Terceira pessoa do plural

Fico indecisa entre primeira e terceira pessoa do plural, quando penso nisto.

Um dia jantava com alguém, uma amizade próxima e recente, à época, se bem que transatlântica, numa sala grande de restaurante, ruidosa e cheia e eu, todo o tempo, com a subtil sensação de que uma curiosa observação, alternada mas um pouco mútua, sempre me dirigia o olhar para aquela mesa próxima e para os olhos escuríssimos daquela mulher. Sei lá porquê. Eu tenho esta curiosidade de observar rostos e imaginar vidas por detrás dos rostos. Inibe-me pensar que posso incomodar alguém com o meu olhar inconsequente e inócuo e tenho tendência a pensar que se me olham é em virtude do meu olhar. Veio no final falar comigo. Assustei-me – fui invasiva, pensei. Uma colega da escola primária. Nunca a reconheceria mas reconheci-a de imediato no sucinto retorno àquele contexto. No nome. E depois no rosto, nos olhos. Não consigo acreditar como me reconheceu – ainda não consigo. Mas eu sou assim. A achar que muito mais eu poderia reconhecê-la do que ela a mim e foi o contrário. Mas não importa. Poderia dizer que aquela que ela identificou já não existe. Mas a situação teima e tende a dizer o contrário.

Ou não. Se pensar que as pessoas não existem por si, mas em relação e essa foi interrompida há meio século. Que resta desta e daquela pessoa? Nada para além do corpo. Esse ainda recuperável para um contexto de memória. Cristina Isabel. Quem será? Depois daquela doce e equilibrada figura de menina, como todas, a parecer mais crescida do que eu, mais sólida do que eu, mais segura e mais feliz do que eu. Se a conhecesse hoje, veria uma mulher pequena, magra e frágil, com um certo fogo interior e decisão. Como se o corpo não tivesse crescido a acompanhar essa solidez, ou crescido menos e por isso intensificada essa chama. Que não se sabe o que faz arder. Mas sei lá.

Dificilmente nos encontraremos de novo em tempo de vida. Ou seríamos já ambas, de novo, terceiras pessoas, vistas à distância. Senão, seria estranho mas curioso, conhecer esta mulher completamente estranha. Porque é isso que cinquenta anos de intervalo, deixaram entre nós as duas. Sem uma segunda oportunidade, e lembrei-me agora de que preciso de a rever, nas fotografias da escola, agora com uma necessidade de nitidez relativa àquela altura, que a memória já não cumpre depois de sobre ela ser substituído um rosto por outro. Porque a memória visual não é pura e recobre-se de outras impressões emocionais, factos que disfarçam o desaparecimento do rosto. Mas já passaram anos e esqueci-me de a rever. Coisa que me surge agora com uma enorme urgência. Preciso de comparar os dois rostos. Mesmo se também este, recente, já meio esfumado à custa das palavras que me vêm ao pensamento sobre ele.

Brincava com ela depois da escola, a um jogo qualquer com botões nos mosaicos frios mas próximos, da cozinha. Dela. Ou talvez de uma outra. Tão diferente, mas à distância dos anos, tão semelhante, parada no tempo. Isabel Margarida, esfuziante ansiosa e brejeira – sempre aquele sorriso nervoso, Fátima, Victória, Leonor – mas essa não se dava muito, a melhor aluna, excepto com a Palmira, também boa aluna, companheira de carteira. Uma menina pequena e empertigada ou somente segura. Ali nas imediações, nas carteiras dos lugares inalteráveis e lá mais para trás um mundo distante. De meninas mais altas e com um olhar mais triste.

Uma delas, Fernanda, talvez, que era minha amiga e eu dela, vivia lá para cima, numa dessas orlas que produzem casa precárias, barracas. E levou-me lá um dia, por qualquer razão que não me lembro, daquelas nossas de crianças, mas por um motivo que não tinha nada a ver senão com esse de, ainda assim, ser a casa dela. Mas outras meninas, geográficas, não se davam. Não. Hoje, as pessoas cada vez mais, não se dão.

Que será feito, de umas e de outras, territórios tão distantes? O que desmoronou, o que se inverteu.

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