver as condições da sua vida melhorarem no curto-prazo. Foi aliás por terem chegado a essa mesma conclusão, de que a esperança num futuro melhor é nula, que milhares de candidatos a refugiados e imigrantes se têm metido a caminho da Europa, fugindo a uma vida de miséria em África, no Médio Oriente ou no Afeganistão. Também grande parte das centenas de milhares de portugueses que saíram do país desde que a crise financeira rebentou, o fez com o objectivo de encontrar um porto de abrigo mais seguro. Não é, pois, no fundo, muito diferente.

As pessoas estão, pois, saturadas. Da forma como são tratadas. Da forma como foram construindo as suas sociedades. Da falta de perspectivas. Este caldo negativo poderia levar ao aparecimento de líderes motivadores, que arrastam multidões e que promovem a mudança. Mas perscruta-se o panorama político internacional e os rostos que nos surgem são pouco ou nada motivadores. Faltam modelos. Que inspirem. Que liderem.
Angela Merkel, personalidade do ano segundo a revista norte-americana Time, pelo seu papel na defesa dos refugiados, não pode ser aqui considerada. (Há quem nos lembre que a Alemanha, o motor da economia europeia, a campeã das exportações, enfrenta uma grave crise demográfica e a chegada de milhares trabalhadores qualificados sob a forma de refugiados ajudaria a colmatar). Nem pode tão pouco Barack Obama, o líder do alegado mundo livre, primeiro presidente negro dos Estados Unidos, que é, afinal, o campeão dos ataques com drones – essa forma de se fazer a guerra sem a decretar.

Sobram outras figuras, de outros “mundos”. O revolucionário Papa Francisco, com uma agenda reformista, que promete combater a opulência do Vaticano e pôr a Igreja Católica ao serviço daqueles de quem dela mais precisam – agenda e linguagem que explicam aliás a sua tremenda popularidade. E sobra, talvez, Malala Yousafzai, vítima dos talibãs no Paquistão, que esteve à beira da morte, por ter ousado fazer-lhes frente, defendendo o acesso das raparigas à educação, contra a vontade de uma certa ideologia do passado. Malala tem 18 anos. Com o montante do Prémio Nobel da Paz (e outros) criou a Fundação Malala. Tem como objectivo promover a educação para todas as crianças no mundo. Na edição especial sobre 2016 da revista The Economist, Malala escreveu:
“A UNESCO estima que custará 39 mil milhões de dólares todos os anos até 2030 para pagar os estudos a todas as crianças [que estão fora do sistema de ensino], desde o ensino primário ao secundário, por 12 anos, grátis. Parece muito, mas o dinheiro está aí. É uma questão de prioridades.
Esses 39 mil milhões poderiam ser alcançados facilmente se todos os países da OCDE atribuíssem 0.7 por cento do seu PIB à ajuda ao desenvolvimento e alocassem apenas 10 por cento desse montante à educação. Outro modo seria escolher livros, não balas. Cortar oito dias de despesas militares globais seria equivalente a um ano de educação para todos.”
Um pouco de idealismo é tolerado em época de celebrações. Acredite-se, pois, que um mundo melhor é possível.

28 Dez 2015

Caso Injusto

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o dia 25 deste mês, o jornal chinês “Nan Fang Du Shi Bao” publicou um artigo, onde se revelava que a “criminosa”, Qian ren su, tinha sido absolvida. Foi considerada inocente.
O caso relaciona-se com um homicídio ocorrido em Yun Nan Qiao Jia, China. Qian foi acusada de ter morto uma criança num infantário. Na altura foi considerada culpada e condenada a 13 anos de prisão. Durante esse período, apelou e apresentou queixas a diversos departamentos governamentais. Finalmente, o Supremo Tribunal da província de Yun Nan ilibou Qian. Deixou de ser considerada criminosa. Mas continua sem se saber quem é o verdadeiro culpado.
Após a absolvição Qian estava muito feliz. O artigo não indicava claramente se Qian poderá vir a ser indemnizada pelo governo, ou não. Mas nós sabemos que, mesmo se Qian vier a receber um milhão de dólares de indemnização, vai continuar a sentir os efeitos desta situação. Não interessa o valor que Qian possa receber, o dinheiro nunca será compensação suficiente. Em poucas palavras: estaria disposto a trocar 13 anos da sua vida por dinheiro?
E porque é que Qian foi finalmente ilibada? Foi sobretudo devido à acção de um advogado inteligente e diligente. O advogado descobriu que existiam muitas assinaturas diferentes de Qian em diversos documentos legais. Após certificação, percebeu-se que o documento onde Qian admitia a sua culpabilidade, não tinha sido assinado por ela. Tinha sido assinado por alguém que não foi identificado. Na altura da condenação, este documento foi considerado a principal prova para determinar da culpabilidade de Qian.
O artigo apenas revelou que o “desconhecido” era parte envolvida no caso. Não ficou determinado se seria um polícia ou um juiz.
No entanto o artigo ventilava informações vitais, dignas de discussão. Trata-se de uma nova norma legal respeitante aos agentes da polícia e aos funcionários dos Tribunais. A esta norma pretende legislar sobre “Erros de Julgamento Sistemáticos”, e foi emitida pelo Supremo Tribunal da Província de Yun Nan, em 2013, recebendo uma emenda em 2015.
O seu objectivo é determinar a responsabilidade dos funcionários do aparelho legal. O Artigo 3 define a noção de “caso injusto”, como sendo aquele em que funcionários do aparelho judicial agem deliberadamente contra a lei. Nesta circunstância, a “responsabilidade legal” dos funcionários fica determinada para sempre. Por exemplo se, numa determinada altura, um juiz destruir intencionalmente provas, o resultado é identificado como um “caso injusto” e, talvez, deixemos de poder apurar a verdade dos factos. Mas, se dez anos depois, alguém descobrir o que se passou, o juiz passará a ser marcado pela sua falta de “responsabilidade legal”.
A norma considera ainda a “responsabilidade legal” de todos os funcionários. Se a “responsabilidade legal” de um polícia, ou de um funcionário judicial, for posta em causa, pode ser demitido ou transferido para outra posição ou departamento. Se o funcionário já estiver reformado, quando se apurar a sua culpabilidade, a sua pensão pode ser reduzida. No caso de se encontrarem indícios criminosos num “caso injusto”, o funcionário envolvido pode ser sujeito a acusação criminal.
Deveria o polícia ou o juiz do caso de Qian ser responsabilizado ao abrigo desta Norma? Não fazemos ideia. Mas será que se este polícia, ou juiz, for condenado, Qian ficaria feliz? Mais uma vez não temos resposta. No decurso de uma entrevista, Qian afirmou: “Só me detesto por ser inculta.”
Num processo de investigação criminal, o papel desempenhado pela polícia é muito importante. É preciso assegurar que todas as provas encontradas são verdadeiras e precisas. A polícia não pode falsificar provas a bem da Acusação. Em Hong Kong, independentemente de as provas encontradas virem ou não a ser utilizadas pela Acusação, a polícia tem obrigação de informar o réu sobre o que foi encontrado. O réu é livre de decidir se quer utilizar algumas dessas provas em sua defesa.
O juiz também tem um papel muito importante num Tribunal. O juiz tem de usar os seus conhecimentos, para aplicar a lei, entender a disputa em causa, e finalmente determinar a “responsabilidade legal”. No processo de decisão, o juiz tem de exercitar a sua consciência. Justiça e justeza são elementos indispensáveis em cada Tribunal. Caso contrário, as nossas vidas serão dominadas pelo “mal”. Por isso é indispensável que o juiz seja uma pessoa extremamente integra.
Além disso, o juiz goza de “imunidade legal”; ou seja, não responde por um mau julgamento. Se o sistema legal previsse que os juízes teriam de responder por decisões erradas, quem é que quereria ser juiz? Se não existissem juízes como é que iriamos revolver as nossas contendas? A resposta a estas perguntas é óbvia.
É dever da polícia e dos Tribunais manter a ordem, a justiça e a justeza, no seio da sociedade. Se eles quebrarem a lei, então o “vencedor” será o “vencido” e o “vencido” será o “vencedor”. A sociedade deixará de conhecer a ordem, a justiça e a justeza.

28 Dez 2015

Regresso à soberania chinesa

[dropcap style=’circle’]“F[/dropcap]im ao Conluio entre Empresários e Governo. Queremos o Sufrágio Universal”. Este é o slogan que traduz o propósito da manifestação promovida pela Associação de Novo Macau, a realizar no próximo dia 20. A escolha deste tema deve-se à necessidade da realização de eleições directas, através do sufrágio universal, sem as quais não haverá possibilidade de ultrapassar a estagnação política que se vive actualmente em Macau. Encorajada pela eleição de jovens para os Concelhos Distritais de Hong, Kong, a Associação de Novo Macau pretende incentivar a participação de um maior número jovens, e de cidadãos em geral, nas próximas eleições. O seu objectivo é incentivar a população a utilizar o seu voto e a participar na construção do futuro de Macau, em vez de deixar essa decisão nas mãos de um pequeno circulo que tem controlado os destinos da cidade. Uma outra Associação, recentemente formada, deverá também organizar uma manifestação, igualmente agendada para o dia 20. Prevê-se, pois, que nesse dia, o número de manifestantes aumente significativamente. Para além disso, o caso do Grupo Dore e a questão da “Declaração de Caducidade do lote P para o Edifício “Pearl Horizon” irão, de alguma forma, fazer com que mais pessoas se juntem aos protestos. É ainda de considerar que depois do “Desfile por Macau, Cidade Latina”, que teve lugar no passado dia 6, seja muito provável que a participação nas demonstrações seja ainda maior.
Quem olhar para a situação que se vive actualmente em Macau, compreenderá que vai ser necessário travar uma luta difícil para conquistar o direito ao sufrágio universal. No entanto, o Governo Central poderia, em função do Artigo 23º da Lei Básica (relativo à defesa da segurança do Estado) permitir o sufrágio universal em Macau e dar um exemplo a Hong Kong, mas Macau ainda está muito longe do que deveria ser um verdadeiro regresso à soberania chinesa.
A democracia não se efectiva apenas através de eleições directas, uma pessoa, um voto. O sufrágio universal é só um dos elementos que constroem uma democracia. Tomemos a Assembleia Legislativa de Macau como exemplo. Registaram-se casos de suborno durante as eleições. Embora o governo da RAEM pretenda rever a “Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa”, e esteja a fazer esforços para acabar com casos de corrupção, se a população não tiver uma maior consciência cívica e não se acabar com a velha prática de troca de favores entre associações, os méritos do sufrágio universal não se vão fazer sentir em pleno. Em resumo, para além de lutar pelo direito ao sufrágio universal, é necessário lutar para que haja um aumento de consciência cívica, sem o qual, o sufrágio universal corre o risco de se tornar uma manipulação e um jogo de interesses.

Por outro lado, para realizar o projecto “Macau governado pelas suas gentes com ampla autonomia”, os macaenses têm de desenvolver a sua identidade local, sem perder de vista a sua identidade nacional. A identidade local consiste no reconhecimento das características únicas de Macau, da sua história e das suas especificidades culturais.
Quanto ao futuro dos aspectos regionais, é importante que se pense devidamente o relacionamento entre Macau e a China continental, de forma a evitar mal-entendidos desnecessários. Macau não possui recursos naturais e tem sido desde sempre uma cidade de imigrantes. Antes da reintegração, muitas pessoas, vindas da China continental, imigraram para Macau durante o período das reformas.
Se pensarmos no número de imigrantes que chegam regularmente da China, já depois da reintegração, e na quantidade de profissionais contratados, também oriundos da China, facilmente veremos que uma grande parte da população de Macau nasceu na China continental. Macau está, em muitos aspectos, a tornar-se mais “chinês” e as suas características mais autênticas vão desaparecendo aos poucos.
Se esta situação se mantiver, Macau acabará por ser apenas mais um, dos muitos, municípios da China, em detrimento do seu progresso como centro urbano e democrático. Este cenário será desfavorável, quer para a China quer para Macau. E como a “regionalização” pode criar um estigma, o desenvolvimento democrático de Macau será prejudicado se a cidade não souber comunicar devidamente com a China e ajudar a eliminar desconfianças mútuas. Se isto não for feito, o acto eleitoral pode tornar-se um gesto rotineiro sem qualquer significado.
Macau tem de concretizar o projecto “Macau governado pelas suas gentes com ampla autonomia”, se não quiser ser um fardo para o Governo Central. Mas, para que este projecto se torne realidade, vai ser necessário conjugar os esforços da sociedade em geral e, acima de tudo, realizar o sufrágio universal, um dos passos essenciais para o verdadeiro regresso de Macau à soberania chinesa.

18 Dez 2015

Uma terra para ninguém

[dropcap style=’circle’]J[/dropcap]á não sei se foi em 2003 ou em 2004, mas lembro-me perfeitamente do cenário: uma espécie de estação de serviço na China, algures na província de Guangdong, um daqueles sítios em que se fazem paragens para esticar as pernas e fumar uns cigarros. Na altura ainda se fumavam cigarros alegremente e Edmund Ho era um Chefe do Executivo que gostava de conversar com os jornalistas sem os formalismos que hoje conhecemos. As estações de serviço e as pausas para os cigarros serviam para umas conversas que, sem cigarros, não fariam qualquer sentido.
Foi aí que ouvi falar, pela primeira vez, da necessidade de melhorar a qualidade de vida da população. Fazia parte dos objectivos do Governo de então mas, por esses dias, não conseguia perceber exactamente o alcance do desejo: Macau era aquele sossego em que havia gente que, não vivendo bem, também não vivia propriamente mal. Macau era aquele sossego em que tudo ficava a cinco minutos de distância, em que tudo era acessível. Macau era outra coisa que não isto que hoje é.
Os anos passaram e acabaram-se as paragens em estações de serviço na China para fumar cigarros e esticar as pernas. O Chefe que se seguiu não partilha da curiosidade do anterior, mas manteve o discurso da necessidade de melhorar a qualidade de vida das pessoas que estão em Macau (ou de parte delas). O discurso faz-me rir. Por razões agora completamente diferentes, não percebo o que se quer quando se fala em qualidade de vida. Não entendo o conceito que vai na cabeça de quem manda. Acredito que não serei a única.
A qualidade de vida, para a maior parte das pessoas – as que aqui vivem e as dos outros sítios também – passa pelas pequenas coisas. O que nos irrita e o que nos satisfaz não são as grandes questões políticas, as decisões de vulto, os anúncios espampanantes, as grandes negociatas, as tramóias de quem passa a vida em jogos de poder. O que nos irrita mesmo são as dificuldades do dia-a-dia, a dificuldade em estacionar o carro, a impossibilidade de apanhar um autocarro, a hora a mais que se demorou a chegar a casa – aquela hora que tanta falta faz porque, quando passa, já tudo é diferente.
Irritam-nos também os preços do supermercado, que não obedecem à inflação da China, os preços das casas, que não obedecem a qualquer regra de mercado. Irritam-nos ainda os serviços concessionados, lucrativos monopólios que chegam ao fim do ano com os bolsos cheios do que cobraram a clientes que andam ao engano, sempre ao engano, mas sem possibilidade de mudarem para qualquer coisa melhor.
O trânsito. Já se percebeu que não há grande volta a dar. Há anos que percebemos isso. O metro é obra que será motivo para uma expedição a Macau, que muito provavelmente não estarei por cá para a inauguração. Os autocarros são o que se sabe: sardinhas em lata às várias horas de ponta da cidade, a falta de civismo de muitos (mulheres com crianças ao colo, idosos e grávidas podem ter a sorte de um lugar sentado, ou não), ex-condutores de betoneiras que subiram na vida e agora são motoristas, aceleram nas rectas como se o povo fosse cimento, vai para a direita, vai para cima, vai para a esquerda e vem para baixo. Quem quiser que se agarre ao que houver para agarrar.
O estacionamento. Previsivelmente, esta semana os preços do parque privado onde guardo o carro todos os dias, para me dar a esse luxo imenso que consiste em ir trabalhar, subiram mais de 50 por cento, que esta malta precisa de dinheiro e não quis, de modo algum, ficar atrás da iniciativa governamental que tem como nobre objectivo libertar lugares de estacionamento. Uma semana de testes e a ideia não funcionou: sucede que há gente, boa gente, que precisa mesmo de se deslocar e não tem outra hipótese. As filas à porta do meu parque de estacionamento continuam a ser as mesmas. O tempo de espera também. Só a conta ao final do dia é que é bastante diferente. Para mim e para muita gente, em muitos outros parques de estacionamento.
As cabeças quadradas. A falta de ideias para resolver as pequenas coisas que nos irritam. Por altura da promessa de qualidade de vida de Edmund Ho, eu morava no NAPE e não tinha carro, porque não precisava dele – ainda havia táxis e autocarros. O NAPE era, há uma dúzia de anos, um sítio pacífico com meia dúzia de restaurantes, outros tantos bares, dois cafés muito simpáticos e um supermercado. Havia um ou outro karaoke de miúdos que, de vez em quando, se metiam em maus lençóis. Mas a zona era pacífica. Quem tinha carro estacionava na rua e os autocarros ainda se davam ao trabalho de apanhar passageiros nas paragens, porque tinham espaço para eles.
O NAPE mudou e vieram os casinos, as lojas de penhores, os karaokes com portas duvidosas em todas as esquinas. Como Macau é aquela cidade de permanentes contradições, no meio de toda esta confusão instalaram-se (ou já estavam instaladas) várias escolas, creches, uma universidade. E escritórios, negócios às claras e negócios por debaixo do tapete, lojas de vinhos caros e lojas de electrodomésticos, lojas de colchões, lojas de roupa manhosa.
Durante os anos de atribulada expansão demográfico-empresarial desta zona, que um dia se pretendeu nobre, não houve uma única alma nos Serviços para os Assuntos de Tráfego que se tivesse lembrado de encetar conversações com uma alma homóloga da Polícia de Segurança Pública para facilitar a vida aos pais que, diariamente, vão deixar e vão buscar os filhos à escola. Como não há lugar para estacionar nos parques públicos, nos parques privados e nos lugares com parquímetro, quem vai ao NAPE diariamente fazer o exercício de tirar a criança do carro e deixá-la na escola não tem outro remédio que não seja parar nas linhas amarelas das várias paralelas e transversais à avenida principal.
As soluções para este tipo de zonas foram há muito inventadas: abrem-se excepções para quem pára, à hora de entrada e de saída das escolas, em locais onde não é possível estacionar; destacam-se polícias que, em vez de terem como missão multar pais, ajudam na gestão do trânsito, na garantia de que as passadeiras são respeitadas. Facilita-se a vida a quem só está a tentar viver.
Mas por aqui é tudo diferente: a polícia gosta de passar multas a mulheres grávidas com filhos ao colo, no momento em que estão a preparar-se para entrarem nos carros estacionados em linhas amarelas e seguir viagem. Já se fosse à noite, o problema não se colocava: o lobby dos restaurantes e karaokes conseguiu abrir excepções nas linhas amarelas. A malta que bebe uns copos pode parar o carro; aos miúdos de dois anos é melhor dar um MacauPass e eles que se façam à vida, para aprenderem que não é fácil.
O que acontece hoje em dia no NAPE é apenas um exemplo do que se passa noutras zonas da cidade. Já que o conceito de qualidade de vida é algo que o Governo não consegue definir, para depois pôr em prática, que tenha em mente aquilo a que está obrigado: dar possibilidades às pessoas. A impossibilidade da normalidade mina qualquer ideia de vida.
Talvez um dia perceba onde queria chegar Edmund Ho.

18 Dez 2015

Ainda faltava a cereja no topo do bolo

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] final do mandato do Prof. Cavaco Silva coincide, grosso modo, com a passagem do 16.º aniversário da transferência de administração de Macau para a R. P. da China, que se celebrará em 20 de Dezembro. Entendeu o Presidente da República (PR) aproveitar a ocasião para oito anos depois da saída de Jorge Sampaio, em jeito de despedida e ajuste de contas com o antecessor, atribuir ao último governador de Macau a mais elevada condecoração nacional. Contra o que o bom senso recomendaria.
O PR, como os portugueses estarão recordados, tem condecorado, na esteira dos que o precederam, toda a gente e mais alguma. Muitos por méritos mais do que duvidosos, mas que têm em comum serem da sua cor política, terem trabalhado ou colaborado com ele, porventura terem-se com ele cruzado à entrada de uma estação de metro num dia de nevoeiro ou num café de Boliqueime. Não admira por isso que quisesse também condecorar Rocha Vieira, militar que para o bem e para o mal ficará eternamente ligado ao que de pior Portugal fez em Macau em matéria de nepotismo, favorecimento e alimentação de clientelas. Para banalização da Torre e Espada, ordem honorífica cuja atribuição deveria ser consensual e compreendida por toda a Nação, é o ideal.
Quem desconhecer o passado e apenas conheça a propaganda da máquina que Rocha Vieira colocou ao serviço da sua promoção poderá pesquisar alguns livros que se publicaram, ver quem os pagou, e os milhares de páginas da imprensa local, incluindo do então Boletim Oficial, para perceber o que o senhor andou a fazer pelo Oriente rodeado pela sua gente, entre a qual se contavam alguns tipos pouco recomendáveis à luz de qualquer padrão de decência, dos que se orgulhavam de ter “andado a matar pretos em África” aos que assinavam contratos “por conveniência de serviço” em nome do Governo com as empresas de que eles próprios eram administradores. O próprio Fernando Lima, assessor do PR famoso no célebre caso das escutas do Público, foi um dos que por Macau se passeou, aproveitando para pernoitar em hotéis de cinco estrelas enquanto compilava, escrevia e publicava uns livros à custa dos patrocínios que directa ou indirectamente saíram dos cofres de Macau. Creio que o Conselheiro Macedo de Almeida, que foi Secretário-Adjunto para a Justiça de Rocha Vieira e é hoje assessor do PR, não contou nada disto ao Prof. Cavaco Silva para evitar que este se arrependesse a tempo.
Depois de um final penoso mas bem encenado e melhor coreografado, onde o descontrolo da segurança se misturava com os milhões, os caixotes e os salamaleques a Stanley Ho e aos poderosos das suas relações, enquanto se condecoravam os amigos e se sugeriam medalhas a Lisboa, criavam-se as instituições onde seriam colocados os seus – não a Portugal – leais servidores, muitos deles ainda hoje vivendo à grande do que então se retirou dos fundos locais. Em matéria de favores nada ficou por pagar fosse em medalhas, contratos, prebendas várias ou viagens e passeatas. E do trabalho que por Macau deixou aos mais diversos níveis, seria bom que os portugueses soubessem que década e meia volvida não há quem não se queixe do que se fez da justiça e dos tribunais, a começar pelo presidente da Associação dos Advogados, e até o português já perdeu, na prática, o estatuto de língua oficial, havendo tribunais a notificarem em língua chinesa destinatários falantes do português e recusando-se a fornecer traduções de despachos e sentenças a esses destinatários, em clara violação da Declaração Conjunta e do estatuto de igualdade das línguas, como que numa antecipação do final do período de transição de 50 anos. Tivesse sido o trabalho bem feito e nada disto estaria agora a acontecer.
O Presidente Jorge Sampaio, através de um gesto que teve tanto de ingénuo como de temerário, já tinha condecorado Rocha Vieira, embora nunca o devesse ter feito. A prova disso é que Rocha Vieira acedeu para logo depois fazer de conta que não tinha dado o seu aval à condecoração. O jornalista João Paulo Menezesrecordou-o recentemente:
“Depois de ter aceitado a condecoração proposta por Jorge Sampaio (primeiro verbalmente, depois ao estar presente na cerimónia), Rocha Vieira protagonizou um dos episódios mais insólitos da história recente das condecorações em Portugal.
Como é regra, depois da cerimónia pública é enviado para casa dos distinguidos um documento designado “compromisso de honra de observância da Constituição e da lei e de respeito pela disciplina das ordens”.
Só depois dessa assinatura e da devolução do documento é que a condecoração passa a ser oficial. Mas Rocha Vieira não só não assinou como não devolveu o “compromisso de honra”.
Resultado: o Anuário das Ordens Honoríficas – online, no site da Presidência da República – omite essa condecoração e no seu próprio currículo Rocha Vieira também não refere que recebeu em 2001 o Grande Colar da Ordem do Infante D. Henrique”.
O general Rocha Vieira apresenta uma justificação no livro que o seu fiel e abnegado colaborador e editor publicou, dizendo que tal condecoração é “como se não existisse”, mas para dizer isto mais valia que tivesse logo recusado a oferta de Sampaio e esperasse que a história, ou quem àquele sucedesse, um dia reparasse a “injustiça”. Homens de valor e com feitos excepcionais não fazem o que ele fez a um Presidente da República por muito que não gostasse dele.
Sobre os méritos do futuro titular da Ordem Militar da Torre e Espada, nada mais há a acrescentar, sabendo-se que a sua acção em Macau – e a dos portugueses, por tabela – valeu o gozo dos cartoonistas da imprensa internacional, da americana ao South China, pela forma como foi constituída a Fundação Jorge Álvares, onde estão acantonados os seus homens. E dos quadros dos ex-governadores retirados pela calada, como ainda há dias foi recordado por um ex-assessor de Sampaio, nem vale a pena falar.
O que se estranha é ver o general Ramalho Eanes, um modelo de militar e cidadão, a quem os portugueses muito devem pela consolidação da sua democracia, associado a esta farsa que a Presidência montou para homenagear Rocha Vieira. Só vejo o general Eanes na cerimónia por ser um homem educado e bem formado.
É que é difícil encontrar um paralelo, para além da farda, entre a acção de Ramalho Eanes e a de Rocha Vieira. Não consta que o general Eanes no exercício das suas funções públicas ou na sua vida de militar fosse cínico, falso, prepotente, que usasse o posto e a função para oferecer o que do seu bolso não pudesse pagar, distribuindo benesses, encaixando os amigalhaços, fazendo museus, fundações e institutos para sua glória, editando livros ilustrados com as suas próprias fotografias, dando o seu aval a indecorosas campanhas de promoção pessoal, esperando sempre ser devidamente bajulado em todas as esquinas. Ainda recentemente o general Eanes foi às Filipinas receber um prestigiado prémio internacional, fazendo-o com a maior discrição, como se a distinção que lhe foi concedida não fosse motivo de orgulho para todos os portugueses. A diferença entre os dois homenageados não está apenas no facto do general Ramalho Eanes ter dado o seu nome a um largo de Macau e sobre o outro haver hoje quem em Macau não saiba quem foi, tal a irrelevância do seu papel.
A atribuição da Ordem da Liberdade ao general Ramalho Eanes, militar e homem de Estado a quem em matéria de ética e intenções não haverá um acto que suscite dúvida, é inteiramente merecida e não devia acontecer desta forma, à socapa, em final de mandato, sem brilho.
Quanto à do outro cavalheiro a quem o PR resolveu agraciar com a Torre e Espada, a única coisa que se pode dizer é que não será pelo general Ramalho Eanes lá estar que deixará de ser um ultraje. Porque o homenageado será muito seu amigo, simpático e educado, mas faltará tudo o que a Torre e Espada pretende significar. Faltam os “feitos excepcionalmente distintos” à frente de órgãos de soberania ou no comando de tropas em campanha, faltam os “feitos excepcionais de heroísmo militar oucívico” e faltam os “actos ou serviços excepcionais de abnegação e sacrifício pela Pátria e pela Humanidade”.

18 Dez 2015

Pura ficção. E uma mensagem para a comunidade macaense

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]Este texto é um plágio. Este texto também é uma ficção pelo que qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência… Com a devida vénia a Ésopo, aqui vai:
Era uma vez uma pequena cidade antiga à beira mar onde pouco ou nada se passava. Tinha vivido tempos difíceis mas, um certo dia, os locais tinham descoberto uma forma de se sustentar. Alguém vindo de fora montou uma gaiola dourada onde criava galinhas. Galinhas essas, mágicas com certeza que, segundo reza a lenda, punham ovos de ouro. Não eram muitos mas o suficiente para os habitantes da cidade terem uma vida digna. E assim se passaram anos, uns mais tranquilos do que outros naturalmente, mas o pão não faltava e os tempos das fomes e das necessidades há muito tinham passado. Não era uma vida perfeita, mas a cidade gozava de bons ares, tinha até o maior índice de esperança de vida do mundo e as pessoas tinham uma vida livre, de alguma forma satisfeita, sendo vulgar reunirem-se em grupos animados em jantaradas ao ar livre pela noite dentro. Viva-se aquilo que os de fora chamavam um vida descansada, laid back. Porque, para além das galinhas que proporcionavam o rendimento aos autóctones, a própria cidade e a sua forma tranquila de vida era uma atracção para os de fora. Aos seus portos chegavam viajantes de variadas origens não só à procura do ouro das galinhas, como também para descobrirem essa cidade lendária que as histórias homenageavam, à procura da poesia que só esta cidade antiga conseguia oferecer. E alguns gostavam tanto que até decidiam ficar, porque não eram apenas as galinhas que eram mágicas, toda a cidade construída ao longo de séculos sob a influência de povos de diversas origens, respirava odores de lenda, era um lugar sem igual no mundo.

Mas chegou um dia em que tudo mudou.

Descontentes por acharem que a gaiola dourada não tinha capacidade para mais galinhas, alguns habitantes poderosos decidiram chamar gente de fora para construir mais gaiolas e criar mais galinhas até porque nas regiões vizinhas a criação daquelas galinhas era considerada tabu e só nesta cidade era possível criar tais criaturas mágicas. E assim foi: de um dia para o outro construíram-se novas gaiolas e criaram-se milhares de galinhas mágicas. O resultado foi espectacular! A produção de ovos de ouro chegou a níveis impensáveis e a cidade encheu-se de curiosos que vinham ver o milagre e, quiçá, levar um ovo com eles. O sucesso foi tal que até os vizinhos se arregalaram com tanta fartura, e deitaram abaixo velhos tabus e começaram também eles a construir gaiolas.

Mas os habitantes da nossa velha cidade estavam demasiados ocupados com as suas fábricas de ovos de ouro para perceberem o que se estava a passar ao lado e continuaram a deitar abaixo prédios antigos, bairros inteiros para criarem ainda mais galinhas. Os preços na velha cidade subiram tanto e os espaços foram tão reduzidos que muitos demandaram a outras paragens e a velha cidade depressa se transformou num galinheiro. Mas o pior estava para vir: um certo dia, a produção de ovos caiu e milhares de mirones começaram a debandar para outras bandas porque, afinal, o fenómeno dos ovos dourados não era um exclusivo da nossa velha cidade. Na realidade, a partir do momento em que se torna vulgar, para ver galinheiros tanto se pode ir aqui como ali. Os outros, os que vinham à procura da cidade das lendas também há muito tinham deixado de a visitar, porque ela não mais pode ser encontrada, atafulhada de galinheiros e lojas de pechisbeque. Espantados, os habitantes da cidade coçam agora o cocuruto olhando para a cidade antiga que os seus aviários destruíram, interrogando-se sobre o próximo passo a dar.

(continua numa rua perto de si)

À COMUNIDADE MACAENSE

Muito se tem falado nestes últimos dias sobre o ser macaense, ouvindo-se muita coisa. Fala-se de idiomas, de etnias, do que é ser, do que é sentir, se é macaense ou macaísta, macaio ou lacaio, português ou marroquino, chinês ou mongol, mediador ou criador, nativo ou amante, mais ou menos mestiço, houve até quem falasse em fazer mais filhos… Todavia, há algo que se sobrepõe a todos esses conceitos, ideias ou hipóteses: chama-se Macau. Sem Macau não havia macaenses. Por isso, se pretendemos de facto discutir a comunidade, não podemos passar ao lado da terra. Uma terra onde, qualquer dia, as memórias vão limitar-se aos cemitérios e, caros amigos, sem memória, sem espaços comuns, sem reminiscências do passado, sem uma traça que distinga um lugar, não há cultura que resista. Por isso, a minha modesta contribuição para essa discussão é que se debata a cidade, o seu planeamento, a sua forma de viver. Ser macaense, tem muito de amor à terra, isso parece ser uma nota comum. Mas são apenas 28 km2… Não é a cultura que está em vias de extinção, é a cidade que lhe deu origem e a discussão tem de ser recentrada na cidade, e com carácter de urgência! Porque sem Macau não há cultura macaense. Macau, mais do que nunca, precisa dos que a amam, precisa de ser defendida dos usurários que a pretendem destruir. Essa é a missão dos macaenses se pretendem que a sua cultura chegue ao próximo século, às próximas décadas… Essa tem de ser a cultura do momento, esse tem de ser o debate, mais, essa tem de ser a acção – acção construtiva, inteligente, moderna, forte e com sentido de missão. O resto é pura retórica que o tempo se encarregará de engolir – e os tempos andam depressa por estes lados. Depois podemos sentar-nos à sombra de uma Figueira de São João e discutir a cultura com um lai chá fresquinho e umas trincas numa batatada.

MÚSICA DA SEMANA
La Pandilla – “La Casa”

“Era una casa muy chiquitina.
Sin desvancito y sin cocina.
No se podía pasar adentro
por que no había ni pavimento.
No se podía ir a la cama.
No había techo ni las ventanas.
No se podía hacer pipí
por que no había un orinalín.
Pero era hermosa con mis canciones
en el país de las ilusiones.
Pero era hermosa con mis canciones
en el país de las ilusiones.”

17 Dez 2015

Droga, porcaria e chupa-ovo

I

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ntre a correria dos afazeres profissionais, quase nem dei pela entrada da quadra natalícia, o que vem comprovar que esta época outrora dada a balanços de fim-de-ano e menos “stress” já não é que era – e para o Sporting este Natal parece que também não. Fico aliviado, uma vez que esta vontade excepcional de fazer render o que falta para acabar o ano civil, e que no universo das anedotas de alentejanos seria considerado “uma epidemia”, contraria a tendência do PIB, esse em curva descendente. Pesando tudo isto na balança, o resultado é positivo, uma vez que as previsões mais pessimistas apontavam para o desinvestimento, coisa até considerada “normal” numa indústria tão volátil como a dos Jogos de Fortuna e Azar, e tudo o que isso representa, e de que Macau e a sua população se encontram invariavelmente reféns.
E é no seguimento deste recheio social sortido que nos sai na rifa de todos os vícios que encontramos a droga – isto salvo seja, obviamente. Fico a saber que o Executivo se prepara para rever a moldura penal para os crimes de tráfico e consumo de estupefacientes, e sim, era previsível: as penas vão ser mais pesadas. Tão pesadas que fossem estas “penas” a de uma ave, teria que ser de um avião. Eu já me sinto indiferente – para que estragar a pele com manifestações perante esta táctica de “mais vale quebrar que torcer”? Aumentaram os números do consumo e o tráfico? Penas mais pesadas! Aumentaram outra vez, é? Então toma mais dois ou três ao fresco! E agora, atrevem-se? Claro que se atrevem, mas qualquer que fosse na mesma direcção da maioria das restantes jurisdições civilizadas e progressistas, para quem o consumidor é também uma vítima, seria entendido como um sinal de permissividade, de fraqueza.
Assim mais vale o simpático Hin Wai ir todos os anos anunciar novos patamares de insucesso na missão de que o incumbiram mais ao departamento que dirige, o que pode ser entendido também como uma demonstração de confiança quiçá única no mundo (nem José Mourinho aguentava no Chelsea com resultados destes), que o problema no fundo é “político”.
Este ano estive em Bali, na Indonésia, país onde este ano as autoridadas executaram 14 detidos pelo crime de tráfico de droga, alguns deles estrangeiros, e por sua vez entre estes, uns que foram detidos exactamente quando da sua chegada àquela estância turística. Por aquilo que vi e me foi dado a entender, o problema destas malogradas almas inconscientes foi não ter licença de importação, ou “cartão de membro do clube”. Droga era coisa que havia por lá ao pontapé, posso garantir.

II

Estive de fora de Macau durante uns dias, de visita ao Cambodja, e imaginem que durante a minha ausência foi anunciada a decisão da Universidade de Macau agora situada na Ilha da Montanha, em acabar com o ensino da Língua Portuguesa como opcional, o que provocou entre a nossa intelligenzia as já previsíveis e costumeiras ondas de choque. Este “corte” não se deverá ao facto da mudança do “campus” para o lado de lá, do primeiro sistema, e muito menos estariam à espera que eu virasse as costas, porque para mim – e preparem-se, ó “junkies” da indignação e do sobressalto, que pedem sempre em tamanho “supersize” – é igual ao litro. Estou-me nas tintas. Já deviam ter tomado esta decisão mais cedo, até porque vindo de quem vem, deixa-me apreensivo, desconfiado até, que se mantenha o ensino de uma língua que representa (preencha com a alarvidade patrioteira que melhor achar), ainda por cima fazendo-o contrariados, e eu não gosto de ver gente contrariada, com birra do sono, e possivelmente chichi.
É apenas sintomático que se venha agora por na porta mais este cadeado numa Universidade, que nessa função de formar os quadros superiores só pode classificada de “sinistra”, tais eram os sinais de rigidez que vinha demonstrando nos últimos tempos, atingindo o clímax no ano passado, com actos de pura censura e saneamento de académicos por motivos obscuros. No papel pode parecer mau que a instituição de ensino superior que ostenta o nome do território trate com esta menoridade um elemento indissociável da matriz histórica e cultural desse mesmo território. No papel, insisto.
Mas agora peço-vos que parem de emborcar esses hamburgueres de desaforo, empurrados não por coca-colas mas por “ora bolas que já nos tramaram”, chegando a ler neste acto algum tipo de prenúncio do apocalipse linguístico, e deixem-me que vos proponha uma dieta muito fácil, que nem requerer que tirem o rabiosque da cadeira. Basta reflectir durante um minuto e fazerem a vocês próprio esta simples pergunta: isto fica mal a quem, exactamente? Quem quiser aprender Português tem outras opções (e até no continente, e com mais qualidade, dizem), e não noto nenhum tipo de animosidade contra a segunda língua oficial, tirando dos suspeitos do costume, e a esses só nos resta deixar a pastar lá na montanha, onde se fala o montanhês. Béééé…

III

Também durante o curto período em que troquei Macau pela pátria dos Khmeres, falou-se de identidade macaense. Olha khmerda, já viram o que andei a perder, enquanto se tentava responder ao velho enigma que apoquenta menos que 0,0000000005% da humanidade que se propõe a discutir o problema: quem veio primeiro, a galinha chau-chau parido ou o chupa-ôvo? Eu adoro o Miguel, o André, a Paula e todos eles, no sentido não sexual nem gastronómico do termo, mas eles próprios sabem que esta discussão é tão produtiva como organizar um campeonato mundial do Jogo do Galo. Contudo, permitam que partilhe aquela que considera a melhor definição quanto ao género e sexualidade dos querubins:
“(…) Os movimentos migratórios convergentes para o território de Macau, tendo como principais territórios de origem Portugal e China, e os movimentos migratórios que daquele território divergiram para o mundo, constituindo-se como diáspora, devem ser incluídos na caracterização da comunidade macaense, privilegiando-se o seu principal núcleo de organização social, isto é, a família macaense.”
Aí está: a “família macaense” como o elo de ligação a Macau e, por inerência, ao sentimento de pertença, à noção de uma “identidade” própria. Mas não interpretem isto como uma tentativa de conciliar seja o que for, ok? Eu quero é que a malta “vá juntá” para “falá falá falá” e “comê comê comê”, e que não faltem para isso pretextos, por mais inconclusivos que possa ser a discussão.

17 Dez 2015

Fazer filmes

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]iz a sabedoria popular: se estás a fazer um filme estás a fazer um drama. Fazer filmes na vida real (como profissionais) estende-se para além de um género cinematográfico e expressa-se pela panóplia de emoções humanas que gostamos de exercitar. Se a vida imita a arte ou se a arte imita a vida, parece-me uma discussão desnecessária porque procurar a unidireccionalidade dos factos não me faz muito sentido. Um sistema bidireccional é-me mais simpático. Mas talvez seja porque vejo demasiados filmes, e é uma tão confortável forma de passar tempo, que é inevitável não nos sentirmos num. Até agora não conheci ninguém que não tivesse uma fantasia romântica baseada num filme (ou livro, para os mais tradicionais), ou não tivesse um ideal de homem ou de mulher que já não tivesse sido retratada por uma personagem cinematográfica, carregada fisicamente por um actor ou actriz lindos de morrer.
Para as idiossincrasias dos relacionamentos amorosos e do sexo, não há ninguém como o Woody Allen. Ele diverte-nos com um neuroticismo que roça o adorável e o irritante. Com tantos filmes realizados, é claro que ele cai em fórmulas repetidas, mas que têm entretido gerações de homens e mulheres pelo mundo fora. Sobre sexo, amor, paixão, relacionamentos e tesão. Pessoalmente, tenho constantes momentos de clarividência com o Woody, não sei como é que é com o resto do mundo: eu sinto-me compreendida nas suas particularidades e generalizações. Nos últimos filmes a estereotopia tem-me chateado um pouco, à excepção do Blue Jasmine que se demarca pela depressão genialmente representada e de uma forte presença feminina, que se caracteriza pela profundidade psicológica da personagem, algo raramente visto nos seus filmes. Poucas são as personagens do Woody que se tornam memoráveis, exceptuando talvez a Annie Hall e o Alvy Singer. O Woody é sobre os encontros, desencontros, compreensão, desentendimentos e homens e mulheres à luz da psicanálise. Retratos amorosos nova-iorquinos e de uma ou outra capital europeia. A beleza da sua cinematografia vem dos momentos dialógicos.
Reflectindo no trabalho realizado pela Cate Blanchett a dar vida a Jasmine encontrei-me a divagar sobre as mulheres no cinema. Essa forma artística que tenta imitar a vida com o twist das especiarias cinematográficas, tenho que cair no meu discurso bélico pela igualdade de géneros! E para isso apoia-me o teste que mede o machismo cinematográfico. Uma cartoonista decidiu por graça criar uma cena entre duas mulheres que discutem os filmes que querem ver, uma afirma: ‘Só vejo filmes onde haja mulheres a ter uma conversa entre elas que não seja sobre homens’. O teste estabeleceu-se e popularizou-se como o teste Bechdel-Wallace. Claro que não foi redigido por uma equipa de investigadores e não detém validade científica no verdadeiro sentido do termo. Mas a verdade é que são poucos os filmes que encaixam neste critério, e por isso extrapolaremos que o retrato generalizado é de mulheres que só falam de homens e não são capazes de ter uma conversa sobre assuntos mais socialmente relevantes.
Jean-Luc Godard, por exemplo, de quem gosto mas com laivos de irritação, é um realizador que fez parte do desenvolvimento da nouvelle vague francesa, movimento artístico caracterizado pela reintepretação das convencionais técnicas cinematográficas para a altura. Um ultraje pela caracterização feminina! Digo eu, que vi alguns filmes onde as mulheres eram lindas, sonsas, ingénuas e com tiradas literárias de quem fez doutoramento em estudos clássicos. Pelo menos não falam muito de homens, mas raramente as vemos a interagir com o sexo que não seja o masculino (chumba no teste Bechdel-Wallace!). Ou seja, sinto-me na posição de me queixar da objectificação feminina Godardiana e de outras, porque apesar de fantasticamente misteriosas e literárias, não conseguem transpor a realidade feminina.
Estes são alguns (muito poucos) apontamentos de algum descontentamento da minha parte na visualização de filmes. É que esta tendência cinematográfica tem como resultado a surpresa sempre que uma caracterização feminina é de significância, porque infelizmente trata-se de uma raridade. A sério, não estou a fazer filmes quando digo que, nos episódios IV, V e VI da Guerra das Estrelas, as intervenções femininas não duram muito mais do que um minuto (exceptuando as da Princesa Leia). E mais: em toda a saga, não há uma única conversa entre duas mulheres (outro que chumba no teste Bechdel-Wallace!). Esperemos que o The Force Awakens venha mudar isso. E já agora, que a indústria cinematográfica também.

15 Dez 2015

Meritíssimo Juiz

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 26, o website “yahoo” de Hong Kong, divulgou uma notícia onde ficámos a saber que um juiz chinês, de seu nome Huang Tao, em serviço na província de Jiang Su, escreveu uma carta à sua amante, Liu Ying. Na carta afirmava que a amava e garantia-lhe que se iria divorciar depois de 1 de Maio deste ano. Wang acrescentava na carta,
“As tuas palavras são ordens para mim.”
No final selou a carta com o timbre do Tribunal.
Wang foi considerado o melhor presidente do Tribunal dos últimos 40 anos da província de Jiang Su. A sua reputação era excelente.
Este caso veio a lume porque Liu teve recentemente problemas financeiros. A sigla IOU (em inglês I owe you, ou seja, devo-te dinheiro) indicava que Wang devia a Liu cerca de 200.000 RMB. Actualmente Liu sofre de cancro e a relação com Wang terminou.
Em resposta, Wang afirmou que a garantia tinha sido produzida por ele, que nunca tinha sido selada com o timbre do Tribunal, que o IOU era falso e que nunca tinha havido tal transacção.
Mencionemos agora um segundo juiz, a Srª. Ng Wai, do Tribunal de Magistrados de Hong Kong. No dia 2 deste mês, a Srª Ng presidia a um julgamento, o réu, o Sr. Hung Kwok Chu, tinha sido acusado de induzir a polícia em erro no decurso de uma investigação.
Em meados de Outubro, Hung contratou os serviços de uma prostituta. Quando estava a tomar banho, a prostituta fugiu com o Rolex de ouro de Hung. Quando Hung descobriu o roubo
tentou alcançar a prostituta, mas não conseguiu. Mais tarde disse à mulher e à filha que tinha sido assaltado.

Durante a investigação a polícia descobriu a verdade e processou Hung.
No julgamento, Ng perguntou a Hung:
“O que é que andou a fazer? Não percebe que agiu contra a sua mulher? Não se sente envergonhado?”
Nessa altura Ng reparou que a filha do casal estava sentada entre Hung e a mulher e disse:
“A sua mulher é a companheira da sua vida. Está triste.”
Ng ordenou ao réu que pedisse desculpa à mulher em voz alta. A mulher aceitou o pedido. Comoveram-se os dois e choraram.
Ng elogiou a mulher do réu, dizendo que tinha sido corajosa ao perdoá-lo. A juíza salientou que os dois deveriam esquecer este assunto e seguir com as suas vidas. Acrescentou que nunca mais deveriam mencionar este caso, mesmo que viessem a ter uma zanga. Para terminar, Ng recomendou a Hung que tomasse conta da esposa, já que esta sofre de uma doença grave.
Hung foi multado em 2.000 dólares de Hong Kong.
Hoje vamos ainda falar de um terceiro juiz, o Sr. Henry Denis Litton. Foi juiz efectivo no Tribunal de Apelação de Hong Kong. Actualmente está reformado.
No passado dia 3, durante um almoço de convívio, Litton fez um discurso, onde afirmava que se estão a viver tempos críticos em Hong Kong.
“Este ano celebramos o 32º aniversário da promulgação da declaração Sino-Britânica. Será também daqui a 32 anos que a Lei Básica de Hong Kong deixará de existir.”

“Hong Kong não possui quaisquer recursos naturais. Actualmente é um centro financeiro a nível mundial, porque a lei em vigor o permite. A Lei protege a economia, o comércio e a terra. Mas não sabemos o que irá acontecer a seguir. É bom que se comece a preparar o mais rapidamente possível as linhas mestras para 2047. Caso contrário, os organismos internacionais não irão depositar confiança em Hong Kong. As grandes empresas podem abandonar Hong Kong.”
Litton também criticou algumas pessoas que tentam processar o governo ao abrigo da Revisão Administrativa.
“A Revisão Administrativa é um procedimento legal que se destina apenas a averiguar se as políticas que o governo pretende implementar preenchem, ou não, os requisitos legais. Não é um instrumento para pôr em causa as políticas governamentais. A sala do Tribunal não é um espaço para debater políticas governamentais. Se toda a gente puder processar o governo, deixa de haver necessidade de terroristas para impedir o governo de funcionar”
Que condições são necessárias reunir para que tenhamos um bom juiz? É possível que cada um de nós tenha uma resposta diferente. No entanto alguns factores são essenciais, como a competência em matérias legais, uma moral irrepreensível, maturidade, etc. Temos normalmente grandes expectativas em relação à figura de um juiz, não porque esperemos que seja um ser perfeito, mas porque é alguém com a responsabilidade de distinguir o certo do errado, não só em termos legais, mas também por vezes, em termos morais. Se um juiz for suficientemente maduro, terá experiência de vida. Essa experiência ajuda-o a identificar, num litigio, quem está certo e quem está errado.

O juiz deve ver-se a si próprio como representante da Lei. É o responsável pela aplicação da Justiça e da justeza. A figura feminina que representa a Justiça é a deusa grega Témis. Ela empunha a espada e a balança como símbolos. Os juízes da actualidade empunham o martelo e o selo do Tribunal. Se a nossa lei for justa, se os nossos juízes deliberarem adequadamente, se todos tiverem igual acesso à Justiça, então viveremos num Estado de Direito.
E como é que identificamos o Estado de Direito? A resposta é simples. Nos nossos corações. Se respeitarmos a lei viveremos num estado de Direito.
Dos três juízes que mencionámos, Huang, Ng ou Litton, qual será o melhor? Por favor, sintam-se à vontade para fazer a vossa escolha.

14 Dez 2015

Virgínia de Oiro

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]onheci Virgínia Or há alguns anos e sempre encontrei um genuíno e caloroso sorriso. Estranhamente, ou talvez não, Macau parece ser grande, porque raramente nos encontrávamos, mas a empatia pode juntar as pessoas.
Virgínia sempre me suscitou curiosidade. Sou curioso acerca de pessoas que me tocam. Virgínia é natural de Macau, mas muitos dos seus amigos não são. Observei, com atenção, a naturalidade da sua abertura ao outro. Soube que se havia licenciado em filosofia pela Universidade de Seattle e regressado a Macau há 15 anos. Trabalhou no Instituto Cultural. Depois, saiu mais uma vez e escolheu Lisboa para viver, na típica Alfama, onde trabalha como freelancer em eventos e performances. A minha curiosidade sobre pessoas leva-me a inquirir o que as leva a fazer algumas escolhas, o que é que as atrai.

ACJ: Virginia, tendo nascido em Macau, o que a levou a um lugar tão distante como Seattle, e porquê filosofia? Macau não preenchia as suas aspirações?
V.O.: Depois de terminar a escola secundária em Macau, e à semelhança dos meus colegas, procurámos continuar a nossa educação universitária noutro lugar. As universidades de Hong Kong, à época, eram de difícil acesso. Tentámos em vários lugares e, no meu caso, um colégio da comunidade em Seattle aceitou o meu pedido. E assim, após dois trimestres de estudos na melhoria do inglês, fui admitida na Universidade de Seattle. O sistema de ensino era bastante livre nos Estados Unidos e nós temos de mudar de curso várias vezes. Influenciada por alguns professores recém-graduados nessa altura, que verdadeiramente gostavam e eram entusiastas do ensino da filosofia, continuei a ir a mais e mais aulas e no final concluí o curso de filosofia. Nesse tempo e idade, vinda de uma pequena sociedade um tanto fechada como Macau, antes da popularidade da internet, nós tentávamos compreender muitas coisas pelo pensamento e pela ida física aos lugares: o ambiente, as questões sociais, as relações raciais, o nosso tempo, como nós pensávamos sobre as coisas… Nesse sentido, talvez sim, Macau não tinha o espaço psicológico para nos oferecer a oportunidade de ampliar os nossos horizontes de pensamento, antes propício a cristalizar as nossas aspirações.

ACJ: Reparei que muitas das suas relações em Macau envolviam amigos não-chineses e agora, suponho, em Portugal, também. O que a levou a atravessar a ponte para uma cultura e ambiente diferentes?
V.O.: A ponte é “atravessada” ou “está a ser atravessada” a partir do momento que saímos fora do nosso ambiente de casa e da nossa zona de conforto e entramos no espaço de tentar compreender os outros. Ao conhecer pessoas de diferentes lugares, elas como que trazem o mundo até nós, para mais perto de nós. Ainda há muito a aprender.

ACJ: A curiosidade é minha. Existe alguma diferença entre jovens chineses e não chineses entre os seus amigos?
V.O.: Acho que a diferença não é tanto a cultura ou raça, mas a educação social e a consciência cultural. Encontro o mesmo tipo de jovens em todas as sociedades e culturas que conheci, que não são muito abertos a pessoas de diferentes ambientes e culturas, e que estão mais interessados ​​no mainstream, como a sua própria segurança, status social e bons empregos, o que é uma escolha… mas também encontro outros que estão abertas à diversidade e às mudanças, para si e também para os outros. Por isso, acho que as pessoas, jovens e velhos, sem viajar e conhecer culturas, outras que não a sua própria, têm mais dificuldade em estarem abertos à diferença.

ACJ: Na sua perspectiva, o que é que diferencia os filósofos chineses dos seus colegas ocidentais e quais as principais diferenças culturais?
V.O.: A minha universidade só oferecia estudos de filosofia ocidental, a única genealogia do pensamento que aprendi. Mas porque, por educação cultural e etnia, sou chinesa, descobri intuitivamente que algumas premissas na forma de análise, pontos de partida para iniciar os trabalhos, não se aplicavam à nossa mente oriental, ou talvez para formas de pensar que se aproximam e inclinam no sentido do pensamento oriental. Nesse sentido, é mais difícil de fundir os dois.

ACJ: O que a fez escolher Lisboa, entre tantas cidades na Europa? E depois Alfama… estou verdadeiramente curioso.
V.O.:Porque nasci em Macau antes da transferência de soberania, então, naturalmente, sou Portuguesa de nascimento. Lisboa faz-me sentir em casa. A forma como a cidade velha se estende para fora, alguns edifícios, as ruas em calçada, a suave inclusão, o calor e sentido de humor das pessoas, bem como, hoje em dia, a diversidade, são acrescentos ao sabor do lugar. A nostalgia atraiu muitos, eu incluída, para os bairros antigos de Lisboa, como Alfama, Mouraria ou Graça, entre outros. Sinto-me, simplesmente, mais segura entre as coisas antigas do que entre as mais novas.

14 Dez 2015

O Colóquio

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o fim-de-semana passado tive o prazer de participar no III Colóquio Sobre a Identidade Macaense organizado pela Associação dos Macaenses (ADM). Ao contrário do que muitos poderão pensar – sobretudo os ilustres que reagem logo com um “Epá, que seca! Outra vez essa treta da identidade macaense?..” – o evento foi bastante estimulante e foram colocadas questões pertinentes.

Uma conterrânea nossa que esteve presente perguntou-me se ia falar do colóquio aqui na minha coluna. Respondi-lhe prontamente que “apenas se o colóquio correr mal, para poder má-linguã!” pois, caso contrário, para quê elogiar a iniciativa de quem trabalha em regime de voluntariado e sacrifica o seu tempo livre para preparar eventos que dão bastante trabalho organizar?

(Caríssimo leitor, estou a ser irónico).

Miguel de Senna Fernandes, na qualidade de moderador, fez lembrar por diversas vezes à assistência de que estávamos num debate para partir pedra e confrontar ideias sem cerimónias. Ora, numa interpretação mais directa da minha parte, estávamos ali “prá porrada”. Mas no fim não houve muita, pois da assistência, que interveio bastante, foram mais as questões lançadas do que as respostas dadas.

Faço aqui um pequeno registo do que me pareceu mais interessante, aproveitando também para apresentar as minhas próprias observações.

O inquérito

Muitos foram os elogios dirigidos ao José Basto da Silva que apresentou os resultados do inquérito, da sua iniciativa, que foi lançado on-line. Foram mais de 500 os inquiridos e temos aqui uma ferramenta de trabalho muito útil.

Trata-se de bom material para analisar a textura da comunidade macaense à luz de diversos critérios, permitindo aos interessados lançar estudos com base em dados estatísticos concretos. Portanto, podemos abandonar o “acho que”, “penso que”, “sinto que” e citar concretamente “de acordo com as respostas obtidas no inquérito do Bosco-chai”.

E, já que estamos nisso, do inquérito conclui-se que os macaenses da faixa etária mais avançada falam mais português que chinês e são pessimistas em relação ao futuro da comunidade.

E agora acrescento: porque cristalizam definições, são incapazes de aceitar uma realidade em constante mutação, estamos em 2015 e ainda não aceitaram a transferência de soberania e são campeões na invocação do artigo 9º da Lei Básica.

(Este último a propósito da pequena tempestade no Facebook resultante de um chonto di gente que se sentiu incomodada porque o inquérito foi inicialmente lançado em inglês, em detrimento da língua de Camões. Haja paciência.)

A próxima geração

José Luís Pedruco Achiem, um dos oradores, sublinhou a necessidade de manter uma taxa de fertilidade acima dos 2.1% como condição absoluta para que a comunidade sobreviva.

Muito bem, mas fazer filhos apenas não basta, certo? A verdadeira questão, obviamente, será como educar os nossos filhos garantindo que a chama da comunidade maquista se mantenha viva. Falou-se em tradições e gastronomia, mas para mim a chave da questão está no domínio das línguas.

A língua não é apenas uma ferramenta de comunicação, é um universo cultural. E numa altura em que se assiste ao declínio do uso do português no seio da comunidade, é urgente que os pais macaenses programem a educação dos filhos para que sejam bilingues em pleno.

Esqueça-se o inglês, língua que se aprende facilmente em dois tempos, e concentre-se no chinês e no português.

E não se venha dizer que esta ou aquela língua foi descartada por causa do sistema de ensino que se decidiu seguir: caríssimo leitor, pode matricular o seu filho no Pui Cheng e falar português com ele em casa, uma coisa não impede a outra. E aqui falo com autoridade porque a minha taxa de fertilidade é de 2.0, aos 3 anos o meu filho já era trilingue e da minha menina de 2 meses não espero outra coisa.

Sobre línguas não vou desenvolver mais pois este tema foi por mim abordado em detalhe no artigo “Noite de Natal no Karaoke”. (*)

Rethinking the boundary

Foi este o tema desenvolvido por Elisabela Larrea, a primeira oradora do colóquio. A nossa amochai apresentou o seu trabalho em inglês – ai os antigonços e os seus intestinos que devem estar a mexer, e de que maneira – e conseguiu transmitir o que para mim faz todo o sentido e sempre defendi: a riqueza do ser maquista reside precisamente na sua diversidade cultural, portanto porquê criar fronteiras redutoras?

Tudo muda com o tempo: o mundo mudou, Macau também, portanto os parâmetros de definição da identidade Macaense têm, necessariamente, de mudar e evoluir.

A Elisabela não falou do nada: segundo a sua pesquisa, a peça de Patuá “Olá Pisidénte” (1993) continha 99% de palavras em Patuá e apenas 1% de Cantonense e Português, sendo que a audiência era maioritariamente macaense e portuguesa.

Já a recente peça “Qui Pandalhada” (2011) apresentou apenas 61% de palavras em Patuá; e 26%, 10% e 2% em Inglês, Chinês e Português, respectivamente. Quanto à audiência, para além dos macaenses e portugueses, verificou-se o que já sabemos: uma presença significativa de chineses.

Aceitar que ambas as peças são manifestação da cultura macaense é também aceitar, por conseguinte, que a definição do conceito de macaense é mutável.

Descartemos os complexos: a nossa multiculturalidade deve ser celebrada em pleno.

Aquela coisa do “no meu tempo”

Foram vários os intervenientes que recordaram o Macau antigo e lamentaram a ausência dos lugares de convívio onde outrora socializavam com a malta, apontando essa situação como uma das ameaças à sobrevivência da comunidade.

Houve até quem dissesse que para muitos é preferível não estar em Macau “a assistir a essa destruição, sendo se calhar mais fácil estar nos Estados Unidos, ou num outro país qualquer, onde se sentem melhores”.

Salvo o devido respeito, não posso concordar com essas afirmações. O discurso do “no meu tempo” arrepia-me. O nosso tempo é o nosso tempo, as coisas mudam de geração em geração.

Aos fins-de-semana o meu filho de cinco anos diverte-se nos parques limpos, bem tratados e bem equipados do IACM, ou então nos indoor playgrounds dos novos empreendimentos. E divertimo-nos à brava. Quem sou eu para lhe dizer que no meu tempo as coisas eram melhores?

Aliás, escrevo estas linhas depois de um agradável jantar com amigos do meu tempo, estivemos num restaurante formoso de um dos novos casinos, fomos servidos por um chef português nosso amigo. Boa comida, bom ambiente, bom convívio.

“No meu tempo” não era necessariamente melhor ou pior, era diferente – e não temos forçosamente que ser pessimistas em relação ao futuro. O passado é bom, mas é morto.

Considerações finais

Não quero deixar de destacar a positiva participação de intervenientes em língua chinesa. Deu um colorido à coisa e sei que essa era uma das intenções da ADM – por essa razão todo o evento teve tradução simultânea. Aliás, qual o sentido de um colóquio para debater a identidade macaense se for apenas entre nós, entre a malta? Se for para isso, mais vale combinarmos uma jantarada entre nós…

Os meus parabéns à ADM pela iniciativa. Para o ano há mais, certo?

Sorrindo Sempre

Há 10 anos atrás, quando trabalhava no Governo, conheci um caso em que um funcionário avançou, sem a devida autorização superior, com a execução de uma obra que implicou despesas do erário público.

Quando, já intempestivamente, o funcionário submeteu a papelada para processar a coisa, superiormente foi exarado o seguinte despacho: “Aprovo com efeitos retroactivos e sanciono o técnico responsável pelo sucedido, sendo que o mesmo será tido em consideração aquando da renovação do seu contrato”.

Tradução: “a m**** já está feita e vou aprovar a contar da data em que foi feita, mas estou lixado contigo e sou capaz de te pôr na rua.”

Volvidos 10 anos, sou confrontado com o seguinte caso: alegando falta de espaço no pavilhão onde costuma organizar as suas Festas de Natal, o Jardim de Infância D. José da Costa Nunes (DJCN) decidiu este ano alugar um espaço no exterior: o auditório do IPM.

Alugar um espaço no exterior custa dinheiro. E das duas, três: ou (1) o DJCN não sabia, ou (2) sabia e fez mal as contas, ou então (3) sabia, fez bem as contas e apercebeu-se que precisava ainda do carcanhol dos encarregados de educação, mas por mera má gestão ou por motivos que sou incapaz de compreender, decidiu que estes deveriam ser informados apenas no último momento.

Pois que com a Festa a realizar-se no dia 12 de Dezembro, o DJCN decide apenas enviar aos encarregados de educação, no dia 8 de Dezembro, um e-mail onde se lê: “(…) todas as despesas inerentes a esta deslocação representam um montante elevado que irá ser suportado pela escola. Ainda assim, torna-se indispensável que os Pais e Encarregados de Educação adquiram os respectivos bilhetes no valor de 75 MOP cada. (…)”

Caríssimo leitor, não vou passar fome por ter de arrotar as 75 pataquitas. Mas incomoda-me saber que a DJCN toma decisões dessas sem consultar primeiramente os encarregados de educação, para depois enviar um e-mail assim, em cima do joelho, já com tudo decidido e o facto consumado, obrigando-nos a arrotar as tais 75 pataquitas. E, que eu saiba, em Macau nenhum jardim de infância pede aos pais que paguem para ver a actuação dos seus próprios filhos no Natal.

O (a) responsável por essa borrada toda merece, indubitavelmente, um puxão de orelhas semelhante ao daquele despacho escrito.

Sorrindo sempre? Não.

(*) “Noite de Natal no Karaoke”, edição de 24.07.2015 do jornal Hoje Macau.

11 Dez 2015

Fong & friends

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]inda o que aconteceu na sexta-feira passada. Faz hoje oito dias, ficámos todos a perceber com clareza – se dúvidas ainda tivéssemos – de que massa é composta muita da gente que, directa ou indirectamente eleita, com a bênção do Chefe do Executivo ou sem ela, ocupa um lugar na Assembleia Legislativa. Na realidade, o tema vinha de véspera e foi Tsui Wai Kwan, um dos escolhidos de Chui Sai On, que deu o tiro de partida para um dos mais tristes espectáculos a que assisti em mais de dez anos de plenários.
Resumindo, para depois concluir: há deputados que estão preocupados com o investimento que o Governo, através da tutela de Alexis Tam, está a fazer na saúde pública, no Centro Hospitalar Conde de São Januário e nos centros de saúde do território. Consideram que a intenção é boa, mas já chega, não é preciso ir mais longe. A razão para este travão político? A concorrência às clínicas privadas e ao Hospital Kiang Wu, essa instituição que dispensa apresentações e que todos nós sabemos como é financiada.
Como é hábito naquele edifício ao qual se deu o nome de Assembleia Legislativa, há um deputado particularmente despudorado, conhecido pelos frequentes dislates, de seu nome Fong Chi Keong, que assumiu a defesa da causa: se o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura continuar nesta senda de tentar melhorar o serviço público de saúde, vai acontecer uma catástrofe. (Quem não conhecer o estilo da retórica fonguiana poderá porventura achar que me enganei na redacção da última frase. Não, não me enganei.) Vai daí, o douto tribuno deixou um conselho ao secretário, que “ainda é novo”: há que parar enquanto é tempo, que o Kiang Wu é para ser tratado com amor e carinho.
Os deputados defensores do Kiang Wu – Fong Chi Keong é bom a fazer contas e somou oito, ali todos sentadinhos – explicaram, ao longo de várias e entediantes horas, como é que o Governo, ao estar a melhorar um hospital que é de todos, prejudica o hospital de quem tem dinheiro para pagar contas: há médicos que estão a trocar o Kiang Wu pelo São Januário. Que indecência, que despautério, que grande tolice. E, claro está, se o hospital público um dia destes recupera a confiança da população, as contas mensais do Kiang Wu provavelmente vão ressentir-se. Que vã preocupação.
O que tu queres sei eu, disse Alexis Tam a Fong Chi Keong, e disse muito bem, que todos sabemos o que ele quer: esta situação de concorrência desleal gerada pelo único governante que, até à data, veio defender que o São Januário não deve cair de podre, nem deve ser o hospital dos pobres e desvalidos, só pode ser resolvida com mais uns servicinhos encomendados ao Kiang Wu. Como se já não bastasse o dinheiro todo que, anualmente, entra por várias portas no hospital privado. Como se não bastasse.
Para Alexis Tam, obviamente basta. Não será à toa que, apesar dos cortes orçamentais deste ano, o secretário continua a ter dinheiro para investir, para contratar, para fazer. Apesar da oposição, continua, portanto, a ter apoio político para levar o seu projecto avante. Mesmo havendo um Kiang Wu na cidade. Mas a contestação à melhoria do que é público serve de explicação – queiram os deuses e restantes santos que não seja, de novo, premonitória – das dificuldades que se colocam a quem, de uma forma ou de outra, se atreve a tocar em vacas sagradas, mesmo que com jeitinho.
Falta de vergonha dos deputados à parte, importa reflectir, para memória futura, na postura de Alexis Tam, que fez questão de encerrar os dois dias de debate com uma mensagem clara e inédita na política local: ele está no Governo para servir a população, não uma minoria da população. E espera que os deputados entendam que assim é e assim vai continuar a ser enquanto lá estiver.
Este tipo de mensagem leva-me a pensar que, com o secretário, passa-se uma de duas coisas: sabe bem o que está a fazer, que terreno pisa, e por isso diz o que diz, porque segue um certo alinhamento nacional que não tem, nos dias que correm, o empresariado ganancioso e despudorado em grande conta; ou é simplesmente alguém que quer fazer, que quer cumprir o que promete, que quer ir mais além na vida política e poder continuar a defender o interesse público. Às tantas, são as duas coisas em simultâneo. Fong e amigos, parece que o mundo está a mudar, apesar do lento ritmo local da mudança.
Alexis Tam é uma carta claramente fora do baralho governativo, mas não está só. Noutro registo, com um estilo completamente diferente, o secretário para os Transportes e Obras Públicas protagonizou esta semana mais um momento político nunca visto. Depois da ladainha de comentários e perguntas de uma dezena de deputados, Raimundo do Rosário, com a sua forma de responder sem rodeios, pouco ou nada virada para os novelos retóricos em que os deputados se emaranham, explicou que não pode responder a tudo, nem pode fazer tudo. Ficou sem 300 milhões e o que lhe falta em pessoal, em terrenos e em recursos, tem a mais em problemas, limitações e nós para desfazer que, à medida que os anos foram passando, se foram tornando cada vez mais apertados.
É refrescante ouvir um governante desta terra não prometer estudos para resolver problemas há muito diagnosticados, mesmo que nos diga aquilo que não queremos ouvir. É refrescante ouvir um governante desta terra dizer que está aqui para me defender, a mim e aos outros todos que fazem parte da maioria que não sabe fazer contas com a quantidade de zeros da máquina de calcular de Fong Chi Keong.
Talvez daqui a uns tempos chegue à conclusão de que estas formas de estar não me deram um melhor hospital ou um trânsito menos caótico. Por ora, sabe-me bem ouvir um discurso político de maior elevação.

11 Dez 2015