Luís Brito: “Escrevo tanto o que vivo como o que penso”

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]pesar de ainda só teres 30 anos, tens três livros publicados: Alcatrão (Abysmo, 2013), que é um livro de viagens, Arigato, eu (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016), que relata a tua experiência no Japão, e Jejum (Tea For One), que é um livro de poesia. Julgo que os teus livros deveriam ir para Macau, pois além de serem bons (escrevi uma pequena resenha sobre Alcatrão, para uma revista brasileira), inscrevem-se num universo muito caro às pessoas que ali vivem. Viajaste desde o Chile à Índia, passando por África e, mais tarde, passas uma longa temporada no Japão. Acerca de Alcatrão escrevi: “O viajante tem, em suma, de transformar-se em um sem-abrigo. Só nesta condição todo e qualquer metro quadrado do planeta se transforma em sua morada e esta em sua possibilidade de ver o mundo. A dúvida acerca da proximidade e distância entre viajante e sem-abrigo, é, aliás, exposta em algumas passagens do livro.” O que te leva a viajar é o mesmo que te leva a escrever? São da mesma ordem, esses movimentos, para fora e para dentro?
A verdade é que gosto de viajar como um zarolho. Um olho aberto e outro fechado, sabendo que o primeiro vê o que vai lá fora, e o segundo espreita para dentro. A meu ver, as viagens devem ser simbioticamente exteriores e interiores, pois é nos espelhos do mundo, e na autoconsciência do que eles reflectem em nós, que está o verdadeiro crescimento. E isso aparece-me na escrita. Escrevo tanto o que vivo como o que penso, sabendo que pensar é viver. E viver sem pensar é-me impossível. O que me leva a viajar talvez seja o mesmo que me leva aos livros: a curiosidade, virada para o mundo e virada para mim, e ainda o encontro com o homem nas situações mais exíguas, sem quaisquer luxos ou distracções, onde a sua natureza mais crua se revela.

Recentemente numa entrevista disseste, e passo a citar-te: “O lançamento do livro é um desporto com cada vez mais popularidade. Em Lisboa, em Portugal, no Mundo, e eu também aderi à modalidade.” Achas que deixámos de ler, para ir aos lançamentos dos livros? A literatura e a poesia passaram a ser fait divers?
É difícil que os livros tenham a importância que merecem, quando há cada vez mais informação, eventos, actividades e ideias. Eu próprio sou um mau leitor, por isso essa frase, em tom de brincadeira, é antes de mais uma auto-crítica, mas sempre é melhor as pessoas irem aos lançamentos do que não irem de todo, assim lá se aumenta a probabilidade de lerem, e pelo menos o autor tem o prazer de ver caras queridas. Se os lançamentos e as obras modernos são fait divers? Talvez seja verdade, mas pelo menos não são dos piores. Sempre se aprende qualquer coisa e, salvo as árvores que se decapitam para dar lugar às folhas de papel, na arte normalmente ninguém sai prejudicado.

Além de viajares por países em modo pouco turista, vives também de um modo pouco turista, apesar de dependeres deles. Trabalhavas numa agência de publicidade e despediste-te para passares a tocar hang drum (ou cataplana, como eu lhe chamo) para os turistas. Esse teu modo de viver continuamente sem rede é fascinante. Não consegues mesmo viver como os outros?
Tanto no que toca às viagens, como a esta nova carreira de músico de rua, as pessoas costumam dizer-me que sou um tipo de coragem. Eu respondo-lhes que corajoso seria se me mantivesse muito tempo no mesmo sítio, por exemplo, fechado num escritório. Há, sem dúvida um contra senso: sou anti-turista e agora vivo do turismo. Pode-se dizer que faço haiki-dô, usando a meu favor a força do inimigo. No entanto, este trabalho permite-me viajar sem sair do sítio, pois contacto com gente de muitos lugares, acabando até por conhecer também alguns viajantes pouco turistas. E da fissura entre essa ideologia e a prática concreta, pode nascer um caso de estudo, aliás, ando a escrever sobre essa experiência. Se não consigo viver como os outros? Cada um é a vida como ele a vê. E a verdade é que estas opções que tomo não são assim tão radicais, se as compararmos a um nível global e aos verdadeiros loucos, os que fazem coisas verdadeiramente audazes, arriscando a vida e até a vida dos que lhes são próximos, ou viver uma vida longe deles.

Concordas com esta frase: “viajar é um exercício de tentar perder-se de si, um dos caminho mais rápidos em direcção a nós mesmos”?
Não só concordo como subscrevo, e atrevo-me a corrigir. É o mais rápido e o melhor, pelo menos tal como eu concebo a vida. Para nos tornarmos em quem somos, precisamos de nos soltar do mais possível do que nos ensinaram, do que aprendemos, do que vivemos dia a dia sem perguntar, a famosa zona de conforto, a acumulação de ideias que temos sobre nós mesmos. No vazio, no anonimato e na errância encontramos mais e mais camadas de força e inteligência, além da tão necessária capacidade de fazer contacto humano. Quanto mais diferente de nós for o outro, mais intensa pode ser a catarse. É um lugar comum, mas a verdade é que só nos perdendo nos podemos encontrar.

3 Fev 2017

Estelle Valente: “Gosto de fotografar aquilo que não existe”

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]asceste em França, onde cresceste e estudaste economia, mas acabaste por vir para Portugal, terra dos teus pais, e tornaste-te fotógrafa. Hoje és mais conhecida por ser a fotógrafa oficial da cantora de fado Gisela João. Que te levou a vir para Portugal e deixar a economia para te tornares fotógrafa?

Porque é que larguei tudo em França para vir viver para Lisboa? Essa deve ser a pergunta que mais me fizeram até hoje e, como muita coisa na minha vida, não tem uma resposta racional. É algo que sentia em mim há muitos anos. Sabia que o meu destino, o meu « fado», era aqui. É difícil explicar. Precisei de quase dez anos para tomar essa decisão. Temos várias vidas na nossa vida e eu já tive muitas. Não tenho medo da mudança, de mudar de área. Gosto sempre de experimentar coisas novas. A fotografia nasceu um pouco dessa mudança. Quando cheguei a Lisboa não conhecia quase ninguém e tinha uma sede de descoberta. Comecei a sair sozinha, a eventos culturais, à noite, e a máquina fotográfica foi naquela altura a minha companhia. Deu-me uma segurança e foi fundamental para o meu crescimento, eu que sou uma pessoa bastante tímida. E dessa companhia nasceu uma paixão. Comecei a fotografar muito. Depois aconteceu um daqueles encontros que mudam a vida de uma pessoa: e o meu encontro com a Gisela João foi um deles. Ela não era conhecida na altura e comecei a fotografá-la. Depois saiu o primeiro álbum dela e foi o impacto que foi. Desde então crescemos juntas. No panorama actual da música existem poucos casos assim e, por isso, tudo isto me parece único. Ela é a minha Musa, ela é a minha principal fonte de inspiração. Eu vejo nela todas as musas de Gainsbourg.

Fotografas sempre a preto e branco, e especialmente pessoas. Isso deve-se apenas a compromissos profissionais ou é esse o modo como entendes a fotografia?

A arte, e aqui a fotografia, é um pouco o reflexo daquilo que somos e muito das nossas imperfeições. E por isso as minhas fotos são frequentemente melancólicas, sombrias, misteriosas, poéticas, paradas no tempo. Isso deve ser um pouco aquilo que sou.  E só o preto e branco me permite isso. Também poderá ter a ver com a noite que eu associo muito aos tons pretos e brancos. O que me fascina na noite é que tudo parece possível, como se não existissem limites. E também vejo isso no meu preto e branco. Com o preto e branco consigo transmitir exactamente aquilo que quero, a história que quero contar. É algo mais forte, com mais contraste e impacto. Gosto de brincar com as sombras, ao fim ao cabo com a minha própria sombra, com o meu lado escuro. O facto de fotografar pessoas deve-se ao meu percurso profissional, foi assim que as coisas foram acontecendo ao trabalhar muito com a Gisela e no Teatro São Luiz, onde tenho feito imensos retratos. Mas confesso que o que me interessa mais na fotografia é a ausência, é justamente poder contar a história de alguém sem ele estar presente fisicamente. Gosto de fotografar aquilo que não existe, eu sei que pode parecer estranho. A minha liberdade de imaginação é muito maior nesse caso.

O que é que mais te fascina na fotografia? No fundo, e isso poderia ser aplicado a outros fotógrafos, muitas das tuas fotografias são como poemas.

A liberdade de poder contar uma história de uma forma directa e imediata. Essa possibilidade de construir um poema visual. Agrada-me o facto de ter vários olhares sobre uma foto. Digo sempre que numa fotografia há três histórias: a história real do momento que estou a fotografar, a história « inventada » que eu quero contar e que muitas vezes as pessoas não percebem e, por fim,  a terceira história, a da pessoa que está a olhar para a foto e cuja imaginação pode ser estimulada por esse olhar. O mais bonito é que acabam por ser sempre três histórias diferentes. E é essa magia que me fascina na fotografia. Por isso é que criei há alguns anos um blog onde convido « amantes da escrita » a escrever um texto (um poema ou um conto) inspirado numa foto minha. O resultado tem sido fascinante e muito inspirador ao ver o que as pessoas imaginaram perante uma foto minha sem eu nunca ter pensado nisso nem ter tido a mesma leitura.

E o que te fascina tanto em Lisboa?

A luz, sem dúvida. Por vezes as pessoas que vivem aqui não têm essa noção mas Lisboa tem uma luz diferente, uma luz que penetra e que transforma a tua alma. E essa luz mudou-me de uma forma que dificilmente consigo explicar.

Quais os teus projectos para este ano e quais os sonhos?

A minha vida é feita de sonhos! Projectos concretos tenho alguns, que não posso revelar ainda, mas posso dizer que em breve haverá uma (ou duas) exposições em Lisboa, e provavelmente a edição de um livro. E um projecto com uma passagem por Paris, como não podia deixar de ser. Acima de tudo, quero fugir do óbvio e daquilo que toda gente espera. Quero seguir o meu instinto, foi sempre ele que me guiou até hoje.

1 Fev 2017

Vasco Gato: “Se há território que não me apetece pisar é o da qualidade poética”

[dropcaps tyle≠’circle’]T[/dropcap]ens 12 livros de poesia publicados, em outras tantas editoras, tão diferentes como o podem ser a institucional Assírio & Alvim (que faz parte do grupo Porto Editora) e a provavelmente mais “underground” de todas as editoras de poesia, a Tea for One. E acabas agora de editar o teu Contra Mim Falo (o conjunto dos teus 12 livros anteriores) noutra editora onde nunca editaras antes, a Plural. Essa contínua mudança de editoras é algo que procuraste, ou que foi acontecendo desse modo? Quais os lados positivos e os lados negativos desse teu percurso único, do ponto de vista editorial?

Essa vadiagem editorial tem a sua génese na recusa de um segundo livro por parte da Assírio & Alvim, onde julgava ter encontrado à primeira a minha casa. Era, na verdade, um conjunto precipitado de poemas. Ainda bem que me fecharam a porta. Tive de seguir caminho e procurar outros lugares. Ganhei-lhe o gosto, a essa sensação de não ter morada, de ter de construir a própria possibilidade do livro a partir do zero. Desde então, publiquei com editoras e pessoas que procurei e que me procuraram. Nunca houve um programa, até porque pende sempre a ameaça de não mais escrever, de não mais publicar. Não vejo lados negativos neste percurso. Não me interessa se a editora é grande ou pequena, se tem canais de distribuição bem oleados. Interessa-me a árvore genealógica do seu catálogo, a cumplicidade que se gera, o empenho a várias mãos para que o objecto cumpra tanto quanto possível o seu fim: ser testemunho de uma recusa do artifício.

Há umas semanas atrás escrevi aqui no jornal acerca do teu precioso livro Fera Oculta, Douda Correria, 2014. Além de muito bom, é um livro muito particular. Gostava que falasses sobre ele, como o escreveste e como depois o levaste a editar.

Esse livro foi escrito da forma mais despojada de intenção. Isto é, os poemas foram escritos como uma espécie de correspondência a um destinatário que se anunciava. São uma sondagem da minha situação no momento, da concomitância de uma angústia material com uma promessa que abrange tudo, que guinda tudo a uma exigência de humanidade — e que humanidade? com que terminações nervosas? Essa iminência da paternidade trouxe, não um elogio ou exaltação do próprio facto do nascimento, mas o pressentimento de uma relação que nos interpela na nossa mais funda solidão. De que materiais nos munimos ao longo dos anos para receber alguém que, não se cingindo à concha das nossas mãos, surgirá como invenção nossa? O livro, parece-me, faz ecoar esse tactear no próprio sangue, essa dificuldade em admitir que traremos o cúmulo do nosso amor para um lugar que, sabemo-lo já, tem um enorme talento para nos confundir e esmorecer. A publicação só foi equacionada posterior e inesperadamente. Aliou-se dentro de mim um convite-desafio que o Nuno Moura me fizera ao desaforo de quebrar o sigilo e dar circulação a essas palavras que, tendo destinatário, não eram mais do que a fractura do esterno para ver o que ainda por lá palpitava.

Para quem, como tu, já publica há quase duas décadas (sim, o tempo passa), encontras alguns pontos de ruptura na tua poesia? Ou vês antes os teus livros como uma continuidade?

Essa é uma questão que me transcende. Ainda agora, na preparação da colectânea, dei por mim a fazer algumas reformulações, sobretudo nos poemas mais antigos. Não queria de todo realizar uma purga, mas também não pude evitar a exigência de confrontar cada poema com o seu centro de gravidade. Isto para dizer que a escrita e a reescrita se focam numa experiência de desassossego, de inabilidade com as palavras, sem um horizonte programático ou uma aspiração de coerência. Quando digo que a questão me transcende não quero dizer que me passem ao lado temas recorrentes, obsessões, certas tendências discursivas. Quero dizer que nada disso é uma preocupação, que nada disso tem importância no momento em que se parte para o poema. É possível não querer repetir-se e ainda assim repetir-se clamorosamente. Se a pergunta for: tentas escrever diferente? Sim, tento. Sem garantias dessa diferença. Mas essa é a derrota que tem de se aceitar como um pequeno veneno. Está perdido, ponto. Agora começa.

E quais as diferenças que encontras entre o tempo em que começaste a publicar e hoje, em relação à poesia em Portugal?

Julgo que a principal diferença é a fragmentação. Quando comecei a publicar havia grandes ilhas editoriais que chegavam a ser uma espécie de calafetagem a ventos nascentes. De seguida, houve entre os mais recentes publicados uma arregimentação quase bipolar, com um aparato crítico posto ao serviço dessa urina territorial. Felizmente, tudo se estilhaçou: as editoras são hoje várias e os nomes circulam em caminhos de cabras sem uma tangente ao desfiladeiro. Se há território que não me apetece pisar é o da qualidade poética. Será maior hoje? Serão tempos de mediocridade? Assumo nesse âmbito uma posição cautelar: não estou em condições de o aferir, não é esse o propósito e será a lâmina da história a cortar as goelas que tiver de cortar. Com toda a injustiça, com toda a falência.

És também tradutor, não só de poesia, mas principalmente de poesia. É uma actividade que favorece a tua própria poesia?

Sou um tradutor de poemas por obstinação e sobrevivência. Fascina-me esse exercício de endireita, de tentar compor músculos e ossos para que, nessa sua nova somatização, o poema possa andar. Claro que há a possibilidade de contaminação com o que escrevo, mas não é nada que me intimide. A escrita sempre foi uma caixa de ressonâncias, sempre teve variadíssimos pretextos, mais ou menos conscientes. Prevalece a maravilha de ir encontrando os poemas alheios nas línguas que conheço e de poder contrabandeá-los.

20 Jan 2017

Raquel Serejo Martins: “Os meus poemas são frutos para comer crus”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s poeta (acerca do teu livro de poesia, primeiro e até agora único, Aves de Incêndio, escrevi neste jornal esta semana), e escritora. Aliás, tens mais obra de prosa editada do que de poesia, dois romances na Editorial Estampa, A Solidão dos Inconstantes (2009) e Pretérito Perfeito (2013). Assinas ainda uma crónica semanal na revista “Sábado”, onde na realidade escreves pequenos contos. Qual de todas estas actividades é para ti a principal, se é que há uma principal, e não me refiro ao teu trabalho diário, que nada tem a ver com as letras?
Nunca pensei nisso e não consigo dizer qual a principal, aviso já que sou óptima a não conseguir explicar as coisas, todavia consigo dizer que o romance me exige mais fôlego, sufoca-me, tenho medo que me falte o ar, o pé, de não me encontrar, é um burilar longo e penoso, processualmente duro. No romance sou escafandrista, enquanto na crónica ou no conto respiro. Muitas vezes chego ao papel já com uma história, com princípio, meio e fim, três linhas de história não mais, depois, aranha competente, vou tecendo a teia, acrescentando pontos ao conto e não são raros os momentos em que consigo divertir-me a escrever, a escolher as palavras, a limar as arestas, a polir e a puxar o lustro aos parágrafos. Já a poesia é um mistério, é um caso sério, é garimpo à procura de minério, de palavras pepitas, palavras que brilham e que juntas fazem luz, mesmo se dolorosas e escuras, a poesia acontece, é um relâmpago e, em consequência, os meus poemas são frutos para comer crus e muitas vezes com casca. E apesar de serem três registos diferentes, parece-me, dizem-me, que a poesia contamina tudo o que escrevo.

E como entendes a poesia. De outro modo, imagino que leias e gostes de poesia diferente daquela que escreves, que procuras nos poemas que lês e o que procuras nos que escreves?
Uma vez escrevi sob o petulante título Brevíssimo Manual

Desconfia do poema se:
Não te corta a respiração
Não te sufoca
Não te acelera o bater do coração
Não te faz sorrir.

E, de facto, é mais ou menos isto que eu procuro e quero da poesia, que me encante, que me deixe boquiaberta, que me roube à rotina dos dias. Sendo que, provavelmente, quase de certeza, escrevo por esse mesmo motivo, para roubar-me à rotina dos meus dias, porque são demasiados os dias em que nada disto tem sentido.

E como vês a poesia actualmente em Portugal? Achas que se atravessa um período pujante ou antes pelo contrário?
Eu tenho um amigo poeta, João Bosco da Silva, que diz que só os poetas compram livros de poesia e é quase verdade. Por outro lado, com base no volume de poesia que vejo circular pelas redes sociais, também me parece que nunca se fez e leu tanta poesia como hoje, assim como, em Lisboa e pelo que sei também no Porto, voltou a ler-se poesia em cafés e bares, e são várias as editoras especialmente vocacionadas para a poesia, o que indicia que a poesia está na moda. E, em estando na moda, há muita gente a escrever má poesia, há um excesso de péssima poesia que fere e prejudica o género, mas também há gente boa a encantar. É que dizer que Portugal é um país de poetas, não quer dizer que todos somos poetas, mas que temos excelentes poetas. Sendo que, obviamente, também me coloco a questão, será que posso chamar poesia ao que escrevo.

Sentes que pertences a alguma geração de poetas? Que há essa geração?
Sinto que andamos todos muito sozinhos, ou eu ando muito sozinha, é tão fácil fazer generalizações sem fundamento, pelo que não me reconheço nesse sentimento de pertença, mas dito isto, ultimamente tenho tido a boa ventura de conhecer uns quantos poetas e são pessoas que gosto de abraçar, pelo que melhor adiar a resposta a esta pergunta por uns tempos.

E para quando o teu segundo livro de poesia?
O meu próximo livro de poesia está na gaveta, tem dentro 100 poemas de amor, e um dia, não sei dizer quando, vai sair da gaveta. Neste momento não tenho pressa em editar, assim como me parece que o Aves de Incêndio ainda precisa de espaço para voar.

13 Jan 2017

José Anjos: “Escrever é o acto de resistir”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s poeta (acerca do teu livro de poesia, primeiro e até agora único, Manual De Instruções Para Desaparecer, acerca do qual escrevi aqui neste jornal), músico (baterista na banda Não Simão) e fazes muitas leituras de poesia, um pouco por toda a cidade de Lisboa, mas tens dois lugares mais recorrentes, que são dois bares, O Povo e o Irreal. Fazes ainda parte de um grupo de performance de poesia, onde se reúne a música e a palavra, No Precipício Era O Verbo (acerca do qual já se falou aqui, aquando da entrevista ao António de Castro Caeiro). Qual de todas estas actividades é para ti a principal, se é que há uma principal?

Não posso dizer que algumas delas seja, em absoluto, a principal, embora tenha noção da prioridade que cada uma ocupa na minha vida e a cada momento. Há uma hierarquia móvel na definição dessa prioridade, até porque me vou dedicando a várias áreas ao mesmo tempo, entre as quais o direito, e tenho cada vez mais projectos na área da música e da poesia (alguns dos quais me dão já imenso trabalho mesmo ainda sem terem saído da cabeça). Este ano foi, sem qualquer dúvida e para meu imenso gáudio, mais dedicado à poesia, à música e ao palco: escrevi um novo livro de poemas, que sairá pela chancela da abysmo no início deste ano, gravei um álbum, cujo EP sairá no início deste ano também, com a banda Não-Simão, liderada pelo Simão Palmeirim e onde sou baterista, gravei um trabalho do projecto No Precipício era o Verbo, com o Carlos Barretto, o André Gago, o António de Castro Caeiro e eu, projecto este que nos levou ao CCB em Dezembro passado pela mão do João Paulo Cotrim (abysmo) e do Fernando Luís Sampaio (CCB) e cujo cd está já à venda, com art-work do André da Loba. Será também lançado, previsivelmente em Abril deste ano, a segunda fase deste projecto – que consiste na edição de um livro/cd (também pela abysmo) com todos os poemas e textos incluídos no cd, interpretados por ilustrações do André da Loba. Aparte estes projectos, tento fazer e organizar o máximo número de leituras possível.

E como vês a relação entre a escrita de poesia e o ler poesia nos bares?

Ler em público é uma actividade à qual me dediquei muito nos últimos anos, especialmente desde a criação – pelo Alex Cortez, pelo Nuno Miguel Guedes e por mim – das noites dos Poetas do Povo, projecto do qual já não faço parte mas visito com pertinente frequência, seja como espectador ou convidado. Presentemente organizo, com o João Paulo Cotrim, as quartas de poesia do poço, no bar Irreal. Quanto à relação da escrita de poesia com a sua leitura nos bares, considero, em primeiro lugar, que existe quase acidentalmente e que, mercê do facto de juntar no mesmo espaço vários poetas e leitores, alargamos necessariamente o campo de autores e obras que compõem a nossa biblioteca íntima. Nem todos leitores escrevem poesia, mas não se pode escrever poesia sem ler poesia. E no meu caso quanto mais leio, mais escrevo – e mais deito fora. Talvez possa dizer que o ler e ouvir poesia nos bares me permitiu conhecer quase todos os autores – vivos e mortos –  que hoje são para mim referências literárias e afectivas inelutáveis (tu és um deles), e me ajudaram não só a compreender e a tornar mais claro o que eu próprio escrevo (ou melhor, aquilo que afinal tenho para – ou tento – dizer) mas também a rejeitar falsos textos e a saber dizer não a mim próprio. Em segundo lugar, o poema contém infinitas possibilidades em suspensão – como um campo quântico – que se concretizam e apresentam quando o mesmo é lido, seja em silêncio ou em voz alta. O mero acto de ler é já de si uma observação interpretativa e uma interferência necessária que cria uma realidade tão íntima que não sabemos se estava lá antes do colapso da leitura. Exemplo disso é o facto de o texto estar sujeito a diferentes leituras e interpretações consoante as pessoas, o que só demonstra, como dizia o Helder Macedo há umas semanas numa conferência a propósito de Shakespeare, que o texto é “um organismo vivo”. Ora, vejo o processo de escrita como uma proposta de investigação e leitura das coisas que se organizam – e a forma como elas se organizam – perante a nossa percepção. Escrever é para mim o resultado (conseguido ou não) de um acto passivo de contemplação. Ler o poema, por sua vez, implica um gesto idêntico ao de abrir uma porta num dado momento da realidade, por trás da qual o poema passa a ser um lugar onde cabe apenas uma única pessoa. Ler um poema em voz alta, maxime perante uma plateia que o desconheça, é multiplicar a invenção de lugares ou, em última instância, de lugar nenhum. A privacidade absoluta num lugar sem privacidade. Por outro lado, o gesto de ler em voz alta, venha ele a revelar-se mais ou menos gratificante na sua intenção, é um prazer inegável e quase inexplicável, embora não desprovido de riscos: é sempre possível fazer explodir um poema por excesso ou defeito na sua interpretação e intenção formais. Nem o poeta nem aquele que lê o poema sente mais ou sabe sentir melhor do que quem o ouve, por muito que assim queira parecer. Neste aspecto concordo em absoluto com o que o Leonard Cohen escreveu: “O poema não é senão informação. É a Constituição do país interior(…). Tu estás no meio das pessoas. Portanto, sê modesto. Respeita a privacidade do texto. Foi escrito em silêncio. A coragem da actuação é dizê-las. A disciplina da actuação é não as violar.”

E como entendes a poesia. De outro modo, imagino que leias e gostes de poesia diferente daquela que escreves, que procuras nos poemas que lês e o que procuras nos que escreves?

Creio que a dada altura a poesia tem de ser entendida necessariamente como um acto – ou gesto – de resistência, independentemente dos aspectos concretos e emocionalmente relevantes que daí advêm para cada pessoa e a cada momento, estes sempre mudando, como a memória. Escrever é, para mim, resistir contra e resistir a: (i) resistir à frustração, sem dela abdicar mas sem sucumbir ao seu jugo (o acto criativo forja-se na sustentabilidade da frustração enquanto forma de resistência, desde logo ao próprio eu e às suas artimanhas de imediatez hedonista), e (ii) resistir contra a angústia da nossa existência e da dos outros, que se torna quase insuportável, escrevendo-a, descrevendo a sua beleza terrível. Há uma responsabilidade do artista, do autor, perante o sofrimento e a violência. Há poemas que dizem tudo e que não teriam sido escritos sem essa a intenção de resistir contra a impassividade, a resignação e a cegueira selectiva (começando pela nossa) que, de certo modo, nos permitem sobreviver, mas sem nada fazer para mudar. A humanidade é uma escolha irreversível e lancinante, diria mesmo bruta. Escrever é o acto de resistir contra essa condição, dando-lhe o significado íntimo possível. Ler é aprender esse ofício da resistência. Necessariamente procuro (ou melhor, descubro) novos poetas e estilos de poesia que me afastam de uma noção unívoca de poesia, que, por mais confortável possa parecer, não acredito existir. Por outro lado, e desde já me contrario, encontro em poemas de estilo absolutamente diversos a mesma fonte, talvez até vis-a-vis os meus. Mas é preciso a autodestruição dos processos de escrita, de certa forma aprender a escrever com a “mão esquerda”, como o Miró (simbolicamente é claro); mudar de intenção e nome, queimar o nome, deixar de escrever para – talvez – saber escrever. Neste aspecto, o acto de ler e voz alta e em público têm-me permitido fazer essa mudança de lugar sem cair no meio.

Acreditas que estes eventos de leitura de poesia acabem por levar mais pessoas à poesia?

Não acredito, tenho a certeza! Vejo isso desde que os Poetas do Povo se abriram à cidade, como noutros casos (e.g. as quintas de poesia do Miguel Martins e as sessões do Nuno Moura). Obviamente que se me disseres que a educação, a aquisição e prática de bons hábitos de leitura levam mais pessoas à poesia do que todos estes eventos juntos, estarei de acordo. Mas creio que dificilmente se pode levar poesia a pessoas que fora deste contexto não estariam disponíveis. No fim, estes eventos acabam por confrontar as pessoas com autores, poemas e versos impossíveis de sacudir e levá-las a ler motu proprio. Cumprem talvez uma tradição no verdadeiro sentido da palavra traditio, que é o da partilha.

6 Jan 2017

Inês Fonseca Santos: “O meu tempo é da espera”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s poeta, escritora de livros para crianças, onde tens sido distinguida com prémios, e apresentas neste momento um programa na televisão “Os Livros”, acerca de livros. Qual a principal diferença entre escrever para crianças e escrever poesia?

Para além de “Os Livros”, também edito e apresento o “Todas as Palavras”, sendo que neste caso o programa é partilhado com o Luís Caetano e a Ana Daniela Soares. Não há grande diferença, na verdade. Se houver, é meramente formal. A poesia e a literatura infanto-juvenil são irmãs gémeas, gémeas siamesas, para ser rigorosa, porque nascem do mesmo “zigoto”, do mesmo ovo. Que normalmente é a imaginação e o espanto, sobretudo no que diz respeito ao modo de nos relacionarmos com o mundo e com a linguagem. Em suma, poesia e literatura para a infância e a juventude partilham da mesma natureza e em ambas é possível aproximarmo-nos das essências, questionando a regra, libertando-nos dela.

De qualquer modo, o teu livro de poesia A Habitação de Jonas, acerca do qual escrevi aqui no jornal e pelo qual tenho grande apreço, tem um tom de “realidade” que não é próprio para crianças.

Claro. Mas não é para crianças. Os outros, ditos “para crianças”, é que são para todos. Seja como for, o que disse na resposta anterior, tem a ver com a criação, com as “ferramentas” e os “truques” e os “recursos” que tem ao dispor quem escreve poesia e quem escreve literatura “para crianças”.

Recentemente lançaste um novo livro para crianças, que é também uma biografia, de José Saramago, com ilustrações de João Maio Pinto, na editora Pato-Lógico. Que te levou a este projecto, o autor, o género biografia ou a literatura para crianças?

O livro é co-editado pela Pato Lógico e pela INCM. A editora Pato Lógico, em parceria com a INCM, tem uma colecção de biografias para os mais novos que se chama “Grandes Vidas Portuguesas”. É nessa colecção que está integrado o livro “José Saramago — Homem-Rio”. Escrevi-o porque o André Letria, editor da Pato Lógico, me convidou a fazê-lo. Aceitei de imediato precisamente por me permitir somar todas essas parcelas que referes: a literatura para os mais novos, a biografia, a obra de um grande escritor e ainda a criação de um álbum ilustrado, que é sempre um desafio acrescido, uma vez que temos que escrever deixando espaço para que alguém acrescente significados com imagens. Esta combinação de parcelas permite que o livro não fique confinado a um só território, pois, em rigor, não estamos perante uma biografia convencional; tentei escapar a isso precisamente por ser um álbum ilustrado para a infância e a juventude. Tive que escolher o que contar e, mais importante, como contar.

Tens dois livros de poesia – escrevi neste jornal acerca do teu segundo e último livro – As Coisas (Abysmo, 2012) e A Habitação de Jonas (Abysmo, 2013). Para quando um novo livro de poesia?

Para breve, espero. Tenho um livro por acabar há uns anos. Chama-se “Suite Sem Vista”. E um outro que reúne poemas dispersos, publicados em antologias e revistas, e alguns inéditos. Este aguarda que lhe ponha ordem, se é que tal é possível; o outro aguarda algumas palavras. Costumo ser uma pessoa organizada, excepto quando escrevo. Escrever é, na essência, uma actividade livre. Por isso, só escrevo quando preciso mesmo de escrever, quando não há maneira de escapar àquela qualquer coisa em mim que se quer transformar em palavras, para lembrar Paul Claudel. O meu tempo é o da espera.

Tens alguma ideia de programa, que gostasses de fazer na TV, acerca de livros ou de livros e crianças?

Tantas, que terias que pedir mais páginas de jornal para as podermos partilhar todas. Resta saber se essas ideias cabem numa televisão…

Sei que estiveste uma vez em Macau, tinhas acabado de ser mãe há pouco tempo. Como sentiste essa tua experiência?

Fui a Macau para um encontro de poetas lusófonos e chineses, a convite do Centro Nacional de Cultura. Foram muito intensos esses dias em Macau por vários motivos. Partilho os bons: ter ficado muito amiga do Luís Quintais, um dos poetas com quem fiz essa viagem e que eu já lia há muitos anos, mas não conhecia pessoalmente; ter conhecido um lugar onde o meu Pai viveu uns tempos e sobre o qual escreveu e me contou histórias; ter partilhado poemas e experiências com pessoas que desconhecem em absoluto as línguas que eu sei falar; ter sentido o medo e a adrenalina de ser estrangeira; e ter sentido que, em qualquer sítio do mundo, estamos sempre com os nossos, estamos sempre a regressar a eles, a casa.

30 Dez 2016

Pedro Gonzaga: “Meu temor é perdermos a capacidade de dizer”

[dropcap]É[/dropcap]s poeta, cronista do Zero Hora, jornal de Porto Alegre, e professor de literatura. Como vês o estado da língua portuguesa no Brasil? E da literatura? E quais achas que são hoje os piores inimigos da língua e da literatura?
A literatura, me parece, sofre o mal da simplificação e do maniqueísmo que tomaram as ideias e a expressão das ideias (a linguagem) em nossos tempos. A internet de potente forma de divulgação, converteu-se em leitura rápida e leviana, práticas inimigas da poesia. O português aqui em terras brasileiras ganhara, na mãos dos grandes poetas de 1930, uma encantadora fluidez e um impactante poder de expressão para os dramas sociais e individuais da nação. Meu temor é perdermos a capacidade de dizer. Mas acho que esse é o temor de todos os poetas.

O Brasil é um continente e tu vives na capital de um dos estados fronteiriços, Rio Grande do Sul. Há em Porto Alegre conhecimento da poesia que se faz na totalidade do Brasil, ou fica-se pelo chamado eixo Rio – São Paulo? E neste eixo, a poesia do Rio Grande do Sul chega lá?
O Rio Grande do Sul é uma ilha, em certo sentido autônoma, mas, sem dúvida, bastante isolada. Nosso norte máximo é São Paulo, Rio de Janeiro se pensamos no Brasil tropical. A poesia encontra grandes dificuldades de divulgação num país continental como este, e com tantas diferenças regionais. Para muitos, entre os quais me incluo, o nosso eixo cultural está muito mais voltado para a Bacia do Plata, ou seja, Montevideu e Buenos Aires. Também capitais isoladas em países ainda bastante rurais.

As relações culturais entre Porto Alegre e Buenos Aires são mesmo reais, ou isso não passa de um mito, ou talvez de um desejo?
Há um desejo muito grande da cultura dita gaúcha de estabelecer um vínculo com o mundo platino, Uruguai e Argentina. Me parece que há uma ideia difusa, mas talvez verdadeira, de uma sensação das coisas ao sul do mundo.

E por falar ao sul do mundo e em Uruguai e relações fronteiriças, não podia deixar de te perguntar por esse grande romance, que é Don Frutos, de Aldyr Garcia Schlee, passado na Jaguarão de finais do século XIX, e os últimos seis meses de vida de Frutuoso Rivera, o primeiro presidente do Uruguai. Que dizes desse romance? Sei que o Brasil ainda não o descobriu, mas ele já se torna incontornável no Rio Grande do Sul?
Aqui no Brasil, mas creio que no mundo todo, há certas injustiças literárias inexplicáveis. É o caso desse livro magistral chamado Don Frutos, que tem aquele aspecto de narrativa infinita que só os grandes romances podem ter. Seu conteúdo e sua linguagem local me parecem superáveis como acontece com Grande Sertão: Veredas, por exemplo, de Guimarães Rosa. Para a cultura sulista, como tu bem disseste, é incontornável. O que só torna mais grave o silêncio que aqui se faz. Era livro para estar em todas as escolas do Rio Grande do Sul.

Neste momento, no Rio Grande do Sul, parece-te mais pujante a poesia ou a prosa? E no resto do Brasil, és capaz de responder, apesar do continente gigantesco, que é o teu país?
É um momento bastante complicado para a produção artística no Brasil. Com as grandes conturbações sociais, os escritores parecem estar perplexos, incapazes de sínteses e mesmo de depoimentos pessoais consistentes que ultrapassem a mera ideologia partidária. O romance, com seu poder totalizante, e também mercadológico, ainda não viu surgir um panorama da Era FHC, ou da Era Lula. A poesia, num país continental como este, não consegue espaço para divulgação e acaba fenecendo. No entanto, é geralmente nessas horas que se erguem novas vozes criativas. Quem sabe o conto pudesse voltar a explodir, como nos anos 60. Mas nesta arte, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan ainda são para mim as vozes mais interessantes dos últimos cinquenta anos. Quanto ao romance, há um belo romance de Paulo Scott, chamado O Habitante Irreal, que trata da questão indígena no Brasil, com uma visão social contundente e uma forma bem arrojada.

Quanto à poesia no Brasil, ela carece de um ressurgimento. Desde o esgotamento da geração dos poetas marginais, da morte de Ana Cristina César, depois do Leminski, cuja obra me parece supervalorizada, o que há é uma espécie de poesia preguiçosa que lhes é herdeira, feita de trocadilhos e linguagem midiática, ou então um outro caminho também frouxo, de temática social, nada inovativa, seja em forma ou conteúdo. Há um tipo também de poesia desencantada, de cotidiano, que me desagrada bastante, marcada por um prosaísmo que não tem luz ou revelação. Claro que há belas exceções, os consagrados Antônio Cícero, Eucanaã Ferraz e Paulo Henriques Britto, e pelo menos dois nomes da nova geração: a anteriormente mencionada Mariana Ianelli e também um conterrâneo aqui do sul, um poeta chamado Diego Grando.

Esta semana escrevi aqui para o jornal sobre um livro que me impressionou muito, em dez anos de Brasil, Página Órfã (2007), de Regis Bonvicino.
Uma bela lembrança. Bonvicino tem a força, a contundência que me parece tantas vezes faltar em nossos tempos. A verdade é que há muita gente boa espalhada nesse país com tamanho de continente. Impossível não cometer injustiças e esquecimentos.

Tens dois livros de poesia publicados, Última Temporada (2011) – que foi abordado aqui no Hoje Macau – e Falso Começo (2013). Para quando o teu terceiro livro?
Deve sair aqui no Brasil no início de Maio do ano que vem e haverá de se chamar Em Outros Tantos Quartos da Terra. Terá apresentação da Mariana Ianelli.

16 Dez 2016

Gonçalo Waddington: “O cinema e o teatro estão com uma pujança incrível”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s actor, encenador, realizador, trabalhas no teatro, no cinema e na TV, e és também escritor. Editaste recentemente uma peça de teatro, O Nosso Desporto Preferido Presente, que faz parte de uma tetralogia, e no ano passado editaste Albertine (livro pelo qual viajamos na terça-feira passada, na Máquina Lírica). Quando estudavas teatro já escrevias, pretendias fazê-lo, ou foi algo que aconteceu mais recentemente?
Foi algo que aconteceu mais recentemente. Na verdade, eu e a actriz Carla Maciel, com quem eu sou casado, pedimos a um escritor para adaptar um volume – ou uma “parte”, quanto muito -, da obra Em Busca do Tempo Perdido do Marcel Proust para teatro. O escritor disse-me que não lhe interessava a proposta e que, o melhor, seria eu, Gonçalo, escrever a peça. Foi assim que me apareceu a obra Albertine, O Continente Celeste.

Para além do teatro, quais as tuas leituras mais frequentes, para além obviamente do Proust?
Sebald, Holderlin, Hofmannsthal, Lucrécio, Pynchon, Rui Nunes, Trakl, Ingeborg Bachmann, Michaux, João Miguel Fernandes Jorge, António José Forte, Herberto… entre muitos outros e outras.

Como vês este nosso tempo em relação ao cinema e ao teatro em Portugal?
O cinema e o teatro estão com uma pujança incrível. Há filmes (curtas e longas) a estrear em todos os grandes festivais mundiais, veja-se o exemplo da curta-metragem PEDRO, da dupla André Santos e Marco Leão, que irá estrear no mítico festival Sundance Film Festival. É́ a primeira curta- metragem portuguesa neste festival. No teatro temos o caso do Tiago Rodrigues, a Praga, a Mala Voadora, o Miguelinho Loureiro, a Companhia Maior, os Possessos, os SillySeason, o Tonan Quito… tantos e tantas que têm projectos incríveis.

Quais os próximos projectos em que estás a trabalhar, de momento?
Agora estou a escrever uma nova versão do guião da minha primeira longa-metragem PATRICK, que será rodada no primeiro semestre de 2018. Depois irei para a segunda parte da tetralogia d’O Nosso Desporto Preferido – Futuro Distante.

Explica-nos melhor esse teu projecto da tetralogia, por favor.
O Nosso Desporto Preferido é uma tetralogia em que proponho uma reflexão sobre a nossa evolução como espécie universal. A primeira parte da obra, com o sub-título Presente, é composta por cinco personagens, encabeçada por um cientista misantropo que sonha com a criação de uma espécie humana livre das necessidades básicas como a alimentação, digestão e, talvez a característica mais importante para a peça, a reprodução — tornando-se assim uma espécie exclusivamente dedicada ao hedonismo e à abstracção, seguindo, de acordo com a sua visão, o caminho da evolução natural da nossa civilização tipo 0 para tipo 1, em que seremos finalmente uma sociedade global, multicultural, multiétnica e científica. A segunda parte: Futuro Longínquo, é uma pequena amostra do que serão, daqui a cem mil anos, os Homo Sapiens Sapiens Sapiens Sapiens Sapiens Sapiens – ou, recorrendo a um neologismo Houllebecquiano, os Neo-Humanos – de uma Civilização Tipo 3, de acordo com a escala Kardashev, o astrofísico russo que se propôs medir a evolução tecnológica de uma civilização, particularmente no que concerne à produção e consumo de energia. Este grupo será composto por quatro a cinco actores de diferentes nacionalidades. Estes supra-seres dedicam-se apenas a esperar pela morte: consumidos pelo tédio, uma vez que os seus corpos têm uma durabilidade cem vezes maior da que a dos seus antepassados – nós –, tentando compreender a razão de tal desvio evolutivo que levou à espécie humana a que agora pertencem. O seu único desejo é comunicar o seu desagrado pela sua presente condição, tentando, em vão, emitir uma qualquer mensagem que atravesse o Espaço-Tempo e alerte o grupo de cientistas da primeira parte – Agora –, seus criadores, para a tragédia que eles, sem o saberem, irão – no passado – 3 desencadear com as suas experiências. Enquanto não desaparecem, dedicam-se à compreensão da Filosofia, da Arte, da Religião e das Ciências humanas, sociais e políticas, uma vez que eles, seres racionais e científicos, são incapazes de tais abstracções. Conversam e jogam Badminton.

9 Dez 2016

António de Castro Caeiro: “A poesia arcaica, a epopeia, a lírica e a tragédia sempre me interessaram”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s professor de filosofia na Universidade Nova de Lisboa, tradutor de Aristóteles e de Píndaro, e recentemente editaste um livro entre a filosofia e a poesia, chamado Um Dia Não São Dias, que tive a honra de apresentar. Como entendes tu esse livro?
O livro é uma tentativa de escrever fenomenologia do tempo fora de um estilo e âmbito estritamente académicos. Usei como embrião um texto escrito na USF (University of South Florida) de 2004 sobre os dias da semana. Cada dia tem o seu tom, a sua vibração específicas. A temporalização que organiza e estrutura o dia tem também diferenças. Assim também a semana, as semanas de um mês, os meses de um ano, os anos. A possibilidade teórica está dada desde a antiguidade. Em Homero e Píndaro, mas também em Tácito, os dias ou o ano são o “sujeito” que serve de plano de fundo estrutural ao ser de tudo o que acontece, ao desenrolar do tempo, ao começar e ao expirar dos prazos. Quis redigir todos os dias um pequeno texto e foi o que fiz, quando tive um Blog no Expresso online. Escrevi todos os dias durante nove meses aproximadamente. Foi esse conjunto de apontamentos que serviu de base para aquilo que depois tu (PJM) editaste.

Quais os próximos projectos de tradução, tanto os que já tenhas terminado quanto os que ainda irás começar?
Estão para sair as constituições perdidas de Aristóteles num conjunto de fragmentos dos livros perdidos de Aristóteles: os Historika. Estão a ser preparados para sair também na Abysmo dois outros volumes de traduções de fragmentos: um volume sobre o que contemporaneamente se pode chamar Estética e um outro dedicado a textos de teor científico. Sairá também pela Abysmo uma tradução das odes Olímpicas de Píndaro. Ainda por fazer está uma tradução dos fragmentos éticos dos velhos estóicos em colaboração com um colega meu, desta feita para o IFIL Nova, unidade de investigação a que pertenço.

A tua relação com a poesia vem de longe, e foi concretizada em livro numa primeira vez na tradução das Píticas, de Píndaro, em 2005, pela Prime Books e depois, mais tarde, reeditado pela Quetzal, em 2010. Recentemente aceitaste participar num projecto de leitura de poesia ao vivo com música (o contrabaixo de Carlos Barretto), chamado No Precipício Era O Verbo, juntamente com o poeta José Anjos e o actor André Gago. Já fizeram vários espectáculos pelo país e gravaram um disco. O que te levou a este projecto?

Sim, a edição das Odes de Píndaro pela Quetzal com ensaios em 2010 é já uma reformulação da tradução das Odes Píticas, editadas em 2005 pela Prime Books. A poesia arcaica, a epopeia, a lírica e a tragédia sempre me interessaram, porque aprendi que para se ler Platão não basta saber o grego em que ele escreveu, mas os princípios genéticos do Ático. A sabedoria popular ou o folclore são formas de manifestação das inquietações do espírito dos tempos e não podem ser ignoradas. No Precipício Era o Verbo não existiria sem vários factores humanos na base do seu nascimento. O João Paulo Cotrim da Abysmo apresentou-me ao José Anjos, este ao Carlos Barretto, e eles ao André Gago. Numa sessão de apresentação de Um Dia Não São Dias, na Barraca, organizada pelo poeta Miguel Martins, o Carlos Barretto propôs que tentássemos fazer leituras com Contrabaixo. O João Paulo Cotrim associou-se ao projecto e, assim, aos poucos, demos corpo a um reportório com poesia ou textos poéticos do José dos Anjos, André Gago e meus, com versões de poesia estrangeira (dórico e alemão) lida no original. A experiência do palco ressuscita a minha juventude quando actuei como baixista nos Mata-Ratos. Tem sido gratificante a partilha e fazer parte de um projecto em que acredito pela sua consistência e originalidade. Aproveito para dizer que o nosso percurso será coroado pela primeira vez com a actuação no CCB, no dia 20 de Dezembro.

Pensas em escrever acerca de poesia, de modo a produzir um livro?
Por defeito, tudo o que leio tem vista poder falar sobre o assunto nas aulas, assim também tudo o que escrevo visa a possibilidade de uma publicação, no sentido lato do termo. Tenho feito várias apresentações de livros de poesia de autores contemporâneos portugueses. Sempre produzi texto para o efeito, porque nunca consigo falar “de cor” nestas circunstâncias. Gostaria, contudo, de fazer despistagens de maior fôlego sobre o modo como a poesia exprime e se posiciona relativamente a problemas mais intimamente ligados à metafísica: a vivência da temporalidade humana, crónica e finita, definição de orientações e direcções em encruzilhadas, indecisões, destino, contra tempos, atrasos de vida, perda de sentido, crises afectivas, impactos emocionais, disposições, etc., etc.. A economia da formulação poética sempre me impressionou muito mais do que o encadeamento argumentativo. Talvez sejam duas formas indispensáveis para “dizer o humano”, complementares, indissociáveis.

E para quando um novo livro teu de filosofia?
Tenho estado a estudar a melancolia como manifestação do espírito desde os Hipocráticos, passando por Platão e, claro, Aristóteles que tem, este último, uma referência explícita ao fenómeno, nos Problemata. Depois, tenho estudado o fenómeno do ponto de vista da psicopatologia e da fenomenologia. O conjunto de estudos que sairá de um semestre que farei sobre melancolia, depressão, mania e euforia, constituirá um conjunto de anotações e de textos. O que sair desse curso permitirá a redacção de um texto. Não sei ainda qual o seu formato, mas pretendia que pudesse ser lido sem os tiques do ensaio académico e que se aproximasse mais do modelo encontrado para Um Dia Não São Dias.

2 Dez 2016

Nuno Moura, poeta e editor: “Estamos na Dinastia Flang”

[dropcap]A[/dropcap]lém do teu trabalho como poeta, desenvolveste recentemente um trabalho editorial, com a tua douda correria, onde tens publicado poetas tão diferentes como sejam o caso de Carla Diacov (brasileira) ou António Poppe, e de Raquel Nobre Guerra e Vasco Gato. Talvez os primeiros se enquadrem mais naquilo que tem sido a tua própria poesia, o que mostra uma elasticidade de gosto tão magnífica quanto rara, no nosso pequeno rectângulo encostado ao Atlântico. Por tudo isso, os meus parabéns! Quais os teus critérios para a edição de um livro?
Obrigado. Primeiro ter dinheiro para pagar à gráfica e à nossa compositora Joana Pires. Depois o critério vem com o próprio texto.

Aplicas os mesmos critérios aos teus livros, imagino. Estás a preparar um livro novo?
Vou corromper a Adília “é preciso desentropiar o critério todos os dias”, e ando com o Cavalo Alucinado, mas nem sempre estou para longas caminhadas na mata.

Hoje aceitarias editar em outra editora que não fosse tua, ou isso não faz sentido para ti?
Mais do que aceitar, eu desejo. Gostava muito de ser editado na Medula do Manuel A. Domingos.

Como chegaste a esta nova poesia brasileira? A Carla Diacov e o Diego Moraes li-os antes em revistas literárias de Curitiba, mas nunca pensei que pudessem ser editados tão depressa aqui.
Nos anos 80, 90 do século passado eu esperava dois ou três meses por um livro. Ia sempre nervoso aos Pedidos Internacionais da Livraria Portugal. Com aqueles funcionários adeptos da descontra, entre máquinas de escrever e Madeira, em número suficiente para se criar logo ali um sindicato. Agora alguém te diz ‘tens que ver isto, este autor’ e tu olhas e lês. E falas.

Começaste também muito recentemente uma colaboração entre a Douda Correria e a Demónio Negro, de São Paulo, com a edição de Senhor Roubado, de Raquel Nobre Guerra, no Brasil. Editar-se-ão de seguida Catar Catataus, de Paola D’Agostino, Fruta Feia, de Miguel Cardoso e o teu Canto Nono. Queres explicar melhor como funciona esta colaboração?
Troca de autores e textos. Ele tomou a dianteira e enviou-me alguns exemplares. São belos. Para quê estar a fazer aqui, à maneira da Douda, se podemos ter os, digamos, originais-na-prensa? O Vanderley faz 50 exemplares a mais e envia-me.

Recentemente afirmaste que consideras o António Cabrita o melhor poeta português vivo, e que isso causa muito espanto entre as pessoas. A mim, não me causa espanto, mas porque achas que as pessoas se espantam com isso?
Porque se calhar pensam que é algum ministro ou dirigente desportivo, sem desprimor algum. O presente nunca chega a tempo da escola.

Na China antiga, na época da dinastia Tang, o mundo mais poético que existiu na face da Terra, para se ser mandarim, isto é, empregado público, o teste final (entre outros) era escrever o seu próprio poema, embora os poetas pudessem não ser mandarins, como nos excelsos casos de Li Bai e Du Fu. Quão longe estamos hoje deste mundo? E achas que só pode melhorar, ou ainda vai piorar?
Estamos na Dinastia Flang, ainda usamos parafusos. Eu não seria um mandarim e, como diz a minha mãe ‘filho, eu não trocava isto por nada’. Normalmente diz isto de uma série qualquer de televisão.

18 Nov 2016

Valério Romão: “Não me interessam os temas da moda”

[dropcap]E[/dropcap]nquanto outros seguem guiões pré-definidos, como por exemplo ter de escrever uma cena de sexo (ou mais de uma) e uma piada (ou mais do que uma), ou seguir um imaginário completamente retórico, quase até ao limite da publicidade, os teus livros começam a partir daí, como a Marina Tsvetaeva para a poesia russa, nas palavras do poeta Joseph Brodsky em “Less Than One”: “Marina começa os seus poemas onde os outros acabam”. Tens a consciência de que escreves ao arrepio do que se escreve hoje em Portugal?
Não sei se é exactamente ao arrepio daquilo que se escreve em Portugal, embora eu tenha uma consciência, ainda que pouco nítida, de que faço um caminho que tem um formato e trajecto com algumas particularidades que o distingue dos restantes. Talvez isso corresponda, grosso modo, à noção de estilo – seja lá o que isso for neste tempo em que parece que a única ocupação moral e eticamente permitida é o estilhaçar de categorias (e não para criar algo de novo, mas para terraplanar diferenças, um ideário paradoxal no qual se propõe que a criação não tem de criar nada e que o seu propósito é normalizar tudo, seja pela ironia, seja pelo pastiche, até nada se distinguir de nada). Não me interessa esse manifesto de terra queimada, não me interessam os temas da moda, não me interessa ser “actual”. Interessa-me sobretudo trabalhar com coisas que me são próximas e, simultaneamente, desconfortáveis. O que me interessa – pedindo desculpa pelo pretensiosismo inerente ao que vou dizer em seguida – é fazer qualquer coisa que, tendo um pé no agora, possa transcendê-lo: qualquer coisa de humano.

A única forma literária que nunca escrevi foi o conto. Nem sei se sei fazer ou não. Tu tens uma predilecção pelos contos, ou entre o conto e o romance venha o diabo e escolha? Qual a diferença dessas duas formas de escrita em ti?
Grande parte da minha formação enquanto leitor tem que ver com a leitura de contos, sobretudo os da escola do absurdo: Gogol, Kafka, Buzzati, Cortázar. Um conto é, passe a obviedade, muito diferente de um romance; um romance é uma corrida de fundo, uma ultra-maratona na qual parágrafos ou páginas inteiros podem estar ligeiramente ao lado ou mesmo desalinhados. Há um grau de tolerância relativamente ao romance que diminui exponencialmente quando passamos para formas mais breves de literatura: é muito menor no conto (talvez um, dois parágrafos) e ainda menor na poesia (às vezes, nem a um verso se permite o coxear). O conto para mim é a forma mais adequada para preparar desfechos inusitados e para testar ambientes e contextos incomuns, duas coisas que eu próprio procuro enquanto leitor. Tem ainda o bónus de ser possível começar e acabar um conto no mesmo dia, coisa que naturalmente não acontece com um romance.

E como entendes a arte da crítica literária, que rareia nesta urbe?
A função essencial da crítica literária é a recondução de um autor e/ou de uma obra ao lugar que pertencem na história da literatura, lato sensu. A crítica dispõe (ou devia dispor) das ferramentas necessárias para aquilatar o grau de novidade, sofisticação e relevância de uma obra. Só ela, dado a sua memória histórica, assente no trabalho de leitura e de crítica, pode encontrar o lugar do autor. O autor não faz isso sozinho. Não faz isso através do público. É o crítico o geógrafo capaz de encontrar o lugar do autor e a sua afiliação. O que normalmente lemos são recensões. E um e outro trabalho podem coexistir. Ambos são necessários. Descuidar a crítica, porém, é prestar, em primeiro lugar, um mau trabalho ao autor e ao público.

Viveste muitos anos em França, qual a razão pela qual não te tornaste um escritor de língua francesa?
Não me senti nunca em casa, em França. E não me sentido em casa, o francês, embora fosse a minha primeira língua, nunca se tornou um médium literário. Há que igualmente notar que saí de França com 11 anos, uma idade insuficiente para que a língua francesa tivesse obtido competência literária. Tornei-me leitor de francês mas não falante, e essa falta de prática aliada ao facto de nunca ter sentido França como “a minha casa”, fez com que acabasse por ser perfeitamente natural escrever em português.

Tens uma licenciatura em filosofia. Achas que o curso que fizeste foi determinativo para seres o escritor que és? Vias-te a fazer outro curso, que não te conduzisse tanto a ti como o de filosofia? Eu não me imagino sem filosofia.
Absolutamente. E atrevo-me a dizer que sou ainda mais específico: é o curso de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova. Não teria as mesmas competências de análise fenomenológica se não tivesse tido aulas com o Nuno Ferro, com o Mário Jorge de Carvalho, com o António de Castro Caeiro. Do mesmo modo, a minha perspectiva relativamente à estética não seria a mesma se não tivesse sido aluno da Filomena Molder. Não raras vezes socorro-me do que retive da minha passagem pelo curso de filosofia e do que vou lendo, entretanto, para escorar um capítulo, uma personagem, um livro inteiro. A filosofia está sempre presente, é mais que um conteúdo, é uma forma de pensar. Está presente de forma inconspícua, são as costuras das coisas, o espaço entre os retalhos, a geometria oculta que transforma um arrazoado de acontecimentos numa estrutura narrativa. Pode fazer-se tudo isto sem filosofia? Claro. Mas para mim seria mais difícil.

11 Nov 2016

António Cabrita: “O que me é natural é o poeta”

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stás neste momento como finalista do prémio do PEN Club, na categoria de narrativa (o vencedor será conhecido no dia 10 de Novembro), com o livro de contos Éter, publicado em 2014 pela Abysmo, e que tive a oportunidade de apresentar no Porto, de modo informal (mais tarde o livro foi apresentado formalmente, em Lisboa, pelo escritor e professor Luís Carmelo). É a primeira vez que és finalista de um prémio literário? Já venceste algum? E qual é a tua posição em relação aos prémios literários?

Tenho uma relação descomplexada com os prémios. Já fui finalista do Prémio Telecom do Brasil, em 2012, com o romance A Maldição de Ondina; o qual voltou a ser finalista, desta vez fazendo parte da short list, do prémio Póvoa do Varzim, de 2013. Portanto, em pouco tempo é a segunda short list que enfrento. Também já concorri a prémios, em períodos de “falência técnica”. Como fazia o Roberto Bolaño. E ganhei três. O Prémio Cesário Verde foi providencial: paguei quatro mil euros de dívidas e com os mil que restaram fui a Paris cinco dias, onde gastei 400 euros em livros – nessa altura, 1997, um bom taco. Com o prémio Natércia Freire paguei a viagem à família de Maputo para Lisboa. Como vês, às vezes são úteis. Ganhei também um concurso para guiões do ICA, mas o produtor português abotoou-se com o dinheiro. Mas, na literatura, nunca escrevi para os prémios. Se depois se conjuga, isso é outra coisa…

Os prémios são quase sempre úteis. Em 2004, escolheste ir viver para Moçambique. Foi bom para a tua escrita? Por exemplo, São Paulo e Fazenda Rio Grande, ambas cidades no Brasil, foram lugares bons para a minha escrita.

Foi muito bom. Fiquei rapidamente na condição de um duplo “exílio”, pois, primeiro descobri que as paisagens mudavam mas os meus fantasmas, limites e superstições também se vivificavam, depois vim tarde para a “fusão” (com 45 anos), razão porque aqui coabito mas não me integro na cultura local – sou estimado, respeitado e tolerado como diferente, o que é uma coisa distinta –; por outro lado, tenho uma família grande e não tenho modo de a deslocar para regressar. Esta qualidade de estar “entre” disparou em mim uma densidade que não tinha (uma espécie de vigília permanente, própria a quem não está no seu meio, e que se converte em textura) e por outro, como exercício complementar, a leveza. Rio-me mais de mim do que antes, mudo mais rapidamente de perspectivas. Por fim disciplinei-me e, tendo pouca vida social, ocupo de facto seis ou sete horas por dia a ler e escrever; em Lisboa era mais dispersivo. Daí que costume dizer que o ideal para mim era passar seis meses em Portugal e seis meses aqui.

Ao longe, de outro continente e de outro hemisfério, como vês as letras aqui em Portugal? Qual a imagem que tens acerca do que está a acontecer, em comparação com o início deste século?

Parece-me mais vivo e diversificado do que no princípio do século. Havia uns senhores polícias-sinaleiros (tipo Joaquim Manuel Magalhães e os seus satélites) que ditavam leis e afunilavam o trânsito, ao quererem impor o que “deve ser”. Hoje o panorama é mais plural. Infinitamente mais perigoso porque a ausência de modelos também leva à trapaça, mas com manifestações estimulantes. Por exemplo, é interessante como se multiplicaram até quase à saturação as sessões de leituras de poemas em Lisboa e no Porto. Coisa que de todo não havia. Há um lado de “presença”, de urbanidade e socialização que faltava à poesia e lhe foi devolvida. Embora isso tenha o risco simétrico de se esquecer que há muita e grande poesia que não é para ser dita… Mas na generalidade estou animado. E gosto muito do que as mulheres estão a fazer na prosa e na poesia, é exaltante.

A tua actividade divide-se entre o ensino de escrita de guiões para cinema, jornalista, poeta, ensaísta e escritor. Entre o ensaísta, o escritor e o poeta, em qual papel te sentes mais confortável e de qual gostas mais? Por exemplo, eu sinto-me mais confortável como poeta, mas gosto mais de escrever sobre os outros.

O que me é natural é o poeta, mas desconfio da facilidade e estou sempre com o verso no estaleiro. A narrativa faz-me sair do conforto, daí que seja o género que neste momento prefiro, até porque também gosto do jogo das estruturas. Do jornalismo, talvez por ter ocupado vinte anos da minha vida, neste momento interessa-me sobretudo a crónica, embora gostasse de fazer um dia uma reportagem em alexandrinos. O ensaio motiva-me porque me leva à leitura e a «pensar contra mim próprio», e estou tão viciado nisso como a Alice o estava com os espelhos. A crítica é do que tiro menos prazer e angustia-me. Mas iniludivelmente, o inferno para mim é o incêndio da Biblioteca de Alexandria. E por isso me interrogo por vezes sobre o que vim fazer a África, com parcas bibliotecas e caricaturais livrarias, e onde as paisagens com palmeiras, como vogais desventradas, me entendiam de morte. Na verdade, prefiro o vento às palmeiras, e o vento é universal…

3 Nov 2016