Corredor solitário

encontra quatro amigas para almoçar. As palavras têm virtualidades próprias e alheias, que não se encontram em mais nenhum discurso expressivo. As imagens têm outras, e os filmes. Os sons, nestes, por exemplo e a mistura de sons concretos com fraseamento musical, numa acentuação ou num nivelamento de sensações. De quem?

Take one: O impacto seco dos pés no pavimento, como em câmara lenta, porque a mente corre mais rápida, embora impedida pelo ritmo cadenciado que perturba o turbilhão encadeado de pensamentos corrosivos, de elaborar mais do que fotogramas soltos. Perturbadores mesmo assim. O batimento cardíaco com arritmias que não se arrumam, apesar da regularidade persistente da passada. O esgotamento e algo que continua mesmo assim por mais um pouco. A invasão de ácido láctico nos músculos a intoxicar a intenção. Uma respiração ritmada e ofegante a abafar a música. Mesmo a dos auriculares. Interrompida pela dor no joelho. A cabeça baixa em derrota momentânea, as mãos nos joelhos o suor a escorrer, o rio impávido ao lado. Sem se poder definir por agora se corre, também, ou se se apresenta numa unidade constante. A respiração. Como o fim. De um reservatório de energia para seguir a imperturbável transitoriedade do rio. Paralelamente e sem olhar. Linhas que não se cruzam senão no infinito. Ou seja, para muito além da nossa capacidade.

O que é apaziguador num rio é que há sempre um indefinido lado de lá. Que não tem que ser o visível ou o que é, mas simplesmente uma dimensão outra, para o devaneio – como definido por Bachelard, do repouso, da vontade – que nos dá espaço aberto ao anseio de respiração para além do espaço que já o é, de rio.

O relógio conta passos e quilómetros, enorme, no pulso cada vez mais apertado, o corpo seco e consumido, mas fruto da vontade, a consumir o que já não é excesso.

Nesta narrativa três pessoas encontram-se no corpo. No corpo das palavras da narrativa. A que anda a que corre a que baixa a cabeça. A oxigenação eufórica. Os limites. O consumo e as reservas, numa economia difícil de anotar no livro de contas. O que fica. Tudo junto ao rio de sempre e de margens que são continuidades de percurso. E uma quarta pessoa, a que se senta à mesa, para almoçar. Final cut. Quatro, como quatro amigas que se juntam num almoço a sós. Mas à quarta pessoa, juntaram-se à mesa outras três, vindas de corridas diferentes, nas margens dos mesmos rios.

8 Nov 2022

Terceira pessoa do plural

Fico indecisa entre primeira e terceira pessoa do plural, quando penso nisto.

Um dia jantava com alguém, uma amizade próxima e recente, à época, se bem que transatlântica, numa sala grande de restaurante, ruidosa e cheia e eu, todo o tempo, com a subtil sensação de que uma curiosa observação, alternada mas um pouco mútua, sempre me dirigia o olhar para aquela mesa próxima e para os olhos escuríssimos daquela mulher. Sei lá porquê. Eu tenho esta curiosidade de observar rostos e imaginar vidas por detrás dos rostos. Inibe-me pensar que posso incomodar alguém com o meu olhar inconsequente e inócuo e tenho tendência a pensar que se me olham é em virtude do meu olhar. Veio no final falar comigo. Assustei-me – fui invasiva, pensei. Uma colega da escola primária. Nunca a reconheceria mas reconheci-a de imediato no sucinto retorno àquele contexto. No nome. E depois no rosto, nos olhos. Não consigo acreditar como me reconheceu – ainda não consigo. Mas eu sou assim. A achar que muito mais eu poderia reconhecê-la do que ela a mim e foi o contrário. Mas não importa. Poderia dizer que aquela que ela identificou já não existe. Mas a situação teima e tende a dizer o contrário.

Ou não. Se pensar que as pessoas não existem por si, mas em relação e essa foi interrompida há meio século. Que resta desta e daquela pessoa? Nada para além do corpo. Esse ainda recuperável para um contexto de memória. Cristina Isabel. Quem será? Depois daquela doce e equilibrada figura de menina, como todas, a parecer mais crescida do que eu, mais sólida do que eu, mais segura e mais feliz do que eu. Se a conhecesse hoje, veria uma mulher pequena, magra e frágil, com um certo fogo interior e decisão. Como se o corpo não tivesse crescido a acompanhar essa solidez, ou crescido menos e por isso intensificada essa chama. Que não se sabe o que faz arder. Mas sei lá.

Dificilmente nos encontraremos de novo em tempo de vida. Ou seríamos já ambas, de novo, terceiras pessoas, vistas à distância. Senão, seria estranho mas curioso, conhecer esta mulher completamente estranha. Porque é isso que cinquenta anos de intervalo, deixaram entre nós as duas. Sem uma segunda oportunidade, e lembrei-me agora de que preciso de a rever, nas fotografias da escola, agora com uma necessidade de nitidez relativa àquela altura, que a memória já não cumpre depois de sobre ela ser substituído um rosto por outro. Porque a memória visual não é pura e recobre-se de outras impressões emocionais, factos que disfarçam o desaparecimento do rosto. Mas já passaram anos e esqueci-me de a rever. Coisa que me surge agora com uma enorme urgência. Preciso de comparar os dois rostos. Mesmo se também este, recente, já meio esfumado à custa das palavras que me vêm ao pensamento sobre ele.

Brincava com ela depois da escola, a um jogo qualquer com botões nos mosaicos frios mas próximos, da cozinha. Dela. Ou talvez de uma outra. Tão diferente, mas à distância dos anos, tão semelhante, parada no tempo. Isabel Margarida, esfuziante ansiosa e brejeira – sempre aquele sorriso nervoso, Fátima, Victória, Leonor – mas essa não se dava muito, a melhor aluna, excepto com a Palmira, também boa aluna, companheira de carteira. Uma menina pequena e empertigada ou somente segura. Ali nas imediações, nas carteiras dos lugares inalteráveis e lá mais para trás um mundo distante. De meninas mais altas e com um olhar mais triste.

Uma delas, Fernanda, talvez, que era minha amiga e eu dela, vivia lá para cima, numa dessas orlas que produzem casa precárias, barracas. E levou-me lá um dia, por qualquer razão que não me lembro, daquelas nossas de crianças, mas por um motivo que não tinha nada a ver senão com esse de, ainda assim, ser a casa dela. Mas outras meninas, geográficas, não se davam. Não. Hoje, as pessoas cada vez mais, não se dão.

Que será feito, de umas e de outras, territórios tão distantes? O que desmoronou, o que se inverteu.

27 Abr 2022

VIII – A Jiuweihu

Na miríade de outeiros, colinas, montes e serras que eriçam o território da China, sobressai a montanha Qingqiu, não pela sua grande dimensão ou forma inusitada – pelo contrário, é com humildade que se destaca na paisagem –, nem pela beleza das imensidões que contempla, mas pela existência de seres vetustos e raros, descritos em inscrições tão antigas que remontam às névoas espapaçadas das origens.

Muito estranha verificamos ser a natureza na montanha Qingqiu pois até o cinábrio, que na encosta norte abundantemente prolifera e em todos os lugares é reconhecido pela sua cor vermelha, aqui ostenta uma tonalidade esverdeada, assemelhando-se ao jade, predominante na encosta sul desta tão extravagante montanha.

Dizem os registos de antanho existir na região uma volumosa raposa de nove caudas, a que dão o nome de jiuweihu, uma besta cujo comportamento apoquenta as aldeias, pelo facto improvável de ter um desenvolvido um gosto especial e disciplinado pelo consumo de carne humana. E, para atingir este seu obsessivo desiderato de atrair e devorar seres humanos, a jiuweihu adopta espantosos ardis. Por exemplo, segundo os relatos mais desapaixonados, o matreiro animal terá desenvolvido a capacidade de emitir sons que copiam os vagidos de um bebé.

Este truque faz com que as pessoas desprevenidas, sobretudo mulheres solteiras, não resistam a se aproximar, de tão intrigadas por si dão ao ouvir o aflitivo som, seja para meramente darem conta do que se passa, seja para, eventualmente, socorrerem um recém-nascido abandonado. É então que a raposa de nove caudas, aproveitando a sua ingénua e curiosa disposição, as ataca ferozmente e naquela carne humana, fresca e imprudente, afunda os seus afiados dentes, nela refocila e se regala.

Contudo, nem todos os encontros com esta criatura se revelam terríveis ou portadores de maus auspícios. No caso de Yu, o Grande, por exemplo, homem de inexcedíveis recursos, é famoso o momento da sua vida em que se cruzou com uma enorme raposa branca de nove caudas, o que era muito pouco para instilar medo no seu bravo coração. Pelo contrário, interpretou o encontro como um sinal de que em breve casaria e seria abençoado com uma extensa prole. Foi, talvez, a abundância de rabiosques (precisamente nove) que levou Yu a estabelecer uma homologia com o seu destino próximo e a considerar estar perante uma expressão divina e positiva, como se à sua descendência assim fosse prometido tudo sob o céu.

Aliás, os papéis desempenhados pelas raposas nas histórias orientais em muito ultrapassam a mera matreirice, qualidade das suas congéneres do Ocidente. No mundo que se estende a leste dos Himalaias, as raposas têm a capacidade de se transmutar noutros seres, incluindo humanos. É por isso comum escutar histórias de homens enganados por raposas disfarçados de velhos sábios ou, no melhor dos casos, por mulheres belíssimas e impregnadas de um sábio erotismo, capazes de transtornar a mais equilibrada mente e fazer o mais regrado dos corpos delirar num oceano de prazeres difíceis de imaginar e impossíveis de descrever.

Também há quem, em nossos cinzentos dias, não creia na existência da jiuweihu e, mesmo sem questionar a veracidade das observações antigas, considere que a raposa de nove caudas, afinal, não passará de uma espécie de lince ou gato selvagem, cuja cauda ostenta nove círculos negros sobre a pelagem rubra, o que estaria na origem do seu nome: nove anéis e não nove caudas.

Seja como for, os inimigos veramente tradicionais das raposas de nove caudas, para quem é indesmentível a sua existência, são os xamãs pertencentes a uma categoria específica: os wu ou, traduzindo para linguagem ocidental, os que se ocupam de magia negra. Tal acontece porque a carne desta bizarra raposa é o único antídoto conhecido para o famoso veneno gu, uma poção mortal extraída do corpo de um insecto, cuja existência surge referida desde inscrições oraculares da dinastia Shang e cuja eficácia é comparável ao curare, substância sul-americana destilada de um sapo.

O consumo de carne de jiuweihu, ao que parece, evitava a morte de quem, por descuido ou malfeitoria, tivesse haurido o temível veneno gu. E, tratando-se ou não da carne de uma verdadeira jiuweihu ou, pelo contrário, de uma burla assente numa fantasia, geralmente o procedimento tornava cheio de valiosa realidade o baú magro do xamã.

31 Mar 2022

Rua sem título

Descia em frente o dia cinzento. Mas não sei como poderia hoje o dia colorir-se, se voam projéteis que explodem só um pouco mais para leste. Mais para lá. Parece natural que a luz, que já vinha a anunciar outra inclinação para a Primavera, pareça ter-se encolhido e reservado a possibilidade de uma alegria de retorno e renovação.

Descia em pensamento, e porque tão perto, a antiga rua do mundo. Um rasgo a direito a desaguar no rio. Numa cidade qualquer. Nunca me vi a habitar uma dessas cidades de interior. É como uma respiração a que nos habituamos. O rio. Uma espécie de eco vivo de outras paragens, a transcender qualquer indício de clausura.

E tive este pensamento de nunca, como de nunca ter visto a nascente deste rio. Na verdade um rio é como um conjunto de faces diferentes em cada lugar em que o conhecemos, na ilusão de ser esse o seu aspecto de rio e não somente o rio aí. Um percurso em crescendo que tem o seu início numas frágeis linhas de água a escorrer de um nicho de rocha, sem que se pressinta nessa insignificância límpida e pitoresca, o estertor de um estuário como o do Tejo. Bem mais adiante. Fui ver, numa pequena viagem virtual e ali estava como desconfiei um pequeno santuário natural, que em nada admite imaginar o futuro mas coexistente imenso caudal que mais adiante na península se acumula. Um rio maduro. Um rio prestes a diluir-se no todo do oceano. E é esse largo estuário do qual ignoramos a origem, que nos povoa esta ânsia de respiração. Em que coexistem os tempos todos. Numa rigorosa similitude entre as águas que irrompem da terra mais a leste e as que já se misturam ao oceano. As mesmas e sempre outras. Maduros nós, também. 882 Km da nascente até à foz. Deste rio Tejo que só conheço todos os dias largo e vasto antes da diluição.

Como da vida em geral. Cada dia, pequeno volume de águas a ser nascente ou reacção e de que só parecemos conhecer num ponto preciso. Ou do caudal, ou da margem. E em cada dia, desses, o pequeno avolumar se faz muito na intenção sem o ser, de invalidar qualquer outra forma de estuário. Com tudo o que isso implica. De vida própria, de margens definidas e de destino no desaguar imparável.

Tudo desagua na nossa frente, com a informação. A verdade como a ficção, parcial ou adulterada. Aqui. Vinda de leste como a guerra.

Como o fruto desta natureza humana, impotente de evitar a possibilidade de sincronia que sempre torna inevitável o instalar na guerra. A montante do rio. Quase uma ficção, se não tivermos o cuidado de focar nesse ponto. Um repúdio absoluto. Tanto como o da pena de morte. Temos pena de quem sofre, mas temos ainda tantas manchas no mapa-mundo de onde se pratica e por lei. Manchas que são nódoas. Temos pena da vida que se esvai em sofrimento nestes cenários. E não sabemos se, sem querer, contribuímos. Que humanidade é esta?

A guerra, qualquer guerra, não pode ter atenuantes, justificações, identificação de culpados a montante, visões laterais a contribuir, políticas, egos, expansionismos ou economicismos. Uma guerra é guerra, um costume bárbaro, recoberto hipocritamente de regulamentação. É crime e é assassinato, atentado contra a vida e contra os direitos de quem a tem ainda. Aliados são pessoas de que se gosta em absoluto e não pessoas que matem por nós. Ou sem nós. Porque o povo não é uma rede de colorido político, económico ou habitante de geoestratégias. É carne para a morte. Como a dos filhos, militares de todas as frentes.

O repúdio tem que ser um asco indiferente a tudo o resto. É pacifismo absoluto. É o direito dos outros. À vida. E a passear o cão e o carrinho do bébé ou pôr rolos no cabelo. Essas pequenas insignificâncias. Já para não falar de tudo o mais. Do medo e do luto, por exemplo. Recomeçar sem nada ou não haver lugar a isso, sequer.
Tanta água. E se aqui fosse lá? Não o rio em cinza, mas um manto branco e sujo nas ruas. Teria as mãos em concha. Nas ruas frias de Mariupol, recolhe-se neve para derreter em água potável.

8 Mar 2022

Rua do Mundo, 79

De entre os objectos que recolhi em casa, nestes anos em que alguns partiram, deixando-me e, para trás, vestígios que me custa apagar, há aquele livro em cujo título e subtítulos habitam e se leem, as palavras “resoluções” e “racional”. Que consta de questões de Aritmética, claro. Racional.

Há objectos estranhos, muitas vezes discretos e anónimos, que protagonizam ainda mais estranhos encontros. E nem sempre se nos apresentam com essa veemência no primeiro momento. Mas é como se esse primeiro instante fosse o início da futura percepção destes. Impregnados daquele momentum que inquieta as partículas da matéria, com uma intensidade crescente, até que, dando-lhes um espaço na casa, um dia, são actores naquele encontro, como os que descreve Breton em “Nadja”. Tornando-se, verdadeiramente, objectos encontrados. Ou que nos encontram ao cimo de uma caminhada por outras vidas e desembocam aqui em nós.

Folheio o roteiro de Lisboa de 1942, um pequeno livro de capa negra e letras sumidas, a que o arredondado natural com que foi desenhado se soma a um desgaste uniforme de todo ele mesmo na zona de corte das folhas.

A zona cortante de cada uma, de outro modo. É dos objectos que tenho como mais queridos do pequeno espólio de tesouros do meu pai. Mas era preciso recuar a uma das gavetas daquela estante vinda de longe, onde habitam alguns objectos de natureza diversa e espécies diferentes, silenciosos e pacíficos. Um molho de “Falcões” da serie de Mamselle X, uma caixa de aguarelas ressequidas e de muitas cores, oferecida numa idade em que não puderam apaixonar-me, porque as paixões têm tempos que nem sempre se encontram reciprocamente atentos, o “Célebre livro dos destinos de Napoleão Bonaparte”, mapas de viagens antigas, duas lanternas de papel de arroz de desenho delicado. E mais uns pequenos tesouros que incluem o pedido de importação de 53 passarinhos de Montepuez, datado de 2 de Julho de 1974. São gavetas silenciosas e discretas como discretos são os objectos que as habitam. Mas quando lhes toco, é um rumorejar intenso, o que se desprende deles. Procuro, entre tudo isto, folheando o pequeno roteiro da cidade, aquele nome de rua.

Volto ao livro amarelado, trazido de uma das casas de Z, de cheiro adocicado e, de tão frágil, em risco de fragmentação em folhas soltas. O livro em que como um grito ou uma acusação – quem sabe se, afinal, uma recomendação – aparece a negro a palavra “racional”. E bem mais abaixo, como uma revelação bem guardada para quem a merecesse: “Rua do Mundo, 79”. Como se o mais misterioso sinal, se tivesse guardado incógnito, reservando a encantadora e surpreendente referência para somente se dar a ver quando o envolvimento com o livro já era irreversível. Algum tempo depois. Morada da Livraria Pacheco. Aparentemente editores e livreiros. Telefone 21542.

Este nome de rua, nunca ouvido, pareceu-me recuperado de um registo poético que teria que descobrir ou escrever. Ecoou como metáfora, ou como sorriso das matérias mortas que são todas aquelas palavras e números que enchem o livro e, no fundo, todos estes objectos anódinos e insignificantes que me prendem a um aroma a uma cor de papel ou a uma estranheza.

Voltando ao roteiro da cidade, tão grande é a expectativa como o espanto da descoberta de que a rua é aqui perto, a umas dezenas de metros e a confinar com o meu bairro. Era. Mas antes do pequeno roteiro. Depois ainda é uma rua do mundo, mas com outro nome.

De repente é como se tenha dentro, ou aqui ao pé, o mundo inteiro. E nada.

Há momentos em que se dão pequenos encontros, com uma palavra e com estrondo, depois de o serem, com um livro e que nos levam a uma gaveta de preciosas recordações, que nos levam a uma referência que possui uma estranha coincidência e é como se de um conjunto desestruturado de acasos, surgisse um sinal da maravilhosa ou mesmo abismal fantasia, de que a realidade é somente uma capa. Uma ponte sinuosa de objectos do passado, todos eles escondendo uma vida alheia, como um mergulho num poço, numa espécie de macrocosmos dentro de um microcosmos, relembrando Foucault, ou a protagonizar um daqueles episódios de uma Alice no país de caminhos estranhos pela margem do aparentemente infértil real. Os interstícios, como intestinos de um animal-mundo, enorme, que é real, mas não mais do que o que se configura nos seus intervalos. Um e outro, indefiníveis. Uma perspectiva cónica com o ponto de fuga a apontar para dentro.
As coisas. Dentro das coisas, dentro das coisas.

21 Fev 2022

Tigre

Âncora entre marés. Palavra-chave

Podemos pensar e até devanear acerca da possibilidade de tudo ser irresolúvel, assumir um olhar niilista e nele descansar porque mais fácil. Podemos ser selvagens e retroceder à pureza dos instintos básicos de egocentrismo que vai muito além, ou fica aquém dos desígnios estruturais em cada comunidade animal, que visam proteger a espécie, o grupo, a alcateia, mas também podemos depurar custosamente este balanço entre razão emoção e experiência e dormir sobre a convicção de que já cá não estaremos dentro em pouco, no mínimo à escala do universo. Uma verdade. E pousarmos as peças estratégicas a evoluir no tabuleiro. O que somos e gostamos, o que achamos belo, bem, ou bom, o conforto de termos critérios que arrumam a mente, mesmo se não nos trazem o retorno que pensávamos dever ser inevitável. E deixar que a memória nos traga ao convívio aquele tu outro que nos faz reviver ou rebrilhar, ampliados para além dos defraudados sinais de que a vida é ela própria soberana nas suas dispersas e múltiplas ramificações. Improdutiva e inútil. Mas o retorno a coisas simples de sentir, verdades sobre as quais nos construímos, não tem preço nem está à venda. Um tu outro. Que sinto. Um tu, que não está ao alcance dos critérios pode ser essencial e é. Aí, nessa zona inalcançável do paraíso. Sem mais, para além do que me é dado poder. Uma palavra. Como a cavilha retida e retirada abruptamente. Numa granada de mão que voa no destino que não se vê. A explodir. Sem cuidado, o estilhaçar irrecuperável da memória. Ou um enorme fragmento que voa do lugar e poisa inusitado sabe-se lá onde, no dia de alguém. Ou, não dita. Nós e os outros. Sem conversar. Tigres em extinção.

 

 

Tigre de água, seriedade e maresia

levanta-se cedo e pinta as unhas de vermelho

como retrato do fogo

e fantasia

 

às vezes os olhos crus perdidos no ar

bicho em extinção

pressentimento de um futuro abalar

as candidatas do partido, evitam cuidadosas o batom na fotografia

tristes tigres

estamos

 

rodeados de bichos que lavam os dentes ao espelho da manhã

mas com uma condição:

mamíferos sim, répteis não

insectos sim, vermes não

porque a falar

enquanto comem

já não nos dizem nada.

 

3 Fev 2022

Plano de vazio

Percursos secretos entre as paredes como sentidos entrelinhas. Entre paredes. A que é real, de origem e de pedra e a que a cobre de uma aparência inócua. Deixando entre elas um espaço para iludir a humidade, que amplifica sons reais ou da imaginação. Um vazio entre planos.

Tenho que contar a história do meu rato. Melhor dizendo, o caso do meu rato. Ou ainda do rato, porque de repente, em mim, o instinto humano e animal de propriedade me leva a designá-lo somente desde um destes dias, como “meu”. Porque me invade o lugar que considero território meu naquela pura ilusão de poder escolher com quem estou só e com quem, acompanhada, ali. Surge-me este pensamento. Pueril, é certo. Atemoriza-me o bicho invisível, incomoda-me quando confirma que está, como se dali pudesse acontecer todo um conjunto de possibilidades, mais do que imaginar a face deste protagonista escondido mas audível, os dentes, as unhas que lhe oiço distintamente, o arranhar amplificado pela parede de pladur, o pêlo malcheiroso. Ou talvez seja um monstro enorme e desconhecido, mas de uma grande delicadeza que tenta não incomodar mais do que o pequeno – sendo assim – arranhar da parede e que não consegue evitar pelo transtorno do seu porte excessivo, quando se ajeita para descansar. Mas consolo-me neste raciocínio de deixar correr o tempo sem antecipar invasões maiores, este pensamento de que tudo é real, tudo é parte da natureza de uma cidade velha. E de que faz parte do lugar e é meu, queira ou não queira. Aceito. Como se isso o tornasse melhor. Como se isso fosse possível.

Tomo posse. O passo seguinte, diz alguém, é dar-lhe um nome. Mas é aflitivo, sim. Ouvi-lo ali dentro das paredes. Nitidamente mas com impotência. Mas não é arrogância minha, de posse. Não é posse, é ponte. Dinamitada. O meu rato que não é o rato HP, vermelho e doméstico em cima da mesa, mas um que digita realmente de forma audível com unhas que arranham e se fazem ouvir. Dou por mim a espia-lo, a duvidar, a dar pancadinhas em vários tons na parede que nos separa. A encostar o ouvido naquele ponto preciso da parede, para lhe sentir mais nítido o percurso e os gestos, as unhas. Não me parece assustar-se mais do que eu no incómodo que queria provocar-lhe com as pancadas a desinquietar, a provocar uma fuga que me dissesse que não está preso nem confuso. Percorro a parede com os dedos a aferir a relação causa-efeito. Eu do lado de cá e ele de lá, silencioso agora. Mais para a direita e o arranhar das unhas onde, como se não existisse?

O salitre que retomou o seu curso. Como a natureza. A natureza que produz e a das coisas produzidas, a reaver o que é pasto dela. Inexoravelmente. A vida secreta da natureza que subjaz a uma cidade. Os lençóis de água que por capilaridade e como uma seiva, lhe sobem pelas paredes a envelhecer uma vida da matéria, que as tintas e betumes somente disfarçam de juventude precária. Como se se montasse uma tenda frágil no meio de uma natureza forte e imparável. Não é o que se quer da casa. É preciso senti-la inabalável. Segura contra tudo o que perturba e todos os que nos abalam.

Depois silenciou-se o arranhar que o fazia nítido e presente, do lado de lá da parede. Abalou ou ficou por ali quieto para sempre. O que não é bom de pensar. Mas se abalou pode sempre voltar. Por esse caminho secreto que o levou ali. O que também não é bom.
Nunca vou saber.

18 Jan 2022

Um dia perdido em Nova Iorque

Ficou um dia meu, perdido em Nova Iorque. A um ponto tal, que ficou por lá. Nunca mais o encontrei. A culpa é desta minha relação indefesa e nunca resolvida com a insónia. Deitada comigo na cama, a insónia, é como um amante na almofada ao lado e que dorme indiferente, enquanto desesperadamente me viro e lhe viro as costas.

Tentando ignorar aquele olhar esgazeado, a detectar a falta de imunidade pela noite fora, porta para todas as recordações, incómodos, monstros que se avizinham, como bactérias em organismo indefeso.

Numa dimensão muito própria, estas noites. Tão irreal como a daquele ringue gelado que só conheço de filmes.
O meu sono tem-me pregado dessas partidas. Nem me deixando acordar nem adormecer. Quedando-me numa meia lucidez somente acordada para a luz. A evolução crescente ou já inversa. Como se mais nada existisse, mesmo o corpo estranhamente inquieto e pesado como um fardo. Como se simplesmente o corpo de um relógio. Espectador do tempo. Obreiro indiferente. O frio, o calor do aquecimento central, o tempo, o sono, desregulados.

Estava em Nova Iorque numa Páscoa fria e isso poderia passar à frente de todas as coisas. O sonho de ir, de estar ali na cidade conhecida ao detalhe em planta, imaginário e resolução de ir. O maravilhamento de ter ido.

Sobrevoando o Alasca. Um esforço de adaptação das horas e das distâncias, demais. Mas não, talvez pela enormidade do percorrido por contraste com a imaginação, há circunstâncias em que tudo se revira sobre um foco incontornável de sobrevivência em que nos enovelamos sobre as nossas próprias pequenas limitações. O dia amanhecia no quarto do YMCA de aquecimento perturbador. O calor excessivo na noite que rondava uns zero graus, era um paradigma estranho a quem estava habituada a recolher-se debaixo de cobertores pesados em busca de calor. Não a revoltar-se contra um calor estranho e indesejado. Amanhecia esta espécie de luta e a luz nas vidraças dizia-o. Revolvia-me na cama em busca de um equilíbrio entre o conforto insuficiente do ar e o que era excessivo nas cobertas da cama. E o dia a amanhecer sempre. A luz a clarear lentamente e por lapsos difíceis de medir – sei, os do sono. Sempre aquela luz intermédia. Mais tarde, bem mais tarde, a luz, ainda intermédia era-o já de novo. Como se o dia continuasse a amanhecer quando um olhar lúcido, finalmente, para o relógio, demonstrou como a luz amanhecera e anoitecera já. Mesmo se, agora, com o mesmo ar distraído ou irresoluto de luz média. Passara um dia sobre a revolta das temperaturas, do sono, e dos cobertores. Sem que se percebesse a ascensão e queda. Nesse limbo de virar sobre o ombro direito e depois sobre o esquerdo, à espera do apaziguamento do sono, ou da definição do dia a estipular sentidos inerente às horas, se passou um dia do nascer ao morrer. Adormeci – deitei-me, digo – eventualmente, à noite, e levantei-me numa outra noite.

Por isso ficou um dia meu, perdido em Nova Iorque. Perdi-o, e nunca o encontrei.

Tinha dois encontros nesse dia. Com uma americana conhecida no verão anterior em Chiang Mai e um jovem chinês, com quem falara talvez em Hong Kong. Muito diferentes. Tinha a curiosidade de pelos olhos deles conhecer de Nova Iorque mais essas duas cidades em que cada um deles habitava. Nunca aconteceu. Mas não me parece que nada do que foi falhado naquele dia, pudesse ter fracturado substancialmente a minha vida. Teimosamente destinada a ser outra coisa qualquer.

Falta-nos tanto esse dia que ficou por viver, mesmo se registado no calendário. Mas talvez não necessariamente esse. Em que, assim, estando não estive. Mas ontem, como se por uma permuta mutuamente vantajosa, estive sem estar. Num outro lugar, é verdade. Mais a sul na Carolina do norte. Ficou por momentos e depois pelo dia fora, a sensação de que algo naquele meu dia se expandiu líquido e calmante. Como sair de casa e da vida.

Como ter estado lá, de facto. Estive. Mais realidade em estar, seria talvez demasiado nítido para aquilo que posso absorver antes do limiar de dor, de solidão, de infinitude ansiada.

De resto fica em forma de sonho para sempre. Aquela ilha estreita e alongada entre mar e oceano. Não importa se fui se não fui. Estive por aquelas praias e horizontes desoladoramente preenchidos de mar e nada. Sempre pasto de tempestades. A fazer apetecer perder-me ali para sempre mesmo se nuns dias. A temer o confronto com o real impacto da lonjura que dali se avista.

30 Nov 2021

Outubro

Estas coisas da memória. Fios finos, que rasgam a luminosidade dos dias, voltando a inscrever o que nunca se arreda para mais longe do que um segundo plano de sensações sedosas e quase ténues. Como um sopro.

Um bater de asa. Passou um anjo. Mas que logo se acendem com toda a significação. Cores outonais, em avermelhados oxidados da queda. Uma certa natureza a perder a folha para reiniciar a renovação. Mas lembro o esverdeado daqueles olhos com uma profundeza que pouco se exprimia e era esperança. Outubro, cinco, logo no início é desde sempre a memória de um aniversário de quem sempre gostou de o celebrar, com toda a família e o contentamento de uma criança, mas tão sóbrio. Desse avô de olhos transparentes esverdeados e sonhadores que, em qualquer lugar novo, encontrava sempre um sítio um pouco à distância e à sombra, onde se sentar a fumar um dos seus cigarros, antes Sagres e depois Definitivos. E a sonhar as memórias e as dádivas. Esse avô que veneramos e foi um pilar forte no meio de tantas ausências e instabilidades familiares. Ficou a lancheira, o chapéu, tantos objectos e escritos esparsos, peças de mobiliário amorosamente aplainado, amaciado e envernizado. A caixa do dominó feito por ele e que jogávamos à tarde a seguir o número de pintas pretas. Mesmo pequenina desconfiava que o jogo não era assim tão simples.

Talvez seguir, sem saber estratégias mais complexas, seja o ideal de caminhar. E sim, era sobretudo disso que os seus momentos de longitude se alimentavam, porque de ambições nunca. Grandes ambições para si, nunca se lhe conheceu. E nisso, a vida descreveu-o com rigor. Marceneiro até á reforma e por paixão depois, dentro de casa a produzir mobiliário para atender ao crescimento da vida. Como seria se não existisse como foi? Em pequenina ia comprar-lhe cigarros e caixinhas de fósforos que colecionei com fotografias de caravelas e, as mais amadas, de gatinhos. E logo de manhã em casa, o jornal. E visitava-o na marcenaria a pedir uma coisa qualquer para os trabalhos da escola. Ou ficava a vê-lo em casa a produzir rolinhos de madeira aromática e lisa, enquanto me explicava o futuro do móvel.

As pessoas têm que ser alguma coisa. Que o reconhecer, que o assumir. Fazer parte. Ele, o meu avô A., era do Sporting e do Lusitano de Évora, republicano convicto talvez ao ponto de se estabelecer como data sua de nascimento o dia cinco de Outubro, num tempo em que as datas de nascimento na família, tinham um não sei o quê de deliberado e pouco rigoroso, por ausência de memória nítida registada ou por fuga à obrigação de registo em determinado período. Ou coincidência feliz. E comunista de alma, coração e memória, mesmo das torturas na prisão “política”, que não conseguiram arredá-lo dessa fé. Quando a grande questão não é a validade do paradigma mas a força da fé. Os dentes quase todos perdidos sob tortura, com filhos pequenos, a minha avó trazida a Lisboa para estar por perto naqueles meses sombrios, nómada em quartos da família e os filhos distribuídos por madrinhas e tias, entretanto. Para não falhar uma única visita. À espera, com outras, por vezes somente de um aceno à janela. Uns iam sabendo dos outros. Excepto em dias de “solitária”.

Aquelas pequeníssimas celas de isolamento total. Para reflexão e para castigo. Ou vice-versa. Quando o Forte de Caxias se transformou em estabelecimento prisional, começou por encerrar soldados insubordinados, ladrões de mercearias e grevistas, para ser, com a implantação do estado novo, uma prisão política. Dos crimes de pensamento e expressão.

E aquelas noites medonhas de visitas inesperadas, denúncias, às vezes, rusgas e buscas a meio da noite. Provas, panfletos ou livros suspeitos de veicular ideias subversivas. Vezes sucessivas em que o primo A., jornalista e assim alvo particularmente apreciado desses divertimentos, era levado.

O avô gostava de contar histórias, mais para o fim dos jantares em que se juntava a família. Mas da prisão lembro sempre as batatas. Eles, encerrados e comedores de batatas como os de Van Gogh. Ele dizia que quando estavam alentejanos na cozinha não iam as batatas podres para a comida. Que mais teriam que comer, pergunto. E parcialidade sua, talvez mas de que sobrava a questão positiva de, no possível, respeitar a dignidade daqueles homens. Ou definição de limites, quando mais poder não se tem do que sobre as batatas, para definir que nem ultrapassados todos os limites da violência sobre o ser humano, alguém com nobreza pode admitir ultrapassar algum, quando se trata dos seus semelhantes.

As pessoas têm que ter nas mágoas incontornáveis o registo subliminar dos sonhos que elas contrariaram. As pessoas têm que se definir, mesmo não definindo mas percorrendo um caminho de afectos e fé e convicções, que vistos de fora preenchem um determinado retrato. As pessoas são o que afirmam e o que fazem mas também o que sonham. Quando tudo se conjuga coerente, as pessoas são. Isso. Mesmo vistas de fora.

E é sempre tão bom, conseguir identificar os que são bons, mesmo sabendo onde também eles ou os seus sonhos falharam.

19 Out 2021

Em profundidade

Do fundo para a superfície. Ao contrário do que se esperaria.

Nadar é tão natural para muitos animais terrestres, que mesmo recém-nascidos o fazem. Mas não me aconteceu, durante anos. O medo, como em tantas outras coisas naturais, pode sobrepor-se, construindo uma barreira de ruído entre nós e a coisa em si. Um dia, naquelas longas e parecendo sem princípio nem fim, férias de verão, na praia, com sol intenso, mar, família e amigos, um primo explicou-me em três palavras como mergulhar e aproveitar a circunstância mágica de ficar a fruir debaixo de água. O movimento preciso do corpo, apontado, como se houvesse um ponto exacto na pele da água, por onde entrar. Por onde ir até lá abaixo e num golpe de rins, ficar. Como um peixe a varejar o fundo das águas. Com aquelas manchas luminosas tremeluzentes.

Nadar. Encontrar esse caminho, ultrapassada a barreira sedosa da superfície, subitamente o corpo livre e liberto a evoluir na água sem o pânico de ficar sem respiração. No meio límpido e no saber claro de que essa era para reter.

No fundo e em profundidade real, substituir o medo de afogamento pela intenção de submergir. Que, antes, me fazia um bicho a deslocar-se dentro de água como uma espécie de lagarto com duas mãos a caminhar no chão de areia a arrastar o corpo e a cabeça firmemente fora da água. Um peso incontornável a puxar para o fundo, quando queria nadar. Estranho peso a mais para a superfície das águas.

Autoconsciência ou boiar à superfície. O que se aprende primeiro, talvez. Depois, vontade e domínio. Naquele momento mágico que define a fronteira entre não saber nadar e vencer a primeira barreira entre um corpo que não sabe de si e um corpo que aprende a viver com a água e a navegar. Sem nave, desnecessária mediação, nessa harmonia entre o mar e o corpo. Eu queria tanto isso. Eu e a água do mar das praias de infância e um dia ele, mais velho, ensinou-me a mergulhar e, debaixo de água assumindo a ausência da possibilidade da respiração, não como um défice mas como uma condição natural e voluntária, nadar. E, depois entendi como deixar de novo o corpo ser leve e subir para a pele da água, boiar a olhar para o fundo. Mais tarde.

Explicou-me sem explicar, como afinal nadar na profundeza das águas serenas e límpidas era o que era necessário saber, para nadar à superfície. Que seria sempre, depois, muito mais fácil, porque podendo respirar. Ar. Somente aquele truque de como mergulhar para debaixo da manta de água, que sem o necessário saber e calma oferecia resistência a mergulhar mas não ao afogamento num momento qualquer de pânico, um desequilíbrio subterrâneo nos pés a fazer faltar o fundo, quando se pretendia subsistir à tona. E somente tão mais tarde entendi a extensão deste ensinamento de primo. Entender a profundidade, ajuda por inerência a nadar à superfície. Que foi o que aconteceu. E depois emergi e nadei no êxtase de finalmente o poder fazer respirando o ar que é o único elemento que posso respirar. Com os pulmões. Portanto eu não aprendi a boiar, nem a nadar, antes. Mas sim esse pequeno detalhe de mergulhar em profundidade e somente assim – para entender nos pequenos nós dos dias, o que amedronta não saber gerir de outro modo, à superfície. Nadar debaixo do peso e da existência da água. Talvez continue desde então a mergulhar sem medo em meios em que continuo a não nadar bem na camada superficial.

Foi o que, sem o saber, me ensinou naquele momento de corte entre o antes e o maravilhosamente depois de saber nadar. Duas coisas preciosas. Tenho que lhe dizer um dia destes.

23 Set 2021

Xadrez invisível

Desordem.
Um andar um bocadinho escangalhado, umas vezes bispo, outras cavalo.
Oh..laissez casser! Disse num murmúrio miudinho, infantil e terno ou suave e humilde. Dizia aquelas coisas com o poder de uma prece. E ele, nas suas costas, quebrou com meticulosidade e estrondo a jarra de estimação de ambos. Para esclarecer as coisas.

(E enquanto subo a rua, a sentir-me um poeta que acaba de adivinhar o segredo dos alquimistas, acompanha-me sempre um passo à frente o rectângulo que o enquadra. Mas por detrás de uma porta de que falta – me falta – a chave. Em suma, separa-me do segredo uma fina folha de lacado branco, sem quadrícula nem linhas.

Entretanto os passos levam-me sem que eu tente ter deles noção exacta um a um. Mas a quadrícula de manchas alternadas em negro e marfim com a qual substituíram a calçada branca de sempre, complica-me a decisão de cada passo obrigando a uma atenção maior e persistente e começa a reduzir-lhes a amplitude e liberdade e a condicionar -me a atenção que queria liberta para outros percursos nas ruas. Dou por mim a ter que querer decidir-me pelos demasiado pequenos quadrados a negro, onde começo a colocar o pé meticulosa e irreprimivelmente com aquela postura mais cambaleante e o nariz no chão atento a que nada escape à aleatória decisão. Cada centímetro errado pelo pé, mais à esquerda ou à direita, faz perigar o equilíbrio. Olho furtivamente em volta, na tentativa de surpreender um olhar de estranheza para com este andar que se tornou estranho e centrado numa geometria sem regra, da simples atracção do pé para o quadrado escuro da calçada. E um pouco cómico. A lembrar-me o Jack Nicholson naquele filme. Enfim, não interessa. Como se disso dependesse todo um discurso mágico que se desenhe num mapa invisível porque todos os quadrados anteriores ficaram sem mácula e os que se adiantam à frente não sabem que serão escolhidos pelo pé deste ser com um andar engraçado e semblante tenso de atenção. Que ainda se vai desequilibrar num passo mais desalinhado ou distraído nesse dizer para dentro tu, tu, tu. Tu sim, tu não. Às pedras.

Este desígnio obriga a saltitar. Mas algo na minha remota noção dos outros por ali me enche de pudor. Que me surpreendam nestas opções definitivas. Fundamentais. De qualquer modo, não esquecendo de que a subir custa e a descer é perigoso – vertiginoso, digo. Saltar. Procuro no bolso das calças a malha que durante anos sempre tinha para o que desse e viesse. Uma pequena pedra redonda e branca para atirar, que sobressairia neste negro. Mas só já encontro, de há muito o papelinho com a face cadavérica da pedra que ri. O sorriso sardónico que durante anos vivia na carteira com os outros retratos da família. E esse voa para parte incerta sempre que arremesso.

Anoto os detalhes para rever o dia. Destas pequenas e cabisbaixas fugas de casa, sempre pasto a narrativas improváveis.)

14 Set 2021

Hóspede indiscreto

Ilustração de Anabela Canas

coisas delicadas que esperava encontrar no meio dos objectos de quem, morrendo, fica a adejar emoções válidas. Testamentos. Legados a anónimos pretendentes em linha. São esses os vícios das palavras. Muitos as querem. Suas. Mas de quem se foi nada mais há, a cientificamente demonstrar. Labirintos de sentidos. Quem dá mais, na senda de se encaixar no remoinho emotivo que tinha palavras tu. Tarde demais para apanhar o pequeno ramo com a segurança do acaso, mesmo. Quanto mais de um remetente a endereçar. Quanto muito: meu querido diário. E ele sabe que é ele. No mesmo labirinto de sentidos um mapa de sinais – este inferno improdutivo – só um caderno inorgânico pode saber exactamente e sem margens de ambiguidade que a ele se endereçavam palavras mesmo se quando partilhadas infiéis com outros sujeitos.

O vaso em alabastro
tem uma discreta luz por detrás
quando está vazio

Mas quando cheio
tudo se complica

A superfície
o recheio
a luz que incide do outro lado
um calor
uma agonia
suave cio

Folheio páginas lancinantes como hóspede indiscreto que abre um ficheiro na memória e estaco naquela do poema curto a acabar.
Ela estava triste nas linhas anteriores e irresoluta nas que se seguem porque do seguimento da vida ela não sabia nada nem queria nunca mais deitar-se a adivinhar.
E as linhas breves colheram-me como em arena cornos pontiagudos de animal em fúria desencaminhado.
Com o mesmo desconhecimento. Que a perplexidade de não ter certezas, apesar de tudo, nos sedimenta margens de segurança, estanques que não deixam mais ou nunca mais que uma dúvida como sinos se insinue e construa. Por dentro, claro, como só por dentro as coisas que nos arrastam de uma inércia qualquer, constroem. Fico com o registo dela mas não sei quanto tempo durará. Este abalo. Paro e descubro trocos que pagam um gelado de passagem e nem sei se esse outro pensamento dura. Ela, na sua intensidade que nem sempre se admite compreensível – digo eu, a minar.
A pequena sequência de linhas, pequeno poema púdico entre outros, que encontra desprevenido, agora, uma luz póstuma que o estranha e não sabe ler.
Copio apressadamente numa folha minha, aquelas linhas sem certeza de que um dia vou entender. Senão com a minha vontade. Sucesso inglório, sem troféu. Que não este papel já mole e enrugado. Meu, copiado dela e como se para mim.
Porque me dizia sem nunca o dizer quero deixar-te tudo, quando morrer.
E o sabor do gelado, gelado e frutado sem doce em demasia, na ansiedade apressada para não escorrer nem derreter mais do que o que o palato pode acolher mesmo num dia de calor tórrido, distrai-me o pensamento à superfície. No fundo, como em cenário, a dúvida que perpassa do simples papel que se apropriou de um pensamento de um seu igual mas com linhas. Sem ter certeza no sentir, ou se dele. E sem saber se descer ou subir a rua, entretanto e porque é indiferente para a resolução impossível de pensamentos como este a gerar suaves questões que ficaram em vida. Equações. Porque das profundezas do tempo, aquela palavra tu.

Em cada excerto de narrativas improváveis.

10 Set 2021

O lugar vago dos segundos

Enormes e estridentes no curto espaço entre aqui e ali, onde normalmente os pombos. Estes volumes inquietos, avantajados como se fora de escala no telhado ali em frente, como uma natureza a invadir, exacerbada. Parecem desenhos, depois, mais longe e já a sossegar. Planos, negros, recortados, anedóticos pequenos pardais. Mas são assustadoras nos gritos e no volume atabalhoado dos movimentos. Gritos animais. Ontem e hoje. Como um sinal de ecossistema a falhar. Aqui em cima, tão longe, como se à beira rio, mesmo. São duas. Talvez a mudar de casa compulsivamente. Um desassossego inquietante – passe a redundância. Dizem-nas, quando em terra, sinal de tempestade no mar. Mas quem viu para dentro?

De minha casa oiço sinos e o apito fundo e grave de navios. Quando a aragem sopra do rio. Esqueço onde estou, a partir das coisas intemporais. Esqueço e custo a relembrar.

Os dias de domingo amanhecem. As estações virão sempre sentar-se no lugar reservado. A vida alterna fantasia e desespero. Tudo se cumpre como se estivesse escrito. Mas não estando. Antes.
Coisas assim.

Folheio outas páginas. Paro junto à parede e em cada pestanejar. Viro-me e retrocedo. Outra página.
Conto as flores e é como se a vida se reproduzisse inteira. Conto-as e conto-as para que fiquem. Conto e duplicam.

Mesmo depois. Mesmo as que não foram. Em geral conto-as como se fossem e as que forem.
Verónica limpa o rosto de Jesus. Há uma oração a entrar-me pela janela, depois. Antes, acudi a um rufar de tambor compassado, redobrado, compassado, redobrado. Mas isto é já um outro dia. Um outro domingo. Também.

As contas. Adições. Seremos seres que somam, que multiplicam, ou seres que subtraem, ou mesmo dividem. O mistério da multiplicidade de sentir de gostar de pensar. Muitas coisas que não nos fragmentam. Quanto muito, enriquecem, complexificadas relações entre as partes, muito para além do preto e branco do cheio e vazio e do 0 e 1.

Eu gosto do centro das cidades. Das cidades com história e muitos registos do passado. Habitar um canto camuflado no centro e como um ninho encavalitado numa chaminé. Também de todas as margens naturais das cidades e da lonjura das cidades de toda a naturalidade da natureza distante e dura. A assustadora tormenta dos elementos, mais sentida aí. Gosto do natural como do que é construído. Mesmo as pessoas que se constroem numa imagem se genuína a paixão. Como quem actua num papel que é seu. E daquelas que são naturais uma vida inteira.

Simplesmente paro na obscuridade da casa, à espreita de um contorno, de uma tonalidade firme. Se está. Tudo precário como o sei. Mas há uma luz bruxuleante na casa que me diz que está o que sinto, impresso numa forma. Táctil. Existo. E assim o que sinto. Como uma prova. Noves fora. Fora a memória. E assim um estado puro. De pura devastação, mesmo. Ou de puro estar.

Nada chega à voz de um violoncelo. Cordas directamente premidas no coração. Humanas com dor. Um choro que dificilmente ecoa feliz com lágrimas. Fico a ouvir a voz conhecida e de cordas vocais embargadas de um sentir que é amargo. Que sentir é este que perpassa destas cordas e por mais diferente, sempre moldado a elas, a esta voz que transforma qualquer sequência de notas num lamento nobre. Por não ser violino, algo mais grave. Em que as pessoas deveriam cair em si e música adentro. E centrar-se numa única infelicidade, um único pensamento a adejar calmamente e sem ansiedade. Um único, de cada vez.

Vaguear pela casa. Estar e ao mesmo tempo, não. O lugar vago dos segundos, vivido e abandonado. E repete. As águas enormes de oceanos vastos a arrefecer emoções. Pequenas, aluadas e inconsistentes queixas. Pequenos sentimentos recorrentes e que escorrem em ligação directa à gaveta da mesa, no subterrâneo das teclas. Que podiam escrever vida onde escrevem suspiros. Segredos guardados para aliviar a cabeça como um corte de cabelo em fim de estação de amor. A rouquidão da voz que se queria límpida e a dureza das teclas que se queriam doces.
Sussurros. No vazio da noite branca da folha. Como sol que não desceu.

11 Ago 2021

Querido avião

Esforçava-se, na consciência retrospectiva de não entender a realidade em redor da carteira, na sala atulhada de meninas de vários tamanhos. As maiores com olhar triste e batas puídas, atrás. (Talvez também usassem a bata previamente gasta, do tio mais novo. Que três anos depois ainda valia a galhofa das amigas no recreio). Eternamente atrás do rebanho em que as outras foram progredindo, um pouco mais depressa do que cresciam. Esforçava-se por entender quando é que na véspera tinha havido trabalhos de casa, anunciados talvez num daqueles lapsos entre o sonho com os rios de moçambique, as províncias do mapa de orla vermelho escuro, a morte da querida bisavó avó etelvina e as paragens da linha de comboio de quelimane a tete ou outra coisa qualquer e a fotografia feia do perfil do salazar ali mesmo à frente porque ela estava na fila da frente por ser a mais pequenina e ver muito mal mas isso ninguém sabia e durante muito tempo e só veio a lume daí a uns dez anos, mais coisa menos coisa. Esforçava-se por dar atenção à professora luísa que estivera em cabo verde e levara uma gabardina e chapéu-de-chuva, dizia, até ao limite do ridículo à chegada. Mas andava regularmente com as palmas pequeninas das mãos doridas das reguadas repetidas consoante os erros, os horríveis erros ortográficos de uma era em que não se falava ou protegia dislexias ou disortografias. As mãos desinchavam. Mas na terceira classe ainda não sabia ler nem escrever, dizia. Sabe-se lá se sabia ou não.

Esforçava-se. Primeiro nuns patins de recreio e só mais tarde nos verdadeiros. Na medida em que no desgaste das rodas interiores dos patins se ia gravando o sinal. Tinha sempre os joelhos e as palmas das mãos doridas e negras das quedas, no treino dos exercícios. Na aprendizagem. Era uma pequena imprecisão de crescimento de uma perna a mais do que a outra e uma imperfeição na linha da coluna e que lhe valera as críticas de mestra e os comentários recorrentes de colegas cruéis. Aquela postura hirta do pescoço nas curvas elegantes da técnica nos peões mal feitos ainda mas que por outras razões. O corpo, os músculos descontraídos não cediam às limitações da forma. Décadas mais tarde uma radiografia e um médico explicaram aquilo que é a forma de um pescoço normal e aquilo que é uma forma diferente. Coisas da correcção da estrutura de um corpo, pela própria estrutura inalterável e para equilíbrio.

Os jovens cruéis mas amigos, vingavam o seu vazio nas drogas como uma camada subjacente que não lhe confiavam e no sexo, em desespero. Que cada dia trouxesse algo. A miúda do pescoço hirto e Axel imperfeito e raro, na garrafeira do pai uma vez ou outra, em misturas apressadas para apressar qualquer coisa, para esquecer a lentidão monocórdica de qualquer coisa e para testar o estilo engasgava-se com os charutos ou cigarrilhas agressivas, porque os cigarros sempre protegidos no bolso do peito.

Mas no avião, figura de estilo em velocidade e a desafiar a gravidade com equilíbrio, durante anos, ninguém a batia com postura mais flexível e perna mais elevada. Mas para trás. Em velocidade estonteante para trás. E a descrever uma curva larga. Mas disso, a fotografia não diz.

É essa sucessão de camadas que nos envelhece, que nos amadurece para um estado em que todos os outros transpiram a sua essência. Nada se perde. Talvez até infelizmente o que é negativo e a memória se recusa a descartar. Tudo vai a jogo por debaixo de uma só e fina pele que mostra o mais evidente e por debaixo as tais camadas de ser e de sentir e de ter vivido.

E para olhos incautos ou pouco incisivos, é essa pele marcada que sobressai mesmo quando a pessoa adolescente lá atrás se liberta (como) décadas antes. Ao som de uma música punk ou a irritar ridiculamente o público que não há em trejeitos anedóticos, depreciando o Bolero. De Ravel. A mesma pessoa por debaixo de uma patine que a faz até talvez ridícula para quem não entende. Quem ainda não percorreu percurso semelhante.

Há muitos anos escrevia sobre o sistema de camadas de uma cidade. Intrigante e apaixonante. Que todas as têm. As cidades. Como seres que são e como todos os seres que se reservam com um depósito de protecção à invasão abrupta. E se destinam a ser desvendados, sem ao fim da noite uma verdade absoluta. Ou a deixar o olhar, também ele focado como objectiva com anel rodado criteriosamente, incidir sobre a camada que é alvo de focagem. Da selecção. Tantas fotografias diferentes sobre o mesmo ângulo de abordagem, simplesmente focando intervalos de distância diferentes. A profundidade de campo. Chama-se a esse intervalo de espaço focado desfocando o que está mais para lá ou para cá do mesmo. Como a dizer que podemos de algum modo ver a realidade como a queremos ver. Senão como a queremos.

Crescer. Pensa aquela miúda para lá de muitas outras camadas, custa tanta frustração e resistência e cria tantas couraças de protecção. É um caminho tão duro e que visto lá de trás parece tão lento e inexpugnável.
Por isso voou. Abriu a janela e voou. A miúda triste mas alegre.

27 Jul 2021

Corpo devagar

Delito. Matar o tempo, diz-se. Fazê-lo passar mais depressa e sem sentir o seu rasto lento, na expectativa de algo. Mas há outra maneira de o silenciar. Suspender sem extinguir, a respiração imparável e ficar num limbo de ilusória eternidade. O sem tempo de um intervalo. A quase morte do tempo por fuga da vítima. Uma coisa defensiva e sem instintos homicidas.

A pele das coisas. Espelhos visíveis. À flor da superfície. A lembrar-me. Desse corpo revestido de ti.
Pouso o guardanapo, o copo a libertar um aroma rico, colorido e encorpado, da região que eu gosto. Aliso a saia e disponho-me de costas direitas a fruir. O rio aqui atrás invisível mas a três passos largos. Uma pausa oferecida a custo num dia de agitação demais. Inquietações que não se curam senão com um intervalo de esquecimento. Um almoço que não pode ser longo mas terá o dom de parecer um daqueles momentos que duram eternidade mais uns minutos, mesmo se pouco mais do que isso contando no relógio. O pão de forno de lenha ainda morno e um pratinho de azeitonas. Não precisava de mais. Coloridas, amargas da cura e do tempero variadas. A lembrar-me, umas, os teus olhos, outras a cor da pele. Aquelas daquele tom de pele que é a lembrar o teu. Também invisível mas já aqui atrás à distância de um pensamento leve. Umas lascas da pequena merendeira intensa de ovelha, curada por fora com uma pele a ficar espessa e ainda sedosa por dentro. Coisas simples vindas de mais a sul e que lembram a mesa que era de casa e de sempre. Viva na memória.

Delito de ser corpo. Devagar. De pensamento. Um corpo amado tem uma arquitectura própria. Tão específica que se deve a um encontro de acaso entre um sentimento e uma genética da qual só se conhece a obra final. Percorre-se num olhar milimétrico e tudo é coerente com o sentido de posse que é a de amar. Não a de ter mas a de conter. Um palmo de pele discreta como o é sempre, a esconder mistérios que é como se não existissem. Não há um veículo que transporte nenhuma função orgânica que transcenda a visão estética. A visão pura. Coincidente. Avança-se um centímetro mais, com a palma da mão onde se concentra tudo. Minto. Menor a superfície do tacto e maior a intensidade. É já só a ponta dos dedos que sente mais e não há mais nada e é o todo que se intui em cada parte e prévio ao desejo. Poder-se-ia dizer que do corpo nasce. Este. Mas é um pouco como se o corpo pré-existente fosse produto do olhar que ama cada detalhe como por um acto de reconhecimento. Sem voz. A este corpo chegam as vozes únicas vindas do tacto e do olhar atento, focado. A ouvir de dentro. Não há mais desejo. Somente espanto, ou devoção. Deito-me esguia como me sinto como sempre quis ser, como uma linha a contornar um corpo ao lado. Em baixo, coberto pelo olhar, protegido do esquecimento. Deito-me ao lado. Deito-me a perder-me de vista. Nesse corpo que é único como o que lhe sinto ser seu. Eu. A elaborar esse corpo. De sentido se do amor que não se faz de mais do que disso.

Dessa paixão por entardecer na praia. Anoitecer. Serenar e silenciar tudo. Restando um estar ao lado, deitada, soturna de tão tarde, centrada e surda. A respirar esse momento – corpo. Ali. Ao lado. Dentro. Como um fado. E destilar-se dos olhos. A encaminhar-se na mão leve que toca somente para se fazer existente. Ou até acariciar o corpo meio ausente. Ali estranho. Em si distante quanto pesado de evidência.
Apago o candeeiro da mesa, chega de realidade, por hoje.

13 Jul 2021

Frutos do bosque

Ou do pinhal. Cidade. Caminho de pessoas que encerram pequenos frutos secretos no cimo da sua verticalidade funcional. Os delicados elementos doces, protegidos em capa duríssima e mascarrada que suja os dedos e que se desprendem das pinhas caídas elas também, tendo como destino terra. Por entre agulhas. Às vezes vejo estes conjuntos aleatórios de pessoas como se transportassem a caixa do gato de Schrödinger, equilibrada sobre os ombros. Talvez por isso tanta intuição de peso sobre estes, na atitude corporal.

Pinhal de paradoxos. É onde crescemos e vivemos. Esse lugar que somente um dia mais tarde, mais tarde do que os primeiros efeitos que se confundem com indecisões, reconhecemos. Como uma coisa a estimar e preservar porque nos prende nos afectos e na razão. Ou então porque é a coisa que nos liberta. Desse preconceito de se ser eternamente conciso e consistente a cortar a direito na vida, sobre tudo e contra todos. Há que estimar os paradoxos que nos definem e identificam aquele pedaço em nós que sim mas também. Ou que não mas mesmo assim. Há que respeitar as luzes e sombras como as contradições que se aquecem no conforto mútuo de pele contra pele. Delas sobra, bem vistas as coisas, o essencial. E do essencial que tarde ou cedo emerge, é afinal a vida, naquilo que não controlamos, que tem um daqueles pequenos poderes que sempre decidem por nós. Às vezes contra nós. Um paradoxo é o conforto de ter duas certezas opostas e contraditórias a cantar em uníssono. O melhor de dois mundos conceptuais ou afectivos. O predomínio crítico da palavra “mas” e o império do “no entanto” e do “apesar de tudo”. A abrangência do “também” e do “que se dane”. O efeito de sobreposição que não exige escolha.

Gostava de saber como se traduz em fórmula química ou por um nome que se possa soletrar, este conforto com o qual não se pode viver senão juntando-nos a ele. Não será, talvez, felicidade. “Uma inundação de ocitocina”, como a designa Coimbra de Matos. Destilada no cérebro por existência de uma presença de amor dentro dessa caixa. Ou: “A constância do sujeito no interior do seu objecto”. Mas é o equilíbrio possível, numa balança que se assume não pender para um dos lados, por mais que recheada de opostos em densidade, peso e medida. Ou na aparência.

Caminhamos pelos caminhos não delineados no bosque denso, avançando pelo sinuoso possível que se nos depara ao contornar cada tronco. Delimitado e redondo como cada ser. E nos intervalos de vazio avançamos. Mas olhando para cima, o tronco de cada individualizada árvore que ao nível do solo se mantém una, divide-se e multiplica exponencialmente por finos ramos. E estes entrelaçam-se e confundem-se ao olhar. Numa amálgama de espécies até. Mas não nas funções que as alimentam. A seiva de uma, somente amarinha pelos caminhos de uma e não de outra. A confusão é apenas aparente, visual. É a visão de fora. E é nesse emaranhado em convivência serena que repousa o sentido de bem-estar, já que nada nos obriga a discernir qual dos pequenos ramos pertence a um troco de sentido e qual ao outro.

Olho para cima e de acordo com as particularidades da hora pode refulgir ou não em estrela uma divergência crua e cortante de raios visíveis que nunca o são, senão assim, filtrados. Obrigados a um grito sonoro de luz. Uma refulgência como se por aproximação pontual de um sol de outro modo ausente na sua distância.

Já de saída do Jardim botânico, lembro-me, deparo com aqueles corpos abatidos mas que conservavam a tepidez visual das formas orgânicas e antropomórficas, sem mácula. Musculatura e meneios de referência ao sentido da linguagem de corpo humano. Quando se exprime. Em dramático desalento ou espera ou desistência. Uma certa sensualidade na languidez das fibras. Um mamilo subtil ou uma axila descontraída, vegetal, um braço a quebrar um olhar não existente. Árvores tombadas pela força de vontade alheia. Corpos acumulados como em vala comum. Metáforas de corpos e silêncio. A morte do conforto dos paradoxos é o abate. Porque as árvores nem sempre morrem de pé. E os cavalos, também se abatem.

Tanta caminhada, hoje. Os pés um pouco doridos a clamar por um banco. Os sapatos que os protegem são os mesmos que começam a causar dor. O paradoxo de sentir e das vontades sobrepostas é o que nos faz descalçar os sapatos mentais de salto alto, suspirar de alívio ou não e dar um laço nas sapatilhas. Mas ambos provocam dor quando se dança a sério. Juntos na escuridão do roupeiro negro de prateleira ampla. A cada um reservado o seu suspiro, a sua carícia. Alternadamente, mas sobrepostos no desejo. E as caixas em que desconhecidos repousam, como a outra caixa que transportamos sobre os ombros e que define os sapatos que levamos calçados. Talvez uns e os outros. Enquanto a caixa permanece fechada.

6 Jul 2021

Do bairro

J. é do bairro. Na verdade é de África mas sabe-se lá quanto de uma pessoa pertence ao passado e quanto pertence ao futuro. O presente é estranho. Um homem quase menino, espigado e magro como um cálamo e quase a intuir-se-lhe esse pequeno passo que o separa, como um vime, de quebrar. O presente em que se apresenta sinuoso um e o outro. Quanto daquele corpo se formou e desapareceu desde que foi um atleta vocacionado e prometedor.

Futebolista daqueles em que há como uma inteligência rápida a mobilizar os reflexos psicomotores como se uma estratégia estudada guiasse no momento certo um movimento instantâneo, uma resposta, um salto sobre o espaço que medeia a corrida e a bola – a abordagem e o domínio – e o objectivo. Um mapa prévio ao disparo. Um animal felino, atendendo às proporções, mas de que a massa muscular desapareceu. O álcool, dizem no bairro, mas já não. Drogas. Talvez. Mas uns dias sim e outros não. E uns dizem que sim e outros que não. É misterioso e sem norte, o que sempre dá trabalho à imaginação.

Trabalha focado. Dilacerado por uma história de insucesso do passado. Pai militar que lhe exigia. Regras. Levantar-se de madrugada porque sim. Um dia o fascínio da dança. Algo nele suspeito de feminino. Mas a dança não seria sintoma sério. Nem a doença, doença. Não podia ser. Não entendi bem a cronologia da rejeição. Algo organiza a dança antes ou depois do futebol. E as drogas antes ou depois do álcool. E expulso de casa. Como pode ser casa de quem é a casa e haver um vómito. Uma autoridade, uma prepotência. Pais donos de filhos e donos de casa e se uns não estão em sintonia com outros, pais que se demitem violentamente de ter decidido um dia dar ao mundo alguém que não pediu para nascer. Mas algo nele adora esse pai de antes ou de depois, como se pode adorar – mesmo assim – quem faz mal. E espera. Talvez.

J. é uma sombra desse atleta pujante e tridimensional. Sobra-lhe a altura mas quebrada de uma certa inclinação com que se mexe, como a tentar não ocupar todo o espaço que a fita métrica lhe admitiria. Oferece trabalho nas obras. Asseado. Com a força incontestável do desespero que não pergunta, simplesmente lhe diz: pega. Meticuloso.

Uns dias, sim. Outros, desaparecido e triste. Não, triste é o olhar todos os dias. Do passado chega ao presente e sem apelo, a adoração por esse pai longínquo que expulsou de casa. Militar. Dono da bola. Como aqueles meninos nos recreios e que negam aos outros o direito de brincar, somente porque podem.

Sobra o presente. Onde não se consegue imaginar a cartografia da memória. A distância de casa. A casa limpa e arrumada, que não paga há dois anos. Custo a ler o mapa em que se desenha este bairro e a dança e o futebol e o tempo vindouro. Se há. A relação com esta rua. A irrequietude com que aparece e desaparece na obra. O olhar que não se prende, talvez sempre presa de outras miragens passadas ou futuras. Aceita um bolo e sem olhar e já lá não está. Arrepia-me pensar que alguém não come o suficiente. J. É do bairro. Todos o conhecem. Resta saber de onde se sente. J. De cá ou de lá. Preso de um desejo de reparação ou de um desapontamento sobre o que poderia ter tido em troca, mas não houve.

Mais esguio do que uma sombra. Persigo-o com os olhos à espera de comprovar se faz ou não sombra nas paredes ao longo das quais se esgueira entre tarefas. Sombrio ele. Mas sem espaço. Quando a obra terminar.

Faz-me lembrar furtivamente as esculturas de Giacometti. O homem que caminha. Mas este, se bem que igualmente fino, furtivo. Com uma qualidade de rapidez e aleatoriedade, que mais nos traz a noção de que há uma mente a determinar, não a caminhada em frente, persistente e imparável, mas a qualidade do movimento rápido, com que se esgueira, esquivo. Está e deixa de estar. É rápido. Uma espécie de felino na floresta urbana. Escuro como uma pantera e sem rasto. Como se algo, à partida, o tivesse apagado.

Mas é do bairro. Como a senhora que ia ao pão com o cãozito pela trela. E roupão turquesa. Gosto deste bairro vindo da idade média e de pessoas que vêm de tão longe como de lá e como eu.

22 Jun 2021

Do prazer (e) da ilusão

E trocar a erudição pelo belo? É o que me pergunto ante alguma distância e secura árida de algum do discurso sobre o discurso. A crítica sobre a obra. O saber sobre a arte ou a poesia, que me faz sempre querer tapar os ouvidos e ver simplesmente. Ouvir. Fruir e mergulhar fundo na ilusão de vida que é o uso da linguagem. O mais sólido e vazio prazer da ilusão, como disse Giacomo Lombardi. Uma astronómica manobra de sobrevivência, dado que o belo nunca desilude. Já a razão é uma barca de derivas abstractas que levam a cenários longínquos e analíticos mas, malgrado a euforia do saber, distancia-se do sentir e do embalar da simples e delicada beleza que em si é simplesmente o que é, sem necessidade de explicação ou fundamentação. Mas como dizer que a beleza seja um malabarismo da nossa capacidade de ilusão sem reconhecer a lírica e lúdica apetência do hedonismo que nos salva de todo o resto, sem graça, sem emoção e sem sentido e nos mergulha na trémula e deslumbrada sensação de pura contemplação. Talvez esta seja a chave do precioso segredo da humildade. A capacidade de deslumbramento. Que nada cobra do universo e em vez disso se silencia atónito ante o ver e o admirar. Nem que seja por momentos.

Ignorar o próprio ser por momentos, por momentos esquecer e render homenagem ao objecto admirado é como abrir as portas afanosamente aos anjos e que entrem que deslumbrem ou sirvam. Isso é lá com eles. Sem juízos e avaliações e pódios. Sem hierarquizar um momento puro e emocional de prazer ante a beleza de uma frase, escrita, pensada ou lida, de um gesto, de uma paisagem, de um olhar ou de uma vida, ou discorrer sobre ela de um ponto de vista crítico.

Às vezes todas as ilusões de nitidez, não para com a vida, não para com nada que nos seja reflectido dos outros, mas com a simples realidade familiar com que nos deparamos em nós. Que pode, de um momento para o outro, tornar-se uma vasta poalha de intermitências indefinições e paradoxos. O querer e não querer e o querer não querer ou o querer querer. Tornando-nos irreconhecíveis aos outros, no indeterminado momento em que lhes parecera reconhecer-nos e logo desconhecer. Talvez haja que manter a ilusão. Um certo olhar.

Mesmo quando o dia é uma correria mas de repente fica com uma textura fina de calma e eternidade. Como se tudo se silenciasse a fruir um momento. Poderia ser esse brilho ainda tímido de sol de primavera e vizinhança de fim de tarde. Ou pode não ser nada de especial, mas algo que simplesmente acontece.

Está bem. Vieste então desinquietar-me e eu encontro uma pertinência difusa e quase impalpável de tão subtil nas tuas razões que não sei. Sei o efeito. Ou antes a forma, depois, somente depois, o efeito. Mas é o efeito em mim. Esse pavor de não entender, que me persegue como monstro papão da infância já com a insónia pontual que haveria, depois, de se tornar personagem de casa. Sem convite, mas amiga estranha e a quem se instituiu o direito de vir depois, mesmo sem chamamento. Lá longe era o vulto do roupão pendurado atrás da porta, um ser de contornos sombrios a apelar um olhar incauto de um sono que de súbito não vinha. Os murmúrios da casa em respiração que dizem natural e saudável. E que se não existisse seria como viver uma casa morta de si. Mas é estranho.

A casa range. É a verdade que me incomoda os passos que sempre quis silenciosos. O universo já é ruidoso por demais.

Depois penso como ser feliz. O futuro a deus pertence, diz-se, mesmo que não tocados de uma fé que não temos mas no assumir simples de que é algo susceptível de tantas variáveis que não podemos controlar, que melhor é não termos essa ilusão de o saber. Mas como sobreviver até lá, é a tarefa humana que me ocupa todos os dias. A de não perder paisagens imaginadas, também.

Como não nos deixarmos tocar de melancolia e pessimismo sem ignorar a realidade humana e a sua inalcançável mas presente e férrea subjectividade. Plena de oxidações corrosivas e dolorosas de variações cromáticas. Mas adaptável, flexível e sempre sujeita a viajar de um extremo a outro.

Deixarmo-nos abundantemente embriagar pelo possível. Pela beleza do possível ou simplesmente pelo belo existente nas coisas. As coisas, um gesto bom, uma carícia sincera. Um elogio à vida como ela é ou como ela se pode construir. Ver. E não como deveria ser e se oferecer. Uma certa forma de ilusão. Como a arte.
O copo meio cheio, afinal.

8 Jun 2021

Carta de marear (apontamentos)

Gesto de adorno. Talvez vazante. Páginas cheias do dicionário. Pensar em quando se diz estar de maré e a qual de duas nos referimos se há duas e opostas e sempre uma que traz e outra que leva. Marear, adornar. Terminações que rimam entre si também. Marear: acto de enfrentar as marés. Navegar ou entontecer a bordo. Adornar, alindar ou inclinar-se o barco, amar ou submergir. O dicionário não ajuda nem mente. Enfrenta paradoxos com candura e serenamente.

Ao reencontro cuidadoso da rota por entre palavras como escolhos visíveis abaixo do vidro. Como as evitar, se delas se faria navegar. A norte desarvorou o barco, velas desamarradas e pouco vento será mais do que o necessário para transbordar o mar. Dir-se-á que serão os icebergs em lágrimas de ainda mais norte a vir por aí abaixo, outra coisa já sendo, a misturar-se ao que já eram mares. Mais subidos e indiferentes. Menos terra maravilhosa de água sido feita.

Menos ursos gordinhos e filhotes felizes, menos tudo. Menos terra depois de soterrada, menos país o que for baixo. Avaliado em tantos discutíveis valores, valeria mais talvez naufragado. Pasto à pirataria inocente e não grave das crianças na praia sem saber nadar. Recolectoras de tábuas de acaso. Tesouros mórbidos e pedaços de outros. Naufrágios.

Reticências afundadas em aquário de peixes soltos. Soltos mas limitados. Seja o domínio da ilusão ou o da relatividade das coisas. Observadas. Através da água com a profunda imprecisão de ser dentro ou fora da viscosidade do vidro. Que contém a água que contém os olhos. Mas sabe-se lá mesmo, se estes dentro das paredes de vidro, lavados pelas águas, ou no recato exterior e ressequido mas a fingir tão bem. Que a ondulação que lhes perpassa na córnea os humedece talvez de uma emoção viva. Que os contamina de realidade química e lhes causa uma sensação mais do que a da ficção, a da física. As transparências ambíguas sem coordenadas de localização. Como a vida é diferente vinte centímetros atrás, ou vinte centímetros à frente. Mas idêntica e límpida. Contudo, às vezes sabe-se que é uma aparência que mente. Como se sabe lágrimas debaixo de chuva? Dentro de um aquário pequeno com água. Microrganismos começam a edificar cortinas verdes. Quem sabe a camuflar um mundo distorcido. Menos nas cores que são tristes. Reais?

Águas livres. Que são como espelhos de verificar existência. As de transparência, as de brilho superficial, as espessas e de profundidade abismal, desconhecida. Fundos de peixes estranhos onde não chega a luz. As límpidas e que reflectem um eu em si e no amor de si e do eu, não me interessam nem nunca. As de opaca profundidade estranha e desconhecida, sim. O outro e o desconhecido em si e em mim. Esse mergulho a pique sem garantias de salvação ou retorno. Umas vezes a tentação, outras o inevitável.

Cartas de marear. Sobre a mesa. Ansiadas. (Mas o meu capitão proíbe. De voz tonitruante, apela aos astros, à intuição e ao olhar para longe. Para um além de nuvens que abarque o espaço sideral como uma folha de araucária caída para ser lida. Diz ser o olhar, a carta. E o ver bem, o marear com calma. Estranhas premissas deste capitão quase se diria poeta. Não fosse o bagaço rude das garrafas atiradas ao mar. Mas espiando, uma noite, rolhadas as vi e imprecisamente repletas de uma forma fina a dizer provavelmente algo. Ou não sei. No seio da forma fina, da superfície grosseira do vidro tosco, no duplo abraço, na água que acolhe engolindo fundo. Algo chegará à margem mesmo que de um tempo por vir definir e medir. Este meu capitão. Afinal poeta a lançar ao mar. O poema e não ele. Que um dia de borco, também pode cair. Se antes, o tempo não levar.)

Ser marinheiro que sempre espera do mar. Mesmo se em terra, a próxima maré. Ser é estar sempre de olhos no mar Mesmo cerrados de intempéries, invadidos de poeiras e iludidos de monstros ao dobrar dos cabos. Marinheiro amador. Nada é por uma jorna. Nem embarcar, nem esperar. As marés que se levantam, as serenas eclosões dos ventos, outras latitudes.

A tinta estalada do sol e do sal. Madeiramentos desprotegidos a flutuar e a ranger. Esperar a maré. Os mínimos para uns dias. Ultrapassar com rigor a linha do horizonte e parar logo a seguir longe da vista. Como brincadeira de criança na curva do corredor. Sobra um edifício mais alto, assim, irónico e visto, no meio do mar, como um registo de catástrofe. Era um farol. Em tempos. E esperar até que a disposição mude como um vento, mas não o formato das ondas. Sentir longe. Apagamento. Sem temporizador. Seixos rolados à mercê do tempo. Interrompidos. Muito tempo e labor.

Maresia alterada da memória como uma mesa rasa e distante na corrente de ar. Ventos opostos. A intermitência do olfato. Respirar devagar para não assustar um aroma fugidio. Enquanto o ar salga a pele do rosto mas sem cheiro.

Uma coisa subtil. Sem sintoma. Deixa rastos como mapas no limiar de sumir. Orlas brancas a lembrar ondas conservadas. O alívio da água doce. Vazante. Uma dor a vir de solstício, uma moinha. Rolar.

Plâncton. Sem mobilidade própria à mercê de todas as cadeias alimentares. Ínfimo. Mas basta redefinir os termos de comparação. Criaturas que servem para alimentar as que servem para alimentar as que servem para alimentar. Inesgotáveis circunstâncias, algo ou alguém. Como mar.

1 Jun 2021

Da desinquietação. Pág. 19

Não me aparece o caderno há muitos dias. Aquele de apontamentos inquietos para ler que página seria esta. A desta sensação indefinida que se insinua por dentro a macular toda a paisagem do dia iniciado de fresco. Uma tão moderada sensação de desequilíbrio, que é difícil entender como, ainda assim, transforma irremediavelmente tudo.

Tudo o que se avizinha e tudo o que em geral se constitui como o que será em frente. O conhecido e o desconhecido.
Mas essa sensação que me revisita é como uma zona demasiado frequente no caderno que mesmo sem intencionalidade no gesto e na procura, tende a abrir sempre no mesmo lugar. O lugar da insatisfação, o lugar da depressão ou o da desilusão.

Outra coisa é escolher o quê e sobre o quê ao abrir das páginas. Sobre que pensamentos e emoções desenroladas e aplainadas sobre a mesa como se com um desígnio de importância que as elege. Que injusto escolher. Como injusto é o dever cronológico e de adequação a um contexto ou um momento existencial, a uma ordem e a uma obsessão de rigor. O anseio á espreita, a aguardar futuro sentido que as reorganize, afaste para ver de longe, e costure de forma que uma realidade com outra verdade se modele da mole dessas frases que as descrevem. E a esta impressão. Acordo assim. Nesta sensação demasiado familiar. Perscruto-a em busca de uma falha, um erro. Peso-a e tento medir forças.

O que fazer disto. Pergunto-me como se abrisse a gaveta onde se guarda para estes dias o caderno da inquietação, que não está lá, mas sim perdido algures na casa e seguramente numa quietude inquietante. Que guarda aquilo em que me detenho no dia de hoje e que tenho a certeza de já antes ter registado ali. Mas hoje vejo-me disposta a arrancar umas páginas. Essas, em que a inércia de um sentir a cristalizar, tendem a abrir por automatismo da lombada com um vinco de demasiado uso.

Todo o dia e desde um início assim se iria desenrolar com esta sensação forte de fim de Agosto. Fim verão ou fim de férias. Do sentido. Da tirania do texto que a impressão vai elaborando ou lembra. Mergulhar em momentos que já não são e não tentar entendê-los. Aceitar as frases em construção. Como se de dentro tudo pudesse escorrer sem retorno.

Pode-se habitar o mesmo lugar, acordar sempre a mesma pessoa e abrir as mesmas janelas a espantar rapidamente o sono da casa em cada madrugada, deixar entrar a luz, mas a luz, também é uma luz diferente todos os dias. O rio que me aparece na janela mais pequena é sempre um enclave diferente na cor, na aparência densa, como uma superfície leve, ou mesmo como um pedaço de matéria mineral sólida. Uma pedra opaca. Uns dias faz-se ver nesse pequeno fragmento, como um ponto de passagem, de um todo que sei de outras vistas e noutros como um objecto em si, uma parte do enquadramento da cidade, inalterado naquela janela, e como uma espécie diferente e pequenina de rio, sem nada que o ligue ao outro. Nem nascente nem foz. Qualquer coisa ali em si, presa mas mutante. E mesmo sem admitir que corre. Se o olhar como mais uma risca na paisagem como a da margem de lá, feita de outras mais elevadas, de diferente recorte e mais acima. E também elas de cor diferente todos os dias.

Pode-se. Entrar no dia ao longo do acordar, como a abrir portas sobre o conhecido e o desconhecido. E pensar que esse conhecido que nos assalta de visita é o peso de todos os dias anteriores. E dele, o pior que se pode deixar entrar é um olhar magoado sobre as coisas. Ou a vida. Ou, implicitamente, na verdade, sobre as pessoas. Ferido de preconceito que não é mais do que o peso inútil do momento já passado a imiscuir-se no presente etéreo e de passagem. Despido dessa névoa de tristeza, que sendo ou não sendo um balanço justo sobre o dia de ontem, não pode ser deixada em frente. Aos olhos. A contaminar o desconhecido do dia. Que tem todo o direito a uma estreia absoluta, a uma roupagem nova e a um olhar limpo do passado. Ser o rio do momento. Como o que passa e simultaneamente está. Mas nunca, ontem ou amanhã.

25 Mai 2021

O homem que olhava fixamente o sol

Há que fragmentar o medo. Frequentar. Enfrentar bocadinho a bocadinho para que a coragem possa deixar-se ser pequena de cada vez. É nos pequenos gestos que não custam que devemos deter o olhar. Pequenos passos se não os conseguimos enormes como a enormidade do sentir evoca.

Há que frequentar o medo. De visita e passagem. Avançar em passo miúdo. Deixá-lo ser. Deixar-nos ter.
Passamos uns pelos outros, sem entender sequer a pele do rosto. A vida secreta da carne. Passar. Desfiar campos onde houve pensamentos. Porque os campos descansam na imanência percorrida do tempo. Pele da crosta à flor, de uma terra que atrai os corpos e neles almas em turbilhão uma espécie de arrepio do frio cósmico que habita a caixa pequena do crânio. Pequeno universo fechado a sete chaves. Pequena chave perdida, a de verdade.

A cidadela de luzes cénicas a afastar os perigos da noite. Uma encenação de vigilância. O que não dorme. Como um suceder de salas nocturnas de museu fechado. As pessoas, no que é visível, deitam-se cedo ou escondem-se portadas fechadas adentro. Qualquer passo, ecoa de longe num som cavo e único como se da última pessoa do mundo e anunciada de longe. Denunciada.

Os cantos misteriosos que tudo podem conter. Surpresas, sustos. Sair das muralhas da cidade, a luz a queimar as areias secas e estéreis, mas é o deserto preciso e necessário. A alucinação dos tapetes de água a iludir os sentidos, sempre. Quando a sede é muita. 
Quando há e se sabe, e a ilusão se há somente depois se soube. Por isso é o deserto sentido e cumprido como caminho planeado e já visto, já conhecido. Caminha-se, a economizar as águas do corpo como se para nada se sentir perdido. E voltar. Os lábios secos e os ossos doridos, os pés, aos muros da cidadela, a casa, aos confortáveis sentidos.

Persegue-me aquele que aquém da fronteira da infância, ao longo de anos encontrei petrificado a olhar o sol. Fixamente. De frente, como experiência literal de mergulho na cegueira. E depois rodava a cabeça levantada e dirigia-me um olhar verde, transparente e com uma espécie de sorriso no fundo que não sei se para mim que passava, ou restos vindos do sol. Não sei se já com o olhar esvaziado da possibilidade de ver. Invejava-lhe apenas a liberdade de parar num lugar qualquer sem se ater à esquadria do lugar ou a preceitos de arrumação do corpo no espaço público. Estava, simplesmente. Num lugar qualquer e sem paralelismo às paredes ou racionalização das diferenças utilitárias. O meio da estrada, como outro lugar qualquer. Ainda o vejo à distância dos anos como se do alto de uma janela para aquele tempo. O rosto nítido barbado de desleixo e impotência. Parado a olhar para o sol.
E se existiu existe. Senão sentido, lembrado. Não pode ter sobrevivido

O que diz da medida em que se é frágil, aquilo que abismalmente se sente, ou aquilo que resta em imagem sobrevivente e visível do exterior. O que diz da força diz da fraqueza? A terra do nunca é o lugar (de) onde se sonha maior… Maior do que nunca…Maior do que nunca por nunca ser.

Com medo da própria sombra que as suas palavras desenham. A fuga para outras. E outras. Como ilhas ínfimas em que os pés quase não assentam de tão mínimas as polegadas de solidez. O olhar errante. O burburinho voluntário da alma a tapar os ouvidos como pode. Que nada entre. Que nada surpreenda, fira, golpeie. Permaneça. Toque. Ao toque.

Venho encontra-lo igual, num recanto dos muros da cidadela. Ao lado do feixe de luz. Parado, arrumado agora como a cobrir-se da sombra fantasmagórica que ao lado subia pelas muralhas. Com o saco de plástico caído pela mão abaixo esticado e a conter um pequeno desconhecido. Fuma beatas que recolhe atrás dos passos dos outros. Acende e logo depois já terminou o curto prazer de fósforo. Deixo cair um cigarro novo e sei que não lhe escapa o gesto que nos protege a ambos. A ele a face a mim o medo.

Sei que o apanha. Depois. Escuro e clandestino. De olhos intensos. De tanto ter olhado o sol na minha memória de final da infância.

18 Mai 2021

Algodão doce

Duas da manhã. Sete da manhã ou onze da noite. Naqueles dias fora do meu bairro, a janela de A. M. E fumar cigarros clandestinos quando não está ou dorme. Suponho que podia perder-me aqui, nesta janela. Com a casa desconhecida e invisível para trás. Como a olhar um único e gigantesco néon de Ginza, da janela de um hotel central.

Um olhar sem obstáculo sobre a transparência do que sinto como a da garrafa de Sun no parapeito. Podia perder-me aqui para sempre na intermitência daqueles anúncios imparáveis e que se sucedem circulares, á espera da figura preferida ou do caracter misterioso na paisagem urbana nocturna, com o céu acima e tudo o resto, dezenas de andares abaixo. Aqui. Olho a janela ampla e panorâmica como se sobre todo um ecrã de vida. Estranha e não vivida o que é bom. No outro ano aqueles anúncios não estavam lá. Blade Runner, disse. Penso no filme “Lost in translation”, não tanto na história mas simplesmente no título. Sempre. A propósito de todas as palavras ditas. Ouvidas. Por dizer.

Das luzes significantes. Vistas ouvidas e mentidas. Sempre em parte perdidas e sempre parte de uma tradução. Fumo escondida por detrás ou para lá da cortina espessa e penso aqui para sempre. Um pensamento sedutor e tentador, esse. De nos perdermos de tudo. Um dia. Só porque tudo se solta. E para sempre, aqui ou algures em movimento slow motion. Olho a paisagem urbana e já não é. Agora outra e a mesma estranha irreverência de se apresentar como sempre, como nunca. Para sempre. E, claro, uma coisa para nunca. Tudo dorme em volta como no meio da escuridão do campo. Janelas a perder a conta com luzes esparsas, desconhecidas, intermitentes no horário. Sobre a mesa, agora uma outra garrafa e a mesma sensação de sempre iguala a nunca. Podia perder-me aqui. Ali. Olho a janela e hoje já não é. Nem Tóquio, nem uma imagem de “Blade Runner”. Mas as margens inalcançáveis da tradução, ainda e sempre que as palavras caírem. Como fotogramas soltos do fio narrativo. Cansa-me a verdade e a mentira.

Escrevo para distrair a insónia possessiva tentando não invejar pensamentos alheios. E num cansaço demasiado para querer verdades nas palavras que se soltam simplesmente a tentar ocupar este espaço imenso em que me sinto isolada. Espaço a mais sem mim. Perdida numa tradução demasiado livre. E com terra queimada pelo meio.

Penso. Aquelas pessoas que nascem pequenas e ficam. E sentem o mundo de pessoas e objectos, do tamanho errado durante uma vida inteira, sem chegar a abarcar o que do mundo se desenvolve acima do seu nariz. Uma permanente desadequação. Jovens tribos urbanas como as nascidas e sempre em transformação no bairro Harajuku em Tóquio, como bandos de pássaros coloridos, de Lolitas doces extra doces ou góticas e que não se relacionam fora da sua espécie. Um microcosmos protector e defendido do real. Sabe-se lá com que olhos espreitam para fora do grupo, do bairro. Expressão de liberdade ou diferença ou identificação na pertença a uma tribo carinhosamente escolhida a partir de heróis de fantasia. Alienação ou fuga aos próprios e desconhecidos personagens privados. Rejeição de si ou do mundo em geral?

Entro. Aliso a saia em tule rosa e sento-me de pernas firmemente juntas, sapatos de plataforma, fluorescentes ajuizados e encostados e costas direitas. Poiso a bolsa de pelúcia de urso polar anão e lilás sobre os joelhos e faço o ar de menina discretamente rebelde mas seráfica acima do pescoço. Tantas selfies se não fosse a entrevista eminente. A enervar ligeiramente, as vísceras secretamente num burburinho estranho sem pássaros e as vozes na cabeça a repetir o discurso ensaiado para enfrentar perguntas invisíveis. O currículo sobre a mesa e o olhar informe do ser ali ao fundo como se numa galáxia distante a olhar por cima dos telescópios. Apetece-me um chocolate, um tweet, desespero por uma selfie, hashtag: ursinhonoantrododragão, hashtag: primeiroemprego, hashtag nãoseisequeroisto hashtag vidareal. Hashtag: nãopossoiragoraaoTwitter. Hashtag: precisodasminhasamigas. Hashtag: entrevistaaoespelho. A minha cabeça não para de tweetar em hashtags. De dentro da bolsa o zumbido discreto das notificações, porque a vida não pára, idêntico ao que vem do lado de lá da secretária. Também o indivíduo ali à frente, sentado de costas voltadas, nas suas funções de recrutamento a tweetar mentalmente: hashtag estecromosaídodaestratosfera. Não posso deixar de fazer uma selfie quando sair. Mas talvez consiga apanhá-lo a ele também, distraído. Embora sem chapéu, podia parecer um quadro à Magritte.

E finalmente, sempre de costas voltadas, contudo, o indivíduo levanta um braço e diz: próximo. Avanço nas plataformas de borracha com cheiro a pastilha elástica e espero que se volte mas ele continua. Uma vista de olhos aos papéis, analisados rapidamente, e só depois, afinal, me encara, mas é através do espelho à sua frente que me olha, fazendo um movimento complicado do braço a indicar que devo sentar-me mesmo assim. Tinha algumas perguntas padrão, pouco empenhadas e talvez já alguém para o lugar. Fico a enfrentar-nos a ambos no espelho. Melhor assim, talvez. Cada um no seu personagem mediado pela superfície plana. A tornar mais virtual e seguro o que de real na verdade nada tinha.

11 Mai 2021

Horas

[dropcap]À[/dropcap]s vezes este silêncio novo da cidade. Como uma atmosfera fina em que pequenos sons esparsos se fazem notar. Passos. Um esvoaçar mais nítido. Estalar manso de pequenas matérias, que sobe aos andares acima da rua, um carro que acorda ao longe a face habitual. Motores geradores exaustores e outros incómodos roedores da floresta urbana, dormem por agora esquecidos do seu trabalho de atordoar.

Surgem mais tarde, atrasados mas infalíveis como a natureza a acordar. E as pessoas invisíveis. Quase o marulhar dos lençóis afastados aqui e ali. Uma roupa sacudida do torpor, uma máquina de café. Uma frescura inicial, sempre, a da manhã. O piar de pássaros como uma primavera fora do sítio. Sinos, depois. São dez horas. Horas e meias horas. Catorze horas e aquela sensação de não haver deveres urgentes a distrair a mente desta espécie de desnecessidade estranha e culpada. Dezoito e quinze e a luta contra a falta de vontade das inúmeras coisas da vida pendentes a precisar de um v de efectuadas. Coisas indizíveis de pequeninas e tirânicas e mesquinhas etapas para o momento seguinte simplesmente com a sensação, aí sim, de estarem feitas, na sua insignificante e vazia importância. Coisas a despender o tempo e a cumpri-lo. Se nenhum relógio consegue tornar substância o tempo, como o podem os inúmeros ângulos aprisionados de passagem pelos olhos, os incontáveis objectos tocados e movidos, os sons alinhados na sua vizinhança aleatória, os passos na casa percorrida às quinze horas já de quilómetros. Dezanove e treze, ainda se espera algo que seja mesmo não mais que somente uma faúlha. A empurrar a vida para um pouco mais à frente.

Vinte e duas. A inspirar fervorosamente os segundos e a adiar um pouco mais o jantar como o fecho da emissão. É difícil explicar como ainda se espera que uma coisa pequenina e ínfima – e porque só dessa escala se trata de esperar – aconteça vinda como estrela cadente com a proporção exacerbada pela luz, a parecer maior e mais bonita e luminosa ou acontecida a rasgar o negro do que for. Sim mesmo se somente uma dessas evanescentes estrelas cadentes a colher esta inexistência e a pedir um desejo. Vinte e três e dezoito.

Quase a arrumar o dia e a recolher para dentro. O que foi como um intervalo. Na sala que ninguém acede e que é ausente de todos os trabalhos os bons e os maus. Uma distracção a acompanhar o jantar sempre atrasado e uma distância final, de tudo, que mesmo à ideia de que algo poderia chegar é já quase avessa. O dia terminado. Uma parte da casa adormece mais cedo e a outra acende-se em tons baixos e silenciosos.

Uma será já difícil de acordar, como criança de sono bom, a outra será difícil de levar para a cama como uma que nunca quer dormir.

Jantar tardio. Um copo de água à beira da cama – depois – não vá aquela sede imensa a desarrumar o sono, dar azo a pensamentos que se querem livres da realidade.

No silêncio muito se dissolve, ou deveria dizer: dilui. Mas também muito de subtil se torna visível. Como as noites de aldeia em que o céu é repleto de todas as estrelas de sempre mas que na poalha luminosa que se evapora dos poros citadinos, não se deixam ver. Há sempre um médium no qual algo acontece. O solvente.

Há uma certa poesia nas qualidades objectivas da matéria. Dissolver: desorganizar, estragar, corromper, dissociar, dispersar, misturar num meio em qualquer estado. Diluir é acrescentar solvente, logo diminuir a concentração do soluto, cuja massa se mantém inalterada. Volume e concentração são inversamente proporcionais. Por isso diria que no silêncio tudo se dissolve e dependendo do grau de diluição, o sabor, o perfume ou as qualidades dos reagentes, tornam-se mais ou menos evidentes. Mas se de vida se tratar, sendo o silêncio o solvente, pode acontecer que as partículas se tornem mais óbvias. Dependendo da sua massa e capacidade de dissolução. Se estas características são inversamente proporcionais pode acontecer uma enorme subtileza na matéria por entre o silêncio e entre isso e a inexistência ser possível a confusão. A ilusão de um vazio total, apenas porque as partículas são ínfimas, ao nível do átomo invisível ao olho, mas inexoravelmente existente e poderoso.

A televisão continua a desfiar coisas e vidas. Isso, fora de horas. Depois outra vez seis e meia. Sete, nove.

7 Dez 2020

Um passo a mais

[dropcap]N[/dropcap]ome cor e perfume. Rosas. Inequívoco perfume quando o têm. Mesmo variando em tonalidades ácidas ou aquosas. E mesmo sem o ter, não são menos rosas. Porque delas têm – sem ter – o perfume, que quase sentimos. No poder do arquétipo, de uma imagem, em que cada uma surge ela e outra.

“Sim! A minha ventura quer dar felicidade; Não é isso que deseja toda a ventura?”; dizia Nietzsche na “Gaia Ciência” e eu a pensar que é para isso que existem as rosas. Mesmo as de sonhos sem perfume. Rosas claras vistas de fora sem a perturbação de um interior. Claras como faces visíveis e únicas e às vezes perfumadas e intrigantes, apenas como faces.

“Quereis colher as minhas rosas? Baixai-vos então, escondei-vos”, dizia N. depois, no apelo à subtileza ou à perfídia. Quem manda ceder à perplexidade que me manda o universo do sentir, por este mistério que acorrenta planetas, partículas ínfimas no universo em geral, uns aos outros. Uns a girar em torno de outros e de si. Que grandioso desígnio, ou simplesmente estranho mistério de conduta planetária. Se pensar nas estrelas, essas realmente luminosas de luz própria, então, somente me sobra a descoberta de toda uma estrutura mental que forma o desenho e de que não consigo fugir. Mas é tão grande esse mapa.

Há um tempo em que tudo surgia em frente, ainda sem aquela sensação de déjà vu e exaustão. Em que algumas coisas aconteciam com aquele impacto primordial que nos acometia como a uma tabua rasa. Antes.

E também da proliferação virtual, em que tudo se gasta e nos gasta o olhar, a capacidade de sentir. Cada coisa impressionante surgia com a veemência de quem encontra um espaço amplo e lavrado. Uma imagem, um livro, um plano, um ponto de vista. Tudo novo. E as coisas que eram únicas, impressas profundamente.

Mesmo quando parecia um reencontro único, com algo que tinha que ser e se reconhecia destinado, apetecido e confirmado. Foi assim com aquela pintura de Magritte.

Estranho pensar quando a vejo, que nunca, mas nunca mesmo, verei o lado de lá. Um homem de costas, uma rosa exorbitante, como um sorriso crepuscular. Talvez irónico ou terno nesse seu modo de não dar a ver.

Nunca o outro lado. Como das pessoas, nunca, quase nunca o lado de lá. Somente o que transportamos portas adentro do rosto e dos olhos, dos olhos dos outros e do rosto. Das pessoas e no nosso escondido segredo espacial. Como as rosas. Redondas e centrais, místicas, dores, golpes de vida – os espinhos, talvez – o coração, a alma, o amor. Símbolos que partem dali como sementes e germinam ao simples contemplar. E o perfume. Ácido e doce e pungente. E invisível, como a outra face. Da Lua. E do homem de costas voltadas.

Sondo-lhe a caligrafia da fronte, do rosto, da vida, como se numa página, todo o corpo inscrito. Aquela rosa como prémio encantatório de todas as escuridões da noite. A luz é de uma madrugada ou um crepúsculo ou uma noite branca em vermelho. Lunar ou lúcida, como um sorriso bom. Aberta mas cerrada como rosto e sem tocar. É isso o que vejo. O observador escondido atrás do homem, à sua frente e uma rosa. Pura e sem cor. Que cor têm as rosas? A cor clara de uma única face e para além dela, folhas ásperas e espinhos. O que me faz gostar de rosas é o mesmo que me magoa. E inebria. Assim é o amor. A nossa grande imperfeição ou o que nos salva, é sermos finitos nas fases do tempo. Mas as rosas são infinitas. Todas as rosas se equivalem na sua finitude perpetuamente renovável. Só porque não têm nome. Cada uma, na sua espécie, como todas as outras. Como uma, única e eterna. Perscruto aquela face lunar. E sei que não é de rosa. Mas um rosto não gosta de ser pasto, sob pena de murchar em máscaras. Por isso Nietzsche dizia “esconder”?

Perscruto no quadro o mistério dos rostos. A face da rosa e a do homem nos sentidos contrários. Desencontrados. Tanto nela se expõe, clara e afirmativa, quanto nele se esconde de negro. Mas o que sinto e sempre ao mergulhar na imagem, é o observador a passar, sem o querer, à frente do homem e a desconhecer a rosa e o homem – tornado invisível – como a si próprio de costas. Tornando-se a si próprio a personagem e o verdadeiro desconhecido de si, em que todos os imprevistos se podem encerrar. A verdadeira caixa de Pandora. Não a rosa como eterno feminino. Cândida, tornada contudo misteriosa e plana, iluminada de luz crua que anula a realidade do interior. É o rosto do homem, obscuro, nunca visto, a cobrir a frente dos olhos e lugar que estes não alcançam. Sabemos-lhe o rosto como sabemos o nosso atrás do qual se situa o olhar como por detrás de uma máscara. Mas, não mais. De costas voltadas para ele como ele, num primeiro olhar, para nós. E talvez por isso, a rosa sorri no seu sorriso misterioso de Gioconda. Pela ilusão do ver e do não ver. Por esse meio metro de desencontro. Um passo a mais.

15 Set 2020