Marocas

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que mais resta dizer da figura do dr. Mário Soares, que nos deixou no passado dia 7, aos 92 anos, que já não tenha sido dito? Em primeiro lugar gostaria de lamentar a forma como alguns portugueses fizeram uso da liberdade de expressão, e que em parte a devem ao dr. Soares, para tecer um sem número de considerações absurdas, e que com toda a certeza repudiariam no caso de as verem a ser feitas em relação a um familiar seu, um amigo próximo ou uma figura que admirassem, numa hora destas. Cheguei a ver pessoas que se “congratularam”, e outras ainda que diziam “ir festejar” –  recordo mais uma vez que estou aqui a falar de alguém que viveu quase um século, e se manteve activo até ao fim, fazendo inclusivamente parte do Conselho de Estado até à hora da sua morte. Realmente não existem limites para o ridículo.

Claro que a figura do dr. Mário Soares e o seu papel nos últimos 40 anos de História do nosso país não é isenta de críticas. Afinal não estamos aqui a falar de um herói como Nun’Álvares Pereira, ou um santo como o Padre António Vieira. E se há um reparo que se pode fazer logo de imediato, é a forma como se perpetuou na política, perdendo uma boa oportunidade para se retirar graciosamente da vida pública, mesmo antes de ter (inexplicavelmente) se candidatado à presidência da República pela terceira vez em 2006, na altura já com 81 anos de idade. Por falar nisso, e como acérrimo defensor da máxima “o seu a seu dono”, foi o General António Ramalho Eanes que cunhou a célebre frase “serei o presidente de todos os portugueses”, aquando da sua (esmagadora) vitória sobre Otelo Saraiva de Carvalho nas presidenciais de 1976, numa altura em que o país se encontrava profundamente dividido, na ressaca do infame PREC.

E a propósito do PREC, será talvez esse o período em que a actuação de Mário Soares tenha dividido – e extremado – mais as opiniões, nomeadamente na forma como conduziu o processo de descolonização. A forma abrupta como se deu a retirada das ex-províncias ultramarinas deram origem a um dos mais lamentáveis episódios do nosso passado recente, e as vítimas desse equívoco, que ficaram conhecidos como “retornados”, estão certamente entre o coro dos críticos do ex-presidente. É preciso atender ao contexto, e na altura a prioridade do dr. Soares era a de recuperar a credibilidade de Portugal, que estava isolado pelo resto da comunidade internacional, ou “orgulhosamente sós”, como dizia o outro. A parte do “orgulhosamente” tem muito que se lhe diga, e só pode ser entendido como um tipo de “humor negro” (sal)azarento. Certamente que as famílias dos mais de oito mil combatentes que perderam as suas vidas por culpa da teimosia alheia terão uma opinião diferente a este respeito.

Nunca fui um grande admirador do político, que a meu ver teve ainda a sua quota parte de responsabilidade num certo tipo de clientelismo que vigora na sociedade portuguesa, com licenciaturas tiradas aos Domingos e caixas de robalos à mistura, mas não posso deixar de admirar a pessoa, que nunca se inibiu de dar a cara por aquilo que defendia, bem como a forma descontraída e acessível como foi, bem, o presidente “Marocas”. Macau tem ainda uma dívida de gratidão com ele, e não é por acaso que o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês fez menção do seu desaparecimento, lamentando a perda “de um amigo”. O seu lugar na memória colectiva dos portugueses, da geração actual e das vindouras, está portanto garantido. E em relação aos outros, dos fracos não reza a História.

12 Jan 2017

Deixem-se de disparates

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]odia ser esta a minha mensagem de ano novo para os leitores do Hoje Macau, mas isto seria injusto para a grande maioria deles, os que têm a cabeça bem assente num par de ombros – pelo menos penso que são a grande maioria. Mas não, prefiro antes explicar o que quero dizer com aquela mensagem colocada em tom tão grave na forma de título: 2016 entrará para a História como “o ano de todos os disparates”. Tivemos o Brexit na Europa, umas eleições muito “sui generis” nos Estados Unidos, a lembrar os clássicos “western” americanos, de “cowboys” contra peles vermelhas, e talvez o mais grave de tudo: a ascensão da “mentira” ao estatuto de “verdade alternativa”. Daí o ano do disparate – foi fértil em disparates, e na forma como tantas vezes se deu a eles provimento.

Tudo isto tem a ver com um defeito inato dos media convencionais: dão as notícias. Não dão boas ou más notícias, nem pouco mais menos, ou conforme o gosto do freguês. Dão notícias, ponto, e uma característica que salta a vista das notícias é que “nem todas agradam a toda a gente”. Os profissionais deste media, alguns financiados por dinheiros públicos, precisam de dar as notícias, e da competência ou falta dela nesta função depende a sua credibilidade, e quase sempre o próprio emprego. Os profissionais dos media dão as notícias para garantir o seu sustento, e é-lhes indiferente que a notícia agrade ou não à maioria, e muito menos a ele próprio. É assim a realidade, crua e nua. E o que seria se os chatos dos jornalistas SÓ nos dessem notícias que nos fizessem felizes? Sei lá, que estavam a chover rebuçados de um arco-íris, por exemplo? Seria bestial, apenas se fosse possível. Este seria o cenário ideal para dar asas à fantasia e deixá-la voar, mas as notícias que as pessoas procuram e querem nelas acreditar sem procurar confirmar se são ou não credíveis são muito, mas muito menos idílicas. E é aqui que entram os “social media”. O que são, afinal?

Mentirosos encartados e com uma agenda pérfida – é isto que são os “social media”. Já está, e para os mais distraídos – que são cada vez mais, infelizmente – recordo que este é um artigo de opinião, e na minha opinião quem vive da calúnia pura e simples, na sua forma mais intriguista e venenosa devia estar preso. Os “social media” alegam que os media convencionais “escondem a verdade”, a mando “da nova ordem mundial” (?), e que anda tudo “ao serviço das grandes corporações”. Tal como os próprios “social media”, com a diferença de que as “grandes corporações” deles são outras que não as da concorrência. Basta entrar em qualquer desses depositórios de calúnia e verificar os patrocinadores que aparecem nos cantos do ecrã. É daquelas coisas que aconteceu em 2016, também: um ataque de miopia colectiva que não deixou muita gente ver o que está mesmo à frente do seu nariz.

Pode ser que alguns leitores, e arrisco que seja a maioria, esteja a notar neste artigo um tom “algo agressivo”, enquanto outros poderão estar a apreciar aquilo que tem vindo a ser designado por “desrespeito pelo politicamente CORRECTO”. Reparem como destaquei o “correcto” naquela frase: desde quando é que algo “correcto” pode estar errado e merecer esse desprezo?! Enlouqueceram de vez? O politicamente correcto é o que impede que oiçamos aquilo que não gostamos de ouvir, especialmente porque é irrelevante, atroz, e não serve nenhum outro fim que não seja o de agredir.

Apesar da natureza e condutas criminosas dos “social media”, os media convencionais não estão de todo isentos de culpa. Talvez estejam demasiado acomodados, ou mecanizados, mas o mundo que nos é dado a conhecer parece estar à beira do fim. Ficamos com a impressão de que o tempo e os recursos se estão a esgotar, e que precisamos de deitar as mãos ao que resta, e esquecemo-nos dos mais fracos e necessitados. É o mundo que temos: o mundo dos humanos. Humanos que dão uma visão do mundo cheia de defeitos próprios…dos humanos. E nem eles têm a culpa que em 2016 as celebridades tenham caído como tordos.

Feliz 2017, e vá lá, juizinho.

30 Dez 2016

Turismo de Natal

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde que dou o meu humilde contributo a esta grande empresa que é o Hoje Macau (afinal é época de “dar”), este ano deve ser a minha vez de desejar as Boas Festas aos leitores, uma vez que nenhum dos feriados da quadra natalícia caiu a uma quinta-feira. Mas é com muito gosto que o faço, naturalmente, e aqui: Bom Natal e até ao meu regresso. Sim, tal como qualquer outra pessoa que não tem uma boa razão para ficar em Macau pelo Natal e tem quatro dias de férias, vou aproveitar e dar uma volta aqui por perto, onde pelo menos dê para sentir algum do ambiente natalício. O ano passado foi Xangai, este ano é Taipé.

Mas em primeiro lugar gostaria de saudar a comunidade macaense e os restantes cristãos naturais de Macau, pois parece invasivo estar a inclui-los neste rol de lamentações. Estes são os hóspedes do Natal de Macau, na terra deles, e os restantes são convidados. Quem não gosta não é obrigado a comer, e se não quiser ficar à míngua, se calhar o melhor é fazer-se à vida. Dito isto, desejo uma santa consoada aos cristãos de Macau que vão tomar com as suas famílias a ceia de Natal. E agora os outros.

Quem é natural de Portugal e tem aí uma boa parte da família, é natural que faça um esforço suplementar em termos financeiros e de gestão das férias para passar o Natal junto de quem tem saudades, e vice-versa, claro. A estes, que aproveito igualmente para saudar, a época consagrada ao dia 10 de Dezembro e seguintes é chamada de “fuga de Macau” – longe que te quero, lá vou eu, beijinhos a quem fica. Quem acha que as “saudades” são uma coisa que precisa de maturação, ou simplesmente não se pode dar ao luxo de ir “marcar o ponto” a Portugal todos os natais, vai ano sim/ano não, e quando é “não” vai para a Tailândia com o agregado familiar, ou no ausência deste, com amigos e amigas na mesma condição. Acho óptimo, não façam daqui segundas leituras. É uma das muitas vantagens de estar aqui a viver, e não em Portugal. Que bom para nós.

Na eventualidade de nem sim nem sopas, não há disponibilidade, férias ou vontade de sair de Macau, não deve o expatriado comum entrar em depressão. O que é isso, se em Macau os locais aderem ao Natal, ou mais ou menos isso. Primeiro, o dia 25 é feriado para toda a gente, o que por si já é mais que suficiente para não ignorar a noite da consoada. Talvez para quem comemora o Natal na sua vertente cristã e junto da família isto pareça demasiado “insonso”, mas no fundo isto não difere muito do que sentimos em relação ao Ano Novo Chinês, onde por vezes damos connosco a pensar: “What’s the point?”. Ficar em Macau no Natal não é “a mesma coisa” que sair, mas também não representa o fundo do barril da solidão, p’lamordedeus.

O que faz falta em Macau (olha, parece o nome daquela ex-rubrica de um título da concorrência) era…sei lá, mais luzes de Natal, como aqui ao lado em Hong Kong? E que tal uma árvore de Natal no centro da maior praça que não fosse um sólido geométrico feito de papelão, por exemplo; as árvores tinham folhas, da última vez que vi uma. Para evitar esta onda de turismo daqui para fora NO Natal, era preciso que Macau investisse no turismo DE Natal. Como? Talvez com outra coisa que não fosse casinos, e casinos, e mais casinos.

Feliz Natal.

29 Dez 2016

Olongapo city

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]acau: para que se possa continuar permanentemente a amá-la, é preciso por vezes deixá-la, e depois de uma boa dose de “mordidelas do real” (reality bites, em estrangeiro) as reconciliações sabem sempre melhor. Esta terra não existe. Por isso sempre que se proporciona um tempo de férias superior aos três dias que compõem um fim-de-semana prolongado, convém dar um pulinho a uma das muitas exóticas paragens que temos mesmo aqui à mão de semear. O destino dos quatro dias da “ponte” entre o feriado do dia 8 e o fim-de-semana passado foi Olongapo, no arquipélago das Filipinas. Outra vez as Filipinas.

Existe entre a maior parte da população de Macau mais ou menos informada uma noção completamente absurda de que as Filipinas “são um lugar perigoso”, e onde as probabilidades de se apanhar com um tiro vindo de direcção incerta. Com uma área três vezes maior que o território de Portugal continental e ilhas, e uma população de mais de 100 milhões, o país tem muito mais para oferecer do que a sua capital, Manila, que é o único lugar que não recomendo. A duas, três, ou se valer mesmo a pena cinco horas de carro daquela infernal cidade (conte com duas horas só para sair de Metro Manila, se chegar durante o dia) existem lugares paradisíacos, onde a festa não acaba na hora de se pagar a conta – divide-se tudo por seis, o câmbio da pataca – e até parece dado! Eu sei que é desagradável capitalizar os ganhos de uma economia desafogada como é a nossa às custas da miséria alheia, mas no fundo não é isso que TODA a gente faz? Falando do mais importante: Olongapo.

A 174 km e 3 horas de automóvel de  Manila encontramos a cidade de Olongapo – a sensação é a mesma de quando se conduz de Lisboa ao Algarve. O nome desta “cidade de 1ª classe, altamente urbanizada”, estatuto que adquiriu em 1983, deriva do tagalog “ulo ng apo”, ou “a cabeça do velho”, e tem origem numa velha lenda que não vou aqui contar por incluir decapitações e outras imagens pouco agradáveis. Durante os anos 60 e 70 foi considerada a “Sin city” das Filipinas, muito por culpa da base naval norte-americana estacionada na baía de Subic, que fez de Olongapo uma espécie de bordel privativo. A base foi encerrada em 1992, e as suas instalações aproveitadas para se criar a Subic Bay Freeport Zone (SBFZ), o “pulmão” da economia da cidade, que se transformou na 12ª mais populosa do país em pouco mais de uma década.

Tirando a pequena nota histórica, o que procuramos quando vamos de férias em Dezembro para um lugar com sol e praia? Sopas e descanso, naturalmente, e em Olongapo a combinação das duas resulta na perfeição. Gostei de poder comer um “lugaw”, um primo filipino da canja, logo que cheguei na madrugada de quarta-feira, e numa loja quase ao lado do hotel. Apetece-lhe comer um bife da vazia às 5 da manhã? Em Olangapo pode-se comer isso e muito mais a qualquer uma das 24 horas do dia. Os “go-go bars” e os “gringos” pançudos e velhotes estavam lá, também, mas eram uma mera distracção no caminho da praia, ou de mais uma aventura pelo cosmopolita centro da cidade e os seus “shopping malls”. Olongapo estende-se por 8 km da costa de Subic, mesmo no sopé das montanhas de Zambales, de onde se ergue o Pinatubo, o maior vulcão do mundo ainda em actividade. Uma das suas erupções, em 1991, deixou Olongapo completamente coberta de cinza.

Depois de tudo usufruir, a sensação com que se volta a Macau de um país como as Filipinas é a de um grande “e se…”. Riquíssima e diversificada em recursos naturais e humanos, minada até ao caroço pela corrupção, as Filipinas são o exemplo acabado de uma nação falhada, que tinha tudo para ombrear com o Japão e a Coreia no topo das economias asiáticas. O novo presidente do país, o controverso e inflamado Rodrigo Duterte, propõe resolver com pulso firme alguns dos maiores problemas com que o seu povo se debate. Enquanto isso vai criando outros muito piores que ficarão para resolver depois dele. Tem sido assim, nas Filipinas, desde o tempo em que os “yankees” faziam de Olongapo a sua “bitch”. Depois é só baralhar e voltar a dar.

15 Dez 2016

O que é um “Nazi”?

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]empre que oiço dizer que fulano “é um autêntico nazi”, vem-me à cabeça um episódio da série “sitcom” norte-americana “Seinfeld”, que os fãs mais atentos devem recordar com toda a certeza: “The Soup Nazi”. Este “nazi” era um sopeiro de Nova Iorque que exigia dos seus clientes o cumprimento de uma série de preceitos, e quem não anuísse a esta espécie de ritual ou levantasse a voz para discordar, “ficava sem sopa”. A sopa era aparentemente bastante boa, o que dava ao “Soup Nazi” a confiança necessária para continuar a ser um…bem, um nazi, portanto. Não consta que o indivíduo fosse de linhagem germânica, apesar de ser um imigrante, e dava mais a entender que era originário dos Balcãs, mas a este ponto há que distinguir um partidário do Partido Nazi da Alemanha dos anos 30, ou “Nazi”, de alguém cujos ideais e a interpretação de certos conceitos coincidem, mas que não é nativo dessa confraria – um nazi. Assim, com “n” minúsculo. E há por aí  nazis que são piores qualquer Nazi.

Aqui há algum tempo, um certo tipo de direita que eu designaria por “delirante e confusionista” resolveu pegar neste conceito e tentar “baralhar e voltar a dar”. Para o efeito recorreu àquilo que tanto em política como noutra coisa qualquer é conhecido por “lógica da batata”: Se era o Partido Nacional Socialista, era socialista, e então todos os Socialistas são nazis, e a extrema-direita é afinal extrema-esquerda. Assim mesmo, e digam lá se não é “espectacular”? Pena que se confiou demasiado no estudo de mercado feito em crianças com 3 e menos anos, que pareceram achar a ideia “engraçada”. Há quem até a chamar aos outros “nazis” seja um autêntico nazi!

Anti-semitismo. Santinho. Aqui está outro conceito que alguns nazis gostam de usar para chamar todo o mundo de Nazi. Se formos tentar explicar à esmagadora maioria da população local o que é “anti-semitismo”, ou as causas do Holocausto, e porque é tão importante não esquecer esse lamentável episódio da História, tratar-se-á de um acto  tão producente como explicar a origem das touradas, ou o peso cultural e económico da pesca à baleia na Noruega. Não é que não valha a pena de todo, mas a população de Macau é respeitadora das minorias e estrangeiros q.b. para precisar de treino em como lidar com uma certa minoria, porque isto e aquilo lhes aconteceu em determinado período da História, “guess what: this is China, we know”. Convém também referir o factor “peanuts”, pois a referida minoria estará representada em Macau com um número de indivíduos entre o “zero” e a “meia dúzia de apátridas, ressabiados ou invejosos que decidiram passar para o lado dos grandalhões”.

Daí que se pode – e deve-se, tal como se recomenda – dizer que “fulano ou fulana tal são uns nazis”, sem querer necessariamente incluir aqueles detalhes referidos nos dois parágrafos anteriores. E o que é então um nazi, afinal? Pode-se dizer que é alguém que gosta de fronteiras fechadas e muros erguidos, pois só assim poderá praticar o seu “bullying” de nazi: rodeado unicamente dos seus “amiguinhos” nazis. É também alguém que culpa os mais desamparados, indefesos ou em risco pela sua própria inépcia. Pode ser ainda alguém que se tenha “desviado” para esses caminhos ínvios pelo atalho da religião, ou outra lavagem cerebral qualquer. Em suma, há muitos nazis de todos os tipos, cores, credos e origens, e conseguem ser quase todos muito, mas muito piores que um Nazi. Daqueles que já vêm com suástica e tudo, sabem?

1 Dez 2016

Dois mil e desassossego

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] ano de que está agora a pouco mais de um mês de findar é já considerado para muitos “um ano para esquecer”. Foi em 2016 que desapareceram alguns ícones da nossa era, casos de David Bowie, Prince, ou mais recentemente Leonard Cohen, e isto sem esquecer outros menos mediáticos ou já retirados, casos da também cantora Natalie Cole, ou do comediante Gene Wilder. Todos deixam saudades, e apesar de neste aspecto ter sido um ano especialmente triste, não foi muito diferente de todos os outros: as pessoas morrem. Facto.

Já num outro quadrante, o da política, o ano ficou marcado por uma mudança de paradigma que alguns temem ser “perigosa”, com a votação da saída do Reino Unido da União Europeia, vulgo “Brexit”, e com a eleição de Donald Trump como 45º presidente dos Estados Unidos. Há quem vá mesmo mais longe, e faça destes dois acontecimentos uma leitura fatalista, como se da chegada de dois dos cavaleiros do Apocalipse se tratasse, e com um terceiro a caminho – falo naturalmente de Marine Le Pen, mais que provável candidata da direita  às eleições presidenciais francesas do próximo. As comparações com a ascensão do Terceiro Reich e na Alemanha dos anos 30 do século XX são para alguns “inevitáveis”, e de tudo isto só acho engraçado que da História se tenham apreendido datas e factos, mas não se tenham retirado nenhumas conclusões.

A questão do Brexit foi empolada, tanto pelos media como pelos seus apoiantes, mas quem se opôs deu o seu contributo para que de um simples copo de água se levantasse um autêntico “tsunami”. Depois de todo o foguetório vindo de cada uma das partes, ficou agora mais claro que a saída dos britânicos da UE depende da vontade política, e o referendo serve apenas como argumento para os que defendem a ideia – mesmo que seja aqui um argumento de peso. A eleição de Donald Trump “deixou a América profundamente dividida”, recorrendo a um chavão recitado vezes sem conta nas últimas semanas. Quer dizer portanto que deixou a América como sempre esteve, e neste aspecto quer Trump, que outro qualquer, não acrescentam nem retiram nada.

Neste último particular, os maiores receios têm a ver com o discurso do empresário, que personifica aquela nova escola de ausência do pensamento que dá pelo nome de “desprezo pelo politicamente correcto”, ou numa palavra apenas, o populismo. Em Janeiro do próximo ano Trump vai ser empossado como presidente e não como “dono daquilo tudo”, e muitas das suas promessas delirantes, que causaram em alguns uma espécie de “transe” entusiástica são simplesmente inconcebíveis, pois de tudo o que de mau existe na América ou em qualquer outro estado de Direito há algo que está acima do próprio presidente: a lei. Para o bem e para o mal as coisas são mesmo assim, e aquilo que levou a que muitos considerassem a presidência de Obama “decepcionante” por este não ter trazido a “change” que prometeu, pode ser que agora os venha deixar aliviados.   

Ao contrário do que se possa pensar, este meu “optimismo” não se opõe ao pessimismo da generalidade, mas antes ao seu derrotismo. Dizer que o “Brexit” é “a vontade da maioria dos britânicos” é uma falácia, uma vez que pouco mais de um quarto destes votou nesse sentido, e como já é do domínio público, Trump obteve um número de votos inferior aos da sua adversária, e só venceu da mesma forma que em Portugal temos um Governo que obteve nas últimas eleições menos votos que o seu opositor directo: através da representatividade. E é aqui que muitos ralham e não têm razão, na casa onde falta não o pão, mas a vontade. A minoria descontente, composta por gente  desinformada, mesquinha, xenófoba, ignorante, chamem-lhes o que quiserem, foi simplesmente fazer a única coisa que estava ao seu alcance, e não recorreu a meios coercivos e violentos para o fazer – venceu por falta de comparência.

E se este ano foi mau, há quem já faça “por baixo” as suas previsões para 2017, e falando agora das tais presidenciais francesas, muitos já dão como certa a vitória de Le Pen e da extrema-direita, como se impedir a vontade da tal “minoria não esclarecida” fosse tão inevitável como a peste negra.  O derrotismo tem destas coisas, é contraproducente, da mesma forma que é patético pecar por omissão e mais tarde andar pelos cantos da casa a lamentar-se, enquanto se pergunta “porquê?!”. Então não sabem porquê? Também contribuíram para isso, então; afinal também viram, mas NÃO estavam lá.

24 Nov 2016

Anónimo? Não Leocardo!

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje gostaria de aproveitar este espaço que o Hoje Macau me concede graciosamente há mais de quatro anos para me debruçar sobre questões de um foro mais pessoal. Passaram-se dez anos em Março último que criei a personagem do Leocardo, quando criei o entretanto extinto blogue “Leocardo em Macau”, e no próximo dia 1 de Dezembro o seu sucessor, o “Bairro do Oriente” assinala o  9º aniversário. Mas se não escolhi nenhuma destas efemérides para tratar deste tema, é porque qualquer dia é dia para que certas coisas sejam ditas e fiquem esclarecidas.

Como deveis saber, vivemos tempos conturbados no que toca ao confronto de correntes ideológicas – possivelmente o pior período dos últimos 80 anos – e numa era que as gerações vindouras bem poderão chamar “da contra-informação”. De tudo o que o evento da internet, cada vez mais concorrido – por letrados e outros que nem por isso – nos permite saber, há aquilo que tomamos por factos, e há todo o resto, a “ficção”. Ultimamente surgiu pelo meio uma espécie de “faça você mesmo as suas notícias”, na forma de páginas onde o cibernauta pode ir ler não a verdade verdadinha, mas a sua verdade – são entrepostos de validação de opiniões e convicções, por assim dizer. O pior é que os ávidos consumidores da realidade paralela onde decidiram ir morar não se ficam por aí, e acham seu dever partilhar com o resto do mundo a sua visão muito única do mesmo. Infelizmente esta é uma visão nada recomendável, todos sabemos, já passámos por isso, e dessa forma quem nos quiser convencer do contrário recorre normalmente a expedientes nada ortodoxos.

O que nos vai valendo é o bom senso que ainda prevalece, e por um lado é bom que vá escasseando, pois desta forma é valorizado, torna-se mais apetecível e volta a estar na moda qualquer dia – assim espero, pelo menos. Por enquanto há quem vá tentando combater a contra-informação, e sendo esta propagada por agentes que alegam defender valores mais tradicionais, ou “conservadores”, a retaliação é feita na forma de ataques “ad hominem”. Quem ousa interferir no carnaval da infâmia e do degredo arrisca-se a ser referenciado, ver a sua vida privada devassada, mais à da sua família, é ameaçado, e se for necessário difamado, podendo-se mesmo ir buscar episódios irrelevantes do passado com a intenção de se minar a sua credibilidade. Lembram-se da PIDE? Mais ou menos assim, “and then some”.

Sendo que o meu único compromisso é com a verdade, doa a quem doer (e a verdade normalmente dói), abstenho-me completamente de falar do que desconheço, ou se há verdades de que não me apetece falar, opto por não o fazer. Quais? Isso é lá comigo, e penso que todos sem excepção transportam consigo uma pequena arca dos tabus. Os meus cabem no porta-moedas da carteira, ou no bolso da frente da camisa. Talvez por este motivo, e graças à minha queda para a libertinagem moral e intelectual, até se pode dizer que me safo relativamente bem dos tais ataques “ad hominem” dirigidos por pessoas que pensam ser boa ideia atacar o carácter em vez dos argumentos. O que tenho visto de quem encontro na liça argumentativa e imediatamente se recolhe à defesa é a acusação, ou insinuação, de que “cometi ataques pessoais a cobro do anonimato”.

Em primeiro lugar, se aquilo que entendeis por “ataques” é aquela chuva que mando para cima da parada da mentira, preconceito, fraude e cabotinismo que teimais em desfilar sem pudor, obrigado, e hoje são mais do que no tempo em que permanecia “a cobro a anonimato”. Podem crer que enquanto andar por cá e não me faltar arte, o meu Boletim Meteorológico vai anunciar sempre um temporal. A própria oração pronunciada em tom acusatório, denotando também um elevado grau de  desespero, peca por ser completamente falsa: não sou nem nunca fui anónimo. Se agora o caro leitor ficou com os olhos abertos de espanto, e/ou soltou uma gargalhada cínica seguida de um comentário do tipo “ah, não foste o (introduzir obscenidade da sua preferência)”, recomendo-lhe antes de continuar que vá consultar no dicionário as definições de  “anonimato” e “pseudónimo”. Vai ver que isso lhe passa logo, e ainda fica com mais saúde.

E agora vamos então colocar os pontos nos outros “ii”, visto que nestes dois não é necessário: ninguém sabia quem era o Leocardo, até ao dia em que o próprio resolveu revelar a sua identidade. Pois é, mas também ninguém me perguntou; podem procurar onde quiserem, de alto a baixo, que não vão encontrar em parte alguma uma questão dirigida à minha pessoa nestes termos, ou semelhantes: “Quem é você?”, “Quem é o Leocardo?”, “Qual o seu nome de registo?” (volto a recordar que não sou baptizado). O que me chegava eram palpites sobre onde trabalho, os lugares que frequento ou em que estive determinado dia, e claro que pelo meio não faltava o “bluff” de quem garantia ter conhecimento da minha identidade, bem como ameaças, provocações e insultos, vindos na sua quase totalidade de…anónimos. Quando se quer saber o nome de alguém, não se desata a recitar todos os nomes próprios que nos vêm à cabeça, nem coagimos a pessoa a identificar-se “caso contrário fica sem dentes”. O Leocardo permanceu ali, indiferente, sem que ninguém lhe perguntasse quem coabitava na sua pele, até ao dia em que ele próprio tomou a iniciativa de vos dizer. Se eu responderia caso a pergunta me fosse colocada de forma directa, inteligível e civilizada? Claro que sim! E mesmo que duvidem, nunca vão poder ficar a saber ao certo, pois não? É o mundo que temos, este, um mundo cão. Ainda bem que sou um felino.

PS: Como deve ser do conhecimento geral, participei na semana passada de uma tertúlia consagrada ao tema “Fórum Macau: Quo Vadis”, levada a cabo por um media da concorrência. Queria agradecer aos meus companheiros do painel, e colegas de blogosfera, Pedro Coimbra e Arnaldo Gonçalves, por se terem aprestado a conferir substância ao debate, recorrendo para tal aos seus conhecimentos técnicos. Sobretudo obrigado por não me terem deixado ficar ali sozinho a dizer disparates. Bem hajam!

17 Nov 2016

Da desonestidade intelectual

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] assunto da ordem do dia na região é sem dúvida a decisão de Pequim em não aceitar a nomeação de dois deputados da ala pró-democrata do LEGCO de Hong Kong – tema incontornável, e que no fundo nos diz respeito a nós aqui deste lado também, em Macau. Os dois deputados em causa, Baggio Leung e Yau Wai Chin, foram eleitos pelo novo partido “Youngspirations”, também conhecido por “localista”, uma força que surgiu do movimento “Occupy Central”, e que pretende mais do que o actual “elevado grau de autonomia” que a R.P. China concede às RAE de Macau e Hong Kong. Sem mais rodeios, o que esta nova força pretende é uma auto-determinação, idêntica àquela de que usufrui a cidade-estado de Singapura, por exemplo.

Os dois deputados eleitos pelo círculo dos New Territories (NT), o mesmo que elegeu para vários mandatos Emily Lau Wai-hing, actual presidente do Partido Democrático de HK. Pode-se portanto afirmar que esta é um distrito eleitoral com uma forte implantação democrática. Na altura de tomar posse no LEGCO, os jovens deputados eleitos recusaram-se a prestar juramento conforme o texto oficial, optando por satirizar o mesmo, recorrendo ainda a expressões insultuosas para com o Governo Central e a própria RPC, desfraldando uma bandeira onde se lia “Independência para Hong Kong”. O juramento ficou sem efeito, e Pequim recorreu a uma interpretação da Lei Básica, nomeadamente do artigo 104, que se refere à “solenidade e sinceridade” do juramento, que deve ser ainda pronunciado “correctamente e na íntegra”.

Uma leitura mais superficial desta sequência de eventos pode dar a entender que Pequim se socorreu de uma “tecnicalidade” para impedir a nomeação dos dois jovens localistas, mas se o regime tem defeitos – e tem, bastantes – um deles não é o de “andar a dormir na forma”. Já eram assaz conhecidas as suas posições, foi-lhes enviado um “aviso” quando foram eleitos em Setembro último, mas nunca, em circunstância alguma, Pequim obstou à candidatura dos localistas, ou tomou quaisquer medidas para impedir que fossem eleitos. Não consta ainda que tivessem sido obrigados ou coagidos a deturpar o texto do juramento, foi-lhes dada uma segunda oportunidade de o fazer nesse mesmo dia, e nos 30 segundos que dura a leitura daquela meia dúzia de linhas, não está inclusa qualquer concessão da alma ao Diabo. É o mesmo juramento que todos os deputados fazem e sempre fizeram –  incluindo o célebre “long-hair” – quando tomam posse naquele órgão legislativo DA R.P. China. Penso que os Baggio e Yau tinham consciência de que estavam a concorrer para um órgão que para todos os efeitos é DA R.P. China. Posso estar enganado nesse particular, não sei.

Não conheço assim tanta gente em Hong Kong para saber o que pensa a opinião pública em geral deste caso, nem sigo de perto o que se faz aqui a lado em matéria de política. Aqui em Macau a reacção que colhi da generalidade foi de que se trata basicamente de um “no-show”. Não se trata de política, de activismo, ou sequer de um acto de protesto digno desse nome – foi desnecessário, contra-producente e inexplicável. Mesmo a ala moderada que agora apoia os dois deputados e se manifesta contra a decisão de Pequim dá mais ênfase ao efeito do que à causa. Não me recordo de ter visto alguém a dizer o que pensa da atitude dos dois jovens, e cada vez que o tema vem à baila, “chuta-se para canto”, e fala-se da “intromissão de Pequim”, que APROVEITOU…o que lhe foi entregue de bandeja, em suma.

A este ponto falemos de democracia, e aqui o que eu gostava mesmo de saber era o que sentem os pouco mais de 80 mil eleitores que mandataram os deputados localistas, e se o seu comportamento vai de encontro às suas expectativas. Gostava de saber ainda se a generalidade da população de Hong Kong se revê neste “fulgor independentista” da facção localista, ou se aqui por “democracia” se entende a imposição da vontade de uma minoria, porque é “o único caminho viável” – será mesmo? Como conclusão gostaria de deixar um ponto bem assente: a reprovação da atitude dos dois jovens não implica que se concorde com a decisão de Pequim, ou que se “ache bem”. Associar as duas coisas é mais do que fazer uma interpretação extensiva e abusiva da leitura dos factos: é desonestidade intelectual, pura e simplesmente. Se de político este caso começou por ter muito pouco, só para depois vir a transbordar, de respeito pela inteligência alheia nunca chegou a ter nada.

PS: Donald Trump venceu as eleições norte-americanas, um facto que pode ser mais do que apenas uma “curiosidade bizarra” para o resto do mundo, e aqui os principais efeitos vão-se fazer sentir de imediato nos mercados. Mau para quem nada nessas águas, portanto. Quanto ao resto, como não sou religioso não alinho em previsões apocalípticas, mas não posso deixar de pensar que tudo isto culminou com uma grande bofetada de luva branca no “establishment”. Adaptando um velho provérbio português à situação: quem mandou os democratas acharem que “para Trump, uma Clinton basta”?

10 Nov 2016

Indagando os indignados

[dropcap style≠’circle’]1[/dropcap] Ng Kuok Cheong, veterano deputado à AL da RAEM, e o mais antigo representante da ala pró-democrática, voltou a ser notícia na passada semana devido a certas declarações que proferiu. Qualquer coisa a ver com um eventual cerco aos trabalhadores ilegais, e de como os cidadãos deveriam “cercar” um estaleiro onde tivessem conhecimento de existir trabalhadores não-residentes nessa situação, sei lá – passou-me completamente ao lado, tamanha é a importância que confiro a este tipo de retórica oca e inconsequente. No entanto não faltou quem fizesse outra leitura mais “séria” das declarações do deputado, acusando-o de mil e uma coisas, desde “populismo” – não está errado, mas já lá vamos – até “estar a bater no ceguinho”, que é como quem diz, os tais trabalhadores ilegais, que “coitados, andam a juntar uns tostões para mandar à família no continente” – e muitos deles ao serviço de alguns dos colegas de hemiciclo de Ng Kuok Cheong. Em relação ao teor populista das declarações do deputado, pois bem, respondam a isto se forem capazes: o que vai ele dizer num território onde não existe qualquer cultura democrática, e as eleições compram-se com “lai-sis”, jantaradas e uma versão local da “cesta básica”, só que numa versão para os mais gulosos? Longe de mim corroborar as declarações do deputado democrata, mas é curioso como não vejo a mesma “intelligenzia” local que a condena com duas pedras em cada mão fazê-lo em relação a outro tipo de populismo, esse sim com contornos bastante mais sérios, e que começa a grassar um pouco por toda a Europa. Permitam-me o desabafo, mas nesse aspecto o silêncio dos opinadores locais chega a ser confrangedor.

[dropcap]2[/dropcap]Um bom exemplo de como a “vox populi” muito atira mas pouco acerta. Em Portugal foi assaz comentado nas redes sociais um caso que envolveu a agressão de um indivíduo de etnia cigana pela polícia no Bairro da Ameixoeira, nos arredores de Lisboa. O cidadão, referido pelo nome de “Zezinho”, alega ter sido interpelado por agentes da autoridade, que o acusaram de “estar a fazer troça deles”, e de seguida brindaram-no com um arraial de porrada cujas marcas são bem visíveis no vídeo do YouTube que foi posto a circular na net. O maior argumento para quem viu neste incidente “o fim dos dias” teve a ver com as declarações do próprio Zezinho, que afirmou “estar a enrolar uma ganza” no momento em que foi abordado pela polícia. Agora pergunto eu: que crime estava ele a cometer, uma vez que “enrolar uma ganza” deixou de constituir um ilícito criminal em 2001, conforme a lei 30/2000, que descriminaliza o consumo de TODAS as drogas consideradas ilícitas. Ah, mas “transportava com ele uma faca”, que conforme o próprio “foi adquirida na feira da ladra”, algo que nunca seria do conhecimento dos srs. agentes caso não o tivessem abordado inicialmente pelo simples facto de pertencer à etnia cigana – não vejo outra justificação, nem foi prestado qualquer esclarecimento da parte das autoridades noutro sentido. Para quem acha “imensa piada” a tudo isto, recomendo que se olhe ao espelho. Se não for parecido com o Brad Pitt, e um dia lhe calhar na sorte grande ser feito gato-sapato por uns homenzinhos vestidos de azul, não espere grande coisa de toda a indignação que daí advir. De todas as certezas só pode ter uma: vai haver muita gente para fazer de juiz, júri e carrasco, todos num só. E depois é…como dizem? Ah pois, “bem feito; quem o mandou”?

3 Nov 2016

Com o “36” sempre no bolso

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ntes de mais nada, talvez fosse melhor explicar o significado do título do artigo desta semana. Diz-se de quem toma posições extremas, ou que peca ora por exagero, ora por omissão, que é “8 ou 80”. Sem falsas modéstias, toda a minha vida tentei pautar-me pelo meio termo, que na dialéctica numeral do “8 e 80”, é o número que se encontra exactamente entre estes dois, o 44. Posto isto, quando me deparo com uma situação que é “8”, tiro do bolso o 36, faz-se a adição e temos o meio-termo perfeito. Quando me aparece pela frente um nítido excesso ou exagero, recorro novamente ao meu 36 de bolso, e desta vez aplico-o numa subtracção, fazendo do indigesto 80 um mais prazenteiro 44.

E não é raro depararmo-nos com no dia a dia com situações em que os extremos parecem justificar os fins, deixando completamente de lado o meio…termo. Temos o caso das presidenciais norte-americanas, onde pela primeira  vez não há um candidato que eu me importasse menos que ganhasse: ambos são terríveis. Contudo, se a eleição fosse para determinar qual deles é o pior, o candidato Donald Trump ganharia por uma larga margem contra a candidata Hillary Clinton, e diria mesmo por um 80 contra 8. Contudo os apoiantes do candidato republicano, que terão feito a sua opção com base em critérios que terão a ver com tudo menos a aptidão de Trump para o cargo a que concorre, alegam “jogo sujo” da parte do seu adversário político, que veio “trazer à praça pública afirmações de Trump que dão conta da suas posições misogenistas” ou “testemunhos de mulheres que dizem ter sido assediadas sexualmente por ele”. Nada disto parece ser inventado, note-se, mas a legião dos indignados esquece-se que o próprio tempo reagiu de imediato a essas mesmas acusações fazendo exactamente a mesma coisa, tendo por alvo o ex-presidente e marido da sua adversária, Bill Clinton, que não sendo candidato a nada, fica numa posição em que nem pode sair em defesa do seu bom nome. Era preciso um grande “36” a bater em cheio da tola desta gente, para ver se acordavam.

Já na actualidade local, tivemos um sinal 8 de tufão na última sexta-feira, o que valeu a funcionários públicos, estudantes e outros (poucos) afortunados um fim-de-semana antecipado. Os Serviços de Meteorologia e Geofísica da RAEM, responsáveis por içar o sinal que vale o tal diazito extra de férias, foram assaz criticados há cerca dois meses, aquando da passagem de outra tempestade pela região, por não terem decretado o recolher obrigatório. Desta vez, diz quem presenciou as duas situações (eu estava ausente do território aquando da primeira) “nem se justificava”. Mais do equipamento com tecnologia de ponta para prever a intensidade das tempestades tropicais, parece que os SMG precisam de adquirir um “36” topo de gama, para evitar que se repitam situações desta natureza. E você, já tem o seu 36?

PS: Queria despedir-me desejando aos leitores um “feliz festival da Lusofonia”, que na medida local do “programa das festas”, reveste-se de uma sacrossantidade quase maior que o Natal. Divirtam-se!

27 Out 2016

Quem não sente, consente

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho andado desde o último fim-de-semana absorto nas notícias do “caso Ched Evans”, que é muito possivelmente o caso mais mediático da justiça britânica dos últimos anos. Ched é um jogador de futebol que há cinco anos foi indiciado de do crime de violação de uma jovem de 19 anos, três mais nova que ele. Não foi uma “violação” no sentido que muita gente entende como tal, não chegando haver um tabefe, um “chega-pra-lá”, ou sequer um palavrão – “nem chegaram a trocar uma palavra”, segundo a alegada vítima. Parece-me grave, sem dúvida, pois nas circunstâncias em que se conheceram, uma pequena introdução era o mínimo que se exijia antes da grande intro…bom, esqueçam, que prometi a mim próprio que tratava o assunto com seriedade, ao contrário de muita gente de quem tenho lido a opinar sobre o assunto. E acreditem que não são piadas parvas como aquelas que tenho encontrado. É algo de assustador, vil, tétrico, e muito preocupante, também.

É quase impossível falar do caso sem querer parece estar a desvalorizar o sofrimento das vítimas de violação em geral. Especialmente se for com mulheres, que são normalmente o alvo deste tipo de crime, ou pelo menos quem fica com marcas psicológicas, independente se existem ou não mazelas físicas. Mas a vida é assim; neste mundo há fome, guerra, doenças, corrupção, miséria, em suma, desgraças atrás umas das outras, e não é a “mudar de assunto e falar de qualquer coisa mais agradável” que acabamos com estes problemas. O problema com o crime de violação é o estigma a que as vítimas ficam sujeitas, e não é por culpa de mais nada senão do lado sádico do carácter humano que sabendo que determinada pessoa foi um dia vítima desta humilhação, fica-se com essa imagem associada a ela. Mas alto lá, pois assim como no tango, é preciso um par para dançar, e para que haja uma vítima, é necessário que tenha havido um agressor. E o que consideramos nós por “agressão”, que pode variar conforme a personalidade, experiência, e até a educação de cada indivíduo?

No caso do tal futebolista, o que se passou foi mais complexo do que a mera satisfação de um instinto predatório, que a principal motivação do agressor na maior parte destes casos. Sem que se tenha ficado a saber muito bem quem dizia a verdade ou quem estava a mentir, é um dado garantido que Ched Evans e a alegada vítima tiveram um encontro sexual, e num contexto que se convencionou designar por “sexo casual”, que é algo que acontece entre duas pessoas que se acabaram de conhecer, ou que já se conheciam mas acordam em realizar este encontro sem que daí resulte algum compromisso entre ambos. Neste caso em particular os dois não se conheciam, aconteceu, e posteriormente a alegada vítima apresentou queixa do jogador, com base na “falta de consentimento” da sua parte. Parece grave, mas o que ela afirmou foi mais precisamente que “não se recordava de ter dado consentimento”, e de muitas outras coisas, pois encontrava-se “demasiado embriagada”.

No estado em que se encontrava, podai ter dado consentimento, como podia ter omitido essa ordem para avançar com as tropas. Peço desculpa, mas não consigo resistir, de tão absurdo que isto é. Quem tem uma noção do que se trata o “sexo casual”, ora por experiência própria, ora sabendo por outros (claro, claro, eu finjo que acredito), deverá estar consciente de que a situação não requer uma autorização expressa para que executem os trâmites: é implícito. No entanto a lei inglesa desenha uma linha muito ténue entre “falta de consentimento” e a violação, pura e simplesmente. Isto vale por dizer que basta a palavra de uma das partes, e nesta caso a mulher, para que o parceiro seja equiparado a um indivíduo que se esconde nos becos à noite esperando que passe uma donzela sozinha, para depois a abordar de forma súbita e violenta, disfruando das suas virtudes indiferente ao seu desespero. Não me quer parecer que seja bem “a mesma coisa”.

Resumindo o que se passou a seguir. Foi realizado um julgamento em 2012 que viria a resultar na condenação de Ched Evans a cinco anos de prisão, e com base nos eventos pouco conclusivos daquela única em que se comportou de forma abusiva (ele próprio se retratou desse facto), mas não criminosa, passou a ser conhecido por “violador”. Como na semana passada troquei uma lâmpada do candeeiro da sala daqui de casa, estou a pensar em apresentar-me como “electricista”. Nunca deixando de reafirmar a sua inocência, o jogador recorreu de de todas as formas possíveis, usando todos os meios de que dispunha, e conseguiu a repetição do juglamento, que na semana passada reverteu a sentença para “não culpado”. E o que mudou, entre a condenação e a absolvição? Apareceram novos dados? Novas provas? Testemunhas? Nada disso, pois esses foram sempre os mesmos desde a primeira hora. Ninguém quis levar nada disso em conta,e tenho uma teoria que ajuda a perceber porquê: quem questionar a veracidade da acusação de um crime desta natureza, é tão mau ou pior que o criminoso.

Ninguém se atreveu a duvidar da culpa do futebolista, e a mera sugestão de que se deveria olhar bem para o caso provocava um coro de indignação, e no lugar do maestro estavam os suspeitos do costume: associações que combatem males sociais sem os quais a sua razão de ser deixaria de fazer sentido. É uma perspectiva controversa, eu sei, mas o que tenho lido nos últimos dias levam-me a concluir que às vezes o problema das pessoas são elas próprias. Na minha utopia viveríamos numa sociedade harmoniosa, onde reinaria a ordem e a concordância , e os número da criminalidade seriam zero, violação incluida, lógico. Outras cabeças vão pensar que estou a “proteger os agressores”. Vou mesmo assim acabar numa nota positiva, com algum optimismo: pode ser apenas falta de qualque coisa melhor para ocupar o tempo, esta de se falar sem saber e dizer os maiores disparates. Se por acaso se quiserem entreter com outra coisa melhor, e o “sexo casual” for uma opção a considerar, recomendo que levem um notário reconhecido legalmente, de modo a que possa ficar registado o “consentimento”. Ah, e não se esqueçam do preservativo, também, que é a segunda precaução mais importante.

20 Out 2016

O “genocídio” linguístico

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]e todas as “nove horas” em termos protocolares e de entre todas as juras de amor feitas à RAEM, que marcaram a passagem do primeiro-ministro chinês Li Keqiang por Macau, houve uma declaração que me deixou especialmente enternecido: o futuro de Macau são as crianças. Partindo deste ponto, convém referir que a visita do “premier” se inseriu no âmbito de mais um Fórum Macau de cooperação entre a China e os países lusófonos. A cooperação em causa prende-se mais com factores económicos do que propriamente culturais e linguísticos. Fiquei a pensar nas crianças a que Li se referiu e na sua identidade cultural.
Como alguns dos leitores mais atentos (ou os que ainda têm paciência para me aturar) devem saber, fui nestas férias de Verão realizar um sonho antigo: conhecer o Euskadi, ou o País Basco, a comunidade autónoma de Espanha que compreende as províncias de Bizkaia, Alava e Guipozkoa. Historicamente, o Euskadi engloba ainda o antigo reino de Navarra, a região de Baixa Navarra, integrada na actual Comunidade Autónoma com o mesmo nome, e as duas regiões franceses do departamento de Pyrinées Atlantique, Zuberoa e Lapurdi (Soule e Labourd, em francês). Estas sete regiões formam aquilo que os bascos chamam de Euskal Herria, literalmente “País Basco”, e à sua unificação num só país independente deram o nome de “Zazpiak Bat”, ou “sete em um”.
Aquilo que os unia desde o tempo anterior às conquistas romanas era a sua língua, o “euskara”, que tem a particularidade de ser uma das cinco línguas ainda faladas no Velho Continente que não deriva da raiz indo-europeia. Factor agregador, e um dos argumentos usados pelos separatistas para exigir a independência de Castela, o “euskara” chegou a ser proibido pelo General Franco, que considerava o idioma uma “traição à Espanha”. Foi durante o franquismo que a ETA deu início à sua luta armada. Formada por um grupo de intelectuais em Donostia (San Sebastian), esta organização tinha como objectivo inicial preservar a língua e a cultura bascas, mas a opressão levada a cabo pelo “caudillo” levou a que optasse por meios menos ortodoxos e com um considerável apoio do povo basco. Foi já com o evento da democracia que a ETA passou a deixar de fazer sentido e os bascos estão relativamente satisfeitos – ou acomodados – com o elevado grau de autonomia de que usufruem. O meu périplo pela parte do Euskadi que se cingiu à parte espanhola foi elucidativo; sediado em Bilbau, tive a oportunidade de conhecer ainda as províncias de Alava e Guipuzkoa, e esta última demasiado bem, mesmo que acidentalmente, durante uma viagem de mais de duas horas de comboio entre Irun e Eibar.
Depois disso fiz uma paragem de alguns dias em Madrid e, logo à chegada ao aeroporto de Barajas, tive a oportunidade de trocar impressões com o simpático taxista (bastante mesmo) que nos levou até à nossa residência, perto do Palácio Real. Contei-lhe de onde tinha vindo, e de como achei tudo tão diferente de Madrid, ou da noção que os estrangeiros em geral têm da Espanha, mas que “achei estranho que em Bilbau as pessoas não usassem o Euskara entre elas para comunicar”. Foi aí que o prestável motorista me elucidou para o facto de “cerca de 80% dos residentes de Bilbau não serem naturais do País Basco”. Isto foi algo de que me apercebi enquanto lá estive e, mesmo que o meu interlocutor estivesse a exagerar nos números, certamente que a maioria dos bilbaínos não eram originalmente bascos. Isto foi resultado de uma política de incentivo à migração levada a cabo por Madrid, que levou a que afluíssem à capital económica do Euskadi milhares de famílias do resto da Espanha, especialmente da região de Castela e Leão, com mais incidência para a província de Burgos. A seguir disse-me algo que me deixou completamente sem resposta: “Estás a ver… o catalão, por exemplo, é um língua semelhante à nossa” – isto referindo-se a outro grupo independentista espanhol, a Catalunya – “mas o Euskara… se os meninos forem aprendê-lo como primeira língua, terão muita dificuldade em falar correctamente o castelhano. E olha que somos mais de 400 milhões de falantes”.
E não é que o sacana tinha razão? Não pude deixar de estabelecer um paralelo entre o pragmatismo basco, que leva a que os pais prefiram que os seus filhos falem uma língua franca com muito mais penetração à escala global, e a situação de Macau. Não me refiro ao patuá, que durante uma boa parte do século XX foi ostracizado pela administração portuguesa, e hoje é visto como “património imaterial” da região. Nem sequer o português, que talvez pelas mesmas razões que levam os bascos a tomar aquela opção, leva a que muitos falantes do Português em Macau optem por colocar os seus filhos no ensino veicular em língua chinesa. O cantonense, esse sim, é o elo mais forte que confere aos residentes de Macau e Hong Kong, e de um modo mais abrangente de todo o sul da China, uma identidade própria, diferente do resto do país mais populoso do mundo. Em nome do carácter de unicidade de Macau, e já que o resto nos parece dado por perdido, mais cedo ou mais tarde, resta-nos confiar na população de Macau para fazer do cantonense o seu… euskara.

13 Out 2016

China: sem “ismos”

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ssinalou-se no passado fim-de-semana o 67º aniversário da implantação da R.P. China. Estávamos em 1949, e não fosse por um outro estado situado algures no Médio Oriente que tem o condão de se expandir em território sem que para isso seja necessário a intervenção da mãe natureza, e que havia sido reconhecido meses antes, eu diria que a República Popular foi “o menos consensual” dos estados inaugurados nesse ano. Assim, foi com redobrado interesse que assisti no último Domingo ao debate tripartido no programa “Contraponto”, onde o ilustre painel de comentadores se debruçou sobre o tema da China actual, presente, passado e futuro, tudo bem, óptimo, tinham toda a razão – e nenhuma. Não me levem a mal, pois eu próprio não faço a mínima ideia do que estou aqui a falar, mas é que quando se fala da China convém preencher alguns requisitos básicos, como por exemplo “ser chinês”. Mas chinês a sério, tão a ver? Com um pai, avô, bisavô e etcetera que também eram chineses? Comprar nacionalidades para se encostar a tachos políticos não conta, portanto.
Podem não ter reparado, os ilustres elementos que compõem o painel do programa de debate da TDM, ou se calhar repararam mas estão-se nas tintas, não sei, mas quando falam da China a um chinês, a tendência é para que este faça um ar algo “enfadado”, desate a olhar para cima, suspirando enquanto pensa: “lá vai este ‘kwai-lo’ falar do que não sabe”. Aplicar conceitos como “capitalismo”, “marxismo” e outros “ismos” à China é um bocado como tentar encaixar um volume esférico num orifício quadrangular. A China é o que é e o que sempre foi desde há cinco mil anos, e as únicas diferenças são as mesmas que encontramos em toda a parte; hoje têm automóveis, electricidade, saneamento básico…espera lá, nem todos têm. E talvez seja exactamente por esse motivo que na China ninguém é Marxista, capitalista, democrata-cristão ou adventista do sétimo dia – mesmo que ostentem uma farda ou um crachá qualquer. Na China são chineses, e isso é já é uma ocupação em “full-time” que lhes deixa pouco tempo para se dedicarem a passatempos, especialmente aqueles que implicam debitar retórica que daria para encher o rio Yangtze.
Facto: a China NUNCA será uma democracia parlamentar, e NUNCA se realizarão eleições directas pelo método do sufrágio universival. Ou melhor, talvez, quem sabe um dia, mas NUNCA sem que antes seja derramado tanto sangue que daria para encher…o rio Yangtze (peço desculpa, mas não conheço muitos rios chineses, e a minha musa metafórica encontra-se a gozar as férias da “semana dourada”). Quando alguém me vem com uma conversa de que é possível implementar na China uma democracia de matriz ocidental, com eleições livres firmadas no princípio de “uma pessoa, um voto”, faço cara de caso. A mesma cara que qualquer um de vós faria se alguém vos tomasse por imbecis, ou retardados mentais, estão a perceber? É que nem uma criança de 8 anos acredita que depois de tudo o que tem sido feito no sentido de derrubar o regime, os eventuais novos líderes fossem realizar “eleições”, arriscando perder o poder como quem aposta as pratas da tia-avó numa volta da roleta no casino. A sério, eu mais do que duvidar de tamanho delírio, sinto-me ofendido.
E no fundo tudo se resume a isso mesmo: o poder. Não é por inércia ou falta de tacto que o regime estagnou, ou que se inibe de levar a cabo as tão necessárias reformas que tornem o seu totalitarismo mais digerível: estão demasiado ocupados a segurar o poder. A História da China tem sido fértil em exemplos; cada vez que se mudava de dinastia, mudava-se de moeda, de caligrafia, de capital, de medidas de capacidade, distância e peso, do nome dos dias da semana, de tudo, de modo a deixar o menor rasto possível dos seus antecessores. O novo rei desconfiava de tudo e todos, até dos que o auxiliaram na tomada do poder. E tinha razões para isso, pois aqueles mais próximos do monarca não hesitariam em destroná-lo, e bastava uma oportunidade.
E assim tem sido até aos dias de hoje, o que talvez ajude a explicar a rigidez do regime em certos aspectos, e por vezes ao ponto de chegar a cair no ridículo, tal é a insistência em manter algumas directivas bizarras. Não é que eles não queiram fazer certas concessões, mas preferem não arriscar: qualquer cedência pode ser entendida como um sinal de ruptura dentro do partido único, e juntando a isto o pressuposto da “face”, tão importante para os chineses, temos então a “chave do mistério”. Mesmo em Macau temos o caso da Assembleia Legislativa. Se um dos deputados do grupo dos “não alinhados” apresentar uma proposta de lei, é rejeitada sem apelo nem agravo, mas se o Governo apresentar a mesma proposta, palavra por palavra, é aprovada sem pestanejar – mesmo que quem vota a favor seja contra o seu conteúdo, como tem acontecido com as sucessivas restrições ao tabagismo.
O partido, esse, está bem e recomenda-se. De facto existe o tal “risco de implosão”, e fricções internas a rodos entre os diferentes núcleos regionais do PCC, e convém “distribuir o mal pelas aldeias” – que neste caso é um “bem”. Contudo, não há que temer as ameaças externas, desde que a economia continuar a todo o vapor. Enquanto houverem “charters cheios de chineses”, citando o imortal Paulo Futre, a aterrar em Paris para “limpar” as lojas da Dior e da Channel, não há contra-revolução que resista. Na China há pessoas inteligentes e ábeis capazes de tocar o país para a frente, mas é preciso ser mais do que apenas a mulher de César. Não existe propriamente o conceito de “meritocracia”, e permitam-me que use outra o “apparatchik” local como exemplo, nomeadamente na trapalhada que fizeram com aquela noção de “talentos”. Sim senhor, o menino é muito bom, mas antes de mais nada vamos lá saber quem são os seus pais, os seus avós, amigos, com quem anda e onde vai, em que escola estudou e se existe algum historial de “dissidência”, nem que seja uma mera menção, ou algum comentário infeliz durante um momento menos “zen”. Isso do “talento” fica lá para o fim da lista, relegado para “critério de desempate”.
Finalmente, Mao Zedong. Não quero que pareça que estou aqui a dar sermões seja a quem for, mas parece-me de má tez mencionar os erros do grande timoneiro no contexto do Dia Nacional. A imagem de Mao neste dia é o equivalente ao desenho do bolo de aniversário que aparece no perfil do Facebook de alguém no dia do seu aniversário: não nos diz se é boa ou má pessoa, mas apenas que “faz anos” – toca a dar-lhe os parabéns, então? Quanto ao resto, de mal a mal vamos a caminho das sete décadas de socialismo na China. E sabem o que mais? De todos os “ismos” penso que foi aquele que realmente fez algum bem à China. Pensem o que pensaram, milhão de mortos a mais, milhão a menos, o socialismo tem valido à China aquele que é provavelmente o seu mais longo período de paz social em séculos. E são 1300 milhões de alminhas, meus senhores. É preciso não esquecer esse precioso “detalhe”.

6 Out 2016

A gente não lê

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]isboa vai receber no próximo mês a Feira do Livro de Macau, que é segundo a organização “a maior mostra do género da literatura de Macau fora do território nos últimos 30 anos”. Serão apresentadas três novas obras de autores locais, e espera-se divulgar o que se faz deste lado na Língua de Camões, que é preciso não esquecer, é também língua oficial. Não é só nos PALOP que se escreve em Português fora de Portugal, com o valor indiscutível que os autores africanos de expressão portuguesa têm. Às vezes parece que do outro lado “se esquecem”, e pior do que isso, deste lado também. A iniciativa ficou comprometida, pelo menos em parte, com alguma indiferença da parte do Governo local, que supostamente deve financiar a empreitada – as pessoas e os livros não chegam ao outro lado do mundo movidos por boas intenções. Ao que parece o subsídio inicialmente pedido pela Associação dos Amigos do Livro, que teve esta “estranha” ideia, “é excessivo”. Os livros precisam de ir de avião? Pois é, não têm barbatanas, e como são feitos de papel, indo a nado pode ser que se constipem. Que grande dilema.

Podia ir buscar mil e um exemplos para ilustrar a incoerência, para não dizer hipocrisia, de quem se devia preocupar com a cultura em Macau e não o faz. A recente ultra-subsidiação a uma Universidade do continente por “toma lá desta pataca”, por exemplo, e a que bastava uma dízima desse montante para realizar não-sei-quantas mostras destas e outras, e quem sabe até era uma boa razão por meter muito mais gente a escrever. Os arautos da desgraça e do fim de Macau como ainda devia ser e ficou combinado podem alegar que “sendo uma iniciativa vinda dos portugueses, não há nada para ninguém”, mas prefiro pensar que não, que o problema é crónico: em Macau não se lê. A gente ou, neste caso, as gentes não lê. Se estão a ler estas linhas que aqui escrevo, parabéns, sois uma honrosa excepção.

A propósito desta notícia, que fez eco na nossa imprensa na semana passada, inquiri uma colega macaense da minha geração sobre os hábitos de leitura locais, nomeadamente quanto à forma como (não) foram incutidos pelo ensino local do período pré-transição. E claro que a resposta não me surpreendeu de todo: não se encorajava os jovens à leitura, não existia um plano nacional, regional, local ou de vão de escada, nada de coisa nenhuma. Basicamente a escolaridade cingia-se a ensinar o essencial para garantir a sobrevivência de quem ambicionava permanecer no território depois de 1999 e, com alguma sorte, “encostar-se” a um lugar nos quadros da administração. E aí já se sabe, ter uma respeitável bagagem cultural não é propriamente um predicado e pode ser que haja mesmo quem pense que não se recomenda.

Em Macau ler é considerado não um privilégio, mas antes “uma coisa” dos – e agora preparem-se que vem aí um palavrão dos grandes – “intelectuais”. E quem são estes “intelectuais”, afinal? São uns tipos que “têm a mania que sabem mais que toda a gente”, são uns espertalhões, em suma. Lêem para quê? Ganham alguma coisa com isso? Ah bem, olha olha, querem lá ver estes? Se sabem assim tanto, porque é que não blá blá blá, já se sabe, uma inanidade qualquer produzida por quem considera que “não ler” é característico das pessoas “normais”. Dos que têm mais que fazer, estão a perceber? O quê? Olha, qualquer coisa que podiam estar a fazer em vez de ler, que é perder tempo. Os senhores querem quanto, mesmo? Tanto?!?! Para quê, “livros”? Mau, mau, tomem lá uns trocos e depois venham cá explicar melhor o que queriam dizer com isso dos “livros”, seus marotos.

29 Set 2016

Miseri(a)córdia

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]uito se tem falado, e especialmente especulado, sobre a iminente mudança de instalações da secretaria notarial do Leal Senado, que vem funcionando há mais de meio século no Edifício da Santa Casa da Misericórdia. Penso que toda a gente terá uma opinião em relação a esse tema, e é mesmo possível que entre umas e outras a amplitude seja considerável, variando entre a relativização e indiferença da parte de alguns, até às mais elaboradas teorias da conspiração, da parte dos mais “criativos”. Mais uma vez prefiro ficar sentado na divisória, pois tal como toda a gente pouco ou nada sei das “verdadeiras razões” para a mudança do Primeiro Cartório para outras instalações. A não ser a versão oficial, claro, da própria Secretaria da tutela da Justiça, e se por um lado não existe nada que me leve a supor que as razões são outras além das económicas, por outro lado compreendo que haja quem “desconfie”. Uma vez mordidos…
Mas aí está – só sei que nada sei, ponto. A partir daqui posso conjecturar sobre tudo e mais alguma coisa, os verdadeiros porquês, quem não gosta de quem, ou quem foi o infeliz que pisou a cauda de um dos “dinossauros”, tudo e mais alguma coisa, mas para mim, só para mim, e para ficar dentro da minha cabecinha. Posso eventualmente comentar com alguém das minhas relações, numa conversa informal, ou “de café”, como lhe chama um dos nossos oráculos. Por falar nisso, no outro dia encontrei-me com uma amizade do exterior, que veio até cá em trabalho, a propósito da inauguração do mais recente mamarracho casineiro maquilhado de “civilização ocidental, e estivemos a conversar num café, nem de propósito. Foi refrescante poder trocar impressões sobre a actualidade de Macau com alguém que não estivesse a cada dois minutos a olhar à volta, receando comprometer-se por estar a falar de factos, que por muito sensíveis que possam parecer, são do domínio público.
Sim, na minha mente e entre “a malta” tenho carta branca para dar largas à criatividade, e se quiser posso até compor um enredo que transportado para as páginas deste jornal me deixariam numa carga de trabalhos, mas pronto, “palavras leva-as o vento”, lá dizia o poeta. Ou depende, pois não foi para meu espanto que um destes dias vejo no canal público de televisão o responsável máximo da entidade a quem o cartório vai deixar de alugar o tal imóvel a “voar pelo infinito” neste universo do imaginário. Aposto que até passou despercebido a muita gente, mas isso é apenas porque já estamos vacinados, infelizmente. Nada contra a pessoa em questão, cuja idoneidade não ouso beliscar, quanto mais questionar, mas antes as palavras, sem falar do tom infantil de chantagem emocional, mais a atirar para o desespero. Entre a “má vontade” do Governo contra a instituição que representa, e um complô ao estilo da Revolução Cultural Maoista no sentido de “eliminar os símbolos portugueses em Macau”, acho que virei na saída errada daquela estrada para a Terra do Nunca e dei comigo a pensar: sim, foram razões de ordem económica, sejas elas quais forem.
O que está em causa, no fim de contas, nem é a importância histórica daquela instituição, o bem que faz ou deixa de fazer, ou se existe realmente “má vontade”, mas antes o facto da sua própria existência depender do arrendamento de um imóvel. Permitam-me que me atreva a fazer uma metáfora recorrendo à regra das relações biológicas: quando apenas uma das partes beneficia da sua relação com outra, deixa de ser mutualismo. Em Macau não chega sequer a ser irónico ver quem supostamente ajuda os necessitados no papel de necessitado, ou pior: à esmola. É apenas “típico”, e agora querem saber o que penso realmente? É triste olhar para quem teme ter os dias contados estrebuchar feito um frango de aviário durante o abate. Mas pronto, e depois? Quanto é que precisam? Não estou a falar do dinheiro, mas antes de tempo para esquecer que aquele lugar era assim e depois deixou de existir de todo? Pronto, fazer o quê? Menos beneficência, paciência.

22 Set 2016

L’étranger

Não se esqueçam da hospitalidade; foi praticando-a que, sem o saber, alguns acolheram anjos.
Hebreus 13:2

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]uitos se recordarão certamente do despedimento de Eric Sautedé, o professor de Ciência Política da Universidade de S. José que foi saneado por aquela instituição de ensino superior por “emitir opiniões de natureza política”. Esta foi mesmo uma das manchetes de um periódico em Portugal: “Professor de Ciência Política afastado por emitir opiniões de natureza política”. Um paradoxo que teria a sua piada caso não fosse trágico para a imagem da instituição que tomou esta decisão e para a própria imagem do território. Por mais que a memória seja curta, por mais ombros que se encolham e por mais que se olhe para o lado, há dois anos foi posta a xeque uma das garantias contempladas pelo segundo sistema que vigora na RAEM: a liberdade de expressão. No mesmo ano tivemos o caso de Bill Chou, outro professor da mesma área que viu a sua relação laboral com a Universidade de Macau terminada, naquele que foi o “annus horribilis” para o primeiro executivo liderado por Chui Sai On, e que culminaria com a realização do infame “Referendo Civil”, e logo por altura da sua eleição para um segundo mandato como primeira figura política da RAEM. Não terá sido por acaso que a tão aguardada remodelação do elenco governativo efectuada em Novembro seguinte incluíu mudanças na pasta responsável pela educação.

Aquele que anda com os sábios, será cada vez mais sábio, mas o companheiro dos tolos acabará mal.
Provérbios 13:20

Conheci Eric Sautedé na sequência dessa sucessão de eventos, mais por iniciativa dele, que terá ficado com curiosidade em saber quem eu era, uma vez que dei um grande plano ao incidente no meu blogue. Fiquei a conhecê-lo a ele e à sua encantadora esposa Emilie, também ela docente na mesma Universidade, e a este ponto gostava de reafirmar que conhecia ambos da televisão e da imprensa escrita, onde eram frequentemente auscultados em relação a temas relacionados com a actualidade política do território, mas desconhecia o facto de serem casados um com o outro. Um casal de gente culta, educada, diria mesmo humilde, atendendo quer ao “background” de ambos, quer à bagagem cultural que revelavam, em suma, nada que me desse a entender que se tratava aqui de uma dupla de agitadores, fraccionistas ou como ainda alguém sugeriu, “espiões ao serviço da França” – é preciso ter bastante imaginação. Mesmo os comentários que alegadamente estiveram na base do afastamento do docente são completamente inócuos, e longe estaria Sautedé de imaginar que algo de tão fútil lhe poderia vir a trazer tamanhos dissabores.

Não amem o mundo nem o que nele há. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Pois tudo o que há no mundo – a cobiça da carne, a cobiça dos olhos e a ostentação dos bens – não provém do Pai, mas do mundo.
1João 2:15,16

Não bastou à USJ afastar Eric Sautedé, pois também a sua esposa Emily perdeu o cargo de deado da faculdade de ciência política, cargo esse para o qual trabalhou bastante, e que de um dia para o outro viu fugir-lhe das mãos, numa decisão que só pode mesmo ser entendida como intimidatória. A face de todo este agravo foi o director da Universidade, que é também um sacerdote católico assaz conhecido da nossa comunidade, e para quem a vida não ficou nada fácil depois disso. Muito se conjecturou sobre as razões de um acto que nos remete a um período da História da própria Igreja de que esta pouco se orgulha – ou não se deveria orgulhar de todo. Falou-se do interesse maior da USJ, nomeadamente na eventual concessão de um terreno para o novo campus, o que depois de muita hesitação acabou mesmo por acontecer. O custo material dessa empreitada, que desconheço, pode ser quantificado, mas o mesmo não se pode dizer do seu custo imaterial, quer moral, quer espiritual.

Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus'”.
Mateus 4:4

Sautedé deixou-nos no mês passado, indo com a família leccionar aqui ao lado em Hong Kong. Depois de verem fechar-lhe as portas no território, parte para onde muito provavelmente será mais um dos “delitosos de opinião”, muitos dos quais vêem a sua entrada barrada neste lado devido às suas posições e ideologia políticas. Não se pode dizer portanto que a RAE vizinha ficou a ganhar, mas a nossa certamente que nada beneficiou com tudo isto, e mesmo o próprio Eric Sautedé aceitou o seu destino com uma candura que provavelmente muitos de nós não teria; investiu em habitação própria neste território para onde veio quando o seu filho mais velho tinha um ano, e onde nasceu o seu segundo, e ambos vão agora precisar de fazer novos amigos, como quem começa tudo de novo, e como se viesse a fugir de uma guerra, ou de um grande mal. Será Macau isso mesmo, um “mal” para quem ousa revelar um espírito crítico? E mais importante que isso, é assim que queremos atrair os quadros qualificados que tanta falta nos fazem em tantos quadrantes? Perguntas que ficam no ar, e que acabam por adquirir um mero estatuto de retórica.

15 Set 2016

Sopa de prédio

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara o artigo desta semana pensei em falar na saída da Uber e na chegada “coincidente e oportuna” da sua irmã TaxiGo!, mas o assunto tem sido por demais escamoteado nas redes sociais e afins. Depois ponderei falar do tema dos uniformes da Escola Portuguesa de Macau, nomeadamente da polémica em torno da questão dos sapatos, mas isso requeria pesquisa para a qual me falta tempo, e sinceramente o assunto “cheira mal” – e nem é dos sapatos, uma vez que parece que ainda não estavam à venda, e a EPM já fazia finca-pé para que os alunos os usassem. Coisas de Macau. Assim no seguimento do artigo da semana passada, que versou sobre caixas de arroz, sopas de fitas e a escravatura a que o preço do imobiliário vetou a população, decidi debruçar-me esta semana sobre gastronomia.
Nem de propósito, pois ainda na semana passada ficámos a saber que as futuramente renovadas Casas Museu da Taipa não vão ter um parque infantil – perdão, um “restaurante tipicamente português”. Isto apesar do entusiasmo inicial por parte de alguns (de alguém certamente, não sei ao certo quem), após ter sido prometido, “qué d’zer” que esse espaço seria um dos atractivos, “qué d’zer”, da zona do Largo do Carmo, agora pensada, “qué d’zer” para ser mais um, “qué d’zer”, pólo de atracção turística, “qué d’zer”. (Peço desculpa, mas agora quando falo de qualquer coisa relacionada com o Turismo, dá-me este tique de meter uns quantos “qué d’zer” no meio de cada frase. Se calhar pega-se). No fim de contas “mou ha”, não vai haver nada para ninguém, e se calhar até é melhor assim. É que no fundo este restaurante português ia ser apenas “Maizum” (podia muito bem ser esse o seu nome), e se a ideia era oferecer “algo especial e diferente”, tipo fadunchos ou algo que lhe valesse, a especialidade da casa seria “os olhos da cara”, a ser servida na altura de pagar a conta. E falando de contas, nunca se sabe se depois não acontecia a estes “lusitanos” o mesmo que aos outros da casa amarela aqui atrasado, e não eram corridos dali para fora à custa de algum pretexto economicista-empresarial, e o fado ia ser outro – o do costume, aliás. Pode-se dizer, portanto, que “estava escrito nas estrelas”. Era uma relação em que a moça ia acabar com magoar o cachopo, de tão castiça que leva de fama.
O que eu propunha mesmo era um espaço que combinasse a vontade de comer com a fome da aquisição de suculenta posta do imobiliário. Um restaurante que necessitasse de dentes de leão, um estômago de ferro, e uma garganta bem larga para poderem passar alguns sapos. Não que os batráquios fizessem parte da ementa, pois essa seria, repito, algo completamente inédito, e que nem os chefes mais ousados da cozinha de fusão se atreveram a arriscar. Eis o “menu du jour” do restaurante…Sopa de Prédio!

ENTRADAS
Acabamentos sortidos: um “must”; estuque, tijolo, areia e pedaços de madeira dos acabamentos das habitações económicas de Macau. Seleccionado pelo próprio chefe, que foi “in loco” colher os ingredientes, com um firme pontapé numa esquina da sala-de-estar, garantindo assim não só os produtos mais frescos, mas também os mais amadurecidos. Au point!

SOPA
Sopa de Prédio: a especialidade da casa, e que também dá o nome ao restaurante. Não é o que se pode considerar uma sopa “enfarta-brutos”, ao contrário da sua congénere Sopa de Pedra, mas contém betão, tijolo e pedra escolhidos a dedo pelos operários mais brutos.

PRATO PRINCIPAL
Revestimenti con tutti: o nome em italiano não é por acaso, pois trata-se de um prato inspirado na transalpina lasagna. Uma argamassa servida em camadas de vigas e ripas de cimento pré-esforçado, “molto ai o dente”. Depois de algumas queixas de clientes que afirmam ter encontrado pedaços de caixas de esferovite tipo “ta bao” e garrafas de plástico vazias no seu “revestimenti”, o próprio chefe assegura a qualidade do betão, que assim é armado apenas, e não armado em parvo.

SOBREMESA:

Toucinho do chão: com escolha de soalho em azulejo, ou madeira de faia ou carvalho.
A carta de vinhos inclui o afamado Chatêaux Dyrup, ou para quem prefere os vernizados, o Suvinil Reserva 2009.
Não se aceita cartão de crédito, mas há uma tentadora oferta de um frasco de laxante na eventualidade de uma segunda hipoteca.
Bon apétit!

8 Set 2016

Caixa de arroz & Sopa de fitas

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma das coisas que nos salta à vista assim que arredamos os pés de Macau é a quantidade de coisas que não encontramos nos supermercados e mercearias do território. Sim, é verdade que basta ir aqui ao lado a Hong Kong para constatar que os supermercados de lá têm muito mais variedade de produtos, mas é quando vamos mais longe e por mais tempo que nos apercebemos da dimensão do “problema” – pelo menos para mim é um problema, mas já lá vamos. Uma mercearia de esquina na Alemanha ou na Itália, por exemplo, tem nas prateleiras produtos alimentares que aqui seriam catalogados de “gourmet”, e o seu preço seria inflacionado dez vezes. Pode ser que haja quem defenda que os gostos deste lado “são diferentes”, e não vou discordar, de todo. Enquanto noutros lugares as pessoas não se importam de investir nos prazeres da vida, comer num bom restaurante ou ter uma dispensa cheia e variada, em Macau “dá-se valor ao dinheiro”. Não por sensatez, mas mais por falta de alternativas, infelizmente.
Quando abordo este tema, gosto sempre de recordar um episódio que se passou comigo há uns anos, quando comprei um gelado de uma marca conhecida numa mercearia aqui perto de casa. Quando perguntei quanto era, a senhora pediu 15 patacas, e enquanto eu tirava o dinheiro do bolso, é para meu espanto que a ouço desabafar“…esse dinheiro dava para comprar duas caixas de arroz”. E eu estava a dar-lhe negócio, convém recordar. Isto passou-se há anos, e apesar de já não custar apenas sete ou oito patacas, uma caixa de arroz continua a ser o que era: uma caixa de esferovite com arroz branco acompanhado de uma quantidade diminuta de carne, peixe ou vegetais, a escolher de umas travessas de alumínio colocadas à porta dos estabelecimentos da especialidade ao final da manhã e depois da tarde. Há quem compre uma caixa de arroz ao almoço, coma apenas metade, e “guarde o resto para o jantar”.
Assim como estas que vendem as caixas de arroz, há ainda as lojas de “sopa de fitas”, e quanto a estas não há que enganar, pois há praticamente uma em cada esquina. Pode-se mesmo dizer que é a única aposta em termos de investimento na restauração em Macau em que não se corre o risco de ter a loja completamente às moscas: a qualquer hora do dia há alguém que quer uma “sopa de fitas”. E como escolher? Os entendidos na matéria podem atender a factores como a antiguidade do estabelecimento e um ou outro particular em termos de ementa, mas basicamente são todos a mesma coisa, e leva vantagem aquele que for “mais barato”. Pode servir a melhor “sopa de fitas” do mundo, mas que não se atreva a cobrar 50 patacas por uma tigela de massas (a não ser que seja algum estabelecimento procurado por clientela de fora, normalmente de Hong Kong, e nesse caso pode cobrar aquilo que quiser).
Tudo isto não quer dizer necessariamente que em Macau as pessoas tenham mau gosto, ou não gostem de comer bem. O que acontece é uma espécie de “ditadura das prioridades”, e para os chineses em geral o que está em primeiro lugar é “ter uma casa”, ou seja, habitação própria. No passado era menos complicado comprar uma fracção, mas com a especulação imobiliária empolada por uma interpretação muito singular do conceito de “mercado livre”, tornou-se praticamente impossível a um casal da classe média adquirir uma moradia decente, e mesmo este conceito de “decente” passa muitas vezes por uma caixa de fósforos inflacionada num bloco de 30 andares com oito moradias em cada um deles, e onde vivem literalmente milhares de pessoas. A estes está reservada uma longa dieta de caixas de arroz e de sopas de fitas.
Quem já tinha habitação própria e entretanto adquiriu mais uma ou duas, entrou no jogo, que é como quem diz, recuperou o investimento com lucros avultados, ou tornou-se cúmplice do desregrado mercado do arrendamento de imóveis, onde qualquer desculpa serve para se aumentar a mensalidade. Outros investiram nos “lao fa”, os tais imóveis que ainda antes de existirem são vendidos e revendidos várias vezes. A recente bronca envolvendo o edifício Pearl Horizon seria revoltante em qualquer parte do mundo, mas sabendo o que se sabe, como é que os investidores ludibriados daquele empreendimento convencem seja quem for de que se arriscam a ficar a viver na rua se não for encontrada uma solução? Estas “casas” que tantas vezes se compram e vendem sem que alguma vez tenham entrado nelas estão depletas de humanidade. Não foi ali que conceberam os filhos, ou onde os viram crescer, nem lhes dão qualquer outro valor que não seja o do mercado. E no fim ainda pedem ao Governo que interfira, quando antes queriam tudo menos a sua interferência.
Não é porque não gostem ou porque não queiram que os residentes de Macau se abstêm de aproveitar os pequenos prazeres que a vida lhes proporciona, mas sim porque se tornaram escravos de um esquema pérfido, mais negro que a face mais negra do capitalismo. Não é o pragmatismo que os leva a calcular as despesas em caixas de arroz e sopas de fitas, que assim se tornam numa denominação local não-oficial, mas que no entanto consegue ser tão corrente como a própria pataca. E há ainda os que têm e querem mais, que fazem das caixas e das sopas o seu combustível, que avidamente aproveitam promoções de descontos de dez patacas do McDonald’s, passando para fora de Macau a imagem de que no território existe fome endémica, e tudo apenas porque de barriga vazia não se fazem negócios. A esses espera-lhes um dia uma caixa maior, e tudo o que têm para enchê-la é arroz.

1 Set 2016

Ubermón, Go !

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Exmo. Sr. Secretário para a Segurança da RAEM (também conhecido entre os meios marginais por “manda-chuva da chibaria) veio manifestar a sua “preocupação” com o aumento dos casos de criminalidade violenta em Macau. Preocupação que manifestou em seu nome e das Forças de Segurança em geral, sugerindo que se trata de um problema a que convém dar alguma atenção, pois a inacção é comprovadamente mais eficaz em casos de aguaceiros ou neblina matinal – a criminalidade violenta não “passa” se a ignoramos. Mas lá estou eu outra vez a conjecturar recorrendo apenas ao senso comum, algo que em Macau é tão abundante como a neve em Julho. O problema é que esta “criminalidade violenta” a que o sr. Secretário se refere tem o senão de estar directa ou indirectamente ligada ao sector do jogo, e aí, alto e pára o baile, que com a tropa não se manga, e pouco importa que esteja aí a jorrar sangue e precise urgentemente de aceder hospital mais próximo – a vaca sagrada resolveu deitar-se na estrada, e só saímos daqui quando ela quiser.
Neste particular, entende-se por “criminalidade violenta” os crimes de sequestro, cárcere privado, e todos os demais afluentes desse grande rio que dá pelo nome de “agiotagem”. Fulano empresta um milhão a um pobre diabo que se deixou escravizar pelo vício do jogo, este promete devolver-lhe o quíntuplo dessa quantia “quando ganhar”, e depois é o que se sabe. Eu desconfio que estes malandrins tiram algum tipo de prazer mórbido desta neurótico empreitada. Quer dizer, é preciso ser idiota “muito acima dos cem por cento” para acreditar que este “investimento” virá a trazer o retorno inicialmente acordado entre as partes. Para mim isto é gente sádica, que faz do rapto, da tortura, da chantagem e do homicídio um fetiche, e cujo libido se alimenta dos prantos dos familiares das suas vítimas, a quem ceifam a vida com a mesma indiferença que um funcionário das finanças carimba uma declaração de rendimentos. É um mundo que não interessa mesmo nada conhecer.
Pois é, muito comovente, sim senhor, mas mexer neste vespeiro não se recomenda, e é mau para o negócio. E depois como ficava o combate a esse flagelo ainda maior que dá pelo nome de – e certifiquem-se de que não estão crianças por perto quando estiverem a ler isto – UBER! Compreendo e resigno-me caso o jornal opte por censurar esta obscenidade criminosa que acabei de digitar. Até porque não existe legislação que me autorize a escrever “UBER” num jornal diário, ou uma lei que permita a este publicá-la, portanto bem vistas as coisas, é possível que estejamos a incorrer de um ilícito criminal grave. Lembram-se da tal vaca sagrada mencionada mais acima neste texto, e da sua vontade soberana? Ah pois. Então é ilegal ou não? Como ficamos? Perguntem-lhe.
Só pode ser mesmo o Jackpot dos crimes, este de fornecimento de serviço de transporte de táxi sem licenciamento, olhando aos meios humanos que as autoridades investem neste “combate”. Os “mas” é que são de perder a conta, a contar pela própria atribuição de competências; se a UBER está a cometer um crime económico, não caberá antes aos Serviços de Economia determinar a legalidade ou a falta dela, e fazer a respectiva fiscalização? E se realmente se trata aqui de um ilícito criminal “de chapa”, que tal chamar um carro da UBER, confirmar com o próprio motorista que se trata dessa companhia, e depois é só engavetar o biltre, que havia acabado de confessar o seu hediondo crime naquele momento. Dá para imaginar os meios logísticos empregues pelas autoridades para que tenham identificado 286 (!) casos de “transporte ilegal” em dez meses? Suspeito que estes números podem ficar aquém do número de taxistas autuados nos últimos seis ou sete anos. Enquanto no restante mundo civilizado se apanham “Pokemons”, aqui em Macau o entretenimento da polícia é o “UBERMÓN, GO!”.
E agora circulam rumores de que a UBER poderá cessar as suas operações em Macau já a partir do próximo mês, pois os mais de dez milhões de patacas dispendidos em multas não são propriamente um estímulo ao investimento (esta “curiosidade” fez manchete na edição de segunda-feira no Diário de Notícias, pasme-se!). E nunca em circunstância alguma a companhia em questão se propôs a substituir o serviço de táxis, ou se apresentou como alternativa: era apenas “mais um serviço”, como existem outros de transporte privado para além dos táxis.
Assim como estamos, o melhor mesmo é deixar andar a carroça, e pouco importa que um burro esteja cego, outro manco, e outro ainda especialmente inactivo já há alguns dias, e aquele afluxo de moscas à sua volta muito maior que as habituais duas ou três não auguram nada de bom. Até imagino como seria um encontro entre um agente da autoridade e um “criminoso violento”.

– O meu amigo está aqui para à espera de alguém? E de quem, pode-se saber?
– Concerteza, sr. agente. Estou à espera que uma das minhas tipas me venha entregar a massa que angariou hoje no “ponto”, para emprestar a um pobre pateta viciado na jogatina, com juros de 10 000%.
– Ai sim, mas não está à espera de nenhuma viatura com a aplicação da UBER…ou não opera você próprio com recurso a essa aplicação, pois não?
– Eu? Na. A minha área tem mais a ver com a usura, o sequestro, a extorsão, chantagem, tráfico de estupefacientes. Olhe, trafico pessoas também, quando calha.
– Sim senhor, um empresário e pêras! Não o atrapalho mais, e desculpe o incómodo de lhe ter feito perder o seu tempo – tempo é dinheiro. Mas já agora, como bom cidadão que é, fique de olho nesses tipos da UBER. Não vão eles querer levar ao aeroporto alguém que esteja prestes a perder o avião por não conseguir encontrar um táxi. A lei é para se cumprir, ora. E a não-lei…depende.

25 Ago 2016

Um sonho oriental

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]onsideremos dois personagens: Manel e Maria, um feliz casal da Bobadela dos meados dos anos 90 do século XX. Manel era um simpático talhante da Brandoa, enquanto Maria trabalhava a dias na Reboleira. Com dois filhos pequenos, lá iam sobrevivendo e trabalhando duro para pagar as contas no fim do mês, até ao belo dia em que Manel decidiu aproveitar um dinheirinho extra de umas casas que o avô lhe deixou para tirar um curso de qualquer coisa à noite. Não era fácil estudar e acordar às seis da manhã para ir descarregar os lombos, os leitões, os coelhos e as codornizes, mas Manel lá se ia aguentando à bronca. Um dia soube por um primo no ministério/amigo na Câmara/cunhado nas Finanças que “precisavam de gente em Macau”, e chega excitadíssimo a casa para dar a notícia à Maria. Feitas as contas, a pataca era vinte e tal paus na altura, vinte e tal mil patacas eram quase quinhentos contos, portanto a única opção era partir. 
Os miúdos vieram também, fizeram logo amigos entre os filhos da nata da sociedade que também estudavam no Liceu. Manel era um caso de sucesso: indispensável na sua companhia, via o contrato renovado ano após ano, e era o “Sr. Dr. Manel”. Maria já nem precisava de trabalhar: ficava a tomar conta da casa, saía para a amena cavaqueira com as mulheres de outros manéis, era um regalo. Os filhos compravam tudo o que queriam e que nunca imaginariam ter se tivessem ficado na Bobadela; iam às lojas de Hong Kong com os amigos, e aos fins-de-semana gastavam mil patacas por noite. Quando iam de férias a Portugal no Verão, eram os putos mais ricos da Bobadela e arredores.
Como era diferente a vida em Macau. Na Bobadela jantavam fora nos aniversários e domingos santos, sempre no Zé da Rolha, em Alfornelos. Em Macau comiam fora todos os dias, e às vezes em hotéis de luxo. O mais longe que tinham ido quando viviam na Bobadela foi ao Alentejo, aquando da lua-de-mel, e ficaram numa pousada. Agora conhecem “toda a Ásia”, e não se inibem de falar com naturalidade de Tóquio ou Singapura aos vizinhos, amigos e primos, que nunca foram a lado nenhum e ficam a escutar a bazófia, ostentando um sorriso amarelo. No Natal vão à Tailândia fazer praia, coisa tão banal que já enjoa, enquanto que nos tempos idos da Bobadela iam acampar na Costa da Caparica, Verão sim, Verão não. Em Macau a empregada “deixa o jantar feito”, na Bobadela o jantar era às vezes o resto do cozido de Domingo, ou uma pizza congelada. No Verão vão de férias a Portugal, atenção, Por-tu-gal. Manel e Maria deixaram a Bobadela e agora têm uma vivenda em Loures, e são “gente bem”.
Os anos passam e Maria já faz parte do “jet-set” macaense. A antiga sopeira que não acertava num puzzle da Roda da Sorte ou num prémio bom do “1,2,3” começa a frequentar eventos sociais, concertos que a aborreciam imenso e exposições ridículas. Não falta ao lançamento de um livro de um autor local, e leva sempre uma cópia autografada. Diz que “consome cultura” e pertence praticamente a todas as associações lusófonas. Grande homem e apreciador de uma boa farra, Manel começou a sair com os amigos, primeiro em fartas jantaradas, uma ocasional bisca, e uma visita à sauna ou clube nocturno onde saltam as margaridas frescas. 
Manel, que já não sabia o que era uma anca estreitinha desde os anos 80 do século passado, fica louco com as russas, as mongóis (ou “mongolóides” como ele as chama), as tailandesas e as indonésias. Tudo fruta dos trópicos ou das estepes, e Manel deixa sempre uma ou duas notinhas de mil pelo menos uma vez por semana. Seria um escândalo lá na Bobadela, com a Maria a atirar os pratos ao Manel enquanto gritava “eu mato-te, desgraçado”, mas aqui é tudo muito mais suave – bem como quente e húmido. O Manel não é “má pessoa” ou sequer um “adúltero”, é simplesmente um daqueles simplórios (lá no fundo), que gosta de se divertir de vez em quando, e pronto, o conceito de diversão é pessoal e variável. Além disso as russas, mongóis, romenas, etc. têm a “escola toda”, e fazem “coisas” que a Maria “nem sabe que existem”. Parece que existe uma relação íntima entre o facto de ter dinheiro e poder e querer fornicar tudo o que apareça pela frente. E um homem não deve morrer estúpido, além tudo o que o Manel sabia do sexo oposto antes de vir para Macau, aprendeu com a Maria. 
Maria sabe, ou pelo menos desconfia das escapadelas de Manel. Para ela tudo bem, desde que o homem não dê muito nas vistas, e principalmente que “não deixe as amigas saber”. Maria sabe que pedir o divórcio a Manel por este andar metido com meninas da pouca vergonha adianta de pouco, e ainda os amigos advogados do Manel lhe faziam a caminha, e lá voltava ela para a santa terrinha com o rabo entre as pernas – salvo seja. Manel pouco se rala se Maria sabe ou não sabe, portanto duas ou três vezes por semana lá há reunião no escritório “até tarde”, e “não vai ser preciso esperar para jantar”, e acima de tudo “o telemóvel está em meeting”. Entretanto os filhos estão na universidade, ou já casados, e fizeram vida lá em Portugal, onde estão remetidos à vulgaridade da Bobadela ou da Brandoa. 
E lá vão Manel e Maria vivendo até ao limite o sonho oriental. Pelo menos enquanto vai dando…

28 Jul 2016

O mundo sério (a sério)

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]vida deve ser levada a brincar. Eu próprio sou muito brincalhão, gosto de rir, gosto de andar bem disposto – tristezas não pagam dívidas, e eu nem tenho tantas quanto isso (dívidas, entenda-se). Não aceito que se viva a trabalhar “a vida toda” para depois “usufruir” dos anos mais miseráveis da nossa vida, os da velhice, o “Inverno da Vida”, que soa a algo de frio, insonso e mole, “sem graça nenhuma” – lá está, o que não tem graça nenhuma é normalmente qualquer coisa muito pouco recomendável. 
Irrita-me aquela gente que se diz muito “séria”. Aliás “sério” é uma palavra que devia ser simplesmente eliminada do dicionário, juntamente com a sua mãezinha, a “seriedade”. Ou deviam ser guardadas apenas para descrever desgraças, como “acidente revestido de seriedade, 40 mortos”, ou “a história séria de uma viúva e os seus três órfãos menores”. Qualquer coisa de funesto, trágico, horrível. Quando se diz que alguém “é um gajo sério”, normalmente isto aplica-se a um fdp qualquer sempre mal disposto, com cara de caso, pálido, fato preto e orelhas grandes, ordinário com as mulheres e rude com os empregados, cruel com a mulher e filhos. “Vamos levar isto a sério” é uma expressão normalmente usada para “acabar com a brincadeira” (no mundo da gente séria brincar é considerado uma coisa má), que é capaz de arrancar o sorriso a qualquer semblante. Quando alguém lança um “vamos levar isto a sério” cai uma penumbra de silêncio que torna uma tarefa potencialmente divertida numa “obrigação” – outra palavra que só devia ser usada no léxico bancário. 
Quando se diz que qualquer coisa “é um caso sério” quer dizer que ou alguém está às portas da morte, ou existe uma situação impossível de resolver, e como sabe o leitor cristão, “tudo é possível com Deus” (esta foi fraquinha mas serve como comentário social). Quando se condena alguém por “não ser uma pessoa séria”, é como condená-la às galés; ser sério é ser “funcional”, quem “não é sério” está destinado a ir limpar latrinas: “o mundo é dos sérios”. O reverso da medalha é que o veneno da seriedade também serve como antídoto. Se fulano que desbaratou dinheiros públicos, saqueou instituições ou cometeu fraude a cobro da posição de poder que ocupa, basta ir à TV e dizer que “é sério”. Funcionou durante uns tempos com Vale e Azevedo, por exemplo (é preciso não esquecer que do outro lado estavam benfiquistas, mas tudo bem). 
O mais curioso é que os tais fdp acima referidos fazem uma piada e dizem que têm “sentido de humor”, apesar de tudo (o que não é pouco). Se outros ousam fazer humor, o “gajo sério” chama-os de “engraçadinhos” (uma coisa má) ou “palhaços”. A palavra “palhaço”, que sempre associei com crianças, balões e alegria, é o pior insulto que se pode chamar entre “gente séria”. Talvez porque o palhaço está associado ao “circo”, que é um estado de coisas inaceitável para os sérios. Quando uma situação “é um circo” é porque não há mesmo nada a fazer – eis o circo máximo das coisas sérias. Quando se diz que certa notícia “não deve ser levada a sério”, é aí que mais se aguça a minha curiosidade: se não é “sério”, então só pode ser uma coisa “engraçada”, o que é bom, e interessa-me saber, por isso contem-me já.
Se se diz de alguém que “está sempre a brincar”, isso é meio caminho andado para “não ser levado a sério”. As mulheres ditas “sérias” (que las hay, hay) respondem com um impulso diferente, e dizem que certo fulano que vive a vida descontraidamente “é imaturo”, ou pior, “infantil”. Que mal tem ser infantil? Eu é que não quero ser gimbra com uma barriga de bagaço, careca, enrugado e asqueroso. Tragam-me já a minha infância de volta, façam de mim um Peter Pan (Mas sem aquelas orelhas. E as ceroulas). E vive la comedie!

21 Jul 2016

Chiu! A malta quer ver a bola!

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]sta semana que amanhã finda teve um sabor diferente para os Portugueses, mundo da Lusofonia em geral e todos os seus simpatizantes (Ola Galicia, mando aquí un gran abrazo!). A noite de domingo para segunda marcou um momento que ficará para sempre guardado na nossa novecentista História como o fim de todos os “eu já sabia, e com eles os “o que é que tu querias?”, e ainda os “não se esperava outra coisa”, já para não falar dos insuportáveis “o contrário é que seria de admirar” – Portugal ganhou uma grande competição internacional futebolística! Não, não foi em Sub-17, Sub-19, Sub-21, Submarinos, nem no torneio de Toulon para os tolos, e nem no insípido, irrelevante e indiferente torneio olímpico (o que já não era mau de todo; era melhor que nada…): foi no Euro! Esse mesmo, o Europeu de futebol organizado pela UEFA, seniores, masculinos e sem ser para cegos, amblíopes e outros deficientes, presidiários, sem abrigo, sacerdotes católicos ou de orientação especificamente LGBT – um Euro a sério! Sim, um desses! Não, não está a sonhar!
Teve graça, por acaso teve. Foi a expressão máxima da ironia, que num torneio onde praticamente a nossa selecção andou duas semanas por França a “apanhar bonés” e sem dar uma para a caixa, acabaria por contornar os Adamastores, e sem dar ouvidos aos velhos do Restelo lá fez da Tormenta esperança, e da esperança certeza. Não fomos tanto assim iguais aos gregos em 2004, como por aí se disse, e talvez as semelhanças se ficassem pelo título conquistado na final frente à equipa da casa, mais nada – e logo por azar fomos nós. Sejamos honestos: ninguém esperava grande coisa dos gregos, que foram como um pobrezinho a quem fazemos sempre uma sandes quando nos bate à porta, ou damos umas roupas que já não queremos, até ao dia quando nos distraímos e o ingrato nos rouba as pratas. Sim, eu sei que esta metáfora pode não ser do gosto de muita gente, mas lá está: não se pode agradar a gregos e troianos.
Nem encontro muitas semelhanças entre esta epopeia com a outra dos dinamarqueses em 92, quando nem se haviam qualificado para o torneio final na vizinha Suécia, mas acabariam repescados por um motivo atroz: a guerra na ex-Jugoslávia, país que tinha ficado em 1º lugar no grupo da Dinamarca. E assim os “vikings” – são todos “vikings” estes dinamarqueses, noruegueses e agora até os islandeses, valha-me Odin para aturar tamanha presunçåø – foi até ali ao lado mostrar a holandeses e alemães como se faz. Um típico argumento de Hans-Christian Andersen com realização de Ingmar Bergman, portanto. Chato, frio, descartável – a nossa aventura foi outra, meus. Foi a vez do “não estamos nem aí”, e mais ninguém senão o nosso capitão poderia ter sintetizado todo este sentimento numa só frase: “Se perdermos, que se faça amor” (versão auto-censurada).
E que final memorável aquela em Paris, meus senhores. Como tivemos garra, e como olhámos o adversário nos olhos sem medos, e podia vir qualquer um que estava ali Portugal; os novos, os velhos, os brancos e os pretos e até um cigano! Tínhamos um madeirense, dos Palopes um de cada se não estou em erro (terá faltado S. Tomé? Moçambique? Who cares?). Até com dois desertores contávamos nas nossas fileiras, um tal “monsieur Adrien” e um outro “monsieur Raphael”, e ainda o Cédric que nasceu na Alemanha, o Pepe que importámos do Brasil, e como cereja no topo do bolo o nosso guarda-redes, que se chama…Patrício. De ir às lágrimas, de tão poético, que até parecia estar escrito que seria desta. E a comandar todo esta macedónia de lusitanidade? O Santos. Tinha que ser com um Santos que íamos lá. Ou com um Silva, ou quem sabe um Antunes, alguém que transmitisse aquela imagem de quem acaba de abrir a tasca e atende os primeiros fregueses do dia enquanto limpa a um pano as mãos que haviam acabado de esquartejar um galinácio: “ Atão o quéque vai ser póchenores? Um eurozito? Então sai um eurozito qué a especialidade da casa”.
Não foi nenhuma tragédia grega, não senhor. Nem o rei ia nu, nem haviam sereias, e só ganhámos um jogo no tempo útil, e depois? Ganhámos o jogo que interessava antes do jogo que decidia, e aí fomos tudo o que nos tem faltado, cum camano. Finalmente fomos grandes na hora de ser grandes. Pelo meio fomos repescados, mal amados, desprezados – e até pelos nossos, e eis os velhos do Restelo para a epopeia ficar completa. Até cheguei a ter pena dos maldizentes, coitaditos, que quiseram dar uma de chicos-espertos que apostam em todos os cavalos menos um, e no fim ganha esse, que à partida até parecia manco e aparentava um ar de que depois da corrida ia directo do Hipódromo para a fábrica da cola. Mas pode ser que esta vitória lhes ensine uma lição, especialmente aos aficionados do pessimismo, aos profetas da desgraça que apregoam os seus ais ao ritmo do velhinho e decrépito faduncho lusitano: “ai como EU sofro”, “ai como EU ganho mal”, “ai como EU sou infeliz”, e depois? Não tem cunha? Tivesse! Não rouba? Roubasse! Se for apanhado? É porque foi burro, e eu não vejo os que estão bem na vida a queixarem-se de como estes adoram arrastar os restantes com eles para a fossa do “ai Jesus como sofro, coitadinho de mim”. Vão lá sofrer para outro lado e não chateiem, que a malta quer ver a bola. E Portugal foi campeão ou não? TOMA!

14 Jul 2016

Animais e outros que tais

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]í está a famigerada lei da protecção dos animais, finalmente aprovada após um bom par de anos de discussões, hesitações e reprovações. O diploma passou na Assembleia Legislativa com os votos a favor de quase todos os deputados, com excepção de dois que votaram contra e uma abstenção, havendo ainda um deputado que esteve ausente deste momento verg…verdadeiramente histórico. O deputado ausente foi Ma Chi Seng, e os dois votos contra foram de Pereira Coutinho e o seu colega de bancada Leong Veng Chai, com o primeiro a justificar-se com as “deficiências na redacção da versão em português da lei”. Quero acreditar que sim, que terá sido esse o motivo porque o deputado votou contra, e que não o fez por mero despeito – recorde-se que Coutinho havia apresentado propostas de lei idênticas a esta, que foram no entanto reprovadas pelos seus colegas de hemiciclo que tanto o estimam. Fosse o sarcasmo um mamífero senciente, e estava agora metido num grande sarilho, por dele ter “abusado”.
Esta ideia da redacção deficitária da lei foi corroborada por Leonel Alves, que se absteve pela mesma razão que Coutinho votou contra, o que levou a sra. Secretária para a Administração e Justiça a prometer uma revisão atempada da versão portuguesa do diploma. Infelizmente sou induzido a pensar que a lei podia até ter sido elaborada por uma criança semi-alfabetizada, e passaria na mesma, uma vez que foi o Governo a apresentá-la. Em teoria o órgão legislativo tem entre outros o dever de fiscalizar o órgão executivo, mas em Macau a teoria fica por isso mesmo, e na prática o que se passa é…”um caso exemplar de coordenação” entre os dois poderes. Vá lá, se não for com um bocadinho de humor a empurrar, fica muito mais difícil de digerir.
Confesso que para falar deste tema fui rever o artigo que escrevi nas páginas deste mesmo jornal a 20 de Fevereiro de 2014, aquando de uma das “negas” à proposta de Pereira Coutinho, e nem de propósito verifiquei que na conclusão deixei expressa essa mesma ideia: de que uma eventual lei deste tipo dependeria da iniciativa do Executivo. No entanto há a reter as intervenções de alguns deputados, que mais uma vez deram a entender que a sua “praia” é outra. Podiam abster-se de proferir certas afirmações que em nada os dignificam, mas alguns até se parecem divertir com aquilo que consideram “inútil” – afinal os cães e gatos não votam.
E é sobretudo de cães e gatos que se trata esta lei, se deixarmos de fora os preciosismos. O nº 1 do artº 8º, por exemplo, determina que a utilização de animais em circos, exposições e espectáculos ao público (sic) carece de autorização prévia do IACM, com excepção dos peixes. Podem ficar descansados os domadores de bacalhau e restantes carapaus de corrida. Li as partes que interessavam do diploma – até às disposições finais e transitórias, portanto – e não me pareceu tão mal elaborado assim. Quer dizer, pareceu-me “normal”, sabendo o que a casa gasta. No entanto aprendi uma palavra nova: “occisão”. Por instantes fiquei a interrogar-me o que tinham os habitantes do sul de França (os occitanos) a ver com os bicharocos desta jurisdição tão distantes, mas depois vim saber que esta é a versão animalesca de “assassinato”, e mais aliviado fiquei quando o próprio dicionário me garantiu que se tratava de uma palavra “pouco usada”.
Mas é disto que a lei se trata no essencial: criminalizar o abandono e os maus tratos aos animais, com multas até 100 mil patacas e penas de prisão até dois anos, respectivamente. Se no primeiro caso fica tudo claro como a água, pois no caso dos cães existe um “chip” implantado no animal que identifica o dono, no segundo caso muda tudo de figura. Primeiro é preciso entender que esta lei não foi feita para os cães e gatos. Por muito que certas pessoas insistam em atribuir aos bichos sentimentos como a nostalgia ou qualidades como o ouvido musical, não convencem ninguém de que estes seres irracionais conseguem assimilar o conceito de “lei”, e de que esta em particular foi feita para eles, e de que se podem socorrer da mesma caso seja necessário. Isto tudo para dizer que o crime de maus tratos a animais não depende tanto de queixa, mas mais de denúncia.
É aqui que entra a questão da sensibilidade de cada um para este tipo de coisas, pois há quem relativize um pontapé numa galinha, e há também quem queira boicotar a Irlanda por causa das corridas de galgos (para bom entendedor…). Não conheço ninguém que maltrate animais por prazer, mas talvez seja por culpa própria, pois não frequento os mesmos locais que os sádicos e os psicopatas que se excitam com o sofrimento de outros seres vivos. Posto isto, não é despiciendo ponderar a hipótese da tal “denúncia” ser feita em moldes que podem variar conforme quem denuncia. Há quem veja um indivíduo tropeçar num cachorro por acidente no momento em que o bicho se atravesse à sua frente quando ia a sair de casa, e há quem veja um biltre que esperava que o pobre animal passasse pela sua porta para lhe saltar em cima e espezinhá-lo. Louvada seja a lei, que protege os animais irracionais da eventual sacanice de outros que às vezes se esquecem que são racionais. Mas quem protege os verdadeiramente racionais da ira dos que teimam em comportar-se como irracionais?

7 Jul 2016

Vacina anti-britânica

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] referendo da última semana que ditou a saída do Reino Unido da União Europeia teve mais que esse efeito, que agora temos como certo que realmente se concretizará: ensinou-nos também um pouco mais sobre nós próprios, sobre os outros, e sobretudo do que cada um espera retirar para si daquilo que no fundo é suposto pertencer a todos. O efeito imediato do Brexit teve um impacto alarmante, com mais incidência nos mercados, e todas as previsões apontavam para o mais negro dos cenários. Este despertar em sobressalto levou a que nos dias seguintes surgisse um novo neologismo condizente com a surpresa de quem foi dar este salto no escuro e deu consigo a pensar que se calhar fez a escolha errada – o “bregret”, uma sensação de arrependimento que bate mais forte que a ressaca comum. É como acordar no dia seguinte e a última coisa que se lembra da noite anterior foi aquela primeira bebida, ainda a procissão ia no adro. Exactamente isso que estão a pensar, sim, mas aqui não basta um mero “check-up” médico para afastar os piores receios. Esta é uma aventura cujas consequências não a deixarão apagar-se da memória. Será necessário aprender a viver com elas.
Se há um responsável máximo por aquilo que tanto pode vir a ser um simples virar de página da História, como um terrível equívoco é sem dúvida alguma o primeiro-ministro britânico David Cameron, que doravante poderá muito ser referido como “aquele pateta que feriu de morte o projecto da construção europeia” – mas terá sido mesmo de morte? Agora que as potências mundiais extra-UE começam a digerir a “brain and kidney pie” que o eleitorado britânico lhes serviu em dose cavalar, é de altura de adaptar as relações do Reino Unido a esta nova realidade, que os restantes elementos da União querem ver concretizada “o mais brevemente possível”. E de facto convém que assim seja, uma vez que manter um membro “morto” pode levar a que os restantes gangrenem, mas em condições normais seria quase uma certeza que a UE iria funcionar sem o Reino Unido, e não era mais ou menos isso que acontecia? Os britânicos nunca estiveram de alma e coração na União, rejeitaram o Euro, e basicamente estavam ali descontentes por não conseguirem retirar as o maior número de benefícios enquanto evitavam compromissos – no fundo resiste ainda na velha Albion uma certa mentalidade imperialista, arrogante e supremacista. Foi com essa arrogância que Cameron procurou um estatuto dentro da UE que os dotasse de mais regalias, mas mediu mal o momento, e acabou dar um tiro não no pé, mas nas duas pernas.
Do muito que li sobre o Brexit nestes seis dias, há duas opiniões que me pareceram pertinentes, e vindas de quem tem uma perspectiva que nos pode dizer mais a nós, portugueses: Miguel Esteves Cardoso, ou MEC, o português mais britânico do mundo, e Lucy Pepper, britânica de North Devon, no sudoeste de Inglaterra, mulher dos sete ofícios de quem tenho a inexcedível honra de trocar impressões de quando em vez (dentro daquilo que permite a sua típica arrogância britânica, que no caso dela é encantadora). Frontal como sempre, MEC fala de dois Reino Unidos: o cosmopolita, europeísta e de horizontes mais largos, e do outro, conservador, tradicionalista, fechado e retrógrada, e sugere a criação de dois estados: um dentro da UE, com os 48% que optaram pela permanência concentrados nas áreas metropolitanas de Londres e Manchester, e os restantes anti-europeístas numa área que se chamaria “Reino Unido da Inglaterra e do País de Gales”, onde se proibiria “toda e qualquer imigração”. Lucy Pepper, que vive em Portugal porque “é provavelmente o melhor país do mundo para se viver”, e “muito dificilmente consegue imaginar-se a viver noutro lugar” (é adorável, a sério!) fala das diferenças entre as duas campanhas, e de como os apologistas do Brexit faziam uso do ódio, do medo, quase como em jeito de chantagem. Convém referir que estes dois cronistas se encontram à direita do compasso político.
E foi exactamente no aspecto que ambos MEC e Lucy Pepper referiram que se decidiu por uma saída sem retorno do Reino Unido, que paradoxalmente poderá deixar de o ser a médio prazo caso a Escócia e o País de Gales decidam eles próprios referendar a saída dessa união, nem que seja com o pretexto de quererem continuar ligados à UE. E isto que sirva de aviso aos restantes estados membros, pois com uma eventual implosão da União e sem a respectiva coesão entre os seus membros, não há limites para o que poderá acontecer em países como a Bélgica, Itália e especialmente a Espanha, onde os movimentos separatistas ganhariam força com o argumento de que mais nada os impediria de alcançar uma total autonomia. E isto pode acontecer a bem, mas o mais provável é que corra muito mal.
De Portugal e dos portugueses tenho observado um misto de apreensão e optimismo irresponsável. Quem como eu se lembra de como era o país e de quão distante estava o resto da Europa, apesar de geograficamente próxima, não olha com bons olhos um eventual retrocesso que nos vetaria a um estatuto ainda mais periférico que o actual. Dos outros que acreditam que isto é uma boa ideia, tudo o que oiço em constante “replay” é a colectânea “Os maiores êxitos do Populismo Saudosista Lusitano”, mas isto tem uma razão de ser. Um dia destes lia uma notícia que dava conta das implicações do Brexit no campeonato inglês de futebol, a Premier League, e de como os jogadores comunitários iam passar a contar como estrangeiros. Num dos comentários lia-se qualquer como “como se isso tivesse interesse para mim, que tenho que viver com 600 euros por mês depois de uma vida a trabalhar”. É este o problema dos portugueses em particular, quando falam do 25 de Abril, por exemplo, e de como as coisas lhes correram mal, como se a liberdade que foi conquistada em nome de todos os tivesse a eles como “convidado especial”. Certamente que os que souberam aproveitar o bem que adveio de sermos os donos do nosso próprio destino, e integrados no seio de outros como nós com o propósito de nos tornarmos ainda mais fortes temem o que pode sair deste Brexit. De facto a UE tem pecado por não atender às necessidades dos cidadãos europeus, e é pena que tenha que acontecer a saída de um dos seus principais elementos para se repensar o projecto. Mas será que se uma das pernas está manca, temos mesmo que cortá-la?

30 Jun 2016