Um canhão e uma cabana

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]ntem durante uma das pausas para o café (leia-se um dos momentos em que a cada meia hora se vai espreitar o Facebook – e nem falo por mim) deparei com uma animada discussão em torno de mais uma declaração do deputado e empresário Fong Chi Keong na última terça-feira, durante a discussão da proposta de lei do regime de providência central não obrigatório. Penso que nem é preciso acrescentar que foi uma “gaffe”, pois tão habituados que estamos às flatulências intelectuais do deputado que “já nem cheira”. Desta vez sinto que terá ficado qualquer coisa perdida na tradução, mas a “punchline” era bem esclarecedora: os ocidentais contentam-se com duas refeições e praia – faltou acrescentar “antes do chichi, cama”, lógico.
O deputado assumidamente “pro-establishment”, empresário da área da construção civil e herdeiro de um dos Patriotas que elevaram Macau até mais próximo do Céu (literalmente) é tão conhecido pelas suas intervenções extemporâneas que granjeou a alcunha de “canhão Fong”. Para quem vem de fora e não está ao corrente do que (não) se faz de política em Macau, pode ficar sem entender bem o que isto significa, devido à sua ambiguidade – é “canhão” porque diz o que pensa quando muito bem entende e não tem papas na língua, ou fala quando a melhor opção seria abster-se de o fazer? As duas coisas, mas com um “twist” bem patenteado nesta sua mais recente declaração: ele fala de tudo mas nem sempre sabe o que diz, e se já toda a gente ouviu a expressão “act locally, think globally”, pode-se dizer que ele inaugurou o conceito pioneiro de “do nothing locally, think even less globally”.
Imagino a forma como entregou aquela pérola, “os ocidentais contentam-se com duas refeições e praia”, com um ar sério, mudando de assunto logo a seguir, como se aquilo que acabara de dizer fosse “mesmo assim, e se não é passa a ser”. Recordo-me de duas situações mais ou menos parecidas, e que na altura me deixaram perceber esse seu traço de carácter. A primeira foi durante a fase inicial da discussão sobre a proibição do fumo nos casinos, e como o deputado “fuma desde jovem e ainda não morreu”, não vê onde está o mal das pessoas fumarem, que assim sempre podem “conversar com o cigarro” – uma expressão em chinês para descrever a sensação de relaxamento induzida pela nicotina. A outra ocasião teve a ver com a possibilidade de se discutir a união de facto entre casais do mesmo sexo, e aqui foi mais expedito: “a homossexualidade foi tornada ilegal há mais de mil anos”. Sim, mil anos parece tempo mais que suficiente para que se esqueça essa lamentável tragédia que foi a homossexualidade. Querem lá ver esta gente, sempre a querer lembrar o passado, recusando-se a viver o presente? Valha-nos o canhão Fong.
Mas quando toca a defender a sua dama, Fong demonstra que sabe ser um político “a sério”. Durante um debate sobre a “bolha” imobiliária, que tornou praticamente impossível a um jovem da classe média adquirir a sua primeira habitação, Fong exclamou exaltado: “mas porque é que os jovens devem sair de casa dos pais, separando-se assim a família?!”. Sim senhor, um acto de “realpolitik” que de uma assentada promove o fortalecimento do núcleo familiar, e estimula a economia – a sua e de poucos mais, mas isso são detalhes. Durante uma das (frequentes) polémicas relacionadas com a ligação íntima de alguns deputados com o Executivo, Fong explicou a razão da sua empresa de construção ser sempre escolhida na hora de se procederem a trabalhos de restauração na sede do Governo: “como eles já me conhecem, e eu estou mesmo ali à mão de semear, não me custa nada mandar lá uns homens, pronto, para ser sincero é uma chatice”; coitado do senhor, que se sacrifica tanto em nome da celeridade em detrimento da burocracia, e ter que abrir concursos, e tal, que chatice. Obrigado, tio Fong.
Fong é ainda um bom patriota, e um ainda melhor patriarca. Quando em 2010 o Prémio Nobel da Paz foi atribuído ao dissidente chinês Liu Xiaobo, o deputado democrata Ng Kwok Cheong propôs na Assembleia Legislativa que se fizesse um louvor ao escritor que Pequim considera “persona non grata” – uma das costumeiras provocações da ala democrática, que sabia muito bem que esta proposta ia ser chumbada, mas Fong não se conteve, levantou-se e deixou saber o que pensava de Liu: “um criminoso”, acusando os democratas de “cumplicidade numa conspiração para ocidentalizar a China!”. Ah esses mercadores do ópio em forma de ideias. Mas o melhor guardei para o fim, e toda a gente se lembra certamente da intervenção quase surrealista do canhão Fong a propósito da lei que criminalizou a violência doméstica: “quando o homem quer, e a mulher não quer, há problema”. Esta foi uma frase que me ficou na memória, pois fez-me recordar de uma visita que fiz nos tempos de escola a uma exploração suínicula nos arredores do Montijo, quando o nosso cicerone explicou o processo de cobertura da fêmea do animal: “a gente leva o porco p’a cobrir a porca, mas ela na quer, e gente tem c’ajudar, qué quessade fazer”? De facto, um dilema.
Mas e depois? Isto não é Portugal, onde recentemente um ministro se demitiu por ter prometido distribuir “bofetadas” a dois jornalistas, que esquecendo-se que se tratava do ministro da cultura não entenderam que eram “bofetadas platónicas”, e aqui há uns anos um outro ministro foi obrigado a renunciar ao cargo por ter feito com os dedos um par de corninhos a um deputado em pleno parlamento. Mas coisa de somenos importância, e feita à socapa. Quem sabe se precisam lá de um canhão destes para lhes mostrar como se faz? E com duas refeições por dia e praia, ainda faziam dieta e ficavam com boas cores. Que tal?

23 Jun 2016

A quimera do minchi

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]oje gostaria de dedicar mais a um artigo a esse interminável processo de integração numa sociedade que me vai parecendo cada vez menos estranha, mas na qual nem tudo facilmente se entranha (vénia à Pessoa do poeta, já agora). E por falar em entranhar, mastigar, degustar e engolir, há no seio da comunidade macaense, que aproveito para saudar, a noção de que todos os seus “cozinhadores” sabem fazer “Minchi” – e aqui por “cozinhadores” quero dizer qualquer um que se consiga orientar na cozinha, e não necessariamente um “chef”, qui vendê merenda pá juntá unchinho sapeca pa olá filo-fila crecé, sân nunca? Deveras.
O “Minchi” é um prato que basicamente consiste de carne de vaca e de porco moída (em inglês “minced”, daí o seu nome) e frita com chalotas picadinhas, posteriormente misturada com batatas cortadas em pedacinhos e fritas separadamente, e tudo servido numa cama de arroz branco com um ovo estrelado por cima – eis o “Minchi” clássico. Atente-se ao uso o abuso dos “inhos”, ora nas chalotas que são picadinhas, ora nas batatas (ou batatinhas) em pedacinhos, mas o “Minchi” é mesmo assim, um “pratinho”, que não é complicado de se fazer, agrada a miúdos e graúdos, e nem é preciso dentes rijos para o poder apreciar. Aliás, pensando melhor, nem é preciso ter dentes, de todo. O “Minchi” é o prato-bandeira de Macau e dos macaenses, por assim dizer. Não vou ao ponto de afirmar nem a brincar que “quem não gosta de Minchi não é macaense”, pois ultimamente essa temática tem dado pano para mangas – digamos apenas que uma casa macaense com certeza, há sempre “Minchi” sobre a mesa.
A diferença entre cada “Minchi” reside no tempero, conforme o gosto de cada um, e o segredo – se o há – está na quantidade e na qualidade do “sutate”, outro nome que se dá ao comum molho de soja. Assim a pergunta que se impõe é a seguinte: onde se come “o melhor Minchi de Macau”? Lá está, esta é uma pergunta impossível de responder, assim como impossível é também confeccionar o “Minchi” perfeito, que reúna o consenso dos exigentes palatos maquistas. Se perguntarem a dez macaenses “quem faz o melhor Minchi de Macau”, sete respondem “a minha mãe”, e é possível que os restantes digam “a minha mulher/irmã/tia”, e é muito improvável que elejam o da sogra como o melhor (por respeito à sua própria mãezinha, pensavam o quê?). Se pedirem para indicar um estabelecimento, é de esperar alguma hesitação, após a qual respondem “o sítio A não é mau”, ou “fulano tal faz assim-assim”. Agora não esperem é que digam que “é bom” e muito menos “o melhor”, o que seria entendido quase como um sacrilégio! Cuza? Estopôr! Azinha zaprecê de io sa diante!
Caso o leitor se queira aventurar nessa quimera do “Minchi”, atrevendo-se a alcançar a perfeição e obter a aprovação unânime dos Macau-filo, desiluda-se: o “minchi” perfeito está para os macaenses com o a pedra filosofal estava para os antigos alquimistas. Pode ser que fique aprovado, mas mesmo que lhe digam que o seu “minchi” é “muito bom”, prepare-se para de seguida levar com “…mas o da minha mãe é melhor”. E olhe que ainda é o melhor que lhe pode acontecer, pois se lhe disserem que “não é mau”,quer dizer que “é péssimo”. Mas a culpa é sua, também – quem o mandou ser ui di sevandízio? Qui astrevido!

16 Jun 2016

Deixaste-nos, Donald

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]eixaste-nos, Donald. Sem uma palavra, um último encontro no cais, uma troca de olhar cúmplices ou simplesmente um abraço, enfim. Eu entendo-te, como te entendo. Afinal não tens bracinhos, e apesar de não seres “feito de ferro” e por isso desprovido de emoções, és feito de borracha e…desprovido de emoções. Quem te viu ali no Porto Exterior, imponente, inchado e amarelo, com os olhos muito abertos, diz que parecias estar a boiar atento a quem passava por ali a “boiar”¹ – será verdade? Hei-de perguntar a alguém que tenha passado por lá, que eu abstive-me de o fazer. Talvez porque detesto despedidas. Ou não me interessava, não sei, tudo é possível, depois pergunto…se me lembrar. E se não tiver mais nada que fazer.
Partiste assim, Donald, seu pato. Os dias sem ti nunca mais foram a mesma coisa, acredita. Pode ser que o Céu não tenha caído sobre as nossas cabeças, mas uma parte do tecto da Igreja de Santo Agostinho cedeu em plena missa dominical – fúria divina, advinda do ressentimento pela tua partida? De que outro jeito se explica algo assim, e logo quando a estrutura que é património cultural havia sido restaurada no ano passado? O quê? Não tens a culpa? Ah sim, é possível que tenha acabado o betão com que armavam os interiores, e para despachar a obra tenham recorrido a caixas de “ta-pao” de um restaurante ali próximo. Por isso é que foi “restaurado”, claro. Como é que não pensei nisso antes?
Talvez eu tinha confiado demais nos sinais, meu adereço de banho do bebé agigantado. Parecia tudo tão claro…oito cobras encontradas mortas em Coloane… acho que o livro do Apocalipse, que relata o fim dos dias, fala de qualquer coisa assim lá para o meio, acho. É mais provável do que impossível. E o profeta-arquitecto, sim, aquele que foi à televisão avisar-nos dos talibãs, das carpideiras, do holocausto urbanístico e dos tectos de vidro (sic), foi tudo coincidência? Chamai-o de louco, se quiseres, mas eu não me atrevo a ignorar o seu presságio, a rir das suas profecias, nem que anunciasse ele um novo dilúvio – afinal choveu à brava no último fim-de-semana, não foi?
Choveu sim, mas não que tu tivesses dado por isso Donald. Havias partido, e nada ficou senão as memórias dos outros que não eu, que gozaram de um momento efémero de prazer, fazendo uso do teu corpo para figurar como pano de fundo nas suas “selfies” tiradas junto ao mar. Eu até os invejaria, pobres tolos, alguns crentes que o teu amor não era pago, ignorando que era tudo um faz-de-conta. Agora acabou-se, e qual proverbial bonequinha de borracha, tiram-te o ar e metem-te numa caixa, e só te voltam a encher para os próximos fregueses. No fundo não passas de um reles “pato”², apegado aos bens materiais, como aqueles senhores que enquanto obtinham ganhos ilícitos estava tudo na paz dos anjinhos, mas quando os cheques foram acometidos de calvície gritaram “aqui d’el rei, que somos ‘vítimas’, e não cúmplices”! É um mundo cão, este. E um mundo pato, às vezes.
Vai e não voltes, Donald. Chega, não te quero ver mais, e fosses tu de penas e chicha, desfiava-te e metia-te arroz por cima. Leva contigo o dinheiro obtido com o suor do nosso rosto, e não te lembres de nós, que tão bem te quisemos, na hora de o gastar. Adeus, Donald, seu grandessíssimo filho da pata.

¹ “boiar”: calão macaense para “divertir-se”, “fazer farra”.
² “Pato”: nome pelo qual os chineses se referem aos homens que se prostituem

2 Jun 2016

Romance de toga e malhete

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]egui com relativo interesse a última troca de “plaisanteries” entre o Presidente da Associação de Advogados de Macau (AAM) e o Conselho de Magistrados – com o interesse que se pode arranjar, quer dizer, digamos que “espreitei”. No entanto retive duas afirmações, veiculadas na imprensa esta semana, e ambas emanadas do lado do Conselho através de um comunicado. Na primeira lê-se que as declarações (do presidente da AAM) “prejudicam a imagem dos órgãos judiciários”. Ahem. Permitam-me uma analogia futebolística/circense: numa equipa onde o guarda-redes é anão, insiste-se na táctica do jogo aéreo. À luz de certos acontecimentos recentes, e quando durante este “jogo falado” vêm à liça conceitos como “transparência” ou “infalibilidade”, penso que para bom entendedor, etc., estamos conversados. Quanto à outra afirmação, juro que me fez rir: as declarações do presidente da AAM “são completamente contrárias à verdade”. Existe 1 (uma) palavra que transmite esta mesma ideia, sem prejuízo do seu sentido: “mentira”. O mais irónico é que neste pequeno exemplo complica-se o que se podia muito bem simplificar, enquanto no essencial há uma (perigosa) tendência para simplificar o que é – e deve ser porque assim é que está certo – complicado.
Nós, do lado de fora da intriga deste romance que não é de capa e espada, mas antes de toga e malhete, sabemos que esta animosidade entre o Presidente da AAM e os órgãos judiciais do território já não é de agora, e habituámo-nos a ver o primeiro a assumir uma postura “crítica”, e terá ele razão? Bem, o que o temos visto fazer é basicamente procurar salvaguardar a qualidade do Direito que se pratica na RAEM, pelo menos da maneira que sabe, enfim. Podemos às vezes não concordar com a forma ou com o tom, mas imaginem que estava o senhor a ralhar com uma criança de seis anos que molhava os dedos num copo de água, preparando-se para de seguida os enfiar numa tomada, ao mesmo tempo que avisava que “se podia magoar a sério”, o que faziam? Diziam-lhe “ó cavalheiro, não seja chato, e deixe lá a criança brincar à vontade”? Claro que não, e aqui o cenário afigura-se muito, mas muito mais sério. Exigir que os juristas de Macau tenham conhecimentos de Direito de Macau? Faz sentido. Pedir transparência na avaliação dos magistrados? Critérios mais exigentes? Claro, afinal não se está ali a brincar ao faz-de-conta. Conhecimentos linguísticos, nomeadamente de Língua Portuguesa? Alto e pára o baile, e aqui está o busílis da questão, o batalhão da tropa com que se insiste em mangar, os dedos molhados do puto traquinas enfiados na tomada.
Amiúde escutamos ou lemos por aí certas declarações, e algumas vezes partindo de quem supostamente devia ter a cabeça em cima dos ombros, que a Língua Portuguesa “é uma das razões” do atraso da Justiça, bem como de muitos outros problemas, e tudo por culpa da falta de tradutores – ou lá o que é. Embrulhando tudo isto em papel de rebuçado, diz-se que o Português “atrapalha”, e eu próprio não podia concordar mais com esta ideia. Claro que “atrapalha”, da mesma forma que os alarmes “atrapalham” os gatunos, ou a sogra “atrapalha” se está em casa quando visitamos a namorada. “Atrapalha” ao ponto dos trapalhões sugerirem que se emitam sentenças apenas numa das línguas oficiais apenas (nem preciso dizer qual), ou vão ainda mais longe, ponderando mudar o sistema jurídico de Macau – para um outro que “atrapalhe” menos, suponho.
Isso de mexer num sistema jurídico tem que se lhe diga, e vai muito mais além do simples obstáculo linguístico. Há normas, processos, jurisprudência, todo um mecanismo que não se pode alterar como quem muda um sinal de trânsito mal colocado, e ainda por cima obliterando a língua original da matriz do Direito, por Juno! Existe um rol de figuras jurídicas que não existem na China, e por muito que se encontre uma tradução, nunca é a mesma coisa. Por exemplo, a figura do arresto, em chinês é qualquer coisa como “假扣押” (“ka kau hak”, em cantonês), que se for analisado caracter por caracter, exprime mais ou menos a ideia, de que se trata de um tipo de “apreensão”, mas não traduz a essência, que é qualquer coisa de intraduzível. O caracter do meio, por exemplo, quer dizer “fivela”, como a que temos no cinto. Literalmente trata-se de “prender com uma fivela” e depois “cobrar”, que é o sentido do terceiro caracter. Para um leigo que não entenda nada de Direito e só domine a língua chinesa, isto é uma coisa de outro planeta. As instituições de crédito, os bancos, são outro bom exemplo: na hora de lavrar uma escritura de hipoteca onde os valores são avultados, opta-se sempre por fazê-lo em língua portuguesa. Pode ser que alguém saiba de uma ou outra excepção, e não seria de admirar, mas pronto, uma medalha para esses heróis, mas depois não chorem, como fazem agora os proprietários do Grand Horizon. Comprar, vender, e sobretudo especular fracções para habitação que ainda nem sequer existem e acabar depenado, com uma mão cheia de nada. Devem ser estes os tais que se queixam que a matriz portuguesa do Direito de Macau “atrapalha”.
Claro que não faltarão bajuladores que achem que seria o máximo mudar isto tudo, pois afinal “é uma das herança de um passado colonialista” (até me custa escrever isto). Duvido que a maioria destes, ou mesmo um deles, saiba a sorte que tem, e de que essa herança é na verdade um tesouro. Felizmente ainda vão tendo a mesma credibilidade do gato que mia a pedir carapaus, pois a própria China sabe bem o que a casa gasta, e não lhe interessava nada alterar o estado de coisas recorrendo a um “breve momento de caos”, que pode não ser tão breve quanto isso. Tem a sua graça, esta pequena guerra de palavras, mas não posso deixar de ficar apreensivo. E que tal tapar as tomadas, antes que dêem choque?

26 Mai 2016

Ai de mim, que sou orgulhoso

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uanto mais anos me demoro por Macau – e tenho como quase garantido que estou aqui “radicado” – vou ficando cada vez mais chocado com o que vejo passar-se em Portugal, local onde me foi afixada a etiqueta de origem. O mesmo se passa cada vez que lá vou, e os intervalos de tempo em que isto acontece vão-se tornando maiores, também. Verdade seja dita, da última vez que lá estive deu-me mesmo a sensação que estaria…NUM PAÍS ESTRANGEIRO! UAH! AH! AH!
Fora de brincadeiras, falando a sério. Não sei se acontece o mesmo com o leitor, mas aposto que pelo menos lhe saltam à vista algumas diferenças, nomeadamente no “toque”. Os empregados dos cafés, pastelarias e afins, por exemplo, e aproveito para abrir uma excepção para aqueles da restauração (pelo menos alguma), que na sua maioria são educados e respeitadores. Agora pensem como é aqui em Macau, quando vão lá tomar a bica e são atendidos pela “pina” da ordem, que vos pergunta quase a cantarolar “what do you wish, sir? ”. Mesmo que não tenha muito jeito para tirar cafés da máquina, ou traga a garrafa de água mineral já aberta para a mesa, a gente dá-lhe um desconto, lá está, pelo menos somos tratados como todo o Zé Pagante devia ser. Enquanto isso, em Portugal, não são raras as vezes que batemos de frente com um pinguim de avental, de mal com a vida, quem em alternativa a servir-nos, opta antes por nos “aturar”:
– “Então vai ser o quê, diga lá”.
– “Queria um folhado de salsicha, um sumol de…tem Sumol de limão”.
– “O que temos é o que está à vista, e despache-se que não tenho o dia todo”.
– “Ok, pronto, traga-me antes um copo de água”.
– “Copos de água não temos, só copos com água. Nhe, nhe, nhe”.
Nunca se cansam desta piada fatela, estes tristes, e nem vale a pena explicar que aqui “um copo de água” é entendido como uma medida. Deixem lá, é exactamente por ser assim que o gajo anda ali a fazer figura de imbecil. 19516P19T1
E não é só nos cafés, é claro, pois em quase tudo no dia-a-dia lá no “rectângulo” dou comigo de queixo caído de perplexidade, e acho que para me tornar num copinho de leite, tipo lorde inglês, já só me falta mesmo puxar de um monóculo e exclamar num carreegado sotaque “british”: “Say, I’d never”! Já vos contei aquela que me aconteceu uma vez no mini-mercado ao pé de casa? Fui comprar umas bebidas e uns “snacks”, e enquanto esperava pelo troco fui metendo os itens dentro dos sacos de plástico ao pé da caixa, quando de repente, e quando nada o fazia prever, fui interrompido pela jovem caixista, que num misto de raiva e dores nos joanetes, arranca-me um dos sacos da mão e urra: “os sacos de plástico são 10 cêntimos cada!”. Que diabo, vejam lá, que venho eu de tão longe para roubar sacos de plástico, e nem a esse pequeno “plaisir” tenho direito.
É o que dá, tantos anos a viver aqui, onde no início a passividade dos indígenas também nos causa alguma estranheza, dando-nos mesmo para sussurrar “inter pares” que os tipos de cá “têm sangue de barata”. E agora nós também, e se que lhe quiserem chamar isso, tudo bem, porreiro, eu antes prefiro pensar que cheguei aqui com uma casca dura, que depois de uma temporada de molho, foi cuidadosamente escamada e substituída por uma outra. De seda. Sim, claro, modéstia à parte, porque não?
Ainda no outro dia assisti num daqueles enlatados que a nossa RTP teima em pensar que “os emigrantes adoram”, a uma reportagem sobre um festival qualquer em Oliveira de Azeméis. Um festival qualquer mesmo, não me perguntem qual, pois o que me chamou a atenção mesmo foi a velocidade com que os populares se embruteciam ao ponto da humilhação quando se apercebiam da presença da televisão, acotovelando-se para se chegarem à frente e “mandar beijinhos”. Se fosse para alguém longe, especialmente no estrangeiro, desatavam a chorar, a babar-se, em suma, não havia um fundo onde bater – era para a desgraça. E ai da jornalista (coitada…) que ignorasse um dos “beijoqueiros televisivos”, e não se pense que eram só senhoras de idade. Era um autêntico “tutti-frutti” rústico, como se aquela fosse a única oportunidade em toda uma vida para granjear os tais 15 minutos de fama de que Warhol falava. Sim, pela segunda semana consecutiva faço uma referência a Andy Warhol.
Não estou com isto a renegar as minhas raízes, a trair a Pátria ou seja lá o que for que estão aí a pensar. Estou radicado, apenas, lembram-se? Sim, é grave e não tem cura, que tal terem pena de mim? Na verdade penso que os portugueses, e claro que não me excluo do lote, são um povo “orgulhoso”, se nos quisermos descrever numa palavra apenas. Mas a grande dúvida que subsiste é esta: orgulhoso, do quê, afinal?

19 Mai 2016

Recordações do pato amarelo

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]dorei, adorei, adorei. Quando dou comigo a pensar no pato amarelo de borracha “ancorado” este mês no Porto Exterior, interrogo-me: “o que diria Warhol?”. É possível que alguns leitores não façam ideia de quem seja Andy Warhol, mas também não são obrigados a conhecer toda a gente, pois não? Fica bem o apontamento cultural, mesmo atendendo ao facto de que Warhol nada diria, uma vez que já lá vão uns bons trinta anitos que o artista foi “fazer tijolo”. A minha opinião sobre o referido objecto, autoria de um holandês, certamente aficionado da passa (isso nem se pergunta, ora essa) é apenas esta: tomates. Isso mesmo, e quando me perguntam “se já fui ver o pato amarelo”, respondo categoricamente que não, pois recuso-me a aceitar por questão de princípio que “ir ver” um pato de borracha coloca-se como alternativa de entretenimento neste bosque desencantado da pasmaceira cultural que é Macau. Quer dizer, “fui ver” as ruínas de Angkor Wat, no Camboja, em finais do ano passado, e ainda no último fim-de-semana “fui ver” a nova peça dos Doçi Papiaçam Di Macau. Ora aqui estão dois bons usos para dar aos olhinhos. Um pato de borracha é que não, “plamordedeus”.
Mas eu sou eu, pronto, e seja lá quanto se pagou para ter ali aquela versão gigantone de um comum objecto que se pode encontrar no banho dos bebés, não saiu do meu bolso (pelo menos directamente, entenda-se), e quem quiser ir lá tirar uma foto a fazer um “vê” com os dedos, força, que no que toca à exposição ao ridículo, do chão já não se passa. E que digo eu, se a amanuense responsável pela parte do circo na dualidade “panis et circenses” se orgulha do pato, e chega mesmo ao ponto de “colocar Macau no mapa”? Já não era sem tempo, ufa, que foi preciso um patão de borracha para fazer aquilo que outros eventos de monta não conseguiram, como são exemplos os Jogos da Ásia Oriental, ou ainda os primeiros Jogos da Lusofonia, que por alguma razão estranha não deixaram o mundo inteiro a suspirar por nós, aqui em Macau, roídos de inveja de nós por não viverem aqui. Ainda bem que foi um pato e não o navio escola Sagres, livra! Isso é que não pode ser, pá. Depois de cinco séculos de humilhação, colonialismo, blá blá blá vir ainda para aí essa “ameaça” da parte dos “piratas”. 12516P19T1
Mas deixemos de lado os piratas e falemos de gente honesta. Está aí mais uma polémica com o selo da Fundação Macau, essa generosa entidade que tão descomprometidamente se oferece para gastar o tesouro, poupando-nos assim a tão enfadonha tarefa. Desta vez a FM decidiu contemplar a Universidade de Jinan com 100 milhões de yuan, que em patacas dá mais trinta e tal milhõezitos, coisa de somenos importância para esta gente – é como quando os arqueólogos falam em “milhões de anos”, como quem bebe um copo de água, estão a ver? O motivo de tanta generosidade é muito simples: a instituição de ensino em causa “contribuiu de forma significativa para o progresso da RAEM”. De facto, e não há metro cúbico de oxigénio que eu respire sem dar graças à Universidade de Jinan, sem a qual Macau não seria muito diferente de um povoado Cromagnon. Só 100 milhões? Têm a certeza que chega? Vejam lá bem.
E foi tudo legal, há que deixar bem claro, e quem disse que não foi? Eu concordo, mas permitam-me que mude por instantes para a norma brasileira da nossa língua: “Foi legal pacas, cara. Pô, essa nota daê chega pa tomá um suco bem acompanhado, e depois caí num sambinha, né? Um rolé responsa , morou?”. Quem nāo pensa assim são os gajos da democracia e etcetera, enfim, os suspeitos do costume, e não é que os tipos até ameaçam com uma manifestação de “milhares segundo a organização” e “meia dúzia de pelintras” segundo as autoridades? Ora essa, mas 100 milhões não chega nem para encher a caixa-forte do outro pato, não o de borracha, mas o Tio Patinhas, essa versão Disney do Dr. Stanley Ho. Grave, grave foi o Atum General ter-se feito àqueles 50 milhões, isso sim, que ao câmbio da humilhação, colonialismo, blá blá blá multiplica-se por mais milhões, enquanto estes cemtozitos, epá, convertem-se em Dongs vietnamitas e pronto, não se fala mais nisso. (Pensando bem o General até foi bem…”sonsinho”, pronto, ficamos por aí).
Ah Macau, Macau, a terra do pato de borracha que daqui a uns dias se vai e não volta mais, deixando aqui sós os outros, os de carne e penas. Adorei, adorei, adorei.

12 Mai 2016

Aquela máquina

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]fa, que nos livrámos de boa, caro leitor, upa upa, olarilas. Nem quero imaginar o que seria tivesse estado eu naquele dia no Posto Fronteiriço das Portas do Cerco, quando se deu a avaria do sistema informático de verificação do BIR, que deixou apeados e à chuva, COITADINHOS (entra música de violino), milhares de residentes que…que o quê? Ah, iam à China, ou voltavam de lá, sei lá, raramente o fazem por uma questão de vida ou de morte, ou para servir uma causa nobre, mas tenho a certeza que se fosse comigo, despejava ali o meu reportório completo de obscenidades em versão trilingue.
Confesso que adoro aquele novo sistema que permite aos residentes de Macau passarem na migração através de não uma mas sim duas portinholas – uma que lê o “chip” do BIR e outra que lê a impressão digital – dispensando assim ter que ir fazer fila e dar de caras com um simpático sr. agente, que lá vai fazer o frete de verificar se estamos autorizados a bazar daqui p’ra fora, ou se o nosso bebé de meses de idade não calha ter o mesmo nome de algum professor universitário honconguense, e assim deixar-nos à porta a chuchar no dedo. E adoro esse sistema porque é isso mesmo: a única coisa boa de todo esse enfado que é viajar, especialmente se for de avião, onde se chega a perder mais tempo a passar nos “checkpoints” e à espera do que no voo propriamente dito. Precisavam de me ver aqui há umas semanas, voltava eu do Laos via Kuala Lumpur, a passar nas tais portinhas, com o mesmo entusiasmo de uma criança de três anos que racionaliza o funcionamento dos elevadores. Se me tirassem isso pá, tinham que me aturar , ai tinham pois.
Entendo, entendo muito bem, sim senhor, que apesar de estar aqui a tratar do incidente com ligeireza, este sucedeu-se logo na véspera do feriado do 1 de Maio, um dos dias mais movimentados do ano no posto fronteiriço. Achei estranho, contudo, foi – e mais uma vez, diga-se de passagem – a forma trapalhona com que as autoridades lidaram com o caso, necessitando de mobilizar um contingente de simpáticos agentes para verificar os cartões. Onde é que já se viu?!?! Imagino até a conversa entre um “xô” comandante e um desses agentes, subitamente convocado para reconhecer centenas de carantonhas:
– “Epá Fong, anda daí que tens que vir aqui para as Portas do Cerco verificar os BIRs. Toca a andar”.
– “Mei-ah, tai lou…ma fan. Mande os ursos irem lá meter o cartão naquelas portinhas, que já era altura de aprenderem a mexer naquilo”. [de facto aqui a ignorância ainda é muita].
– “Não dá, pá, é que o sistema informático avariou e as máquinas não funcionam”.
– “Sistema avariado? Máquinas não funcionam??? Impossível!”.
Sim, e nesse chuvoso dia as Forças de Segurança aprenderam uma valorosa lição: as máquinas avariam-se. Quem diria, e quem sabe se da próxima vez não antecipam essa possibilidade e lembram-se assim de, sei lá, convocar um contingente a entrar em acção na eventualidade de se dar o mesmo problema? Ou não, o que digo? Afinal os secretários, procurados et all eram (e são, e são!) pessoas de bem, acima de qualquer suspeita, e até parece um insulto considerar-se a possibilidade de serem julgados numa instância judicial sem a possibilidade de recurso para outra superior. O quê, julgados? Ai, ai, cala-te boca.

5 Mai 2016

Ele disse (Um soco nos pulmões)

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uem é Português está cá por Macau já há algum tempinho e não se cinge à sua “bolha” ou “mundinho” (eh, eh), e convive amiúde com a fauna local, acaba por detectar certas tipicidades linguísticas que lhe podem parecer um tanto ou quanto “estranhas” – digamos que se entra em “choque cultural”, que é algo que deixa sempre os apreciadores deste tipo de picuinhices de antenas no ar. “Ah ah, olha que giros que eles são…até parecem gente, não é?”. Já sei, já sei, “ninguém disso isto”, claro, mas quantas vezes não pensaram, ah? Hipócritas…bem, voltando à vaca fria, ou na sua versão local, ao búfalo de água asiático frio.
Um dia destes enquanto contribuía para o progresso e desenvolvimento da RAEM, estavam duas colegas minhas na amena cavaqueira ao mesmo tempo que trabalhavam no duro (convém salvaguardar as criaturas, pobrezitas), quando a certo momento uma delas faz um comentário que terá sido entendido pela outra como “atrevido”, uma vez que esta retorquiu com uma expressão que considero assaz curiosa: “dou-te um soco nos pulmões”, ou em chinês, “頂你個肺”. Mais ou menos isto, uma vez que no linguajar cantonês corrente isto dito soa a qualquer coisa como “téng lei gó fái”, sendo “téng” o verbo “socar”, ou “esmurrar”, e “fái” o correspondente ao principal órgão do aparelho respiratório, o “pulmão”. Mas atenção, que isto é dito com uma ligeireza que possivelmente é daquelas coisas que “saem”, como “ai Jesus, Deus me livre” para nós, e as duas lá concluíram a galhofa na paz dos anjinhos, sem uma nuvem de afronta ou desaforo no horizonte – “Dou-te um soco nos pulmões, ah ah!”. Que simpático, deveras.
Claro que para os padrões ocidentais algo como “dou-te um soco nos pulmões” leva-nos inevitavelmente a projectar visualmente esta ideia, e ao notar uma reacção da minha parte, a minha colega estranhou, e lá lhe expliquei que nós portugueses, e (creio que) Ocidentais em geral temos igualmente expressões semelhantes para aquele contexto em particular, mas nada de tão gráfico, e ao ponto de especificar o órgão a ser atingido pelo tal soco “a fazer de conta”. Penso que a terei deixado meio sem jeito, ou talvez tenha dado a entender que a civilização dela é mais propensa para a barbárie, ou que fica mal a uma senhora usar este tipo de linguagem, sei lá, e a este ponto deixem-me que vos diga, e em jeito de desabafo, que o melhor é não pensar muito no assunto. Sejam vocês mesmos, pronto, e usem o critério que acharem mais indicado. Afinal não estamos aqui perante o dilema de tapar nus artísticos em vésperas da visita de altos dignatários da República Islâmica do Irão, pois não?
Tudo isto é para ser levado “na desportiva”, lá está, mas há contudo um hábito local ao qual não me consigo habituar, e pode-se mesmo dizer que me causa uma certa…”espécie”, para não dizer coisa pior. Quando vamos a uma repartição pública e quejandos só para dar um exemplo prático, escutar a expressão “gói huá” – ele/ela disse. Isto acontece normalmente quando pedimos uma informação, ou um esclarecimento, e na dúvida o funcionário que nos atende pede ajuda a um colega, regressando a nós começando por nos elucidar com um “ele disse”, ou “o meu colega disse” – e isto é tão frequente que é preciso andar-se mesmo “desligado” para não reparar. Como agiria o leitor perante esta situação, digamos, em Portugal, por exemplo? E que tal: “Ai sim, então importa-se que eu fale antes com o seu colega, uma vez que para pombo-correio você não leva lá muito jeito”? Pode ser que eu esteja apenas a ser “esquisito”, mas isto irrita-me tanto como aqueles médicos que dizem aos familiares de um doente às portas da morte qualquer coisa como “agora está nas mãos de Deus”. Dá vontade de perguntar onde é que podemos encontrar este tal senhor Deus, uma vez que gostaríamos de ficar a par da situação, e já agora não ser tratados como tótós.
Mas isto do “ele disse” parece ser uma coisa “normal” por estas bandas, e creio que nem sequer se pensa em algo tão sério como a assumpção das responsabilidades, e quanto mais se colocam em causa valores como a própria dignidade. “É assim”, e pronto, e pode ser que esteja a chover a cântaros lá fora, que se disserem isto a alguém que ainda não saiba, e este no caso de o transmitir a terceiros cuidará sempre por começar a frase com “ele disse”. A propósito, não viram no último fim-de-semana a entrevista com a secretária da tutela (esta tutela, é preciso dizer mais?). Tive a ligeira impressão que as respostas seriam sempre as mesmas, independentemente de quais fossem as perguntas. Acredito mesmo que só não tivemos um festival de “ele disse” porque…bem, não havia ninguém que pudesse dizer mais, fosse do que fosse. Ah sim, e tudo isto que vos acabei de contar, “ele disse”. Ele, pronto, agora puxem vocês pela cabeça.

28 Abr 2016

Que cara de 25 de Abril é essa, pá?

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]alta menos de uma semana para que se assinale mais um aniversário do nosso “own private putsch”: o 25 de Abril, vulgo Revolução dos Cravos, que se assinala a…isso mesmo, acertaram – a 25 de Abril! (A propósito, ainda é feriado?). A tal Revolução, muito à maneira lusitana do “se me vou a ti fico todo partido”, foi feita sem derramamento de sangue, julgamentos sumários, fuzilamentos, guilhotinas e o diabo a sete, e ainda bem! Que selvagens, estes gajos que resolvem “limpar o sebo” a quem antes curvavam a espinha até quase bater com o nariz no chão. E pensando bem, que oportunistas, também. O que reza a História é que os tais capitães do mês corrente chegaram junto do manda-chuva de então, que curiosamente ostentava o mesmo nome próprio que o actual (facto preocupante, será?), e a conversa terá ocorrido mais ou menos nestes termos:
– “Sr. Presidente do Conselho, vimos em nome do Movimentezasforssasarmadas…”
– “Já sei, já sei, poupa-me essa conversa de comuna da treta, querem que eu dê de frosques, é isso?”
– “Se não for pedir muito…”
– “Tem mesmo de ser?”
– “Bem, estão ali fora uns tipos com calças de boca-de-sino e com uma aparência de Cromagnons que apesar de não saberem muito bem ao que vêm, não estão com cara de quem lhe vem cantar o “Angola é nossa”, e sinceramente não me estava a apetecer nada ver como é por dentro o sr. Presidente do Conselho, por isso…”
– “Claro, claro, compreendo. Além do mais essa alternativa entra em conflito com a minha agenda pessoal, onde o primeiro ponto passa por continuar vivinho da Silva. Pronto, vamos a isso, e como é, afinal?”
– “Hmmm…Argentina ou Brasil?”
– “Brasil, e isso pergunta-se? Agora despachem-se senão daqui a pouco nada se resolve sem que antes se façam plenários e votações e não sei que mais, e sinceramente não me apetece nada ter que aturar…ugh…’opiniões divergentes’”.
E assim foi, só que em vez de viverem todos felizes “para sempre”, este período de tempo que costuma ser bem mais demorado, esgotou-se ao fim de alguns anos, e agora que estamos prestes a chegar aos 42 anos de núpcias com a democracia, esta está cada vez pior, a fazer lembrar a mãezinha dela, essa velhaca. Pode-se dizer que os Portugueses se estão a divorciar da democracia, por assim dizer, ou que esta “perdeu o gás”, ou “passou do prazo”, e seja qual for a analogia que se quiser usar, as coisas chegaram a tal ponto que há quem defenda que “antes era melhor” Antes, recordam-se? Quando se demorava um dia inteiro para chegar de Lisboa ao Porto e se morria de coisas tão corriqueiras como sarampo, ou de uma simples interrupção voluntária da gravidez? Claro que não, ora essa – a malta que diz que no tempo do tio Salazar “é que era” está só armada em esquisita. Querem chamar a atenção, com o a tipa que está no baile da paróquia a dançar com um tipo qualquer que conheceu dez minutos antes e passa em frente do marido umas dez vezes só porque ele está a conversar com outra.
O diagnóstico não é tão complicado de se fazer, e não sendo eu propriamente uma autoridade na matéria, tenho uma teoria: os políticos passaram das marcas. Isso mesmo, e não é por acaso que deparamos com acontecimentos bizarros, como um “impeachment” da “presidenta” do Brasil, ou a divulgação dos tais “papéis do Panamá” – mal por mal, aqui em Macau o pior que aconteceu foi aparecerem uns relatórios médicos supostamente confidenciais espalhados por toda a Avenida Rodrigo Rodrigues.
Falando sinceramente, o pessoal entende perfeitamente que isto da política é uma chatice, e que nem a brincar alguém vai nessa conversa de que os tipos estão ali no espírito do servidor dos interesses da nação, blá blá blá e mais não digo para não passar por pateta, mas epá, vamos lá a ver uma coisa, vejam lá se disfarçam, e fazem qualquer coisinha pelo povão. Saquem, pilhem, inscrevam-se já no próximo campeonato das evasões fiscais, comparem os sacos azuis para ver qual é o maior, tudo isso, mas façam qualquer coisinha pela malta primeiro. E depois a gente desculpa-vos, que é como quem diz, ofende a vossa cidadania mais a das vossas progenitoras – coisa que alivia, e se recomenda, até – e no fim vai votar outra vez em vocês, ou no vosso lado B, o instrumental. E não é assim que funciona a tal democracia? Feliz 25 de Abril a todos! Atenção: feliz, fe-liz. Vamos lá fazer uma carinha mais simpática para honrar os capitães, e que tal?

21 Abr 2016

Virgens britânicas, ilhas

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]“caso” dos papéis do Panamá – chamá-lo de “escândalo” seria demasiado presunçoso – está para lavar e durar. Eis a novela da vida real por excelência, a confirmação em papel timbrado de tudo o que a vizinha cusca do andar vinha andando a dizer todo este tempo, em suma, “ainda bem que não é comigo…mas antes fosse…”, suspira o Zé pagante. Da “vox populi” tenho ouvido coisas como “quer dizer, a gente fazia uma ideia, mas não assim tanto…”. Tanto? Onze milhõezinhos de páginas? O que é isso, quando há processos judiciais que se arrastam durante anos a fio que chegam a produzir literatura quase tão extensiva quanto isso? Isto é malta que gosta de por o preto no branco, deixar tudo por escrito, não vá o Diabo tecê-las. Afinal com o dinheiro não se brinca: compra-se antes a brincadeira.
Mas deixemo-nos de conversa fiada, e vamos ao tema que prometi na semana passada que iria hoje abordar: as Ilhas Virgens Britânicas, o último grito em paraísos fiscais, sucedendo assim às Ilhas Caimão, muito na berra durante os anos 80 e 90 do findo século XX. E o que têm estas ilhas em comum, além da insularidade e do facto de ambas ficarem localizadas no Mar das Caraíbas? Bem, assim de repente só me consigo lembrar de uma coisa: nada sabemos de nenhuma delas, nem de empresas “offshores”, e no fim ficamos meio abananados, pensando que se calhar seria melhor se soubéssemos, indiferentes ao que dissesse o raio da velha, a tal vizinha de cima.
Por incrível que pareça, há um compatriota nosso bem conhecido que deve saber imenso sobre as Ilhas Virgens Britânicas, e alguém insuspeito também: André Vilas-Boas. Esse mesmo, o treinador de futebol actualmente ao serviço dos russos do Zenit foi em tempos seleccionador das Ilhas Virgens Britânicas, quando ainda se sabia menos das mesmas. Desconheço se foi mesmo treinador da selecção desse micro-estado da América Central, mas não tenho razões para duvidar disso – quem ia querer incluir uma banalidade dessas no seu currículo? O caso mudava de figura se o técnico por quem os adeptos portistas devem estar a esta hora a suspirar afirmasse que tem uma empresa “de facto” naquele país. Com uma população de 30 mil habitantes (menos que a Rinchoa) não deve ser difícil escolher o onze para alinhar pela selecção. Difícil sim deve ser arranjar tempo, uma vez que existindo mais empresas com capitais anónimos do que pessoas, os “virgenenses britânicos” devem estar TODOS empregados em mais que uma delas, e mal lhes sobra tempo para dançar o limbo. Ou será mesmo assim?
A capital deste “paraíso fiscal”, que é para onde o Tio Patinhas vai quando morrer, é uma cidade que dá pelo nome de Road Town, que fica localizada em Tortola, a maior ilha do Pequeno Arquipélago. A segunda maior ilha chama-se “Virgem Gorda”, e agora já sei o que estão a pensar: “é por isso que ainda é virgem”. Ai ai, seus marotos. Adiante. Em Road Town existe um tal “Offshore Incorporations Centre”, que é onde estão sediadas as tais empresas que são agora notícia. Ena, aquilo é que deve ser um alvoroço por ali, com todas aquelas empresas, e tal. Deve ser coisa para fazer Wall Street corar de inveja, certo? Nada disso; se atentarem ao endereço da sedes destas empresas, vão ver que começam com “P.O. Box”, seguida de um número, ou seja, uma mera caixa postal. Sou até capaz de “apostal” (eh, eh) que nem isso lá têm, e no limite há uma barraca qualquer com um infeliz sentado ao lado de um telefone, e cuja única função é atender e confirmar que “sim senhor, ali é a empresa tal do senhor tal, e ele agora não pode atender porque está numa reunião”.
Mas atenção, porque isto “tem uma razão de ser”, como escutei um senhor falar na televisão no outro dia, e as “offshores” “têm uma razão de ser”. Não duvido, mas não me parece que montar empresas fictícias em locais que ninguém sabe onde ficam e cuja mera menção do nome nos fazem lembrar “raggae” ou calipso com a finalidade de fugir ao fisco sejam uma “razão de ser” válida. Pelo menos para mim. Ah, e a propósito, já viram a quantidade de homenzinhos microscópicos oriundos das Ilhas Virgens Britânicas, os tais que trabalham dentro de caixas postais, que investiram em Macau? Imaginem que a área comercial quase toda da cidade, do Largo do Senado até ao património histórico foi açambarcada por “virgens britânicos”, e isto debaixo dos narizes dos nossos “tai lous”! Isso mesmo, pessoal: lá virgens podem ser eles, mas parvos é que não são mesmo nada.

14 Abr 2016

O tal canal (o do Panamá)

[dropcap style’circle’]D[/dropcap]epois dos WikiLeaks e das revelações de Edward Snowden, o Madaleno arrependido dos esbirros da CIA, eis mais um fartote de “revelações explosivas”: os papéis do Panamá. E do que se trata? Mais de dez milhões de documentos oficiais que ninguém quer ler por serem uma “seca”, mas toda a gente quer saber os detalhes mais sórdidos e indiscretos – só alguns, vá lá, e mesmo muito condensados ao essencial, que no fundo é apenas no sentido de se confirmar algo que já há muito se suspeitava: “é tudo uma cambada/corja/súcia/máfia”; “só se querem é encher, e o povo à míngua”; “onde é que isto tudo vai parar, meu Deus”; ou “vem agora Jesus, que está na hora de acabar com o mundo”. Pensando bem, “dá menos chatice do que marcar uma consulta no psiquiatra” – pensam as pessoas que têm por hábito atirar com estas “farpas” sem fazerem a mínima ideia do que falam. E isto serve para tudo o mais que dizem sobre seja qual assunto for.
Antes de mais nada, queria felicitar (ou manifestar o pesar, conforme a perspectiva) o povo do Panamá por voltar a ter o nome do seu país nas bocas do mundo. Quem é da minha idade ou mais velho, e não abusou dos inebriantes e demais atordoantes e anestesiantes, recorda-se com toda a certeza do General Manuel Noriega, um déspota que liderou o este pequeno mas simpático estado situado entre a Colômbia e a Costa Rica, e cuja aparência fez dele um “poster boy” dos efeitos do acne juvenil na idade adulta. Depois de seis anos no papel de “generalíssimo”, “el comandante”, “jefe” e “lo tamale mas picante”, não dispensou uma das “saídas de cena em grande estilo” destinadas a líderes do seu calibre. Uma vez que a opção “julgamento sumário de legitimidade duvidosa seguido inevitavelmente de fuzilamento” não lhe agradava por aí além (ali faz muito calor para se andar a levar com tiros), preferiu a ementa “B”, composta de “ligações ao narcotráfico/redes criminosas/CIA/todas as anteriores, que uma vez provadas dão direito a uma longa temporada à sombra”, que no caso dele foram (e ainda vão sendo) trinta anos. Hasta lá vista, muchacho.
De resto, o Panamá liga geograficamente os sub-continentes da América do Sul e Central, cumprindo ainda a nobre (ou desprezível, mais uma vez conforme os gostos) função de escoar bens daqueles mais difíceis de encontrar ao lado da caixa do mini-mercado perto de casa, e já não era notícia desde que os americanos lhes devolveram o controlo das operações do estrategicamente importante Canal do Panamá. Esta agora, só por ser Panamá quer dizer que só o Panamá é que manda ali? Qualquer dia ainda têm que deixar a base das Lajes, sob esse discutível pretexto de estar localizada na área de jurisdição de um outro estado soberano – muito conhecido e popular entre nós, aliás. Assim como é que dá para policiar o mundo, bolas?
E por falar em “policiar” e demais actividades que implicam autoridade, esta revelação vem cair que nem uma bomba em quem ainda acreditava na rectidão, honestidade da classe política mundial – todos os quatro ou cinco deles, e eu não apostava uma pataca na salubridade mental destes indivíduos. Vamos lá deixar de ser anjinhos e vejam antes as coisas deste prisma: se vocês fossem polícias no México, Filipinas ou um desses lugares mais “calientes” onde dia após dia se arriscam a levar um tiro, e em nome da populaça que ainda por cima vos chama nomes e faz cara feia quando passam, em troca de meia dúzia de tostões? Ainda iam ficar do lado da lei e da grei, da integridade, da transparência e todas essas valências que mais parecem cadeiras do curso superior de “Pateta e Parvinho”? Abstenho-me de terminar este parágrafo com uma palavra feia.
Já os políticos, pronto, é o que se sabe, e ao contrário dos polícias não é da sua natureza andar a meter-se em esquemas com elementos marginais da sociedade, ou partir o farol de trás a um tótó qualquer só para lhes sacar uns cobres, nada disso. Os políticos, gente supostamente educada, a elite, os reis da bazófia e do “tá bem tá, vai enganar outro”, mas acabam sempre por enganar o mesmo, preferem actividades mais próximas das ciências económicas, coisa que faz a plebe coçar o piolhinho de ignorância, ou ainda “fuga ao fisco”, que soa a algo muito giro, como o jogo da apanhada, mas é praticado por “gente séria”. E pensando bem, se eles são “eleitos”, colocando-se assim portanto acima dos comuns dos mortais, porque haviam eles de pagar impostos que depois servem para construir estradas, pontes e pagar serviços de utilidade pública, se eles é que deviam estar a ser bem servidos? E para quê, as tais estradas e etecetera, se deviam estar a ser levados em ombros, como prova do nosso reconhecimento pela graça de nos terem presenciado com a sua vinda à terra?
E tudo se resume a um pressuposto muito simples, que deixo aqui na forma de uma pergunta muito simples e nada, mas mesmo nada tendenciosa. E o leitor, gostava de se “abotoar” em grande estilo àquela fatia que cortam do que lhe é merecido, uma vez que foi produto do seu esforço, ou pagar e calar, e continuar a viver como uma borrabotas entre outros borrabotas, e borrabotas morrer e só com direito a um epitáfio na lápide onde se lê “aqui jaz um borrabotas qualquer”? À consideração de V. Exas. Para a semana falarei das Ilhas Virgens Britânicas, que não têm nada, mas mesmo nadinha a ver com Macau. Então, que disparate é esse, querem lá ver…

7 Abr 2016

A pirâmide invertida

Fui observando reacções durante os dias que se seguiram à detenção do ex-procurador do Ministério Público da RAEM, Ho Chio Meng, dando primazia ao que dizia a imprensa em Portugal. Em Hong Kong diz-se mais ou menos o mesmo que deste lado, e claro que aqui e ali era possível identificar a opinião mais ao jeito de provocação, coisas próprias da rivalidade regional entre os dois pólos do Rio das Pérolas. Tive mais curiosidade em observar o que se dizia em Portugal, não tanto na imprensa, que praticamente decalcou a informação que recebeu de Macau e das agências, mas da “vox populi”, que se expressa nas caixas de comentários, redes sociais e afins – afinal um juiz é um juiz quer em Portugal, quer na China, e certamente não faltariam as habituais opiniões mais inflamadas, que dão conta “do fim disto tudo”. Portanto compre já freguesa, que se está a acabar.
Como não podia deixar de ser, as opiniões repartiam-se entre a indignação, por se tratar de um magistrado e ser colocada em causa a credibilidade da Justiça, ou ainda a estupefacção, e aqui teciam-se considerações sobre valores abstractos como a “honestidade” e a “ganância”. Pelo menos foi o que deu para perceber entre tantos erros ortográficos, obscenidades e impropérios vários de teor étnico-cultural – é preciso não esquecer que para muitos portugueses a China e os chineses ainda são uma realidade longínqua e oblíqua. Como se não bastasse, ainda estava bem fresca na memória a notícia do casal chinês que foi jogar no Casino Lisboa e deixou a filha de cinco anos sozinha em casa, vindo a pequena cair da varanda do apartamento onde habitava com os pais, num empreendimento de luxo perto da capital, precipitando-se para uma morte trágica e lamentável. Estes pais são um dos contemplados com os famigerados “golden visas”, uma ideia do anterior Governo de direita para atrair investimento chinês para Portugal, mas que se deparou recentemente com um hiato devido a “lusitanismos”, aqueles problemas tão nossos, tão castiços. Depois do ex-procurador ainda tivemos mais uma notícia nada abonatória para a imagem ainda mal formada que os portugueses têm do país do meio, desta vez dando conta de um casal do continente que vendeu a filha de apenas 18 dias de vida por 3200 euros, dinheiro que investiram num exemplar do novo modelo de uma marca de telemóveis de topo da gama líder do mercado, e um motociclo. Se procurarem esta notícia na “net”, vão encontrar outra muito semelhante reportando-se a Outubro de 2013.
Tenho sempre enormes dificuldades em falar da China ou dos chineses com os amigos e os conhecidos em Portugal, e mesmo os portugueses recém-chegados à RAEM demoram ou nunca chegam sequer a assimilar alguns conceitos paradoxais à sua cultura, e mais importante, à sua moral. Se vêm mais ou menos preparados para o “choque” da primeira, o da segunda pode apanhá-los de surpresa. Para entender o que pode levar uns pais a negligenciar a segurança de uma filha menor para passar a noite toda no casino, ou quiçá uma volta ou duas completas aos ponteiros do relógio, ou ainda outro casal a vender um recém-nascido, com a aquisição de bens de luxo em mente, é preciso entender o valor que se dá à vida humana numa e na outra cultura. Não é exagero se disser que uma derrocada numa das muitas minas que operam em condições de segurança precárias na China que cause mais de cem mortes é “uma mera estatística”. Por outro lado, em Portugal no ano de 2001 caiu uma ponte em Entre-os-Rios, causando a morte a perto de 60 pessoas, um acontecimento que mereceu vasta e demorada cobertura mediática, sendo referido pontualmente durante os meses que se seguiram, e com os familiares a amigos das vítimas a assinalar cada aniversário da tragédia “in loco”, com pompa e circunstância. Na China vão-se dando mais derrocadas, os mineiros morrem às centenas, e para os que vão sobrevivendo, a vida continua. Até ver.
Isto pode parecer uma análise um tanto ou quanto crua do país e do seu povo, mas se não for dirimente de me mandarem a tal sítio, pelo menos servirá para pensarem duas vezes se tiverem em conta que estamos a falar de uma população mais de cem vezes superior à nossa, com 400 milhões de trabalhadores migrantes – 40 vezes mais que a população total de Portugal. E empregos para esta gente toda, como é? Quanto a esse particular, uma das grandes dificuldades com que me deparo quando troco impressões sobre este complexo e delicado tema que é o choque cultural entre o Ocidente e o Oriente é explicar a forma como é encarado o fenómeno da prostituição. E para este argumento fiquemos pela prostituição comum, o sexo remunerado seguindo os trâmites mais básicos das trocas comerciais, ou “toma lá, dá cá”, em termos mais leigos. É impossível relativizar o tema da prostituição numa conversa com um ocidental, especialmente se for do género feminino, sem dar a entender que estamos a menosprezar a componente do degredo e da humilhação que implica para uma mulher precisar de vender o corpo, mas esta é daquelas coisas que temos que deixar a meio da viagem de avião para este lado, senão pensem nisto: o que iam fazer todas essas mulheres na China, em números quem sabe na ordem dos milhões, para sobreviver? Roubar, e eventualmente matar, se for necessário chegar a tal?
A própria pena de morte tem que se lhe diga, especialmente a forma bastante despreocupada com que o regime executa os condenados por crimes puníveis com o castigo máximo previsto na lei, descurando em muitos casos os mais elementares preceitos da jurisprudência dos padrões ocidentais. Eu não arriscaria a dizer que abolir a pena capital na China surtisse resultados práticos. Pelo que entendo do que eles entendem uns dos outros, esta figura serve como que um garante de que pelo menos se pensa duas vezes antes de se apostar, negociar ou arriscar a vida. Na China a pirâmide que o psicólogo norte-americano Abraham Maslow idealizou, e que representa a hierarquia das necessidades, adquire uma configuração menos convencional. Enquanto para nós a ambição é ascendente, e das necessidades mais básicas almejamos à realização pessoal, e no geral uma sociedade mais livre, mais justa e mais tolerante, na China eles tiveram séculos a fio para racionalizar os factos e dar asas ao seu espírito criativo, e hoje tentam a todo o custo manter-se algures entre os dois estratos mais baixos da pirâmide, tentando no mínimo sobreviver. Por enquanto. Depois logo se vê.

17 Mar 2016

Só conversa (吹水)

Strange days have found us
Strange days have tracked us down
They’re going to destroy our casual joys
We shall go on playing or find a new town, yeah

The Doors, Strange Days

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]ão dias estranhos, estes que vivemos agora em Macau, e se não se pode dizer que estes dias tenham vindo atrás de nós e nos tenham encontrado, pode-se dizer que fomos nós que os procuramos, e se não formos cuidadosos, pode ser que arruínem a nossa felicidade. Discutem-se por aí agora questões que tiveram todo o tempo do mundo para ser discutidas, como sejam a identidade, e que papel desempenha cada um no contexto da RAEM. Tudo isto tem sido o mote para as mais variadas análises, que vão da simples opinião até a estudos mais ou menos elaborados, e se há alguma conclusão que pode ser retirada, é que não há conclusões a retirar. Tudo varia conforme o que se procura saber, e junto de quem. Macau é assim, uma terra de contrastes e de pessoas que contrastam, e permitam-me o lugar comum, “cada caso é um caso”.
Quer no que concerne à questão da identidade, ou da forma como se encara esta realidade tão particular que é Macau, há um factor que é preciso ter em conta: a falta de um valor essencial que seja comum a todas as comunidades, algo precioso, original e único que seja um resultado do convívio entre todas elas, que tenha perdurado e cuja necessidade de preservar fosse unânime – em suma, uma matriz. Nunca seria fácil, mesmo que houvesse uma pretensão a tal, uma vez que Macau foi sempre tido como um lugar de passagem, parte de um plano maior, e nunca uma meta. O território usufrui hoje de um estatuto que é mais uma vez temporário, mesmo que os cinquenta anos estabelecidos até nova mudança sejam mais do que qualquer outro período da sua história recente na mesma condição. Parece confuso posto nestes termos, mas vou elaborar.
O que se sabe de Macau dos tempos remotos não é muito diferente daquilo que hoje temos; podem ter desaparecido os pescadores, mas o passatempo a que estes já se dedicavam antes de chegarem os portugueses permanece e é a principal fonte de receitas, senão a única com relevância: os jogos de fortuna e azar. A história muitos de nós conhece mais ou menos bem, mas é já partir do século XX que Macau adquire a forma tem actualmente, e nesse particular foi sempre refém dos sobressaltos da História dos dois elementos que entraram na sua génese: Portugal e a China. O primeiro, longínquo e nem sempre atento administrador, passou por três fases distintas após o evento da República, e se por um lado o gigante chinês atingiu o mesmo estatuto quase em simultâneo, tudo aquilo que veio a seguir, e praticamente até aos dias de hoje nunca transmitiu uma sensação de segurança que garantisse a Macau um desenvolvimento paralelo à sua situação política. Durante estes cem anos não se pode dizer que tenha havido um período de estabilidade que permitisse a Macau que aparecessem mais do que duas gerações, e com elas um conjunto de valores comuns que se pudessem enraizar ao ponto de valer a pena lutar por eles. Não é fatalismo, é apenas a única realidade que temos.
Por isso é que me causa alguma estranheza que se faça isto agora e com carácter de urgência. Ninguém se ralou durante os 15 anos que se passaram desde a transferência de soberania em chegar a consenso algum sobre temas como a identidade macaense, o papel da comunidade portuguesa ou como é o português-tipo em Macau, e numa perspectiva mais abrangente, qual o “peso” de cada um no contexto actual da RAEM – posso ir adiantando que o meu anda pelos 80 quilos, um pouco mais quem sabe, mas nunca acima dos 85, garantidamente. Toda esta súbita separação do trigo do joio dá até a entender que se prepara algo semelhante às Leis de Nuremberga de 1935, e torna-se urgente encontrar um lugar ao sol.
Fora de brincadeiras, e voltando à questão do consenso: não somos um povo de consensos, temos um carácter que eu não chamaria de vincado, mas antes rígido, confundimos firmeza de princípios com casmurrice, e não temos a rectidão que muitas vezes é necessária para dar o corpo ao manifesto. Neste particular julgo ter sido Martim Moniz o último a fazê-lo, antes de ser inaugurada a modalidade de “heroísmo de bancada”, em que nos tornámos exímios. As descobertas? Bem, detalhes à parte, foi no rescaldo dessa epopeia que chegámos aqui e por cá continuamos, sem que para tal nos fosse necessário ser atribuído um papel, a não ser que estejamos aqui a falar do BIR, o que nesse caso será antes um cartão. Se somos titulares deste cartão que nos permite usufruir um estatuto de igualdade perante os restantes portadores do mesmo, devemo-lo unicamente à diplomacia – não à última administração portuguesa, e muito menos ao Governo português. Aqui quando digo governo falo obviamente nos sucessivos governos, que depois de se terem servido de Macau para financiar campanhas eleitorais e outras pantominices antes da transferência de soberania, vão-se demitido lentamente dos compromissos que assumiram inicialmente com Macau, revelando sempre um distanciamento que ora se vai acentuando, ora se fica pelas boas intenções.
E é esta a imagem que passamos para os outros, para os que partilhando do mesmo estatuto que nós, e que nos é dado pelo tal BIR, têm consciência da nossa desunião e do nosso orgulho que consideram “bárbaro”, por culpa das vezes em que nos recusamos a parar para olhar um pouco à nossa volta e entender alguns sinais. A pouca queda que temos para o associativismo, que no nossa caso é misto de provincianismo e vaidade, faz com que a comunidade chinesa diga de nós que “só temos é paleio”, ou no dialecto cantonês “chui sôi” (吹水). E sim, aquele “sôi” é o caracter para “água”, que é como quem diz “saliva”, que temos de sobra e não nos inibimos de gastar. Mas há um lado positivo em tudo isto, e que foi abordado num dos tais estudos “à la minuta” que por aí apareceram: o direito de matriz portuguesa. E isso, meus amigos, é o princípio, meio e fim de todas as coisas, o que nos segura a nós e aos outros, todos os que têm BIR e alguns que não têm, e foi o maior tesouro que aqui deixámos. Fico a torcer para que tratemos dele com a maior reverência, e que lhe demos o corpo ao manifesto, se necessário. E eis finalmente qualquer coisa que valha a pena esse sacrifício.

10 Mar 2016

Perguntaram a Jesus?

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]último fim-de-semana marcou um retrocesso civilizacional em Portugal, com mais um acto de censura por parte da Igreja Católica, e a conivência do seu rebanho, que se diz “indignado”. Tudo por causa de um cartaz do Bloco de Esquerda, destinado a assinalar a aprovação no último dia 10 de Fevereiro da lei que permite a adopção por casais do mesmo sexo, um dos grandes cavalos de batalha do lobby “gay”, que com o pretexto da igualdade queria ver todos a usufruir dos mesmos direitos, sem distinção entre famílias convencionais e alternativas (é difícil escrever em linguagem de “igualdade”). No cartaz em causa aparecia uma imagem de Jesus Cristo do Sagrado Coração, e ao seu lado uma mensagem onde se lia “Jesus também tinha dois pais”, e em baixo em letras mais pequenas uma menção à lei aprovada, acompanhada da data. Só isto e mais nada.

Confesso que sorri quando vi pela primeira vez o cartaz, não por maldade, e muito menos por o achar engraçado. A verdade é que não sei porque é que esgalhei aquele sorriso quase espontâneo, mas pode ter sido por instinto, feliz pelo país ter atingido um patamar do progresso em que coisas como estas já não deixam ninguém chocado, e que incidentes dignos do Index da Santa Inquisição, como a censura de uma obra daquele que viria a ser até agora o único Nobel português, ou a perseguição a um humorista por causa de uma rábula com a última Ceia, eram tudo coisas do passado. Infelizmente enganei-me, e quem quiser começar a contar a partir de sábado passado a última vez que algo de tão retrógrado aconteceu, não perca tempo, pois parece que não se aprendeu nada.

Os católicos ficaram ofendidos, sim senhor, e vejam lá que até encaminharam para a Procuradoria Geral uma queixa com três mil assinaturas, acusando o Bloco de “blasfémia”, uma figura que em pleno século XXI consta do Código Penal. Compreendo que conste, aceita-se, mas o que se entende por “blasfémia”, que só consigo visualizar dita por um padre de olhos muito abertos segurando uma Bíblia na mão e acenando um crucifixo na outra urrando “blasfééémia… esconjuuurooo!”? Uma imagem que por incrível que pareça ainda faz sentido. A imagem não estava adulterada, mas mesmo assim houve quem alegasse que “as cores estavam mudadas” – algum fotófobo cristão com toda a certeza – e a mensagem era “sugestiva”, pois associava Jesus à adopção por casais do mesmo sexo. Deve ser aí que está a tal “blasfémia”, afinal. “Que nojo, casais do mesmo sexo”, terão eles pensado.

Para não desviar as atenções do essencial, vou-me abster de mencionar o registo da Igreja com tudo o que tenha a ver com crianças, orfanatos e afins. Seria rebaixar-me ao nível de quem condenou e enxovalhou pessoas com base na sua orientação sexual, tentou a todo o custo privá-las dos mesmos direitos CIVIS, e ainda conseguiu que a tal lei fosse vetada uma vez, prolongado assim a angústia de quem tem a consciência de que isto partia de uma instituição que tem um historial de séculos de perseguições, tortura e execuções contra todos os que eram apenas diferentes.

Gostava de saber se estes cristãos que se dizem ofendidos vão à missa, comungam e confessam os seus pecados, como qualquer bom cristão com moral para acusar alguém de blasfémia. Não? É exagero meu? Então certamente que se partilharem a sua vida com mais alguém (do sexo oposto, lógico) são casados, caso contrário vivem em “fornicação”. Não? A Igreja diz que sim, e no caso de virem a terem filhos, a lei civil dotou as crianças do mesmo estatuto de todas as outras que também não pediram para nascer. Para a Igreja continuam a ser “bastardos”. Não é um insulto, não, é mesmo isso que lhes chamam.

O Bloco de Esquerda recuou na intenção de publicar o cartaz. Fez mal, e de ter ficado perto de fazer História, passou ao anedotário nacional, com as beatas de braço cruzado a bater com o pé e carantonhas medonhas a ralhar “vejam lá, ai que temos o caldo entornado”, em mais um postal muito nacional. O fundador do PS, Alberto Barros, veio defender a iniciativa, alegando ainda que “a blasfémia está na Bíblia”. De facto o cartaz não diz nenhuma mentira – tecnicamente, lá está. Eu entendi a ideia, agora quem vê naquilo algo de pérfido, ou a sugestão de que um dos três elementos ali mencionados tem alguma coisa a ver com a adopção por casais “gay”, tem uma imaginação fértil. E doentia.

A discussão que veio depois, quer nas redes sociais, quer em artigos de opinião, mais pareciam o concurso “quem é o mais engraçadinho”, com a temática centrada em “quantos pais tem afinal Jesus”, e qual deles era o quê, um sem fim de inanidades que nem parecem vindas de gente que diz ter “fé”, algo que deve e merece ser respeitado, pois apesar de não carecer de fundamentação científica, é do desígnio de cada um – e o que tenho eu a ver com isso? Pior foi ler comentários do género “sou agnóstico, mas…”, mas nada, e se é agnóstico não tem nada que partilhar de uma indignação de que se desmarcou à partida. Outros ainda sugeriram “que se fizesse o mesmo com Maomé”, que como se sabe, diz-nos muito a nós, e anda sempre na nossa mente e nos nossos corações, e “iam ver o que acontecia”. Estes devem ser os mesmos que ainda há um ano “eram Charlie”. Sabem o que mais? Na altura achei aquilo uma bacoquice saloia, de um pedantismo gritante. Hoje vejo que tinha razão.

No fim, e depois de mais uma decepção, chego à conclusão que ainda estamos muito atrás do que seria o ideal nesse princípio da separação entre a Igreja e o Estado, quando uma imagem inocente com aquela ainda fere sensibilidades a este ponto. Eu pessoalmente considero muito pior aquela em que Jesus aparece pregado, ensanguentado, com uma coroa de espinhos e um ar de quem se não está a divertir mesmo nada, mas esta é uma imagem “adorada” pelos mesmos católicos que se ofenderam com a outra. Se calhar era mais justo se perguntássemos a Jesus o que preferia: se ter dois pais, ou ser torturado em nome de quem insiste em não lhe atribuir qualidades humanas. E eles e a outros, para o bem e para o mal.

3 Mar 2016

Com o recto correcto

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]e por acaso passou do título e chegou aqui, gostaria de pedir alguns minutos do seu tempo. Não porque lhe queira vender nada, e não ando carente de atenção, mas porque isto lhe pode interessar, e só pretendo contribuir com algumas observações que podem ser úteis, e mesmo que as rejeite, pode muito bem guardar lá no fundo da caixa de ponderação. Caixa de quê? Leu bem, pois se esperava a de Pandora, ei-la na forma mais insuspeita de se revelar: o “politicamente correcto”. Isto explica mais ou menos o trocadilho no título da peça, mas garanto que é mesmo um assunto sério.
Ao contrário do que muita gente pensa, o “politicamente correcto” não é um termo originalmente português, nem um exclusivo da Política e dos políticos, e nem sequer lhes pertence a parte de leão (e se vermos o que para ali vai, ui…). Este “politicamente” é uma tradução do original em inglês “politically”, que tem um sentido muito mais abrangente, e tem a ver com toda a gente, políticos, sociedade civil, todos que partilhem da mesma vontade, indiferentes a critérios segregacionistas, com a cor da pele, origem, religião, língua ou cultura, e do pobre mendigo ao exmo. Vichyssoise da República, todos somos “políticos” da nossa vontade, e dotados de julgamento pessoal e individualizado. Sendo assim, existem outras variantes desta noção, como são casos o esteticamente correcto, o verbalmente correcto, e por aí fora, e sempre com o mesmo denominador: o “correcto”. A este ponto gostaria de perguntar se é normal em alguma circunstância deixar de considerar o “correcto”…correcto? E se vos disser que o “correcto” pode ser apontado como razão para o nosso insucesso? Se optar pelo “correcto”, faço mal? Qual é a alternativa? Vou passar a elaborar. Pode ser que identifiquem o caso que vou falar a seguir e que ocorreu há algumas semanas em Portugal, por isso não vale a pena ocultar a figura em questão, a Ministra da Justiça, ficando a identidade fora da equação, pelo menos por agora.
Portanto a Ministra da Justiça de Portugal anunciou que o executivo ia tomar uma medida para reduzir a sobrelotação nas cadeias portuguesas, um problema que mesmo que não se esteja por dentro da actualidade, nunca terá um lado que nos possa ser interpretado como “positivo”, mesmo que não nos diga respeito directamente – ser preso não é uma coisa “impossível” de acontecer seja a quem for. Mas pronto, se tanto se pensa na morte, que nada tem de “correcto”, porque não mudar de cenário? Assim, a medida de coação a aplicar nos casos em que se aplicam os requisitos que determinam a prisão preventiva, e mais à frente vamos ver quais são, será o uso de uma pulseira electrónica, medida já aplicada em alguns casos de justiça criminal em Portugal, nomeadamente com os crimes económicos, e praticamente qualquer crime que não o de sangue. Isto entende-se, no geral.
Agora imaginem que esta notícia vos era apresentada desta forma: “Ministra da Justiça quer deixar criminosos à solta, permitindo que fiquem em casa com pulseira electrónica. Criminosos, como sabemos, são pessoas que praticam violação, roubos e homicídio”. Parece resumido, e não é mentira, certo? E de facto, para quê tantos rodeios, se um crime é um crime, e quando são praticados os seus autores não fazem distinção das vítimas, ou lhes deixam escolher seja o que for, não é assim? Não, não é, e todo este raciocínio é minado de preconceito e ódio, e para que seja também um crime, basta “colorir” os autores de violação, roubo, e homicídio. A propósito , a tal ministra que referi é angolana de origem, o que implica também que é preta, e não foi preciso muito mais para que se lesse na medida que propôs aplicar intenções que nem ao Diabo lembrava.
Agora preparem-se para o pior: o meu discurso é para estas pessoas que seguem o raciocínio que apresentei, “politicamente correcto”. E isso “tem sido um entrave à liberdade de expressão”, pois à custa de manter o “politicamente correcto”, não é permitido “dizer as verdades”. Muito bem, e qual é a única verdade em toda essa dissertação? Que a Ministra da Justiça de Portugal é angolana e preta, talvez. Todo o resto assenta num pressuposto que não é mais que uma “desonestidade intelectual”. Nem tudo o que é ilegal é um crime, e estes últimos APENAS constam no Código Penal em vigor, e aí inclui-se violação, roubo, e homicídio, definidos como “crime público”, ou seja, “crime contra a sociedade”. Os requisitos da prisão preventiva incluem a possibilidade de continuidade da actividade criminosa, a fuga, ou a destruição de provas. Não me parece que a medida foi feita a pensar num violador ou um homicida, e nesse caso as vítimas dos mesmos teriam toda a legitimidade para protestar o que seria um insulto – não tanto se após o caso ficar transitado em julgado não se provar a autoria do crime, e pouco importa o que pensa seja quem for, aquela pessoa não é um “criminoso”.
Não fui afectado pelo escândalo que envolveu o BPN, mas consigo entender a angústia dos lesados e o ressentimento com o principal responsável pela gestão ruinosa das suas poupanças, mas serão reembolsados caso o banqueiro suspeito de fraude dormir a dois metros de um sanitário que partilha com mais três pessoas? Se for provada a sua culpa e condenado a prisão efectiva, não vai cumprir a pena com a pulseira no braço ou no calcanhar, método que mesmo assim de menos humilhante só tem mesmo o facto de ficar em casa – muito menos humilhante, e agora pergunto eu: é mesmo necessário que toda a gente passe pela prisão, mesmo que não seja um homicida, violador ou reconhecido autor de roubo, que aqui insinua o uso de arma /ou o recurso à violência?
Outro caso teve a ver com um nosso conhecido, um jornalista que já passou aqui por Macau, e cujo nome pouco importa perante a falta de que foi acusado. Este caso reporta-se ao ano passado, após as eleições legislativas, e durante uma reportagem sobre dois deputados estreantes, o jornalista referiu-se a um deles na versão feminina do seu nome, dando de seguida uma risada com gosto. O referido deputado é homossexual, e aparentemente não tem com o profissional da imprensa qualquer tipo de relação que justificasse ser o alvo daquela piada, transmitida para o mundo inteiro através do Telejornal da RTPi. O visado apresentou uma queixa, mas o conselho da estação pública de televisão julgou-a improcedente, não isentando mesmo assim o profissional de apresentar um pedido de desculpas formal, e certamente que não se vai querer meter noutra igual. Não merecia um castigo pesado, na minha humilde opinião, mas não sou o deputado em questão nem homossexual para saber o que sentem estas pessoas quando acontecem situações como esta. Há quem prefira analisar isto de um outro prisma, o da “liberdade de expressão”, para branquear a provocação do jornalista, e acusar o “politicamente correcto” de silenciar aquilo que diz ser “a verdade”.
Têm todo o direito à sua opinião, esses fascistas ressabiados, meninos de coiro, nazis e outros chicos-espertos que tomam toda a gente por parva (vejam que “agradável”), querendo culpar o correcto pela sua ideia completamente desviada dos valores que a democracia e a liberdade nos deviam ter incutido. No meu conceito de politicamente correcto não há criminosos por suspeita, fulano é tratado pelo nome, sem acrescentar seja o que for que a apenas a ele diga respeito, e não interessa a cor das ministras. E de você, o que posso esperar?

25 Fev 2016

Morto “ainda era pouco”

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]ortugal é um país de brandos costumes, diz-se. Ou foi, portanto já não é. Melhor dizendo, “vai sendo”, conforme as modas, e nisto pode-se dizer que os Portugueses não diferem do comum “homo sapiens”, independente da sua localização geográfica: de barriga cheia tem menos vontade de protestar, mandar vir, bater com o pé, ou numa variante regional específica deste primata, “encostá-los todos ao Campo Pequeno”. Mesmo esta frase leva-nos de volta a um tempo não muito distante, onde o estado de coisas se pode descrever simplesmente como de “nem o pai morre, nem a gente almoça”, com uma tendência para o “ou comem todos, ou não há moralidade” (isto de ser Português tem que se lhe diga).
Actualmente pode-se dizer que estaremos entre os povos mais pacíficos do planeta. Não, não é por sermos uns pelintras que não têm onde cair mortos, quanto mais uma bomba atómica, ou por não possuirmos recursos naturais ou quaisquer outros que justifiquem mandar um “drone” de reconhecimento, quanto mais uma invasão completa. O que o freguês iria ganhar ao adquirir este país tão catita, portátil e arrumado num cantinho junto ao mar era “dívida”. O freguês faz uma careta, agradece a atenção e rejeita diplomaticamente a proposta, dizendo que “procura algo que garanta um retorno do investimento a curto e médio prazo”. Ó que pena, o que há por aqui e vem tendo muita saída são as insolvências, cortes e austeridade. Obrigado na mesma, e à saída sirva-se de uma fatia de capital de uma qualquer empresa pública que fizemos questão de retalhar e vender ao desbarato. E despache-se senão os chineses levam tudo.
Somos também muito cordiais a hospitaleiros com os forasteiros, venham eles apenas em turismo, ou com intenção de se mudar para o nosso solarengo recanto, contribuindo assim para o progresso e para o bem comum da Pátria amada. Não…isto não é uma mentira, por assim dizer. É mais um paleativo, se preferirem. Uma masmorra escura e fria decorada com motivos festivos, e quem sabe alguma música alegre, para esquecer as mágoas. São muitas? A gente tapa-as com uns cobertores giraços, do Harry Potter, ou isso. Logo se vê. A verdade crua e nua é que se nota cada vez mais um tipo de sectarismo que nunca foi nosso apanágio. Quer dizer, afinal ainda se olha para Portugal como sendo “o ânus da Europa” – e pouco importa de que prisma se olha para o velho continente.
Temos uma História de que nos orgulhamos, o que leva por vezes algumas aves de mau agoiro a acusar-nos de “viver do passado”. Ora essa, há coisas boas de que podemos usufruir, de que temos uma longa tradição, e a que alguns países podem apenas ambicionar em sonhos – ainda hoje! Por exemplo, Portugal foi o primeiro país do mundo a fazer constar da sua Constituição a abolição total da pena de morte. Sabiam? Ah, mas aposto que não sabiam que o Reino Unido apenas aboliu a pena capital nos anos 60 do século passado, e a França nos anos 80! Bárbaros. E dos Estados Unidos nem se fala. Suck on that, yankees. Um ponto para nós em Progresso Civilizacional, o que perfaz o total de…um ponto. Vá lá, então que cara é essa? É um começo, melhor que nada. Tenham fé, como o Eusébio quando ia marcar um “penalty”.
A nossa longa tradição de não aplicar um castigo tão radical (e irreversível, também) a alguém que teve um dia (ou dias) menos feliz(es) leva-nos a elaborar uma respeitável quantidade de prosa sobre o assunto, com primazia para aquela que busca inspiração no divino: “Só Deus tem o condão de tirar uma vida”. Deus e um vasto rol de enfermidades, portanto (essas não serão obra Dele, certamente…). O nosso registo de fazer justiça com base na máxima “olho por olho, dente por dente” ficou tão dissipado num passado longínquo que damos por nós a adoptar um tom paternalista com os países que ainda seguem esta prática troglodita – a China, por exemplo, onde as execuções são levadas a cabo de forma indiscriminada, obedecendo a critérios nem sempre bem claros (uma retina feita à medida de algum Zé-Pagante cegueta de Hong Kong, por exemplo). De facto, temos tanto para dar. Em sermões, o que sempre é melhor que nada. Ou será mesmo assim?
Perante tudo o que deixei expresso nestas linhas – isto é, se dali alguma coisa se aproveita – não posso deixar de partilhar o meu espanto quando deparo com tanto compatriota sedento de sangue nestes tempos atribulados que correm. Claro que falo das redes sociais, fóruns e caixas de comentários um pouco por essa “net” fora, que são como um “Cavalo à Solta”: denúncia do que sente, do que pensa a gente certa. O senão é que não há nada de poético ou inspirador no que pensa esta gente, ou muita dela, e tivesse Ary dos Santos sobrevivido à taquicardia que o fez partir do mundo dos vivos, dificilmente resistiria à segunda, após ler o que ali se pinta no mural virtual do mais puro desgosto e ressentimento.
A medida para tudo é “pena de morte, e ainda é pouco”, como se a pena capital fosse alguma camisola de lã da Burberry’s que estamos mortinhos por experimentar e ver e nos fica bem. Esta noção de que “pena de morte é pouco” deixa-me meio baralhado – o que pode ser “pior que a morte”, especialmente se esta for aplicada primeiro, tornando tudo o que se possa seguir de indolor, inerte e inodoro? Estranho conceito, este, mas não deixa de ser preocupante observar como os até aqui sempre cordatos lusitanos vão imaginando as formas mais cruéis, sádicas e demoradas de castigar SUSPEITOS de crimes, que podem ir do simples furto à mais humilhante violação. E reparem como destaquei a palavra “suspeitos”, pois para os partidários da justiça “à la minuta”, isso da presunção da inocência não passa de uma mariquice, de “mais burocracia”. Toca mas é a limpar o sebo o gajo, e “ai se fosse comigo…”. Esta curiosa expressão é um pouco como a letra da cantiga “Se eu fosse um homem rico”, de “O violino no telhado”, mas aqui seria seguido de “…mandava matar essa escumalha toda”.
Bem vistas as coisas, devíamos era dar-nos por felizes por não ter tido a mesma falta de sorte que os “nuestros hermanos” do lado. Ah pois é, pois enquanto o tio Sal (Gostaram? Dá-lhe um ar mais “in”) e os seus esbirros da PIDE se mordiam de inveja, Francisco Franco ocupava as horas mortas entre a “paella valenciana” do almoço e a soirée de “flamenco” com um fartote de fuzilamentos, encomendados por ele próprio. “¿ Está bien así o si le gusta con mas leche, comandante?”. O que faz falta é acordar para a vida camaradas. E já agora lerem certas coisas que por vezes escrevem, antes de decidirem partilhá-las com o mundo. Basta fazerem aos próprios botões esta simples pergunta: “é isto mesmo que eu quero para mim e para os meus”? Fica a sugestão.

Destaque
“Esta noção de que “pena de morte é pouco” deixa-me meio baralhado – o que pode ser “pior que a morte”, especialmente se esta for aplicada primeiro, tornando tudo o que se possa seguir de indolor, inerte e inodoro?”

18 Fev 2016

Eles não percebem nada disto…

Não sou ninguém para falar de Democracia. Ponto. E digo isto como forma de garantir uma certa imunidade aos anticorpos do chorrilho de disparates que vou dizer a seguir. Disparates para alguns, pois se calhar há quem concorde em número e em grau, ou só num destes dois, não sei, incomodava-me se toda a gente concordasse, mais do que se nem vivalma me desse razão – ou um bocadinho dela, vá lá. E isto no fundo é exactamente do que se trata a tal “Democracia”: uns dizem os disparates que bem lhes apetece, alguns concordam, a maioria discorda, e se há algo que me deixa seguro de que a maior parte vai achar que eu devia era ir dormir “porque o meu mal é sono”, é porque as coisas são assim mesmo, como em quase tudo: não há cabecinha que não produza a sua própria sentença sobre tudo e mais alguma coisa.
É por isso que a “Democracia” é uma coisa complicada, afinal. A forma como as coisas deviam ser ou funcionar é aquela que EU acho mais indicada, e a que ME dá mais jeito, ou que ME traz mais vantagens. A “Democracia” é aquilo que EU quero que seja. Na minha casa, onde eu mando, ou noutro lugar onde eu vier eventualmente a mandar, “democracia” é aquilo que eu quiser. Discordam? Ainda bem.
Em Macau não existe “Democracia”, claro, uma vez que se trata de uma RAE da RPC (nesta fase do campeonato toda a gente devia saber o que estes acrónimos querem dizer). Nós, portugueses que aqui residimos, convivemos bem com este “vácuo democrático”, e isto apesar de sermos – pelo menos a maioria – oriundos de uma Democracia, essa conquistada “na raça”, vai já para lá de 40 anos. Quem aqui chegou antes de 1999 sabe que antes também não tínhamos uma Democracia propriamente dita. Éramos aquilo que oficialmente se designou de “Território Chinês Sob Administração Portuguesa”, onde concomitantemente se repetiam as mesmas juras de amor: “elevado grau de autonomia”, ou “Macau governado pelas suas gentes”. Tretas, pá. A Catalunha tem um “elevado grau de autonomia” a que Macau não chega sequer aos calcanhares e nem assim estão satisfeitos. As coisas são o que são, e o que vigora na prática é um suave e ameno “come e cala-te”. Com anestesia. Valha-nos isso. Por enquanto.
Nesta “não-Democracia” que é Macau, nós Portugueses seguimos cantando e rindo, e vamos tratando da nossa vidinha. Óptimo, que bom para nós. Isto não nos impede de opinar sobre o que seria se aqui funcionasse um entreposto da Democracia, e é do lado do “mero observador” que analisamos o comportamento daqueles que vão pelejando pela “Democracia”, e de um modo geral a análise que se faz é negativa. Sim, adivinharam, vem aí a dose de paternalismo da ordem: estes gajos não percebem nada de Democracia. Nós sim, percebemos bué. Transbordamos de Democracia por tudo o que é poro e outros orifícios cuja liberdade de expressão me permitiriam especificar, mas o mais básico decoro (e bom gosto) me impedem – vêem como eu “edromino” esta cena da Democracia e tudo? Ah, pois.
Um bom exemplo de como a Democracia na versão local não funciona nesta não-Democracia que é Macau é a notícia recente que dá conta da saída de um dos “históricos” da Associação que se determina ser a representante da tal “Democracia”, e tudo porque “não concorda com o rumo que a nova geração de dirigentes está a dar à associação”. Isto é grave. Quer dizer, deve ser, para alguém. Para nós, que sabemos o que é uma Democracia às direitas é indiferente, ou até dá jeito, uma vez que, repito, “estes gajos não percebem nada de Democracia”. Ainda iam arruinar o banquete, com aquela receita marada de “Democracia” que para ali desencantaram – se é que se pode chamar àquilo “Democracia”, sinceramente.
Se percebessem da missa metade, marcavam um congresso, e de um lado ficavam os Au-Kam-Samistas, do outro os Jason-Chaoistas, e numa terceira alternativa (só para chatear, e para aparecer, claro) os Scott-Chiangistas. Depois de muita conversa fiada, lá emergia o novo líder, os outros aplaudiam este exemplo de “Democracia on the making”, e ficava tudo na mesma. Esperem lá, na mesma não. Estes novos dirigentes são o quê? Ah, muito “radicais”, dizem. E ainda “adoptam um discurso xenófobo”, dizem também. De facto, dá medo só de olhar para eles, e imaginem que foram ao ponto de defender que os Trabalhadores não-residentes têm…ora essa, estou a fazer confusão. Quem disse isso foi a outra, uma das representantes das Associações da contra-Democracia. Isto de viver numa não-Democracia consegue ser mais complicado que uma Democracia propriamente dita. Deixem lá.
Entretanto esta terça-feira em Hong Kong tivemos a polícia a carregar em cidadãos, tendo efectuado mais de 50 detenções e deixado uma centena de manifestantes com a carola rachada. Em Hong Kong, onde ainda não há muito tempo tivemos uma espécie de “proto-revolução” que ficou baptizada com o nome de “Guarda-chuva”. Que giro. Esta incluiu ainda uma greve de fome (ou tentativa de greve de fome, enfim), falou-se de “desobediência civil”, e tudo mais que consta do guia “Democracias: faça você mesmo”. Mas que não se entusiasmem aqueles que aguardam por uma “Democracia” aqui ao lado, para que possam lucrar do eventual (e mais que certo) caos que daí adviria. Estes tumultos deveram-se à exaltação de alguns comerciantes que vendiam (ilegalmente, ao que parece) bolas de peixe na rua, e a quem a polícia ordenou que levantassem o estaminé. Ui, para esta gente pior que mexer com a “Democracia” é irem-lhes ao bolso. Isso é que não pode ser mesmo nada.
Reitero o que disse no início deste texto: não sou ninguém para falar de Democracia, nem me sentei à volta da fogueira para saber o que custou a liberdade, como na canção do outro. E não sou grande adepto de bolas de peixe, para ser sincero. Pode-se mesmo dizer que por estas bandas a Democracia é como as bolas de peixe: às vezes o sabor pode ser demasiado adstringente para a maioria dos gostos, e quase sempre “há molho”. Ah é verdade, completamente fora de contexto, queria desejar a todos um feliz ano do Macaco. E a isto chama-se acabar em grande estilo. Macaco, com que então. Kung Hei Fat Choi!

11 Fev 2016

Caiu na rede (e não é peixe)

Caso 1:

Não há actores pretos nomeados para as principais categorias dos Óscares este ano. E depois? Aparentemente isto é notícia, pois trata-se de “racismo”, e mesmo que ninguém tivesse dado pela “falta de diversidade” na lista da Academia de Artes e Ciências de Hollywood, nunca faltaria a atempada e oportuna(ística) do realizador Spike Lee, o “ombudsman” destas coisas, com a diferença de que ninguém o nomeou, e de “independente” tem muito pouco. Eu descreveria Spike Lee como o “Black Man in Black” da segregação, um cromo daqueles que sozinho preenche uma caderneta inteira. Desconfio que o tipo não conseguia viver sem isto, sinceramente; em suma: é um desocupado. Spike Lee seria bem capaz de acusar o realizador de um biópico sobre a vida do imperador romano Júlio César de “racismo”, alegando “ausência de escravos númidas no enredo”, e possivelmente encontrava algum argumento hist(é)órico delirante para justificar o “casting” de Denzel Washington no papel de Marcus Antonius. Mas até pode ser que Spike Lee seja um pateta, mas de parvo é que ele não tem nada, e como quem lhe atira com mais sarna com que ele depois se entretém a coçar, vieram de imediato os grunhos das redes sociais responder ao chamamento da tolice. Julgando-se com a razão toda do seu lado, aquilo foi um ver se te avias de opiniões obtusas e torpes, ora porque “ELES agora pensam que mandam nisto tudo”, e “tem que ser como ELES querem”, e “quem é que ELES pensam que são”. Fiquei um pouco baralhado: se Spike Lee é um apenas (e já é um a mais), e o número de candidatos pretos às estatuetas mais apetecíveis é zero, quem são os “eles” de que aqui se fala? Bem, eles que são “afro-qualquer-coisa” que se entendam.

Caso 2:

O toureiro espanhol Francisco Rivera Ordóñez (olé!), provavelmente aborrecido com tanta falta de protagonismo, decide chocar o mundo – coisa relativamente fácil nos tempos que correm, aparentemente. Para o efeito decidiu divulgar imagens suas onde aparece a lidar um touro, enquanto segura ao colo a sua filha de apenas cinco meses de idade. O “problema” aqui é evidente, tratando-se de algo que tanto eu como o estimado leitor não incluiríamos no nosso rol de “actividades a desenvolver com os nossos recém-nascidos”, mas aqui com o Paco a conversa é outra. Filho, neto e bisneto de toureiros, o avô de Rivera “fazia o mesmo com ele e com o seu pai”, e apesar deste último ter encontrado a morte numa arena com apenas 36 anos, isso não o inibiu de lhe seguir as pisadas. Ainda tão recentemente com em Agosto do ano passado, o destemido lidador foi contemplado com um “piercing” gástrico, cortesia de um dos bovinos que insiste em enfrentar, naquilo a que tanto ele como a sua “afición” insistem em preservar como tradição, chamando-lhe ainda de “arte”. Quem não se inibiu de expressar de imediato o seu repúdio, asco, “ai Jesus que lá vou eu” foram os mui reverendos opositores da festa brava, e quer nas redes sociais, quer nas secções de comentários da própria notícia choveram impropérios, rogaram-se pragas, chamaram-se todos os nomes ao Paco, que não fez mais do que…aquilo que sabe fazer, pronto, deu-lhe para isto, como podia ter-lhe dado para ser fiscal das finanças. A criancinha? É dele, e ele lá sabe as linhas com que se cose. Naquele momento até podia ser que estivesse a pensar noutra coisa qualquer – na tetinha da mamã, por exemplo, e não há nada que nos diga que a progenitora tenha desaprovado a iniciativa do marido – mas até aposto que quando tomar consciência dos actos do pai, a miúda vai achar aquilo “o máximo”. Se eu censuro? Não aprovo, mas duvido que isto se insira na categoria de “má influência”, ou que surja por aí uma legião de imitadores. Do que tenho a certeza é que em nada contribuiria para a minha felicidade a eventualidade do perturbado senhor sofrer uma morte horrível no exercício da sua actividade. Nem entendo quem poderia ficar a ganhar com isso, para ser sincero.

Caso 3:

Em vésperas da visita de altos dignatários da República Islâmica do Irão, as autoridades italianas decidiram cobrir as estátuas de corpos nus existentes na capital daquele país, de modo a “não ofender” os seus púdicos convidados. Ahem. Quer o “timing”, quer a própria ideia leva-me a suspeitar que os italianos estavam a ser “fresquinhos”: nem Roma é uma espécie de Castelo-Fantasma da Feira Popular com “madonnas” desnudadas em vez de assombrações, nem os “aiatolas” rastejaram de um qualquer buraco e desatam a arrancar os cabelos em desespero perante a visão de um par de mamocas de pedra. Tenho até a convicção de que estas elites sunitas têm consciência daquilo que esperam encontrar em Itália, tratando-se de pessoas de carne e osso, alfabetizadas e cientes de que o mundo vai para lá da Pérsia e arredores. Só faltava os italianos ensinarem-lhes a comer com utensílios, incutindo de seguida a noções elementares de higiene pessoal – “para não ofender”, dizem eles. Pois, pois. Mas houve logo quem tivesse feito segundas leituras do acontecimento, e interpretasse isto como uma “submissão do Ocidente aos valores do Islão”. Ena, o que para aí vai, como se tivessem sido os referidos cavalheiros a encomendar tamanho sermão. Como não podia deixar de ser, cada um arrotou a sua posta de pescada, e entre os habituais insultos à confissão maometana, liam-se sugestões sobre “o que fazer para endireitar aqueles tipos”, das quais destaco “visitas ao Bairro Alto, gajas e vinho”, entre outras formas de deboche, que é o “modus vivant” das pessoas livres e civilizadas. Claro, claro. E mais: aproveitando a crista da onda, o nosso novel Ministro da Cultura, João Soares, decidiu contribuir para a tragicomédia, afirmando que “em Portugal ninguém taparia coisa nenhuma para não ofender ninguém”. Sim senhor, aquilo é que é um homem com um grande par de…como é que se diz “bochechas” em castelhano? Deixem para lá, não interessa.
Conclusão: Já o fiz aqui antes e volto a reiterar: demos graças às forças armadas e outros agentes da ordem, que são o sustentáculo da nossa democracia. Com o povão no poder, estávamos entregues à bicharada.

4 Fev 2016

Vichyssoise (falando de frio…)

I
[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]em feito frio em Macau, por estes dias. Mais do que isso: um frio de rachar, e segundo os tipos que vá-se lá saber porquê andam a par destas coisas, este é “o Inverno mais frio dos últimos 60 anos”. Ou será dos últimos oitenta? Por mim podiam ser duzentos anos, e isso lá interessa? Mal me lembro do que foi o jantar ontem (ou se jantei, sequer, pensando bem), quanto mais do último Inverno tão ou mais frio que este. Sei que não temos tido frio q.b., e se há uma coisa que gosto, ou melhor dizendo, que não odeio no que toca ao clima aqui em Macau é o frio. Isso mesmo, a-do-ro o frio, e o Inverno, e os invernos frios. Quanto mais frios melhor. Imagino um Inverno tão frio, tão frio, que o simples facto de se andar na rua durante mais de dez minutos faria surgir uma pequena estalactite na ponta do nariz. Isto contando que não chova, é lógico, pois o que torna o Inverno de Macau tão especial em relação ao de Portugal, citando um exemplo familiar, é o facto de não chover. Ou pelo menos de não chover tanto, e já que toco nesse ponto, tem chovido amiúde, nestes dias em que fomos finalmente abençoados pela fada polar – razão têm os antigos: Macau já não é o que era. A chuva chateia, mas o que mais chateia não é a chuva em si, mas as pessoas à chuva. Porque carga de água se torna tão pertinente abrir um guarda-chuva quando a pluviosidade é tão insignificante que demoraria meia-hora ou mais para encher um simples penico? E o que leva as pessoas a andar por debaixo das varandas com o guarda-chuva aberto? Eu só recorro a esse objecto abjecto quando se torna mesmo impossível não o fazer. tipo, durante a “reprise” do dilúvio, estão a ver? Não me importo de andar debaixo de uns chuviscos, e pronto, helas, ficar um pouco molhado. Sem ofensa, mas se há coisa de que não tenho medo é água. Celebremos portanto o frio, enquanto podemos. Agora pode ser um transtorno na hora de levantar o rabo da cama de manhã, mas havemos de suspirar por ele quando em poucos meses andarmos com a roupa colada ao corpo, findo o Inverno e chegado o Inferno.

II
Por falar em coisas frias, lembrei-me agorinha mesmo da Vichyssoise, aquela sopa chocha feita com creme de vegetais, natas e ervas aromáticas, e que se serve…fria. Será que quero antes dizer…Gaspacho?!?! Chicas calientes, fiesta y feria, si, si, me gusta??? Não, isso é que era bom – Vichyssoise, que se como não bastasse o facto de ser tão deprimente como sopa, ainda requer uma consulta no dicionário “online” para saber como se escreve. A Vichyssoise entrou no vocabulário dos portugueses que se interessam mais por essas coisas da política por alturas dos finais do milénio passado, aquando das negociações entre dois figurões na altura cabeças-de-cartaz das duas maiores forças partidárias com vista a uma coligação para enfrentar o Governo de então, mas que em nada deu, de tão fanfarrões que eram (e são) os personagens em questão, e na ementa do jantar do (des)acordo estava a tal Vichyssoise – pelo menos foi o que um deles nos deixou saber, o queixinhas. Entretanto o outro tornou-se no último domingo o novo Presidente da República de Portugal, imaginem. Nem mais, e falo do mesmo que anos antes tinha atravessado parte do Tejo a nado no contexto de uma candidatura à Câmara Municipal de Lisboa, que perderia para um tal Sampaio, que por acaso se viria também a tornar PR. Fico com a ideia de que esta deve ser uma das profissões em Portugal para a qual são exigidos menos atributos. RIP República.
III
Entretanto em Macau o Bispo foi afastado e substituído por outro que “não fala Português”, e “ai Jesus que afronta”, blá blá blá, balelas. Foram alegados “motivos de saúde”, para a substituição do clérigo. Preocupante. Será a mesma “doença” de que padecem um certo Procurador e um certo ex-secretário-adjunto, e cujo sintoma mais evidente é o “súbito desaparecimento”, acompanhado de “repentina falta de protagonismo”? Será que estamos na presença de uma epidemia? E pior que isso, será que se pega? Habemos o caldo entornado. Amén.

28 Jan 2016

Como a gente (é) muda…

I

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]uito daquilo que NÃO se faz em Macau se deve a uma espécie de “tilt” administrativo, algo que não vemos, não sentimos, é inodoro e não-tóxico, mas que está lá, isso está. Cada vez que se apregoam chavões do tipo “capacidade de decisão”, “liderança” ou “meritocracia” (deixa-me rir), é sinal de que realmente há ou havia algo de que estávamos à espera desde que a RAEM viu a luz da noite de 19 para 20 do doze dos noventa e nove. O novo hospital público, eis um exemplo tão perfeito que nos grita aos ouvidos. Eu não acredito por um segundo que as calendas que se vêem gregas para as quais atiraram essa infra-estrutura que tanta falta nos faz, tão doentinhos que somos, pobrezinhos, se devem (ou deviam) a falta de terreno para montar a barraca hospitalar. Mesmo aquele argumento da falta de pessoal médico, ou de técnicos que operem o material hospitalar XPTO de que dizem dispor deixa-me com muitas dúvidas – não que seja mentira, atenção, mas com toda a certeza há dinheiro de sobra para tapar o problema que não é problema nenhum. O que faz falta é quem decida, quem assuma, quem dê um murro na mesa, em suma, quem afirme alto e bom som: “Sim! Fui eu quem mandou fazer esta treta, e depois? Acordaste hoje com vontade de levar nas ventas? Uh?” (Passo mais uma vez o exagero). O que temos são serviçais, e para que não se pense que estou a cometer alguma inconfidência, ou mandar larachas à socapa, acrescento que esses serviçais somos todos nós, sem excepção. É verdade que aqui a coisa pública funciona muitas vezes mal, ou não funciona, e isto pode-se talvez explicar pela falta de “fé na Santa” logo à partida, com pouca ou nenhuma confiança por parte da administração anterior (pré-transição, entenda-se), que sempre que tinha oportunidade sussurrava-nos entre dentes: “pisguem-se mas é daqui para fora”. Digamos que logo aí fica posta de parte a vertente romântica do “gostar por amor”. Eu pessoalmente julgo que muitos de nós – senão mesmo a maioria – ficaram na base do “…até me chatearem”. O que ficou, bem, é o que há, e aqui entre o ulular angustiante dos queixumes do costume temos como ruído de fundo os murmúrios que a nada de estranho nos soam: “…elevado grau de autonomia”, “Macau governado pelas suas gentes” – e este último já nem da cassete oficial consta, de tão ilusório e torto que nasceu, coitadito. E no fim com tudo descascado, lavado e temperado, temos o prato principal: ninguém decide, com medo de morrer decida (subtil, tão subtil). E quem decide? “É a China” – resposta padrão, como quem diz “cala-te e come a sopa”. E é isso mesmo que “China” aqui representa, uma palavra que nos poupa a considerações, conjecturações, teorizações das conspirações, todos esses “ões” que até ajudam a engolir mais depressa o comprimido – “ Ah pois…a China. Como é que me fui esquecer de uma coisa tão grande”. E pronto, quando quiserem a reforma administrativa, a “meritocracia” (outra vez e em internetês: LOL) e todas essas patranhas que queríamos ver por aí à solta descascadinhas e de cabelos ao vento, mas sempre soubemos que eram só gases, perguntem antes, ahem, “à China”. (Piscar de olhos).

II

Vamos ter eleições presidenciais em Portugal, e parece que é já este Domingo. Ou no próximo. Sei lá? Juro pelo que quiserem que estava convencido que eram só para o ano que vem, imaginem só. E de facto a figura do Presidente da República de Portugal parece ter entrado no vasto leque de “coisas que não dão dinheiro, só chatices”. Para apicantar as coisas (ou torná-las insuportavelmente insonsas), tivemos lá nos últimos dez anos um figurão que fazia lembrar a Morte, ceifeira das almas. O Exmo. E Revendíssimo Cavalheiro a que me refiro (afinal, haja um bocadinho de respeito, bois. Perdão, “pois”) andou uma década aparentando estar a passar por um tormento, daqueles destinados aos danados do Inferno, deixados às mãos do próprio Demo, e que através do seu olhar fechado e impenetrável nos parecia querer mostrar que não há esperança. Ser presidente de Portugal é uma coisa que ninguém quer, mas “tem que ser”. E aquele santo que agora nos deixa, e vai tarde desde a primeira hora, resolveu sacrificar-se por nós, pecadores, e mesmo não sendo da Galileia, é de Boliqueime, que é mais ou menos o mesmo. Têm ambas as letras “a”, “i” e “e”, como podem ver. Ah, já agora, este ano temos 10 (dez) candidatos! Uau, e se antes era tudo resolvido entre candidatos indigitados pelos crónicos e alternantes funileiros do tachismo lusitano, estes agora marimbam-se para essa “seca” e temos dez patetas alegres, tão maus, que qualquer um que ganhe me deixa com vontade de me tornar apátrida. Desde que me lembro de assistir às Presidenciais (leia-se 1985, rei Marocas I), havia pelo menos um candidato que eu me importava menos se ganhasse. Hoje penso que aquela gente que tem vindo para a televisão dizer aqueles disparates e entrar em peixeiradas mil devia era ser toda presa. É como se vê, como a gente (é) muda.

21 Jan 2016

Sugestão do Chefe: Renascimento

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão podia concordar mais com quem defende que o Governo devia pagar era “quebas” aos tipos e tipas que investiram nos activos de risco daquela empresa de “bons rapazes” casineiros e no fim ficaram “a arder”, alguns com as economias de uma vida inteira (Isto não é certo, mas fica assim por motivos de…dramatização? Isso.) Nada contra as pessoas, que desconheço na sua totalidade, mas que no fundo devem ser pessoas como nós, com os seus problemas, sonhos, com as suas ambições, e é neste último que pecam especialmente: demasiada ambição, e ainda mais cara-de-pau. Dos “petit-je-ne-sais-quois” que nos separam culturalmente, a avareza (passo a falta de p.c.) é aquela que os chineses praticam com mais “profissionalismo”: levam aquilo tão a sério que no fim não conseguem usufruir do património que passaram a vida a acumular – e no fundo não é essa mesmo a percepção que temos de “riqueza material”? De facto o mundo é mesmo imperfeito, pois caso contrário a “riqueza de espírito” pagava pelos menos as continhas (e quem sabe deixava também uns trocados para jolas e tremoços, pelo menos?).
Recordo-me de um episódio interessante que teve lugar num local público, aqui há uns anos, durante o auge da febre da especulação imobiliária. Estariam no local cerca de dez pessoas, e duas delas – ambas senhoras – conversavam a viva voz, aparentemente sobre qual seria o melhor fermento para fazer crescer ainda mais o bolo do capital que iam auferindo, e a certo ponto uma delas levanta a voz contra a outra, com um ar ultrajado, e de repente nem mais uma palavra se escutaria das duas, que pelo que deu a entender, “amuaram”. Que giro. Logo que foram embora, minutos depois, perguntei à única pessoa que não me era estranha naquele local, e que por sorte também era bilingue, qual a razão de súbita e insólita animosidade, que deixou mesmo toda a gente com cara de “isto só visto” nos momentos que se seguiram ao impacto. A prestável e cândida criatura contou-me então que as duas madames conversavam de facto sobre investimentos no sector do imobiliário, e uma delas não gostou que a outra lhe tivesse perguntado como havia obtido um empréstimo a juros apetecivelmente baixos – é lógico que se essa sabia, foi porque a “parte indignada” se vangloriou de ter obtido essa vantagem. Fiquei esclarecido, mesmo que desiludido pelo motivo tão fútil e mesquinho pelo qual se haviam desentendido aquelas duas alegres convivas. O dinheiro, o património, os negócios e mais o “raikusparta” nunca devia ser argumento de coisa nenhuma. Que chato. Que previsível. Que boçal. Pena de morte para estes gajos todos, já! (Desculpem, mas estou ainda meio traumatizado de tantos apelos à violência gratuita que andei a ler nas redes sociais).
E lá está, este é o piolho oriental que nos deixa a coçar as nossas ocidentais moleirinhas; os tipos querem fazer rios de nota, mesmo que em muitos casos através de meios “marginais” (no sentido “strictum sensum” da legalidade, entenda-se), e ai de quem ousar questioná-los seja do que for. Se ganharam, “ninguém tem nada a ver com isso”, e desconfiam mesmo de alguém que lhes dá os parabéns. Se perdem, “aqui d’el-rei” ao Governo para ver se faz JUSTIÇA (ah!), e “ai de mim, que sou tão parvinha e não sabia”. Em Portugal tivemos um caso semelhante com os activos tóxicos do BES, mas aparentemente esses foram mesmo ludibriados. Mesmo assim não consigo ter pena deles – e porque havia de ter? Se os activos lhes dessem uma pipa de massa, pagavam um copinho ao pessoal? Era o pagavas! E ainda levávamos com um “o que é que tu tens a ver com o que eu ganho”, que saímos de lá com um olho moral roxo. Patetas. Bem feito!
Em suma, pode-se dizer que temos aqui um grupo de gente que é o próprio reflexo da economia lúdico-dependente que popula: a casa ganha sempre, e quando não ganha, há sarilho. Veja-se o exemplo que foi a criação de um departamento governamental, coisa séria, com poderes XPTO, e tal, apenas para que ficasse assegurada a protecção dos “dados pessoais” de cada indivíduo. What’s the point? Ninguém quer saber o número do BIR do vizinho, ou mesmo o nome ou idade, e não dou conta de um número alarmante de raptos que justifique um secretismo tal que se chega ao ponto de se ficar sem saber muito bem o que se pode saber ou dizer de cada indivíduo. É uma mania, creio. Faz parte. É integrante da edição e não deve ser vendida separadamente. A expressão “quem não deve, não teme” não é para aqui chamada, portanto. Não se adapta. Sabem o que mais? Tenho uma teoria muito minha para explicar estas pequenas diferenças que todas juntas compõem certos abismos: o Renascimento. Sim, nós tivemos e eles não, mas já agora: e o que é que eles têm a ver com isso? Ah?!

14 Jan 2016

Ei. Você aí! Não viu…

[dropcap style=’circle’].[/dropcap]..um livreiro aí? Resolvi acabar a frase no início do texto senão o título ia ficar “de rabo cortado”, como no último texto publicado (cala-te boca). Mas até vem mesmo a calhar, já que falamos de rabos que após contados se apercebe da ausência de cinco deles, aparentemente vis propagadores do mal para uns (sabemos bem quem), e paladinos das liberdades e da democracia para outros (ainda a anunciar): [voz tenebrosa] livreeeeeeiroooos!!! Espera aí, livreiros??? Aqueles velhinhos corcundas com olhos de lupa que na indústria cinematográfica porno estão na categoria de “weirdo”? Essa agora, já não bastava que alguém com a pinta de Jason Chao fosse considerado “inimigo público número um” para certas sensibilidades, e temos “Os doze indomáveis livreiros”, que neste caso são cinco, e terão pavor de borboletas.
“Talvez eu esteja agora aqui a brincar com coisas sérias” – pensarão alguns. “O vosso problema é mesmo esse: pensam, e deviam abster-se dessa inglória e frustrada ambição”, responderei eu, que nada aqui é a brincar, “leidizangentelmén”. Não há nada pior do que me abster de ler notícias, escrever qualquer coisa ou ler mensagens (fiquei dez dias sem abrir o Facebook, pasme-se) desde o Natal até aos reis, e a primeira notícia com que dou de frente com a tromba quando resurjo ao mundo, é esta, do tipo: “Olha, já foste, acabou-se o que era doce”. Deveras. Quem é que podia adivinhar uma coisa dessas, depois de ter andado tanto tempo a brincar com coisas sérias?
Não vou aqui fazer nenhuma leitura política ou qualquer outra deste facto, mas o desaparecimento dos tais livreiros por razões com que nos fingimos surpreendidos são mais do tipo “andas-te a pedi-las”. E acreditem, depois de ter andado o último quartel do ano passado a deparar com pessoas A DESEJAR que acontecessem tragédias para depois usá-las para incriminar um certo grupo de outras pessoas, fiquei mais ou menos imune aos anti-corpos da “indignação”, aquela panaceia para todos os terrores mas administrada na forma de “vai lá tu que eu fico aqui a torcer por ti” – nem sei como é que ainda não se processou judicialmente certos personagens, que iam ao ponto de difundir notícias falsas com o óbvio intento de causar o pânico. Adiante que se faz tarde.
Assim, mal soube da notícia, fui inquirir um colega meu, orgulhoso patriota que nem disfarça – antes ostenta – a sua simpatia e intimidade com o Partido (aquele, “o único”): “Olha lá, onde é que puseste os livreiros desaparecidos? Atão qué isto, uh?”. Ao que ele então retorquiu, identificando de imediato a minha intenção: “Claro… naturalmente!”, e sem mover um nervo em sobressalto, tal era a certeza de que “digam o que disserem, não têm nada contra nós desta vez”. Muito na linha oficial do Partido (o tal), que na forte possibilidade de se dizer do lado do bem e estar a afirmar a verdade, tem adoptado este estilo tão cândido de fada dos nenúfares. É até bem possível que alguém o tenha feito por eles, e sem que eles o encomendassem – ou aprovassem, até. Que sorte e azar ao mesmo tempo, vejam só.
Talvez esta seja a versão em chinês do “quem anda à chuva, molha-se”, que no Ocidente tem paralelo numa certa elite que repete vezes sem conta anedotas sem graça para provocar quem dizem ser “maléfico”, mas que no fundo não é mais do que alguém como nós, e quem já andaram a encher até aos cabelos com provocações parvas. Imaginem só se certos tipos desatassem a molestar-vos a toda a hora, porque “ouviram dizer” que vocês faziam assim e eles assado, e “eles é que estão certos, e vocês são uns bárbaros”. Quanto tempo iam aguentar até ir ao focinho do primeiro que estivesse à vossa frente? Pensamento profundo, mas no fim fico com pena realmente dos livreiros-pessoas, e não dos livreiros-utensílios de arremesso político. Sabe-se lá onde estão, e se estão bem, e se não precisam de tomar de alguma medicação, ou se dormem em ambientes salúbres. Isso é que me preocupa. Falando como pessoa, é claro, para o resto estou nem aí. Vamos ver agora quem “vai à frente”, que a gente fica aqui a “dar a nossa poia moral”.
Para reflectir em 2016, já que 2015 ficou marcado pela queda no ridículo daquilo a que chamam “luta pela liberdade”, com manifestações por tudo e por nada, e sempre com aqueles figurões já com mais que idade para ter juízo, ostentando fitas à volta da mona pedindo “fleedom”. Especialmente encantadora foi aquela greve de fome que se ficou pelo jantar do dia seguinte, aparentemente ao melhor estilo do antigos filmes “B” da antiga colónia britânica, com muito “Amelican style”. “You pay now”. Sayonara.

7 Jan 2016

…Rabo no chão

“[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]inheiro na mão, rabo no chão” – eis uma expressão chula que no seu sentido original faz referência ao pré-pagamento, ao “dinheiro à vista”, pelo que se pode imaginar que era mais utilizada em certos circuitos ditos “marginais”, e não propriamente na caixa de um supermercado ou num balcão de uma instituição financeira ou de crédito. No seu sentido mais lato, é mais uma das inúmeras referências que podemos encontrar no léxico popular à importância do vil metal – nada se faz sem dinheiro, porque vá-se lá imaginar porquê, ficou convencionado que sem ele é praticamente impossível adqurir bens ou serviços, ou traduzido para o idioma do “deixa-te lá de merdas”, serve para comprarmos as coisas de que gostamos e para, helas, “vivermos felizes” (Mas que raio de raciocínio este, e logo em plena quadra natalícia. Por outro lado, bah, que se lixe).
O dinheiro é também conhecido por pilim, bagalhoça, graveto, massa, carcanhol, bufunfa, guito, grana, e agora pensando bem, basta inserir qualquer palavra num contexto económico ou comercial para que esta adquira uma conotação com o capital: “Quando é que me devolves os paralelipípedos que te emprestei a semana passada”, é uma frase que qualquer pessoa interpreta como referência a uma dívida em numerário. Se ouvimos alguém conhecido a lamentar-se “andar com falta de chimpanzés frenéticos” porque está desempregado vai para uns bons seis meses, a mensagem subliminar que nos é transmitida leva-nos a evitar qualquer forma de diálogo com o indivíduo em questão. É esclarecedor o poder que ele tem, quando quase unanimente se afirma que “o dinheiro só dá problemas”, mas cria problemas ainda maiores na sua ausência. O dinheiro é de tal forma arrebatador que a expressão “estou teso” deixou de se aplicar à boa circulação sanguínea ao nível do tecido eréctil fálico, tendo caído “na bancarrota”, por assim dizer. Uma outra expressão, “não há dinheiro, não há palhaços”, remete-nos de uma certa forma para a inocência perdida, da sensação de que muito possivelmente alguém só nos tenta agradar ou é agradável connosco apenas pelo facto de não existir entre nós uma relação comercial, inter-dependência financeira, ou um interesse materialista. E fico-me por aqui nesta deambulação , ou não vá entrar pela floresta dos orgasmos simulados e afins, e… porra, fico por aqui. Edouard Manet, Déjeuner sur l'herbe
Isto tudo para dizer que neste ano que hoje termina estive em dois países que até há relativamente pouco tempo pensei que nunca chegaria a visitar, e que a única forma de poderem vir a ser um dia visitáveis seria com um “rebooting” completo, do género “aniquilação total de toda a população existente, e sua substituição por outra de modo algum semelhante com ela”. Falo do Myanmar, que no câmbio do “deixa-te lá de merdas” ainda é mais conhecido por Birmânia, e no Cambodja – dois lugares onde a simples presença física aumentaria exponencialmente a possibilidade de nos ser declarado óbito (não que essa declaração “à posteriori” nos fizesse lá grande diferença, entenda-se). Mas não há que o negar; para a geração das pessoas que têm hoje mais de 25 anos, a Birmânia e o Cambodja são tidos como locais nada recomendáveis para se fazer turismo. E aqui refiro-me à noção mais comum e “democrática” de turismo, aquele do tipo “estou de férias, quero fazer o que me apetecer sem que ninguém me chateie”. E de facto a Birmânia foi e vai sendo notícia devido à sua atribulada situação política, que balança ao som dos maiores sucessos do despotismo e da corrupção, enquanto o Cambodja, resumindo em poucas palavras, viu um terço da sua população dizimada em quatro anos de Governo de uns tais “Khmer Rouge”, nome dado ao grupo de babuínos facínoras, e graças aos quais o país tem como uma das suas atracções turísticas uns tais “campos da morte”. E não, o nome não tem origem numa qualquer lenda maluca envolvendo ninjas celestiais e imperadores voadores mais as suas concubinas. Eram terrenos de natureza rústica onde morriam pessoas como nós. Simples.
Mas tudo isso mudou e hoje posso dizer que andei de noite por becos e vielas nas entranhas de Rangum sem temer que me viessem impingir um Rolex da Candonga, e enquanto estive em Siem Reap não vi qualquer execução sumária em nenhuma das suas principais artérias, e em plena luz do dia. Vi gente feliz, simpática, afável, e tão prestável que fazia das tripas coração para se tentar fazer entender com os estrangeiros, um autêntico recital de orgasmos simulados (pronto, não consegui evitar, paciência), e tudo isto porquê? Lá está: “dinheiro na mão, rabo no chão”, e aqui existe o aliciante cambiante de que enquanto as nádegas estiverem suavemente pousadas na solidez desmilitarizada e desparasitada de vermes totalitaristas do asfalto, menos vontade estas pessoas têm de andar aos tiros, ou a rebentar com qualquer coisa “só para passar o tempo”. Descobriram que afinal era mais interessante vender qualquer coisa que se coma, vista ou use, satisfazer o consumidor, e ainda obter algum lucro no processo. E depois de acumulado essa lucro, compram uns dois ou três imóveis (estranhamente essa parece ser uma filosofia de vida regional). Posso mesmo afirmar que na Birmânia e no Cambodja se está a assistir ao contrário do que vamos vendo pelo Ocidente. Acho que chegaram ao ponto óptimo existencial, depois que atingiram o “nirvana” supremo que os fez pensar: “a política que se lixe; vou mas é trabalhar e fazer umas massas”.
A Birmânia deixou-me especialmente encantado. Num país onde ainda recentemente o líder do Governo dedicou um discurso de quase uma hora a um combate de boxe, e tudo porque apostou e perdeu, não vi um único motociclo nas ruas da capital do país, e em vez de ter esses machimbombos de duas rodas anarquicamente estacionados em toda a parte, os passeios de Rangum eram ocupados por vendilhões, de um lado e do outro. E como chegava a ser agradável deter-me e inquirir sobre cada espécie de comércio com que me deparava, quer do lado esquerdo, quer do outro, enquanto me pavoneava pelas ruas de um país onde tudo o que sabia da actualidade foi-me dado a conhecer pelo último filme da série “Rambo”. Uma boa surpresa, portanto.
E é com esta bonita imagem, com este sentimento de positividade que nos diz que de barriga e bolsos cheios dá menos vontade de fazer revoluções e tretas que tais. Para todos os leitores do Hoje Macau, um desejo de um ano que a expressão “estou teso” volte a ter o seu sentido original. Um feliz e próspero 2016, deste vosso servo.

5 Jan 2016

Droga, porcaria e chupa-ovo

I

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ntre a correria dos afazeres profissionais, quase nem dei pela entrada da quadra natalícia, o que vem comprovar que esta época outrora dada a balanços de fim-de-ano e menos “stress” já não é que era – e para o Sporting este Natal parece que também não. Fico aliviado, uma vez que esta vontade excepcional de fazer render o que falta para acabar o ano civil, e que no universo das anedotas de alentejanos seria considerado “uma epidemia”, contraria a tendência do PIB, esse em curva descendente. Pesando tudo isto na balança, o resultado é positivo, uma vez que as previsões mais pessimistas apontavam para o desinvestimento, coisa até considerada “normal” numa indústria tão volátil como a dos Jogos de Fortuna e Azar, e tudo o que isso representa, e de que Macau e a sua população se encontram invariavelmente reféns.
E é no seguimento deste recheio social sortido que nos sai na rifa de todos os vícios que encontramos a droga – isto salvo seja, obviamente. Fico a saber que o Executivo se prepara para rever a moldura penal para os crimes de tráfico e consumo de estupefacientes, e sim, era previsível: as penas vão ser mais pesadas. Tão pesadas que fossem estas “penas” a de uma ave, teria que ser de um avião. Eu já me sinto indiferente – para que estragar a pele com manifestações perante esta táctica de “mais vale quebrar que torcer”? Aumentaram os números do consumo e o tráfico? Penas mais pesadas! Aumentaram outra vez, é? Então toma mais dois ou três ao fresco! E agora, atrevem-se? Claro que se atrevem, mas qualquer que fosse na mesma direcção da maioria das restantes jurisdições civilizadas e progressistas, para quem o consumidor é também uma vítima, seria entendido como um sinal de permissividade, de fraqueza.
Assim mais vale o simpático Hin Wai ir todos os anos anunciar novos patamares de insucesso na missão de que o incumbiram mais ao departamento que dirige, o que pode ser entendido também como uma demonstração de confiança quiçá única no mundo (nem José Mourinho aguentava no Chelsea com resultados destes), que o problema no fundo é “político”.
Este ano estive em Bali, na Indonésia, país onde este ano as autoridadas executaram 14 detidos pelo crime de tráfico de droga, alguns deles estrangeiros, e por sua vez entre estes, uns que foram detidos exactamente quando da sua chegada àquela estância turística. Por aquilo que vi e me foi dado a entender, o problema destas malogradas almas inconscientes foi não ter licença de importação, ou “cartão de membro do clube”. Droga era coisa que havia por lá ao pontapé, posso garantir.

II

Estive de fora de Macau durante uns dias, de visita ao Cambodja, e imaginem que durante a minha ausência foi anunciada a decisão da Universidade de Macau agora situada na Ilha da Montanha, em acabar com o ensino da Língua Portuguesa como opcional, o que provocou entre a nossa intelligenzia as já previsíveis e costumeiras ondas de choque. Este “corte” não se deverá ao facto da mudança do “campus” para o lado de lá, do primeiro sistema, e muito menos estariam à espera que eu virasse as costas, porque para mim – e preparem-se, ó “junkies” da indignação e do sobressalto, que pedem sempre em tamanho “supersize” – é igual ao litro. Estou-me nas tintas. Já deviam ter tomado esta decisão mais cedo, até porque vindo de quem vem, deixa-me apreensivo, desconfiado até, que se mantenha o ensino de uma língua que representa (preencha com a alarvidade patrioteira que melhor achar), ainda por cima fazendo-o contrariados, e eu não gosto de ver gente contrariada, com birra do sono, e possivelmente chichi.
É apenas sintomático que se venha agora por na porta mais este cadeado numa Universidade, que nessa função de formar os quadros superiores só pode classificada de “sinistra”, tais eram os sinais de rigidez que vinha demonstrando nos últimos tempos, atingindo o clímax no ano passado, com actos de pura censura e saneamento de académicos por motivos obscuros. No papel pode parecer mau que a instituição de ensino superior que ostenta o nome do território trate com esta menoridade um elemento indissociável da matriz histórica e cultural desse mesmo território. No papel, insisto.
Mas agora peço-vos que parem de emborcar esses hamburgueres de desaforo, empurrados não por coca-colas mas por “ora bolas que já nos tramaram”, chegando a ler neste acto algum tipo de prenúncio do apocalipse linguístico, e deixem-me que vos proponha uma dieta muito fácil, que nem requerer que tirem o rabiosque da cadeira. Basta reflectir durante um minuto e fazerem a vocês próprio esta simples pergunta: isto fica mal a quem, exactamente? Quem quiser aprender Português tem outras opções (e até no continente, e com mais qualidade, dizem), e não noto nenhum tipo de animosidade contra a segunda língua oficial, tirando dos suspeitos do costume, e a esses só nos resta deixar a pastar lá na montanha, onde se fala o montanhês. Béééé…

III

Também durante o curto período em que troquei Macau pela pátria dos Khmeres, falou-se de identidade macaense. Olha khmerda, já viram o que andei a perder, enquanto se tentava responder ao velho enigma que apoquenta menos que 0,0000000005% da humanidade que se propõe a discutir o problema: quem veio primeiro, a galinha chau-chau parido ou o chupa-ôvo? Eu adoro o Miguel, o André, a Paula e todos eles, no sentido não sexual nem gastronómico do termo, mas eles próprios sabem que esta discussão é tão produtiva como organizar um campeonato mundial do Jogo do Galo. Contudo, permitam que partilhe aquela que considera a melhor definição quanto ao género e sexualidade dos querubins:
“(…) Os movimentos migratórios convergentes para o território de Macau, tendo como principais territórios de origem Portugal e China, e os movimentos migratórios que daquele território divergiram para o mundo, constituindo-se como diáspora, devem ser incluídos na caracterização da comunidade macaense, privilegiando-se o seu principal núcleo de organização social, isto é, a família macaense.”
Aí está: a “família macaense” como o elo de ligação a Macau e, por inerência, ao sentimento de pertença, à noção de uma “identidade” própria. Mas não interpretem isto como uma tentativa de conciliar seja o que for, ok? Eu quero é que a malta “vá juntá” para “falá falá falá” e “comê comê comê”, e que não faltem para isso pretextos, por mais inconclusivos que possa ser a discussão.

17 Dez 2015