O Alqueva pode não chegar para todos

Hoje vou contar-vos uma história surreal. Encontrei um amigo alentejano e falou-me do maior lago artificial da Europa, o Alqueva. Todos devem estar lembrados de como começou o Alqueva, com a possibilidade de as águas virem a submergir algumas aldeias ali existentes e até se construiu uma aldeia semelhante a uma que ficou debaixo de água. O meu amigo contou-me que na altura de se retirarem pessoas e bens da aldeia, o seu pai estava no hospital. Ele levou para sua casa montes de caixas e objectos da família. Nas caixas de papelão encontravam-se imensos escritos de seu pai que o meu amigo resolveu mexer mais tarde até porque o senhor seu pai veio a falecer.

Recentemente, resolveu começar a rasgar papéis e encontrou uma carta do pai onde estava escrito que tinha construído um alçapão por baixo da sala da lareira e que no seu interior encontrava-se o dinheiro (muito) de uma vida. Naturalmente, que o meu amigo quase enlouqueceu porque a aldeia e o dinheiro estão lá muito no fundo das águas do Alqueva.

E um lago que é o maior da Europa, local já de grande turismo, com barcos-casas, com aviões a amarar, com uma praia fluvial lindíssima, com tudo isto, está em perigo de não chegar para todos no Alentejo. Um reservatório gigante de água pode vir a ter restrições severas e imediatas para aqueles que actualmente são servidos. A barragem do Alqueva é um sonho com séculos dos alentejanos que foi concretizado apenas na década passada. As obras começaram em 1996 e as comportas foram encerradas em 2002. Neste momento, com a muita chuva que tem caído, está apenas a três metros do seu limite de enchimento. A quantidade máxima de água é de 4 150 000 000 000 litros de água, uma monstruosidade, mesmo assim este volume é da mesma ordem de grandeza de todo o consumo anual de água em Portugal incluindo todo o regadio, o abastecimento humano e a indústria.

A título de exemplo, olhando para as disponibilidades do Guadiana vemos um rio muito artificializado e explorado do lado espanhol, mas que faz chegar à barragem de Alqueva, por ano e em média, de cerca de 2000 hm3 e logo a sua albufeira pode armazenar cerca de 2 anos de escoamento médio. Na verdade, o Alentejo parece outro, há hectares verdinhos e onde nunca mais faltará água. Mas, há um problema bicudo: o Alqueva pode não chegar para todos. Como assim?

Acontece que os responsáveis pela barragem têm os seus clientes e os acordos para determinados regadios e esses clientes começaram a estragar tudo em 2019. Esses proprietários que já estão beneficiados têm naturalmente, outra perspectiva pois acreditam que a expansão pode lhes ser confiada para estenderem as suas redes privadas de distribuição de água às áreas vizinhas. Muitos deles já concretizaram essa expansão explorando as chamadas “áreas precárias”. Segundo os técnicos é essencial travar o crescimento de essas “áreas precárias” que já somam cerca de 18 mil hectares, quando o total da rega atinge 95 mil hectares.

A água do Alqueva não é ilimitada, mas com os cenários de consumo e eficiência que hoje conhecemos será suficiente para garantir o abastecimento de todos os clientes actuais – integralmente em áreas exploradas pelos responsáveis da barragem e reforçando os sistemas confinantes ligados – bem como toda a expansão projectada que já começou a ser concretizada e conta com financiamento assegurado.

O que o Alqueva nos deixa a pensar é como antes, durante décadas, os alentejanos viviam com as secas e iam à fonte com o recipiente de barro buscar água para beber e para a horta e nos tempos de hoje já se pensa na ganância total para se ficar rico expandindo a água por onde lhes apeteça. O Alentejo está lindo com o Alqueva, mas é importantíssimo pensar que a água é um bem indispensável com tendência mundial a desaparecer.

*Texto escrito com a antiga grafia

8 Mar 2021

Ascenso, o demolidor

Aqui em Portugal chegou-se à loucura completa. E não é por causa da covid-19. Deve ser consequência de uma doença mental. Durante a semana passada nunca tinha visto nas redes sociais tantos gráficos a desenhar as mais interessantes e irónicas obras artísticas contra o socialista Ascenso Simões. O homem colocou o país a interrogar-se onde está a sua razão e lógica ao anunciar que o Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, devia ser demolido. O homem é socialista? É da escola de Mário Soares? Ou a criatura devia ser militante de um partido esquerdista da Catalunha ou do País Basco? Demolir um monumento que simboliza a história de Portugal? Está certo. Se dermos razão ao dito Ascenso vamos igualmente derrubar o Mosteiro dos Jerónimos, a estátua de D. José no Terreiro do Paço, a do Marquês de Pombal que mandou matar milhares de concidadãos. Desmembre-se já a ponte sobre o Tejo do fascista Salazar, tal como o monumento aos combatentes do Ultramar.

Na sexta-feira, perguntei a um membro do Comité Central do Partido Comunista, qual era a sua opinião sobre as ideias do Ascenso. Respondeu-me: “O gajo é maluco e ninguém lhe liga mais. O partido dele já o devia ter expulso desde que foi governante incompetente”. Isto diz tudo. Temos pelo país fora o maior testemunho do que foi edificado durante os 40 anos de fascismo e durante toda a nossa história estatual do tempo da Monarquia e nunca ninguém democrata se lembrou de mandar abaixo uma estátua, nem sequer retiraram os nomes das ruas a homenagear os mais radicais fascistas.

Quando a Assembleia da República aprovou um voto de pesar pela morte do tenente-coronel Marcelino da Mata, Ascenso Simões votou contra, contrariando o sentido de voto do seu partido. Depois, pôs-se a escrever armado em literato num jornal diário e defendeu que o Padrão “devia ser destruído”. Ainda pior e perplexo adiantou que “devia ter havido mortos no 25 de Abril”, desculpando-se que não seriam mortos físicos, mas cortes epistemológicos. Mas Ascenso não deixou de referenciar que o Padrão dos Descobrimentos devia ser destruído enquanto “monumento do regime ditatorial”… Isto é caso para rir ou chorar. Ria quem acha que o homem é louco. Chorem os que passaram pela guerra do Ultramar e que se encontram física e mentalmente afectados e que são homens para dar um tiro no socialista Ascenso.

O caso é grave dito por quem foi. Um membro do Partido Socialista não pode ter posições destas. Não quererá Ascenso Simões destruir o templo romano de Évora por todo o mal que os romanos fizeram ao nosso povo? Não quererá destruir as igrejas que foram construídas no “regime ditatorial” com o qual a Igreja portuguesa esteve sempre em conluio? Incrivelmente o articulista vai ao ponto de salientar que “em Portugal, o salazarismo foi muito eficaz na construção de uma história privativa”. Privativa? Alguém acha que os milhões de crentes que têm visitado a “construção” do santuário de Fátima é algo de privativo ou é de quantos ali vão rezar? Ou Fátima também deve ser destruída porque foi edificada no “regime ditatorial”?

Há mesmo razão para o povo na sua maioria estar revoltado com Ascenso Simões, especialmente quando se refere ao regime de Salazar e à nossa história do império consequente dos descobrimentos? Então, o império que pertenceu ao Portugal teve a ver alguma coisa com o Salazar? No século XV já existia instabilidade em Portugal e ninguém pegou fogo às caravelas ou cortou a cabeça ao Infante D. Henrique. São dados concretos que demonstram que esta criatura que ainda é deputado do Parlamento não sabe o que diz.

O “herói” do revolucionarismo do século XXI esqueceu-se, ou fez de propósito, quando votou contra o voto de pesar pela morte do Marcelino da Mata que para além de ofender a memória de um português que se limitou a cumprir as ordens do regime fascista, também está a ofender todos os portugueses que vestiram a farda militar e que lutaram nas colónias, o que traduz uma ofensa gravíssima e merecedora de um voto no Parlamento da sua imediata expulsão de deputado. Não podemos envergonharmo-nos do império que tivemos, tal como o fazem os ingleses.

Pessoalmente, só gostaria de perguntar à criatura Ascenso Simões, como é que ele justifica a “infâmia” dos descobrimentos se ainda se fala português em São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Angola, Moçambique, Brasil, Guiné-Bissau, Timor-Leste e Macau?

*Texto escrito com a antiga grafia

1 Mar 2021

Juiz revolta homossexuais

Ao que isto chegou em Portugal. Um país a ocupar-se durante uma semana de um juiz presidente do Tribunal Constitucional que há anos tinha uma posição anti-homossexual. É um tema antigo e demasiadamente badalado.

Até entre os nossos reis tivemos D. Sebastião, D. Pedro I e D. Afonso VI que eram mais para lá do que para cá. O homossexualismo tem sido um dos maiores preconceitos da história humana mundial e em Portugal sempre existiu a prática do amor entre homens ou entre mulheres. Há anos, os sacerdotes católicos abusavam de jovens ainda no seminário. Alguns foram expulsos da Igreja, mas nos dias de hoje até o Papa Francisco admitiu o casamento homossexual.

A Assembleia da República aprovou o casamento gay e a partir daí muita gente tem saído do armário. Entretanto, um magistrado de nome João Caupers, sem qualquer investigação sobre o seu passado conseguiu chegar a presidente do Tribunal Constitucional. A maioria dos comentadores televisivos indicaram que para se chegar a um cargo desta natureza tem de ser um cidadão impoluto e exemplar. Ora, o juiz Caupers escreveu em 2010 alguns textos, que indignaram as pessoas em geral e até os seus pares na área judicial, textos esses completamente anti-homossexuais.

Quer dizer, não me digam que durante toda a carreira deste juiz se lhe apareceu pela frente qualquer réu que ele soubesse ser homossexual, seria certo que o condenava mesmo sendo um inocente? Nem posso acreditar nisso. O que sabemos é que o juiz presidente do Tribunal Constitucional referiu-se aos homossexuais como uma “inexpressiva minoria cuja voz é despropositadamente ampliada pelos media”, posicionando-se como um fulano integrante de uma “maioria heterossexual dominadora”. As suas declarações estiveram directamente ligadas à promulgação da lei que abriu a possibilidade de casamento para casais homossexuais. O juiz tem agora em 2021 o desplante de se desculpar e de afirmar que se tratou de um “instrumento pedagógico, dirigido a estudantes para melhor provocar o leitor” e acrescentando que hoje em dia não tem as mesmas ideias. Não tem? Será que passou a ser homossexual? Claro que não. O que o juiz escreveu por diversas vezes, tais como “os homossexuais não são nenhuma vanguarda iluminada, nenhuma elite”, pelo que não faria sentido a sua “promoção”. Gostaria de ouvir a opinião de um juiz que conheci e que era homossexual e que, infelizmente, já faleceu. Tenho a certeza que esse homem de uma competência extrema e que nunca misturou alhos com bugalhos exigiria a demissão do juiz Caupers de presidente do Constitucional.

Um juiz deste pensamento quando era professor catedrático nunca poderia chegar ao mais alto cargo do Tribunal Constitucional, com a agravante dos seus textos continuarem à mercê dos estudantes da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e onde os docentes partilham e expõem artigos de opinião.

Eu não sou homossexual nem defendo qualquer causa ligado ao tema, mas sei de fonte clínica de que a homossexualidade não é doença nenhuma e que desde a nascença do ser humano que os genes já têm a sua tendência hetero ou homossexual. Não tenho nada a ver com a vida e opções de cada um, mas não posso admitir pacificamente que um juiz desta envergadura deixe revoltados quantos já compreenderam que ser homossexual não é crime nenhum, apesar de continuarem a ser terrivelmente perseguidos e discriminados, sendo ainda criminalizados pela sua orientação sexual em muitos países, nalguns inclusive submetidos à pena de morte. A criminalização da homossexualidade em Portugal só foi definitivamente afastada em 2007. Mas em 2010, o professor Caupers ainda tentava provar aos estudantes que ser homossexual era um crime hediondo. Mas, como em Portugal o habitual é que a discriminação, a injustiça, a corrupção e a prepotência morram solteiras, temos mais um caso em que um “senhor” juiz rir-se-á disto tudo.

22 Fev 2021