Horas

[dropcap]À[/dropcap]s vezes este silêncio novo da cidade. Como uma atmosfera fina em que pequenos sons esparsos se fazem notar. Passos. Um esvoaçar mais nítido. Estalar manso de pequenas matérias, que sobe aos andares acima da rua, um carro que acorda ao longe a face habitual. Motores geradores exaustores e outros incómodos roedores da floresta urbana, dormem por agora esquecidos do seu trabalho de atordoar.

Surgem mais tarde, atrasados mas infalíveis como a natureza a acordar. E as pessoas invisíveis. Quase o marulhar dos lençóis afastados aqui e ali. Uma roupa sacudida do torpor, uma máquina de café. Uma frescura inicial, sempre, a da manhã. O piar de pássaros como uma primavera fora do sítio. Sinos, depois. São dez horas. Horas e meias horas. Catorze horas e aquela sensação de não haver deveres urgentes a distrair a mente desta espécie de desnecessidade estranha e culpada. Dezoito e quinze e a luta contra a falta de vontade das inúmeras coisas da vida pendentes a precisar de um v de efectuadas. Coisas indizíveis de pequeninas e tirânicas e mesquinhas etapas para o momento seguinte simplesmente com a sensação, aí sim, de estarem feitas, na sua insignificante e vazia importância. Coisas a despender o tempo e a cumpri-lo. Se nenhum relógio consegue tornar substância o tempo, como o podem os inúmeros ângulos aprisionados de passagem pelos olhos, os incontáveis objectos tocados e movidos, os sons alinhados na sua vizinhança aleatória, os passos na casa percorrida às quinze horas já de quilómetros. Dezanove e treze, ainda se espera algo que seja mesmo não mais que somente uma faúlha. A empurrar a vida para um pouco mais à frente.

Vinte e duas. A inspirar fervorosamente os segundos e a adiar um pouco mais o jantar como o fecho da emissão. É difícil explicar como ainda se espera que uma coisa pequenina e ínfima – e porque só dessa escala se trata de esperar – aconteça vinda como estrela cadente com a proporção exacerbada pela luz, a parecer maior e mais bonita e luminosa ou acontecida a rasgar o negro do que for. Sim mesmo se somente uma dessas evanescentes estrelas cadentes a colher esta inexistência e a pedir um desejo. Vinte e três e dezoito.

Quase a arrumar o dia e a recolher para dentro. O que foi como um intervalo. Na sala que ninguém acede e que é ausente de todos os trabalhos os bons e os maus. Uma distracção a acompanhar o jantar sempre atrasado e uma distância final, de tudo, que mesmo à ideia de que algo poderia chegar é já quase avessa. O dia terminado. Uma parte da casa adormece mais cedo e a outra acende-se em tons baixos e silenciosos.

Uma será já difícil de acordar, como criança de sono bom, a outra será difícil de levar para a cama como uma que nunca quer dormir.

Jantar tardio. Um copo de água à beira da cama – depois – não vá aquela sede imensa a desarrumar o sono, dar azo a pensamentos que se querem livres da realidade.

No silêncio muito se dissolve, ou deveria dizer: dilui. Mas também muito de subtil se torna visível. Como as noites de aldeia em que o céu é repleto de todas as estrelas de sempre mas que na poalha luminosa que se evapora dos poros citadinos, não se deixam ver. Há sempre um médium no qual algo acontece. O solvente.

Há uma certa poesia nas qualidades objectivas da matéria. Dissolver: desorganizar, estragar, corromper, dissociar, dispersar, misturar num meio em qualquer estado. Diluir é acrescentar solvente, logo diminuir a concentração do soluto, cuja massa se mantém inalterada. Volume e concentração são inversamente proporcionais. Por isso diria que no silêncio tudo se dissolve e dependendo do grau de diluição, o sabor, o perfume ou as qualidades dos reagentes, tornam-se mais ou menos evidentes. Mas se de vida se tratar, sendo o silêncio o solvente, pode acontecer que as partículas se tornem mais óbvias. Dependendo da sua massa e capacidade de dissolução. Se estas características são inversamente proporcionais pode acontecer uma enorme subtileza na matéria por entre o silêncio e entre isso e a inexistência ser possível a confusão. A ilusão de um vazio total, apenas porque as partículas são ínfimas, ao nível do átomo invisível ao olho, mas inexoravelmente existente e poderoso.

A televisão continua a desfiar coisas e vidas. Isso, fora de horas. Depois outra vez seis e meia. Sete, nove.

7 Dez 2020

Aos mortos

[dropcap]N[/dropcap]ada se nega. Como disse algures Mário de Sá Carneiro: “a um morto nada se recusa”. E nisso confiou Santa-Rita, ao deixar expresso o desejo profundo de que todo o seu trabalho fosse queimado depois da morte prematura que o apagou ainda antes dos trinta. E foi o que o irmão fez, entregando às chamas o trabalho de atelier. O possível. Para isso servem os irmãos. Para isso e, muitas vezes, para o que é contrário a isso. Santa-Rita Pintor. Como apelido. Como a revelar a pertença a uma família, de coisas feitas e por fazer. Se por uma vez pudéssemos espreitar o interior do espírito de uma pessoa. Se alguma vez pudéssemos acreditar conhecer alguém por dentro. Esse mistério profundo que são as pessoas, querendo ou não, assume-o Santa-Rita Pintor. Fez Historia também nisso, porque há vestígios e memória. Teria ele desejado, se fosse possível, estender as chamas também a esse lado incontrolável que fica?

Talvez tenha sido o único e o maior – com ou sem obra feita ou deixada – “futurista e tudo”. Porque levou o ímpeto de destruição do passado, preconizado pelos italianos, à sua expressão máxima e na esfera privada, apagando-se e simultaneamente o seu passado, a sua passagem. O seu trabalho. Como se nada valesse ou como se a ninguém competisse retê-lo. Ou então, como se cada parte de trabalho feito, à semelhança de uma célula cerebral, com falta de irrigação, morresse. Não podendo sobreviver ao cérebro que a produziu e entendeu como ninguém.

Abre-se uma gaveta. Repleta de objectos familiares ou estranhos ou até mesmo insólitos. Mas eles têm uma ordem ou desordem particular e guardam um segredo de intencionalidade. Nunca poderemos entender o todo como adição simples de todas as partes. Mas uma gaveta é o retrato do interior da cabeça de uma pessoa. A casa, um retrato de corpo inteiro. Porque as pessoas vivem na casa como no interior da sua cabeça. E o trabalho é ainda um retrato, mas elaborado para ir um pouco mais longe e se revelar um pouco mais. E esconder. Nas malhas tecidas do discurso. Quando alguém parte deixando para trás as suas coisas, não é o mistério por vezes já conhecido no seu trabalho que detém os olhares e mãos estranhas em interrogação ou descoberta. É o interior de gavetas e de armários fechados sobre um mundo objectual que por vezes nunca viu luz do dia. Nunca foi tocado nem orquestrado senão pelo corpo de cujo interior revelam parte, fazem parte ou reproduzem em parte. Um corpo de sentido. E, como de qualquer corpo, é precisa uma enorme proximidade para se conhecer e entender.

Um rio pode fluir e um dia desaparecer na areia surgindo eventualmente mais à frente. É a imagem escolhida por Pessoa, em carta a Santa-Rita, relativamente ao desaparecimento da revista Orpheu. Mas as pessoas não são assim. Elas voltam, sim, voltando-nos à memória. Mas serão sempre a possibilidade de não o serem, mas sim sósias, essas aparições virtuais e sabe-se la quão parecidas com quem desapareceu ou com quem inventámos.

Chave. Apropriamo-nos dela. Tenho dado por mim tantas vezes, nestes últimos anos, a pensar como as pessoas entram e saem da vida dos mortos. Devassam, porque tem que ser, o lixo, a intimidade, objectos e memórias e coisas frágeis que só por acaso têm uma aparência física e a possibilidade de serem tangíveis apropriáveis e possuídas, mesmo quando na sua essência são afinal conhecidas e partilhadas pela memória.

Que se transformam em coisas úteis ou inúteis sem fuga possível e com um novo certificado de posse e não de habitação. Como podem os objectos de quem parte, ser tocados e arredados daquele centímetro exacto à beira daquele nó da madeira, daquele grão de pó que se fez fronteira entre o último gesto e o repouso para depois das mãos que partiram. Um fragmento de vida, preso naquela particularidade das coisas no espaço e iguais a um outro momento. Mas somente até conhecerem outro gesto. Como podemos mover do lugar um caderno, um lápis manuseado, uma página marcada ou um pedaço de papel, que nem o vento deveria retirar da sua sombra levianamente? Como fazer com as coisas dos que partem. Como viver com a possibilidade de, dos objectos, desaparecer esse último gesto e essa última respiração ou enfado ou impaciência ou meditação. Como deixar partir os vestígios sólidos de uma invisível impressão digital. Como deixar que outras se substituam a essas. Como permitir que alguém invada todos os pequenos meandros de um pensamento, de uma distracção, de uma dúvida? Presos ao que de matérico é o limite do possível, a reter a ausência antes que se torne dissipação e se torne ausência de ausência. Há que fechar a mão sobre a chave, pelo tempo que for necessário. As estações levarão consigo camadas de nitidez, algumas, e de sentir. Mas antes e sem se saber, é melhor esconder a chave. Senti-la na mão a ganhar a temperatura. Que o metal não tem. Mas a mão.

Porque as coisas dos mortos, não têm fuga possível. Nem eles. A menos que tenham um irmão, um amor, que ame nas coisas o que delas entenda. No mínimo, que elas são o interior da cabeça de alguém. Que podemos nunca entender na totalidade, mas que é preciso amar. As coisas, como as pessoas a quem pertenceram.

1 Dez 2020

Dating the city

[dropcap]N[/dropcap]a verdade o espaço de todos os dias sob o olhar do outro que invade o quarto. As roupas, como se delas se fizesse a clareza com que a vida flui em visibilidade no outro. O que somos do outro. As roupas. As peças desmembradas e amorfas num curto espaço de quinze minutos de pressa para sair como se de tudo isso dependesse o sentido da vida a revelar ao outro olhar e àquele olhar que se enviesa desconfiado e acutilante na indecisão ou no desafio a rasar o espelho, também ele falível. Os espelhos antigos são deformadores por excelência. Há que procurar a zona de clareza por oposição à zona de deformação. Das proporções. Mas para o corpo, esquecendo o rosto, passa discreta a deformação e o que sobra é a ideia geral. Sai. Detrás do espelho. Que já não é tempo de confundir a estética com o amor. A questão das roupas passa também pela evidência da cor. Como tudo.

As roupas, como animais abandonados sem dono sobre a cama. Outras vezes sobre o chão sem tempo para mais esmero. Despir rápido ou lento, ritual. Às vezes de desejo. As roupas esvaziadas porque neste dia não servem nem se lhes reconhece alguém. Estranheza em cada peça descartada. Esta não. Não hoje. Não ontem mas sim num dia outro qualquer. A identificação. Ali sim, pareço ser. As que ficam coladas e ancoradas ao corpo até ao fim do dia. Provamos como se roupas e máscaras inteiramente desconhecidas.

Esta roupa ontem servia e hoje não serve. Não se reconhece. E os sapatos fazem as pernas curtas onde ontem se dispunham generosos e repunham as proporções. O arquivador doméstico como se do seio familiar. Esta tia hoje não me responde, esta não me reconhece e esta outra é como se eu não a conhecesse.

Não me conhecesse – digo – E assim. O tempo a escoar-se no limbo da roupa interior já ultrapassada como etapa. No provador. Doméstico. Revestido de um olhar como se do outro. Um curto momento de visita entalado entre o passado e o nada que antecederia o futuro indiferente.

Entro e subo escadas entupidas de restos e poeiras e escuridão. Um primeiro andar adivinhado na entrada do prédio com pequenas montras esguias ao logo do átrio de entrada. As montras do que é mais acima adivinhando o tema íntimo da roupa a experimentar. Noutros tempos. Antes do pó e da derrocada de tudo. Materiais em desvario e fechaduras de exígua privacidade ou segurança, agora. Entra-se nos restos de um passado mais lento. De uma atenção mais cúmplice. Afinal falamos de roupa interior, a derradeira fronteira da intimidade. Se esquecermos a pele e tudo o mais de misterioso. Tudo devoluto, hoje. As noções e os espaços.

Anúncios de colorido vintage. Um charme estilizado. Uma pose para o olhar do outro Para a sedução. Ali ao Chiado. A derrocada completa no interior prestes a requalificar. Um provador íntimo e recatado e dois espelhos de moldura metálica naquele ângulo específico para ver e ao mesmo tempo ver.

Haveria um balcão de madeira nobre e quente com espaço para desvendar caixas de cartão baixas e quadrangulares, de onde se desnudavam gradações de rendas e tonalidades. Das mais finas às mais barrocas e das mais suaves às mais intensas. Em papel de seda. Com gestos delicados a acumulá-las umas sobre as outras em escadinha. Para escolher calmamente.

Uma porta, um espaço silencioso, uma banqueta para sentar o corpo em exposição dupla. Roupa interior e um olhar de si e de outro. Como se as duas coisas pudessem ser simultâneas. E não alternadas. Ainda ali está o prédio. Na esquina como uma esquina teria sido cada corpo que ali se interrogou. Entre um olhar de si e um olhar exterior a si. A ver se ficava bem. No quase somente corpo, a pele fina de rendas delicadas. Era uma divisão, anteriormente assoalhada, talvez, pequena e aconchegante, um provador de espelhos posicionados como na vida, com um ângulo particular. Molduras em metal de perfil fino. O olhar não carece de moldura, já é. É em si suficientemente abrangente. Esse olhar do outro. Mesmo ali. Sento-me calmamente em roupa interior. Como se fosse. Outro tempo. Observo e relembro como se tivesse olhado com esse olhar de ali estar pousando sobre a banqueta e de olhar no espelho sobre um corpo em roupa interior. Interior é mais ainda para dentro mas não para além desse olhar no momento, sobre o olhar do outro. Visto-me, ponho a máscara, por cima da roupa interior. Essa fica. Como nos filmes.

Quando é que alguém deixa de escolher, com essa duplicidade no olhar e dois espelhos em ângulo? Quando é que se abandona um sorriso secreto? Talvez voltando a Schopenhauer, e como sempre a propósito de uma outra coisa, revirar a frase sobre si própria a ver se serve. Como roupa interior. “Sentimos a dor mas não a sua ausência”. Quando deixa de existir a hipótese de ausência da dor, de intimidade? Esse nada. Que é desinteresse. Ou indiferença ou esquecimento ou abandono ou idade. Sento-me sentindo-me no provador, ante espelhos. Que fazer na ausência desse olhar? Que vem depois de antes. Quando ainda “todo o fruto delicioso amadurece lentamente”. Como a intimidade.

22 Nov 2020

Sonhar fractal

[dropcap]F[/dropcap]ractais. Às vezes são tudo o que vejo. Interiores e exteriores. Padrões da consciência e do inconsciente. O módulo a coincidir na aparência com o padrão. A parte fracionada e o todo. Padrões: a porta da rua em vidro transparente e a quadrícula envidraçada da marquise das traseiras, como um conjunto de monitores na régie, a seccionar a imagem total. A mesma de onde deitava papelinhos miudamente cortados a voar.
Pergunto-me quais.

São os sonhos que se deixam sonhar, os da infância, talvez. Aqueles que esconjurados se retiram para uma tela luminosa na memória, e, se para sempre, para sempre também estacionados e neutros. Fizeram já todo o mal que tinham a fazer nos seus tempos. E ficaram enraizados como sinal de outros medos – tempos, digo.

Quais piratas ainda intrigantes, como os que subiam pelas noites acima, a quadrícula de vidro martelado das marquises do prédio, sem tontura nem vertigem, armados de sabres nos dentes, não sei já, digo mas não sei já se invento detalhes fílmicos, acrescentados ao sonho de muitas noites sonhado e sobretudo lembrado.

Piratas vindos dos livros onde deveriam ficar quietos nas suas maldades ficcionais. E aquela luz de madrugada, sempre. Marca estilística do olhar dos meus sonhos dentro dos sonhos sonhados. Subiam amarinhando sem dificuldades na estranheza e depressa demais para o medo.

Os sonhos tinham sempre aquela luz das madrugadas. Como se as imagens custassem a ultrapassar as pálpebras fechadas, vindas de fora e se fizessem ver coadas. Ou pelos olhos entreabertos, quando neles assim dormia pela vida fora, talvez desconfiada. Ou sem força muscular para deixar entrar toda a pujança do sono e dos sonhos. Os outros, antes de dormir e de olhos fechados, esses sim, sobre a mansa e dormente quietude da casa. Os bons. E completos e repetidos e bons. Mesmo com angústia em fundo. Lágrimas no outro quarto. Ausências. Gritos anteriores. Não saber o dia a seguir. E tudo a amortecer face à escuridão da casa. Às vezes o ruído da televisão. Menos mal. O incómodo no sonho gerava o conforto de saber que pelo menos. Quando não, era pior. Mau sinal. Mais não saber. Para esses ficava o capitão. Esse Capitão Morgan, a velejar nas Caraíbas, nobre, moreno e aciganado, sem lei mas fiel à coroa. Sem o qual as equipagens selváticas e sem lei, do sonho, amarinhavam pelas quadrículas de vidro martelado das marquises do prédio.

Sem rei nem capitão. Esse, o dos sonhos de olhos fechados e ouvido no quando-o-telefone-toca, na telefonia portátil, aproveitando os intervalos entre as frases para fazer circular o sonho na senda fugaz de uma música boa ou outra. E as viagens a fuga sempre. E na mala o que levar da realidade. De olhos fechados noite após noite, o plano recorrente como contas no caderno quadriculado da pequena vida. Fetiches, lembranças, pequenos tesouros e segredos, coisas assim, escolhidas para a pequena mala.

Um dia deu-me para despejar uma almofada de penas para lavar. As penas sobem espalham-se e agitam-se delirantes e incontroláveis. A rir do saco ingénuo e impotente. Quanto mais tento varrer mais elas se esquivam trocistas. Libertas de um conforto contido de anos.

O passado dá sempre um certo enquadramento ao presente. Às vezes o real é assim, penoso. Ou, sem penas, simplesmente lento e arrastado pelo peso. Curtido de longas conversas em monólogo melancólico rua acima. Levado para casa o fardo do devir, do porvir e do que veio sem mácula, pegada ou registo sonoro.

Carinhosamente, maternalmente, como a um filho subversivo e sofrido. Para deitar na cama e afastar a melena a fazer uma cócega impertinente. Arejar suavemente num sopro de distopia como uma aragem purificadora, mesmo assim. A testa em fogo. Mas ainda assim transportando como um fado ou uma vontade, rua acima, esse corpo, a despojar na cama de ervas e cheiros terapêuticos, a aliviar. A desprender entre os olhos e o pensamento na eminência de um gesto só, ali, uma carícia na testa. Um sopro está tudo bem dorme.

15 Nov 2020

Lulu Monde

[dropcap]H[/dropcap]á que fazer. É o que as matérias pedem. As matérias-primas omnipresentes na sua sedução plástica. O computador está tão lento. Não era preciso sentir porque um quadrinho diz a aplicação não está a responder – eu vi – o programa pode retomar novamente se aguardar. É como tantas coisas na vida em que simplesmente é preciso aguardar e saber. E ele retoma mas um outro quadrinho explica quando já me esqueci embalada nas palavras que o computador está de facto lento devido a lixo e a outras duas coisas que também serão seguramente lixo. Mas afinal era publicidade do anti vírus que cobardemente a seguir diz zero mas deixa a curiosidade para depois do compromisso económico. Um almoço nunca é de graça, como diz o outro. Mas aproveita-se para pensar com carinho na lentidão. Para esperar com paciência até que as palavras possam derramar-se as que não se esqueçam entretanto. Hoje em dia as palavras são rápidas e passam a correr numa azáfama em que logo se esquecem de ficar. Corro atrás quando há papel ou o programa responde. Senão, esqueço. E fico por momentos na apatia frustrante de ter esquecido e até me conformar ao que não tem retorno. Elas vêm noutras alturas e mascaradas de outras novas. E não sei onde deixei os óculos nesta migração pela casa mas há que esforçar a vista mesmo assim, antes que elas se escapem como é seu hábito. Mas aqui estão e de pouco servem para além da nitidez do óbvio que existe mesmo sem eles. Os óculos. Não elas, as palavras.

Mil palavras mais ou menos. Ou quatrocentas que sei que também pode ser. Mas espero as palavras amigáveis. Podem ser trezentas ou cem ou duas dependendo dos dias.

Está ali agachado quando olho, as articulações em posição desleixada talvez do esforço de v. Dizem que tenho que tomar o comprimido mas não sei. Contra o quê, que não incomoda ninguém e, se não a mim, não é sintoma nem tem terapêutica necessária. Desisti dos cortinados diáfanos a bendizer a luz mas com moderação. Na verdade deixo-me de civilidades como de culturalidades e prefiro a luz crua a esculpir momentos de expressionismo desatado. O claro-escuro abrupto na modelação do perfil ou da espádua. As olheiras inevitáveis e o descaído de uma pele que parece começar a sobrar da estrutura. São terríveis as sombras sem o make up para a câmara. Nem todas as luzes dizem o mesmo. Uma questão de ângulo, de intensidade, de direcção. 218, depois já 418 pelo milagre da multiplicação das explicações. Não está mal, não há flechas e o animal está incorrupto para ali à mercê do comprimido, meu, ou da desistência, sua. Que é como quem diz que a sua liberdade de aparecer assim ali no canto, tem alternativa. Mas não tem, como a liberdade de meio chocolate no frigorífico não foge à serotonina possível destilada só do imaginar. Nesta alquimia de químicos virtuais, registo pavloviano que demonstra que existem estímulos, reflexos, e talvez a gratificação de passar da virtualidade à realidade. Abrir a prata, deixar entrar um pensamento. Abrir a porta do frigorífico, a da varanda, a janela window. Se não fala comigo, não é problema meu, neste caso. Quanto muito dos comprimidos, a mais ou a menos. Mas estes, na sua efectiva virtualidade, também não têm problemas porque nunca chegaram a acontecer como possibilidade ou rejeição. Estão ali como o animal grande mas menos, muito menos reais e ainda menos importantes.

Coisas estranhas passam pela cabeça dos outros. Quando as coisas, afinal, são tão simplesmente aquilo que são. Não, não mesmo. Não é loucura, é fascinação. Rodo o botão do rádio Lulu Monde cor de cereja, que noutros tempos já só servia para ouvir relatos de futebol por detrás da tampa partida. E ali está ela. Ela, não: Elis. Regina. Tão real e sempre ao espreitar de uma melancolia, como o resto de que se fala aqui. E o rádio-gira-discos Lulu Monde que há anos se queda em silêncio. Ali. Que voz de sonhar para dentro, como só assim pode quem não tem aquela voz.

Placebo. Que nome tão feio para uma metáfora tão boa. Cleptomania é pior. Sempre preferi património imaterial. O imaterial. Escrever sem os óculos, não é assim tão difícil, afinal. É só esquecer a primazia da visão. As teclas estão no sítio de sempre, até ver. O alcançável e o inalcançável, também. Esse animal grande.

Às vezes, de orelha murcha, de asa desmanchada ou de pêlo na venta corrosiva em expiração mais forte. A querer deixar-se amar sem se perceber. Mas ternamente.

8 Nov 2020

Vida bonsai

[dropcap]C[/dropcap]omo se fixando por momentos um simples ponto. E nele um universo inteiro e sem medida se estendesse. O teatro da vida ou o espelho da natureza, uma representação como forma de repetição sem fim. Pares de coisas que se refletem por similitude. Um conceito antigo que estabelece pontes entre tudo e tudo. Do microcosmo ao macrocosmo. Do mais interior ao mais longínquo. Para Foucault: quatro. Mas encerram em si todas as possibilidades conceptuais. Como se nada pudesse haver de único e solitário ou silencioso no universo.

Um ponto que é este planeta. Um ponto, um país. Uma cidade dentro. Um jardim. Uma floresta no interior de um jardim de florestas. Camadas sobre camadas em direcção ao ponto. Um olhar a perder distância e a concentrar o rigor no que está perto e delimitável. Na alma das pequenas coisas. Entro.

Naquele ponto em que é já uma floresta, a unidade de um conjunto. Uma floresta bonsai, pequeno mundo encantatório e de abstracção, encerrado num jardim. A envolver um olhar que se afunda, que se entranha nela e sai por ali fora.

Paro, como sobre as teclas do piano. A música é sempre um ponto de paragem. Como aspirar profundamente um perfume longínquo. De rosto levantado e pálpebras corridas. Mas nem sempre. Nem sempre deixa de se sentir o frio de uma lâmina na nuca.

Pensamentos imersos – deixá-los percorrer esse jardim de bonsais. Um dos muitos, arrumando serenos os que vieram de uma necessidade nómada e ancestral. Filosófica, depois. No dilema entre o encanto produzido pelas pequenas árvores perfeitas e cultivadas, e a repugnância pela tortura que delas faz o que são. Cultivadas, podadas, moldadas à força de arames e ligaduras, seladas as feridas, apertadas nas raízes em vasos sem profundidade, como os antigos pés de cabra. Enfaixados para não crescer e em minúsculos sapatos bordados. A mesma arte viva, milenar, mas a produzir monstros de dor. Penso porque me choca – também no bonsai – esta arte de tolher a natureza se nela se espelha o trabalho de uma vida humana sobre si própria e por pressão do mundo. E porque se avizinha sempre a necessidade da compaixão pela natureza – esta – torturada, se nela se encontra a nossa imagem de seres moldados por circunstâncias, em eterno balanço de galhos excessivos ou deslocados, e de expectativas e limites reais. Entre o golpe imprevisto, o acidente ou a automutilação. Entre a desmesura e a sensatez.

Intrigam-me e deslumbram-me, essas árvores pequeninas e perfeitas como gigantes num ponto de vista à distância, quando penso o que nos diria a sua alma silenciosa se não o fosse, dessa perfeição cultivada e modelada no tempo. Tenho as raízes presas em vaso pequeno. É o que me diz. Dás-me o infinito ou a náusea. Como queiras.

Porque queremos dominá-las e porque queremos limitá-las? Possuí-las no espaço definido da casa. Como somos diferentes dessa possibilidade de crescimento regulado, sem perder de vista a edificação robusta do tronco sem crescimento de maior, essa contenção das raízes. Mas elas, as árvores, não correm, não fogem.

Muda-se-lhes o caminho e elas cedem, aproveita-se uma apetência e exacerba-se, corta-se-lhes as raízes e a profundidade e cortam-se os ramos a ansiar o céu. Modelando. Decepando ramificações que divergem do tronco e enfraquecem a robustez em que se concentram séculos, selando cicatrizes que não prejudiquem o crescimento, forçando formas, quedas debruçadas para baixo. Torções dramáticas em que se formulam laivos de animalidade. Formas aladas e brancas, forças indefiníveis e retorcidas como poderosas metáforas espirituais. Sobre pinhas sucedem-se seres únicos, meticulosos. Os troncos a reproduzir estranhas ventanias, vórtices imaginários e forças irreprimíveis a desmentir qualquer serenidade. Dinamismos poderosos como a embriaguez lenta da natureza em humano desvario. Corpos, na extrema manifestação de uma inquietação que não é da natureza das árvores. As outras, pequenos monumentos de serenidade vertical. E perfeição. Manipuladas, todas, elas cedem e fortalecem, concentradas num destino forjado e planeado a longo prazo. Longevidade pela qual passam humanos que cuidam, como em caminhos que se cruzam.

O budismo viu nessa similitude com o mundo, em ponto pequeno, que não é necessário conhecê-lo inteiro para que dele se tenha a visão da totalidade. Nesta relação íntima entre a alma humana e a alma de todas as coisas, a parte espelha o todo do universo. Um curto caminho na concentração, entre micro e macrocosmo. E uma árvore em miniatura encurta ainda mais a distância. Como um fio-de-prumo rigoroso entre terra e céu, origem e finalidade. Um axis mundi a unir raiz e copa, e onde se acredita concentrar-se com veemência a sua poderosa essência, pacificadora, que interage com o ser humano face a toda a inquietação. O símbolo perfeito da sua jornada de procura. Como alguém disse: “ Bonsai não é uma corrida, nem é um destino. É uma viagem interminável”. Talvez um ponto a rolar no universo e a contemplar plenitude. Assim somos: pequenos a extrapolar em mundos. Onde estranhos elásticos nos prendem e catapultam. Ou meditar. Encontrar o nada.

Fixar um ponto. Pequeno, impossível e incolor. O lugar que é a excepção de tudo o resto. Ou um bonsai. Num olhar entre o âmago e o ápice. Como sempre, é aí que nos situamos.

19 Out 2020

Das lamentações

[dropcap]D[/dropcap]e vez em quando mais alguém, que parte para outro lado do tempo, nos reúne. Na amizade, na melancolia, na companhia necessária ao que parte e a quem fica de mãos vazias e alma triste. E depois vamos comer. É importante comer juntos. Divergir para histórias e memórias e gafes recentes e carinhosas de amigos, na circunstância em que trocamos os pés pelas mãos. A perda de alguém que nos é querido ou que é querido a alguém que nos é querido. Uma cadeia em que nos situamos tristes, de um modo ou de outro.

Ali estamos, de frente para os três. Ele que partiu, Ele que talvez esteja e que preside a tudo e em quem, mesmo se não acreditamos, gostaríamos de acreditar e que queremos sentir atento, e que, se ajuda for necessária, mande um sereno par de anjos para mostrar o caminho da eternidade. E ele, o clérigo que, entre ambos, se dispõe a mediar em representação de quem lhe é superior. Que depressa nos faz sentir vermes abaixo. Como estando num anfiteatro enorme. Em cima aquele a quem desejaríamos ser, mesmo que momentaneamente, conduzidos como conforto e elevação, mais abaixo, o imponente representante, um pouco mais abaixo o que vai a caminho do céu e muito mas muito mais abaixo estes seres colocados no palco, quando diz que é para nós que se deve virar a atenção. Estávamos enganados. Pensávamos vir pelo que partiu ou está de partida para o céu. E pelo céu em si. Pelo espírito que tanto nos transcende destes corpos e que esperávamos que nos fosse apontado como quem nos mostrasse uma estrela.

Abespinhado pelo ínfimo atraso de quem veio desfalcada de atravessar noite de vazio e em branco, e pela congregação que nem toda se benzeu nem respondeu, que admoestada e já com a voz a sumir lá fez das tripas coração e amén. Tal e qual como crianças que quanto mais se lhes ralha menos respondem.

Ali estamos, em despedida, em companhia e numa certa nostalgia de crer que o momento inspira. Em algo que acompanhe quem parte, para um lugar utópico, que conduza serena e suavemente quem vai. E no respeito pela espiritualidade que, ansiamos, perpasse nas palavras, sobretudo nas que são espontâneas e livres do espartilho anacrónico das escrituras, e liberte ou suavize a dor de quem fica e fica com um enorme M de morte na alma, um pesado V de vazio a querer ganhar espaço e um enorme N que é a pessoa que não estando estará para sempre. E nos ouvidos as palavras de quem supostamente sabe. Sabe? Mas tropeçava sempre na leitura do nome inteiro, que não memorizou, como se a ler pela primeira vez e a custo e como se não o conhecesse de lado nenhum. E não conhecia. Desejamos para dentro que não se engane a encomendar-lhe a alma.

Vou dizer umas breves palavras – enunciou ao sair das escrituras – que não são para acusar ninguém. Acende-se uma pequena luz de alerta. Interrompemos-lhe mentalmente o fio condutor e paramos brevemente a perguntar-nos de que vamos ser seguramente acusados. Como miúdos da escola. Porque não soubemos ou não quisemos responder amém nos sítios próprios e mesmo depois de advertidos de que o tínhamos que fazer. A revolver na memória as palavras de estilo que nos competiam mas já as vozes sumidas e contrafeitas e tristes. Ficou zangado. Diz-nos que muitas pessoas não são cristãs, simplesmente baptizadas. Aí está. Desenvolve e acusa. Desenvolve e acusa. Cegamos porque não conseguimos ensurdecer. Aquilo é connosco. Não nos conhece mas não gosta de nós. E não quer que tenhamos ilusões de que Cristo também não gosta de nós. Mas não foi ao que viemos. Viemos por sentimentos, por anseio espiritual face à morte de alguém e à nossa futura em construção. Viemos por respeito. Qualquer coisa em que acreditar mesmo que por momentos, mesmo que seja uma metáfora bela que conforta quem está triste.

Que aponte uma luz, uma chama, uma ideia holística, uma harmonia no estar e no partir. Qualquer coisa. Ali, como em qualquer outro lugar de culto. Num templo budista ou à beira de uma falésia. Depois penso confortada que talvez o Cristo dele seja outro que não o nosso. A cada um o seu anseio. Um Cristo, ou outro.

Mas ali estava ele de figura imponente a desinfectar as mãos esguias e longas de minuto a minuto. Eu acho, dizia P. depois, enquanto caminhávamos ao longo do muro liso da cidade dos mortos, que ele, de cada vez que tinha um mau pensamento, desinfectava as mãos.

Algo sobe em mim e sei que num momento qualquer sem eu dar por nada, vai sair em palavras que não cabem ali. Não quero ouvir mais nada não quero ter mais nenhuma palavra daquela voz para lembrar não quereria que a minha amiga tivesse que ouvir mais nada. Saio. Longa pausa de silêncio e três cigarros.

Espreito discretamente e ainda oiço aquela voz maldosa. Recuo para o exterior de segurança. Volto a tempo de ouvir outra voz, uma voz de quem soube amar e cuidar e amou e ama, a dizer as últimas palavras e belas, antes da partida para a última morada. A voz e as palavras – aquelas – as únicas que valem a pena.

12 Out 2020

Menos infinito, mais infinito

[dropcap]S[/dropcap]empre tão injusta, humana e imperdoável, a tentação de quantificar a veemência com que um dado acontecimento nos colhe. Sobretudo se o fizermos no sentido de ordenar, nesse eleger, o que mais ou melhor ou com mais intensidade nos tocou. Esquecendo como um se pode sobrepor a outro pela simples acção do tempo. É talvez falsa, essa cristalização absurda, aquitectada num tempo qualquer e aceite sob pressão como um dado a viver para sempre. Como amar. Alguém, ou os pais, por exemplo. Pode não se amar como se julga ou decide. Ou pode-se amar mesmo quando o desconforto nos faz rejeitar. E deixar de amar e voltar a amar e isso não ser compatível com a organização molecular de cristais e rochas em que gostamos de inscrever sentimentos.

Fazer listas, idiossincrasia comum, é a necessidade de arrumação, ordenando em decrescendo, como na fila para um autocarro que partiu vindo e indo para parte incerta. Paixão coleccionista por uma ordem na catalogação e quantificação, como a dos números naturais, sempre contaminada pela da ordem mais subjectiva dos números reais. Quem conheça os números, sabe que a ambição de ordem de preferências e afectos, nos inclina mais para os números reais, esses que também dizem das perdas, do que para os naturais. Situamo-nos entre menos infinito e mais infinito, em pleno abismo de enormidade positiva e de desmesura negativa.

Fujo a essa delimitação como ao mergulho no abismo da ordem indominável. Mas a inconsequência da imperfeição traz-me sempre, como registos soltos, pessoas, obras, imagens. Que quadro alguma vez me tocou, pelos acasos do momento, da focagem ou da predisposição? Que quadro me acompanhou por décadas como uma persistência na memória e sabe-se lá porquê? Se existe um, esse.

E, se algum foi amado como nenhum, ou se se ama um quadro, esse foi o mais amado. Ínfimo, na acumulação da memória, mesmo esquecido, aparece ao primeiro esboço de lembrança. Perene como folha que não é de natureza de cair em estação nenhuma. Que se inscreveu para ficar e para sempre.

Aceitamo-nos como parte da natureza que nos transcende e a essa que nos transcende. Olhamos de alto aquilo que é enorme, não com sobranceria mas com apaziguamento. De o conseguirmos incorporar mentalmente muito para além dos constrangimentos físicos a que estamos destinados. Admitimos o temor e arriscamos o confronto. Parados no nosso lugar, varanda sobre o mundo. Entrevisto, mesmo se de janela pequena, acresce em desmesura ao espaço interior. Face ao indominável, serenamos a alma em contemplação. Um fotograma pontual por onde se espreita a liberdade de caminhar como na rua conhecida, por um ponto de um vasto lugar além, sem se perturbar a sólida sensação de harmonia com a escala do momento. Pontos num universo de pontos sem quantificação possível. Parte da teia universal. Que nos ultrapassa. Sem que daí venha problema de maior.

Wanderer above the Sea of Fog. C. D. Friedrich cruzou brumas quase sólidas na paisagem ante a vista, como flechas apontadas ao coração do caminhante. Um caminho em perspectiva que de algum modo o direcciona para a vastidão do horizonte. O centro do universo nesta apologia do indivíduo e das emoções. E de reserva, nessa persistência de figuras de costas. Tão nórdico o frio, como cortantes são as formas do nevoeiro. Tanto como as placas de gelo de outros quadros. Um rigor inóspito a tornar mental aquilo que não é para ser expresso mas encerrado no coração da figura. Uma procura de unidade entre o ser e o universo, com que se identificam muitas décadas depois os expressionistas abstractos. Com a mesma ascese que se encontrava na interpretação romântica da paisagem como campo mental. E em que a personagem central – neste caso – se apresenta como um falso obstáculo, já que é o lugar dela que tomamos, como outras vezes quando exista uma figura de costas voltadas.

Cada apropriação é privada. Esquecer teses. Não adianta adulterar o testamento do artista, prendê-lo a interpretações, associando-o a ideias de nacionalismo, como o fizeram. Quem sabe o que lhe passou pela cabeça naqueles dias? Aquele é um lugar que não existe. Aquelas nuvens nunca existiram assim.

Exactamente delineadas em vapor de água naquele específico e imortalizado recorte. Aquele nevoeiro e aquelas escarpas. Perdido de vista o número exacto de texturas e reentrâncias. E, no entanto tão reais quanto síntese de uma observação intensa de outras como aquelas. Se existiram já não o eram quando a pincelada tentou definir. Uma imprecisão visceral em tudo, como agarrar o tempo. Aquele homem é qualquer e nenhum que se conheça. Porque nenhum se conhece e não adianta ver aquele senão como espelho. Em que nunca o homem se vê de costas. Mas é tentar prender o homem à impossibilidade de ver mais do que aquilo que se lhe depara em frente. Para além dele e excluindo-o. Ou para trás dele e incluindo-o. Como bagagem que se transporta do passado. Esse é o ser excluído da ordem universal. Aquele que se se centrar em si cega para tudo o mais. Assumir esse desconhecido dramático, é a janela ampla que o romantismo histórico abre ao ser humano, pequeno a tentar fazer-se ser. Pode-se imaginar o herói. O pequeno temível e arrojado herói. Ou Narciso, deixando para trás as águas delimitadas do regato primaveril, a ver-se no espelho infinito do mundo. E do alto da montanha. Ou simplesmente um eu esquecido de si.

Visto nos livros. E, depois disso, tatuado na memória como uma marca na parte detrás do pescoço e que nem nos lembramos de ter, quantas vezes o revi reproduzido em fazenda de lã. Esses ombros a voltar costas mesmo antes de o fazer. Ou esse território de nuvens como espaço a perfazer. A natureza, escarpada com todo o seu esplendor e o caminhante, aquele que por natureza vai caminhando. A imagem é afirmativa como um ponto de chegada, mas ele está de passagem, sem arrogância de conquista. Uma coisa que só a mente consegue. Neste combate desigual.

Somente ao longe se distingue. Também nós podemos virar costas. À paisagem. Mas fechamos os olhos e inteira se nos apresenta como um universo amplo para vaguear.

27 Set 2020

O bicho

[dropcap]O[/dropcap] bicho. A respiração do bicho. A respiração volumosa do bicho. Ofegar audível e invisível. Lento, projectado. Do tamanho do corpo, é dizer pouco. Houvesse palavras impressas nas baforadas intensas, como sinais de fumo, e eram terríveis, talvez. E, a ter odor, fétidas, soltas, descompassadas. Está na arena porque foi ali colocado. Não sabe nada disso. Nem de que é para a morte nem nada. Nem de que a morte virá tarde, depois da humilhação e das farpas. Está ali porque lhe abriram as portas com direcção única. O túnel. E mesmo isso já lhe oferece uma raiva que o faz levantar poeiras ásperas na corrida. Nestes casos as caras conhecidas escondem-se para não ser cúmplices. Nem do túnel. Nesses momentos em que ninguém lhe toque. E noutros, sereno, sabe-se lá, de frente para as bancadas, alheado e surdo às provocações e ensaios do animal enfeitado e vaidoso em exibição de caracoletas e volteios segundo a arrogância da rédea. Também não merece coisas como essas tranças em cores. E penacho em repuxo a verter vaidade. O prémio de ser educável.

E o bicho, ali, de costas voltadas ao inefável que o espera e a prolongar o tempo. Quando é assim, todo o tempo, dizem-no manso. Demais. Pateada. Querem-no a investir. Bravo mas de acordo com o protocolo e a direito. Em volta todos apostam no interruptor. Que está off.

Se é fiesta é para correr para a que vem com habilidade precisa e rápida. Começar por aí. Mas isso era generosidade, não era fiesta. Deve correr. Dispara contra as bancadas, não sabe as regras. Simplesmente vai. Todo.

Outros bichos. Sugam o sangue e inoculam a raiva. O controle da raiva é difícil para quem foi sugado. A teatralização de emoções ou o descontrole podem deixar que a raiva suba de tom. Mas isso é a raiva. Ali, a fúria. Disse mal: é fúria.

Diagnóstico do bicho. A respiração do bicho. Este hausto irreprimido e forte. Da dificuldade em absorver vida sem cortes e sangramento. E como um suspiro vital, expelido com a força desesperada do último recurso.

É fumo, essa impressão de vida, que se prolonga em minutos vazios. Fumo sem flor. Até podia ser vida sem dor. Mas não é isso que digo. São campos em que nasceu, esquecidos. Agora, vê-se ali, ainda inteiro.

Tocam de leve a respiração do bicho. Sentem que vive. Não dizem. Voltam sobre a sombra, pé ante pé – range uma tábua, um resmalhar de cascalho a despertar a dor do bicho – e escrevem os átomos universais. Mas sem dizer o que foi visto. Nem que. Ficam feromonas discretas. Deixam-no só, para ali. Possante.

O bicho levanta a cabeça e espuma. Depois. Não vá dar-se o caso de um medo. Levam-lhe as histórias quase histórias. Servidas com alfinetes de costura a uma distância segura. Grandes bandarilhas espetadas no curso dos dias. No torço e no cachaço revoltado e carnudo. Nada que mate. Dessa morte que só vem depois.

As feromonas criam um rasto de caminho útil às formigas. Um rasto de sangue na areia.
Um animal violento pode apresentar-se de orelhas baixas, sem chifres, mas o olhar bovino é igual ao de outros campeões. Quando vítreo. O impulso, a velocidade a imprevisibilidade da rotação combinada com o impulso e a velocidade. Quantas toneladas de fúria em potência num touro em repouso? Antes do fogo.

Pouco ou nada se saberá das emoções pombalinas. O que se sabe é do fogo e que o fogo que consumiu a cidade medieval. Veio o frio, uma ideia construtiva de rigor e geometria para evitar o fogo. Oposto do que existia. Fogo terrível e devastador como a ferida que dói é o outro no interior das paredes, no interior da cidade. Danos no que foi consumido. Talvez nada de estrutural. Talvez o que foi alma da combustão deixasse intacta a lâmpada. Se não era vela de arder até ao fim. Talvez haja dois tipos de pessoas nisto do fogo. As que ardem e se apagam e as que alumiam queimando combustível. O bicho arde e apaga-se. Foi programado para isso. Livre. Na campina anterior à queda de joelhos.
O bicho não pode resistir ao fogo. Há que resistir ao bicho.

20 Set 2020

Um passo a mais

[dropcap]N[/dropcap]ome cor e perfume. Rosas. Inequívoco perfume quando o têm. Mesmo variando em tonalidades ácidas ou aquosas. E mesmo sem o ter, não são menos rosas. Porque delas têm – sem ter – o perfume, que quase sentimos. No poder do arquétipo, de uma imagem, em que cada uma surge ela e outra.

“Sim! A minha ventura quer dar felicidade; Não é isso que deseja toda a ventura?”; dizia Nietzsche na “Gaia Ciência” e eu a pensar que é para isso que existem as rosas. Mesmo as de sonhos sem perfume. Rosas claras vistas de fora sem a perturbação de um interior. Claras como faces visíveis e únicas e às vezes perfumadas e intrigantes, apenas como faces.

“Quereis colher as minhas rosas? Baixai-vos então, escondei-vos”, dizia N. depois, no apelo à subtileza ou à perfídia. Quem manda ceder à perplexidade que me manda o universo do sentir, por este mistério que acorrenta planetas, partículas ínfimas no universo em geral, uns aos outros. Uns a girar em torno de outros e de si. Que grandioso desígnio, ou simplesmente estranho mistério de conduta planetária. Se pensar nas estrelas, essas realmente luminosas de luz própria, então, somente me sobra a descoberta de toda uma estrutura mental que forma o desenho e de que não consigo fugir. Mas é tão grande esse mapa.

Há um tempo em que tudo surgia em frente, ainda sem aquela sensação de déjà vu e exaustão. Em que algumas coisas aconteciam com aquele impacto primordial que nos acometia como a uma tabua rasa. Antes.

E também da proliferação virtual, em que tudo se gasta e nos gasta o olhar, a capacidade de sentir. Cada coisa impressionante surgia com a veemência de quem encontra um espaço amplo e lavrado. Uma imagem, um livro, um plano, um ponto de vista. Tudo novo. E as coisas que eram únicas, impressas profundamente.

Mesmo quando parecia um reencontro único, com algo que tinha que ser e se reconhecia destinado, apetecido e confirmado. Foi assim com aquela pintura de Magritte.

Estranho pensar quando a vejo, que nunca, mas nunca mesmo, verei o lado de lá. Um homem de costas, uma rosa exorbitante, como um sorriso crepuscular. Talvez irónico ou terno nesse seu modo de não dar a ver.

Nunca o outro lado. Como das pessoas, nunca, quase nunca o lado de lá. Somente o que transportamos portas adentro do rosto e dos olhos, dos olhos dos outros e do rosto. Das pessoas e no nosso escondido segredo espacial. Como as rosas. Redondas e centrais, místicas, dores, golpes de vida – os espinhos, talvez – o coração, a alma, o amor. Símbolos que partem dali como sementes e germinam ao simples contemplar. E o perfume. Ácido e doce e pungente. E invisível, como a outra face. Da Lua. E do homem de costas voltadas.

Sondo-lhe a caligrafia da fronte, do rosto, da vida, como se numa página, todo o corpo inscrito. Aquela rosa como prémio encantatório de todas as escuridões da noite. A luz é de uma madrugada ou um crepúsculo ou uma noite branca em vermelho. Lunar ou lúcida, como um sorriso bom. Aberta mas cerrada como rosto e sem tocar. É isso o que vejo. O observador escondido atrás do homem, à sua frente e uma rosa. Pura e sem cor. Que cor têm as rosas? A cor clara de uma única face e para além dela, folhas ásperas e espinhos. O que me faz gostar de rosas é o mesmo que me magoa. E inebria. Assim é o amor. A nossa grande imperfeição ou o que nos salva, é sermos finitos nas fases do tempo. Mas as rosas são infinitas. Todas as rosas se equivalem na sua finitude perpetuamente renovável. Só porque não têm nome. Cada uma, na sua espécie, como todas as outras. Como uma, única e eterna. Perscruto aquela face lunar. E sei que não é de rosa. Mas um rosto não gosta de ser pasto, sob pena de murchar em máscaras. Por isso Nietzsche dizia “esconder”?

Perscruto no quadro o mistério dos rostos. A face da rosa e a do homem nos sentidos contrários. Desencontrados. Tanto nela se expõe, clara e afirmativa, quanto nele se esconde de negro. Mas o que sinto e sempre ao mergulhar na imagem, é o observador a passar, sem o querer, à frente do homem e a desconhecer a rosa e o homem – tornado invisível – como a si próprio de costas. Tornando-se a si próprio a personagem e o verdadeiro desconhecido de si, em que todos os imprevistos se podem encerrar. A verdadeira caixa de Pandora. Não a rosa como eterno feminino. Cândida, tornada contudo misteriosa e plana, iluminada de luz crua que anula a realidade do interior. É o rosto do homem, obscuro, nunca visto, a cobrir a frente dos olhos e lugar que estes não alcançam. Sabemos-lhe o rosto como sabemos o nosso atrás do qual se situa o olhar como por detrás de uma máscara. Mas, não mais. De costas voltadas para ele como ele, num primeiro olhar, para nós. E talvez por isso, a rosa sorri no seu sorriso misterioso de Gioconda. Pela ilusão do ver e do não ver. Por esse meio metro de desencontro. Um passo a mais.

15 Set 2020

Silly season

[dropcap]S[/dropcap]illy é como me sinto sempre, neste ter que ser sazonal. Pressionada e questionada e sem cromos de viagem para trocar. Este ano, em tudo diferente, parece o lado b num disco de vinil. Mais difícil, mais discreto, mas com detalhes notáveis. O ar mais limpo, mais cantos de pássaros e mais turistas ausentes.

Este compulsivo mergulhar num padrão encaixado à força, como num parêntesis de novidade, descanso e liberdade, sem efeito na frase no ano inteiro. Paradigma, paradigma perdido. Repetidamente. Esta estação de ser verão e ser o tempo bom, que se espera há uma vida ciclicamente e de que se teme o fim, no inegável pessimismo, a partir ainda do dia anterior ao início. E sempre. Nesta saudade prévia do que ainda não partiu.

Gostar do silêncio da rua no centro da cidade e que por momentos, repetidos e nítidos, às quatro da tarde, lembra as cinco da manhã, num esquecimento de azáfama útil e a lembrar domingos de manhã noutras estações. Ir contra o trânsito dos dias e estar no casulo da casa da manhã e da noite, quando todos se agitam na euforia de tornar útil a liberdade condicional. É o calor. Dilata os sólidos e acelera as partículas. Há uma vibração de ansiedade, uma agitação e um precisar de espaço de novidade outra. Que vida sazonal. Que desejos firmados num tempo a acabar e a vir com outro tempo e temperatura. Como camadas de pele, de roupas, de vida. Sempre virada a sul, quando para norte aponta a estrela que guia. Há pessoas que nascem viradas a sul. Talvez sem um norte fácil. Sem visibilidade para lá do horizonte. Talvez de costas viradas para uma estrela que não se define. Pequeno ponto de luz, que dá o rumo mas não o caminho.

Há uma semelhança fonética como permeabilidade de sentido. Sulista o que nasce ao sul. O lado mais quente e luxuriante, mais árido, mais amplo. Solista o que toca um instrumento a solo. O palco vazio, as luzes apontadas, ou um vão de janela nocturna. Sem maestro. Ou se destaca num conjunto e improvisa um voo.

Um dia confundi as palavras por ilusão de sonoridade e senti como um dedo apontando firme. Mas nada mais do que camadas de sentidos sobre um fundo de ramificações em rosa dos ventos. Serão os solistas aqueles que não conseguem reconhecer um norte maestro ou também sulistas, como aqueles que viram costas a um norte estranho. E rumam, sempre à casa inicial e à nostalgia do útero materno. Um rumo a norte e voltar atrás, na estrela. Uma geografia íntima que leva a sul.

Silly, silly season. Não sei se quem nasceu no verão tem este reencontro cíclico com a primeira experiência do mundo quando este se abriu, como renascer ou voltar a casa em harmonia com o habitat conhecido. A primeira impressão do mundo exterior, para sempre marcada pelas boas vindas do tempo bom. É o que sinto.

Uma saudade anual deste tempo e desta temperatura. Desde que se abriu os olhos pela primeira vez e se sentiu a pele, a casa da pele. Tudo o mais, intervalos e desadaptação. Territórios inóspitos, agrestes ao corpo. À alma. Uma espera do verão. Que tudo acalentada e mesmo antes de chegar já se adivinha uma saudade de ter que o ver partir. Apontada a sul por determinismo afectivo de quem nasce no verão, como uma nudez púdica a fugir do frio. Como uma incompletude térmica das camadas cutâneas. Como um apelo de tambores nas florestas escondidas a desconhecido sul. Desconhecido sul. Desconhecido norte. Caminho.

Ou somos todos sulistas. Nascidos de um cadinho quente. A quem o frio retrai e torna mais sós. Solistas nesse chamamento íntimo, aos dias melhores. Mas porquê estação fútil, a do tempo bom? A de slow news ou the dog days of summer. Se a justiça e o parlamento se retiram em longas e síncronas férias, nada se passa no país. Sobram frivolidades. Porque se não há política não há consciência nem problemas e se não há tribunais não há justiça.

Enquanto isso, o país a arder. As pessoas e o mundo nas dificuldades de sempre. Umas sem férias e outras sem emprego. E um tempo que parece esvaziado das coisas importantes que são sempre notícia. Mas mais irresolutas, ainda. É estranho. As causas e os amores em férias, a terra a morrer devagar e, como as pessoas, de maus tratos. Coisas de sempre, nem silly, nem agora nem nunca. Quando a justiça em férias anda a monte, o que sobra? Tudo muito fru fru, não fosse a pandemia. Um intervalo de país. A entrar em parêntesis até Setembro. Ou seja, um mundo de coisas em que pensar e em que ninguém quer pensar. Quando percorre a todos o apelo de ser o que não se é, ir onde não se está. A euforia da fuga. Dos calções e dos chinelos havaianas – eu sei que não concorda em género mas é isso. E em férias de alguém, chego inadvertidamente à varanda e ali a uns centímetros, no prédio ao lado, de varanda contígua, o vizinho do alojamento local, em cuecas, debruçado para a rua a apanhar fresco. Silly season, a dele. Que me brinda com o inestético espectáculo, que poupa aos seus vizinhos das outras estações.

Aqui estou. Na estação e fora de estação. Depois disto, se diz rentrée. Já aí. Porque se esteve fora de tudo. Mas parece que, afinal, euforia é voltar, retomar reiniciar. A vida social, a temporada de ópera, sei lá. Se esquecermos a pandemia.

Esta que é estação silly para alguns, para mim simplesmente estação. De estar. Ter férias e viajar a acompanhar o tempo bom. Isso sonho, nas outras estações. Fugir do frio. Mas quando todos saem e resta este silêncio bom na cidade, é talvez a estação de me ver a fazer castelos na areia sem sair de casa.

7 Set 2020

Entre parêntesis

[dropcap]G[/dropcap]ostar de arquitecturas. De organização, equilíbrio, circulação, rigor. O espaço como composição. De luz e sombra, também. Mas haver um fascínio específico por espaços devolutos. Estranhas arquitecturas a sobrar de uma morte da função no espaço e intervalos entre passado e futuro. São assim esses espaços. À espera. E que às vezes encontram por fim um código de marcas, que os fazem reviver para lá das anódinas formas iniciais, inexpressivas ou feias. São despojos de vida. Mas talvez uma decadência que ganha o tom sublime da linguagem. Da textura. Esses espaços sem vida a mais que não a sua de grandes animais arquitectónicos, reformados do trabalho e abandonados. Calados e ensimesmados mas repletos de ecos surdos que é preciso ouvir para então os entender melodiosos. A beleza abstracta e imprevista de manchas produzidas pela presença de reacções e matérias e humidades, ou pela ausência de outras, ou por fractura ou por justaposição ou degradação. E a generosidade dos alçados em que cabem pessoas bem grandes sem encolher ombros e cabeças de olhar no chão. Muito chão. E, às vezes, por cima o céu. A arquitectura é música congelada e é resistente ao tempo. A longo prazo a erosão, mas a curto prazo uma organização do silêncio em cheios e vazios. A que somente a luz muda o tom. Prédios, casas, armazéns, memórias da indústria e outras funções esquecidas. Lojas. Desligados, como um instante descontinuo entre parêntesis, do antes e do desconhecido vindouro.

Sim, gostar daqueles espaços. Devolutos, mas tão vivos que, às vezes, ali voam pássaros. Quase a céu aberto e em completa liberdade. Como se devolvidos a uma certa natureza escondida na cidade. Mas uma natureza urbana. A dos materiais de construção humana. Lugares quase irreais sem uso e sem funcionalidade. Serão estes, lugares de poesia. Abstraídos. Livres de marcadores, estereótipos, trabalhos, hábitos e funções. De habitantes presos como numa roda dentada. Passam a ser – libertos de desígnios – por um tempo, lugares de sempre e nunca, da eternidade e da ilusão. Do puro pensamento e do puro sonho.

Ela percorria lentamente e sem tempo lugares de devaneio. Esses espaços sem tempo colocados então na agenda da cidade, presos a uma data de encontro. E entendia aí, nesse tempo, que o lugar era circunscrito.

De nunca e de sempre. Ali. Um pedaço de eternidade. Não de pés descalços como se o lugar fosse de um chão aplainado ternamente, mas na constatação simples de que todos os momentos de aspereza, todos os cortes possíveis, todos os golpes de pregos invisíveis de lascas inocentes mas sólidas, e de outras matérias secretas de forma, tal como a violência nelas contida, se poderiam avizinhar sem aviso. E magoar. Pés nus.

Mas, ainda assim, deve arriscar a emoção sedosa também possível. Por entre lascas de madeiras secas e de metais retorcidos. Restos intactos de uma suavidade antiga. A ter existido. E pensa se cada um de nós é um espaço também. Visto em perspectiva. Mas também um lugar de estar com a profundidade de um momento e só. No momento, como aquele. Em sintonia com as rugas deste, a plasticidade de matérias que reagem ao passar de tudo. E se fosse assim o habitar puro e simples sem recuperação ou reabilitação. Se fossemos cidades com os seus lugares parados ou revivificados. Que deixam de ser espaços de ausência mas afirmações construídas em novas texturas e formas sem arquétipo. Quando Schopenhauer diz: ”sentimos a dor mas não a sua ausência”, faz pensar que ali não há um olhar indolor. Mas se se pode neles não sentir vida, também não se sente a ausência de vida. Há uma transformação para lá dela.

Na rua cintura do porto de L. e o rio de contentores e gruas do outro lado. Barcos abandonados e rotos mais longe e com restos de tintas coloridas. E barcaças largas de arrastar contentores e mudanças pelo mar, com os nomes de verão. Um olhar terno de dívida. Um dia os móveis de gavetas cheias de vida passaram a ser embalagens caneladas com a forma de móveis as cadeiras com a forma de cadeiras e as mesas com a forma de mesas. Os quadros com a forma de quadros de portas ou de espelhos, os mais misteriosos. E a casa veio pelo mar fora plantar-se em outra terra. Daí o olhar. Terno. Com que visita pela noite, terminais com eles alinhados e sobrepostos a tentar adivinhar casas. De novo a questão do contentor. Invólucro cheio e de mistério. E o contrário, espaços esvaziados onde não sobra a ausência. Mas sons. Texturas da passagem pelo tempo.

Mudou de lugar. A importância de ao longo dos dias mudar de lugar. Rua cintura. Um golpe rins da cidade atira-a sempre para a margem do rio. Aqueles armazéns. Um, por empréstimo. Era ali que escolhia dançar.

Essa respiração com música sem olhar nem espelho nem espectáculo. Pura explosão dos pulmões em expansão e dos membros sem móveis a chocar com eles. Só esse olhar terno e envelhecido de espaço esquecido. Uma narrativa sem fim a esquecer as cãibras nos pés. O oposto de palco. O oposto de tudo e o oposto de tempo. Uma coisa sem testemunho e sem objecto. Quase fora da vida no seu ridículo. E, ridículo, diria quem soubesse. E que coxeava, nos dias comuns. Uma perna mais curta num esticão de crescimento.

Por isso as pessoas têm destas coisas secretas. E um tempo qualquer que não foi registado na agenda. Um intervalo entre coisas normais.

31 Ago 2020

Dia acima

[dropcap]T[/dropcap]odos os dias um estado inicial. Uma exaltação de sentidos a reter. A rever. A esquecer ou a ignorar. A libertar. A procurar. Uma estrutura e tudo reside aí, mesmo no mistério do caos. E até para as leis da gravidade há um antídoto que nos protege de afundar terra adentro, forças em equilíbrio. Sobra o etéreo mas férreo domínio das ideias. Como perscrutar os pontos cardeais. Uma orientação física no universo de extensões em que se distende o pensamento. Como viadutos sobrepostos.

O que se procura em frente. Quando se caminha – foge. A fuga para a frente, é ter o acordar congénito de todos os dias. Temer a queda. Esquecendo que um percurso, como um passado estimado ou não, retoma o seu lugar de partida, onde chega por inerência do que se é e da eterna questão que se revolve por detrás de brumas, mas volta. Volta irreversivelmente em qualquer curva distraída. Às vezes como uma terra estranha. E lastro, esse passado, mas necessário à definição de futuro. De sentido. Sem peso a mais nem a menos.

Sempre esta impressão de que é ascendente, o dia. Como a acompanhar o sol na sua ilusória subida no horizonte, levando consigo a inclinação das plantas, porque é natural e o olhar de algumas. Uma inclinação que dificulta, ou a subida para uma ideia acima e uma etapa a conquistar. Difícil. Carregamos sobre os ombros o peso de tudo o que temos e tudo o que não temos. Dos que nos amam e dos que não nos amam.

Dos que nos respondem e dos que não nos respondem. Do que fizemos e do que não fizemos e de uma relação estranhamente aleatória entre as coisas e a reacção do mundo a umas ou outras. Num requebro amargo, como ombro amigo, de vez em quando, penso nos que se recusam a perdoar. O que lhes fizemos e a si próprios o que nos fizeram. Neste mundo de humanos e de ideias. Os seus duplos em palco ou sombras produzidas para dentro. Anjos que se recusam a salvar ou que se lhes acalme as feridas. Não são anjos, simplesmente dores. E nenhum anjo gosta de as ser, nem o humano de as ter.

O mito do peso. Do que é árduo de levar e do esforço sem recompensa. De novo o Sisifo. E a pedra que carregamos dia acima. Com o peso dos sentidos e da procura obsessiva mas também o deslumbramento de encetar o dia novo das mesmas questões, com a possibilidade de um olhar lavado. Pequenas tonalidades a diferenciar uma cor forte da véspera. O que parecia definitivo, a mudar com a luz, a diluir com uma lágrima, que mancha inesperada a forma global. Uma nódoa que desfeia. Poeiras que atenuam. Um redundante início, como uma emenda ao inevitável. As inércias inalteráveis e as predisposições difíceis de mover. Ou em face de Jano, deus das transições, a contemplar o que ele vê: passado e futuro. As portas, sempre entrada para o que se entrevê ou saída em renúncia. Um início ou um fim. Um olhar como da primeira vez. Porque da véspera não transitou um sentido.

O meu ombro está carregado. É isso. Do peso que obriga a procurar. E peso é essa força da gravidade boa, que nos mantém ligados a terra. Comprometidos.

Um novo registo: peso e medida. O que é o peso que nos arrasa os ombros e nos curva para a frente e dói. O que é a medida certa. Um artefacto de alumínio, de boca em corte oblíquo e que se enterra fortemente numa saca de arroz para dizer um litro e o que pagar por um litro. De assentimento e continuação De lealdade. De amor ou amizade.

E o que são dois pesos e duas medidas, nesta economia de trocas? Há uma ética. Estruturas, preconceitos. A diferença entre estar fora ou por dentro a subverter. Ou, afinal e dizendo melhor, alicerces. Que nos ajudaram a construir e que é necessário verificar. A sua própria corrosão a abalar o todo. Existem sempre. mas temos talvez desonestidade afectiva. Podemos deixar de parte preconceitos éticos e analisar. Quem tem, por pequena que seja, uma dose de poder, esquece o poder que esse poder tem, ou não esquece, e faz justiça ou injustamente o usa. Com critérios restritos e orlas que se quedam de fora. Favorecimento ou prejuízo. Num exercício simultâneo de coragem e cobardia. A coragem de fazer bem fazendo mal, a coragem de fazer mal e a cobardia de não fazer bem. Ou de não fazer bem nem mal. O que às vezes é bem e outras vezes é mal. É arrasador verificar até à profundidade do sentir. O que se desculpa e o que se institui como culpa.

Um estudo diário que sintetiza as estruturas confortáveis e estabelecidas. Ética, moral, todos os dogmas, egoísmos. Afectos. Um Deus que não ajuda mas pune. E à sua semelhança um mundo que parece castigar diariamente, por causa desconhecida. E nos devolve a desconfiança de que algo teremos feito mal. A culpa desde os confins do tempo, que advém desta procura, destes erros ou de um gesto sem intenção. Mas nenhum gesto é inocente. Nenhum vazio. Rebelamo-nos desde cedo. Tudo é útil, nos sentidos que nos propõe e tudo é contestável. Há que fazer as contas. Escrever o sentido. Caminhar sobre ele.

Acordo de madrugada e abro a janela às flores que me alegram os olhos e me prendem. De uma utilidade por defeito e que não é sentido nem ofício, mas a inerência do seu papel no equilíbrio de tudo. Essa utilidade que não temos. E se não temos, não há equilíbrio no desgaste que produzimos ao todo.

Aquieto-me. Sinto. Faço isto todos os dias muitas vezes. É talvez só isto que faço e o resto são intervalos. Ficar quieta e pensar que é isto viver. Olhares circulares por aquilo que me cerca, as flores, as dificuldades das minhas flores, o mistério das portadas a regular o sol que até ele pode ser demais neste habitat construído para descansar os olhos. Distrai-los, serenar a respiração que tende a sinais de inquietação. Paro todos os dias porque algo em mim dispara todos os dias. Um disparate de sentir. Uma pele mista de zonas frágeis e de carapaças. Porque, por mais que acorde de madrugada, com o dia ainda a custar a romper das sombras do sono, tenho sempre à beira a desconfiança de que o dia traz a dúvida de sempre. Como resolver a questão? A do sentido e da inutilidade de tudo. Esta procura de definição de sentido. Assim uma coisa como: temos que ser livres, ser felizes. Úteis. Por exemplo.

24 Ago 2020

Visitas para jantar

[dropcap]A[/dropcap]doráveis convidados domésticos. De todos os dias.

Há um lamento animal que sua da pele, quando menos se espera. Do estoicismo, que esse é humano. Um uivo à noite. Aprendi com eles. E que mesmo a letra que não se pronuncia tem uma anatomia própria.
Impreterível sonho. Insuficiente o que as manhãs trazem em si. Inventar tardes que sejam mais, noites de plenitude, um olhar refrescado para o dia de amanhã. Uma orla de ilusões quase realidade. Não inventar o que não existe, mas o que pode vir. Esperar e desejar. O que nunca é a mesma coisa. O nome e o olhar. Mas que seja, pelo menos a coisa igual a si própria. Contra as desnecessidades de sentido. Intermitências como interruptores que avariam.

Haverá sempre quem entenda mal, quem julgue o mistério excessivo e quem culpe de realidade crua, quem nos tema a crítica ou a melancolia. Quem julgue pelo excesso a fantasia ou a racionalidade, o dramatismo a serenidade, a intensidade e o frio. Ou, na aparência distante, a secreta garra férrea com que tudo nos marca.

Haverá sempre uma coisa e o seu contrário no olhar que se assesta sobre nós. Numa alquimia de opostos. Há que fazer a síntese. Por cada qualidade que nos dizem há sempre quem a sonhe contrária. O problema é nunca sabermos com clareza onde estamos nos outros e onde estão os outros.

Este desgastante casamento. Com os outros, com o olhar dos outros. Dependência de migalhas e gestos a brindar à ausência. Tanto e tão pouco às vezes numa só vez. Mas chegar àquele ponto, finalmente, em que cada coisa já não coloca questões sobre ser, mas sobre os outros e, um dia, nem isso. Têm que estar lá. Com todo o seu dramatismo e intensidade. No lugar que é seu. Para o melhor e para o pior. Até que a morte nos separe.

Distanciação social. Expressão absurda do figurino actual. A Vogue sobre a mesa de café. Mas em casa não há distância possível e sentamo-nos todos os dias à mesa com os nossos monstros, os nossos fantasmas, os desejos, as recordações. No recolhimento em que estamos confinados ao interior da cabeça. E às vezes perdemo-nos ou encontramos na amplitude de tantas latitudes. Longitudes ilusórias. E estas visitas de casa.

Esses convidados domésticos, queridos, que nunca deixam de pedir o jantar e esperam mesmo por horas pouco convencionais. Mas estão sempre lá a fazer companhia.

Passados os primeiros momentos de cerimónia, estão eles já tontos de bebidas secretas, ruidosos e de cotovelos sobre a mesa. A servirem-se com as mãos. Mas eu gosto. De os ver lamber os dedos – alguns até com uma delicadeza infinita, a da timidez que nunca fica mal – e mangas arregaçadas, os que as têm porque a alguns a pelagem não o permite. Uma barulheira. Animada, inquietante ou irritante. Coisas de família. A tentar que nunca seja angústia para o jantar. Mas uma outra coisa em aberto. E com conforto a dar o título.

Rejeitar as trevas, como a luz esmagadora. Tudo a seu tempo. A intensidade de um meio-dia a pique, não se quer às cinco da tarde. Como as trevas ao amanhecer. Tudo deve fluir a um ritmo que é seu. Tudo é bom. A penumbra de um crepúsculo lento. Há que deixar vir cada coisa ao seu lugar. Anjos de um lado, unicórnios do outro. O boneco chorão envelhecido de poeira, também. Talvez a meio. Há que pensar o protocolo. À mesa.

Restrições alimentares que a delicadeza torna subtis e atendidas. Sorrisos e sobrolhos franzidos. Olhos esquivos ou impolutos. A cerimónia é densa e longa e deve contentar a todos. Poiso travessas ornamentadas de folhas frescas com pernas de frango e asas, fritas acerejadas, com aquele toque avinagrado no final. O mundo doméstico também se divide entre quem gosta de pernas e quem gosta de asas. Depois da sopa fria porque é verão, ou antes, que façam como preferirem.

E depois, já todos à mesa e etérea sou eu. Encantada ou presa de encantamento. Paralisada de existência discutível. Vejo-me à mesa e vejo-me a atrapalhar-me na porta com a travessa enorme. O cesto crispy comestível e os panadinhos com surpresas de camarão e aqueles pimentos imprevisíveis. Rio para dentro e espero ansiosamente para ver a quem calha o insuportável picante esperando a rezar que seja ao unicórnio querido que nunca vi corar. Ou atrapalhar-se e tossir. Uma coisa linda de se ver.

E todos os monstros estão serenos e bonitos a retirar o pano de linho da argola de prata e a colocar nas pernas, cada um no seu modelo de colo, mas civilizados e benignos porque à mesa manda a etiqueta. E portam-se bem. Cada um precisa do seu sítio da casa onde pernoitar depois. Quando o cansaço se instalar e o sono, a única fuga possível. E quando já dormem, fico à mesa a lembrar os que vieram o que disseram se comeram bem. Só, mas não completamente. Do outro lado a ovelha negra que fica para ajudar a levantar a mesa e que é a minha preferida porque é diferente mas sempre a que emperra a contagem para o sono final.

E fico a lembrar os detalhes. O Adamastor que não chega a horas – um problema para o arrumar à mesa com aquele tamanho. Sentado, depois, de lado sem espaço para as pernas. A pisar a asa de um e a crina do outro.

Adiante. Para ele era um gelado de espuma doce para limpar o palato, à chegada, das intempéries do ofício, a ver se se tinha quieto e calado. Para não incomodar os vizinhos com os rugidos do costume. Vem muito para afundar inutilidades e afogar mágoas. Mas nunca se sabe como reage a uns copos a mais e às espumas e vapores das sobremesas de cozinha molecular que não sabe com que talher abordar nem eu. Mas olho-o sempre atentamente e, num assomo de melancolia, fico na dúvida se não será o tempo. Cronos. Que não costumava chegar atrasado nem fora de horas, mas agora cada vez mais, ou antes da hora. Observo-o na dúvida. Mas é mesmo o tempo, talvez. E nunca está a mais.

18 Ago 2020

Magia

[dropcap]A[/dropcap] pensar que às vezes a vida tem tonalidades de um realismo mágico, que neutraliza com as cores opostas o realismo trágico que nos abala. Como uma teimosia.

Desviar os olhos e, como por magia, esquecer tudo o que não se apresenta ao imediato constatar dos sentidos. Sentir que tudo está bem. Em harmonia e à distância de tudo o que nos faz doer. Mas não agora, naquele momento, neste, aqui. Como um toque de perfeição. E apeteceria escrever algo como um nada inócuo. Ou melhor, um nada a soar cálido, envolvente, abrangente e bom. Um nada em forma do que cada um que é outro precise para sentir. Em doçura e agrado. Em prazer e embalo e em dimensão positiva de ausência de dor. Um nada, camaleão. Em forma de um pequeno tudo, preciso, exacto e transparente. A tomar as cores do real aprazível. A repetir. A confortar. A trazer um brilho ou um sorriso. Uma admissão do sol, que brilha sempre mesmo por detrás das nuvens.

Vendo bem, quando conseguimos pensar que muita da dor está sentida num tempo verbal passado ou futuro, em forma de rescaldo ou temor, recordação ou antevisão, olhamos em volta, e com um pouco de sorte sentimos que tudo está momentaneamente bem. À custa de um olhar curto, lúcido e limpo, e de uma certa cegueira para o mundo. Ou um olhar alongado mas cuidadoso a escolher a direcção e o caminho. A passar entre todos os que estão no epicentro de algo, a combater monstros ou incêndios ou à beira de vulcões. Tudo o que nos perturba em nós e no que nos cerca pode acalmar por um tempo, tréguas de convalescença ou intervalo de sono. Não se suporta inquietação e angústia a tempo inteiro, mesmo sendo assim por defeito. Há uma janela a abrir sobre o lado sereno das coisas. O lado parcial que também pode ser uma totalidade consciente e sem remorso. Mas há teatros de guerra – estranha expressão dos analistas – há incêndios a consumir a realidade e vidas e há as moscas incansáveis sobre rostos depauperados de fome, calor, doenças e futuro inóspito para corpos de criança. Que sorriem com a plenitude abstracta, que ultrapassa tudo. Há dores presentes instaladas no corpo e a minar a alma e quaisquer caminhos que desçam dela. Há tantas coisas e por vezes nenhuma nos transtorna e mesmo assim não queremos deixar de nos amarfanhar de dor de sentir, desapontamento e frustração. Como somos fúteis.

Adeptos do sentir inútil do adverso, de navegar como barco com vento de través, sempre contra a força do vento que nunca parece a favor das velas. Bolinar todos os dias cansa. Apetece a tempestade e afundar. Ou olhar de outro ângulo.

Magia, pó de estrelas, poções e luzes, que as palavras ultrapassam em intensidade e poder. Mas tão poucas benéficas, mesmo em pensamento. Ou claras. Tão poucas, mão, tão poucas, remédio e tão poucas, poema.

Há sempre qualquer coisa. Por detrás do que se faz do que se diz do que se escreve. Mas como eu gostaria no momento de pensar lucidamente o que fazer o que dizer ou o que escrever, – um dia – ser sobre nada e que nesse nada houvesse tudo para a plenitude e a emoção de alguém entender e se encontrar. Porque nada faz mais sentido do que o encontro de si, do outro ou com o outro. A transcender a seca solidão do escrever.

Mas há a inquietação e utopias de adivinhar. Uma esponja orgânica a querer fazer ou apagar o que é certo no momento certo, refazer o tempo. O contrario do relógio que avança ao ritmo prescrito inexorável e sem dó e cumpre o seu destino friamente na maior inocência. Porque o relógio tem uma inocência ignorante maior até do que o tempo em que nos envolvemos como em capas de passado ou futuro, lentas, curvas ou estonteantes. O ónus na noção que temos e no olhar que lançamos. É isso. Queria, a pretexto desse nada, algo de textura e determinação, futuro, calor e desejo. Uma amplitude de nada com delicada cadência e uma acetinada superfície em emoção e sentir, como um parque natural para viver. Uma saída do finito e precário, da transitoriedade como tontura a revolver os olhos e o estômago, no convés. Queria isso tudo e dizer tudo o mais, em nada. Mas não seria natural. Um veemente nada. Que retorna em segurança. Como um placebo que faz bem. Uma coisa benéfica e alimentar. Penso muitas vezes no sabor das palavras, dos sentimentos. Como na diferença entre apetite e fome. O que é natural e o que é cultivado. O que é gosto e o que é necessidade.

O que é vida e o que é morte diária dos alimentos, esquecidos, cumpridos e processados. Penso, porque não consigo outro modo, quando o que eu queria era ler. Sabores a transcender a alma. Queria parar, enrolar-me em mim e esperar que algo salvasse esta inutilidade.

Esse lado de mim.

Depois, entendo que está bem porque brinca com a areia. Imerso em pensamentos, é certo, mas descontraídamente esquecido. Nada me basta mais. Do que um escondido e ligeiro sorriso atrás dos olhos.

Como a cumplicidade que não necessita palavras a produzir escolhos. Amo até à exaustão de ser de sentir ou de suportar. Mesmo a montanha mais alta e o precipício mais perigoso. Quietos, por um momento. Por magia. Uma pausa a meio da ponte. Como um limbo, podia ser um mito, mas contrário ao de Sísifo.

3 Ago 2020

Pátio interior

[dropcap]A[/dropcap] esfera e o pátio. Volto sempre, a pensar na fenomenologia de continentes e de conteúdos. Inexistentes uns sem a presença ou ausência implícita dos outros. Noções que se adivinham e se querem mutuamente. O côncavo e o convexo na consciência de lugar. O interior e o exterior, o que se incorpora e o que se expande. Quem somos e que lugar é esse que apresenta mutações e se apresenta assim e também na aparência do seu contrário, faz-me pensar que ninguém nos diz ao nascer, que vamos ficar aqui dentro. Fechados a sete chaves e a construir metrópoles. E que o desafio é não enlouquecer delas e para fora delas.

Olho o mapa estendido sobre a mesa e todas as possibilidades de caminho e, no entanto, reunido ali todo o mistério de sentido em cada escolha.

E então dobro-o, por uma vez em quatro, depois em mais quatro e ainda mais duas vezes até à aniquilação da superfície nunca possível. Muitas rugas vão advir daí. Circunscrever o macromundo a uma rua da cidade e mesmo assim sobrarem trezentos números de porta e muitos mais olhares para pátios interiores. Reabrir e poder dobrar em barco, avião ou pássaro, com diferentes feridas desenhadas no curso de rios ou na erupção de montanhas, mas amarrotar como se a rearrumar o mundo com novas e aleatórias coordenadas, numa bola. Retoma quase a forma de esfera que lhe compete, a rolar na inércia do conhecido, aqui sobre a mesa, como um dado lançado, pleno de franjas desconhecidas e abismais. E ficar, por hoje, neste simples espaço, de acesso confortável. A serenidade a excluir os ruídos da cidade em volta. Tenaz mas inglória, bem sei.

Vejo-me de alma residente numa vila meridional virada para um pátio interior, como um continente que cerca o sentido tendendo ao centro. No aveludado de tapetes berberes, que são ásperos ao toque mas amaciam os sons. Em íntimo movimento redondo, sujeito às forças centrífugas que atiram para fora o que o movimento força interior e em simultâneo às que de igual sinal mas opostas, centrípetas, que a mantêm no interior do pátio, como no circuito fechado de uma máquina de lavar, esse côncavo aconchegante ou aprisionante. O exercício da razão, como o das pseudo-forças centrífugas e centrípetas. Inimigas inseparáveis. Se inimigos são os opostos que inevitavelmente se equilibram numa espécie de anulação. E quando desaparece o atrito entre pés e terra, sai disparada e tangencial em linha recta rolando como uma esfera densa e convexa, puro conteúdo em fuga mórbida para fora. Do ínfimo individual para a grandeza do universo entrevisto. E na inércia de movimento perpétuo, mas pura ilusão, esta. O dinamismo psíquico a ensaiar o movimento para fora de si – sempre de ida e volta – e desse encerramento metafórico que é a própria noção de si, contrário ao mergulho a fundo no poço do íntimo mais íntimo desse pátio interior, para onde tende o olhar da casa. E encontra-se como em férias na pequena casa sobre penhascos. Monobloco de uma única divisão. Cristalina e estanque.

Quase nada, face ao tudo em redor. Uma esfera sólida e parada. Estável na inércia de estar.
Como um terminal de chegadas e partidas. As pessoas vêm e partem. Vêm e vão e desaproximam-se dos olhos como se nunca tivessem lá estado mas ficaram gravadas nos registos de viagem e desgravar não é competência da vontade. Como nos meios digitais, apagar de um gesto. Somos um simples banco com vista para a linha. Ou o comboio, em si. E assim se passa estar aqui e ver quem já partiu e antever quem ainda não chegou, ou partir e chegar. Com instantes de intervalo e tonalidades em blue. Fazendo companhia.

Vivo assim. No interior da minha cabeça mas com vista alternada para o espaço imenso ou para o pátio interior, esse exterior no meio da casa. No entanto apareces-me ali como além. Num, sentas-te a sós, porque te deixo entrar e estar sem interferir no teu chá. Já bastam as noites longas em que não vinhas. No outro, porque me passeias ao longe e te vejo mais perto na deambulação. E no entanto, sendo simplesmente o mesmo espaço, prefiro-te no horizonte da casa de vidro do que sentado no pátio interior, onde temo tenhas calor. Te sintas fechado e invasor. Porque eu vivo dentro deste lugar sem portas nem vocação. Perdoa-me porque entras. Sei lá tu se sabes. Bem-vindo. Nunca resisto a estes exercícios dos lugares de estar e do contraponto com os lugares de imaginar. Mas suavemente.

Eu vivo dentro da minha cabeça. Esse continente prosaico e a perder definição por fora. Nem sei como ainda consigo descer as escadas e sair dela para a sensação do mundo e da temperatura exterior. E a ver-te chegar. Tu – sim tu – aquele que é o outro. Que pode encarnar a figura do amante ou do amado, do amigo, do vizinho, ou mesmo do estranho desconhecido e que se opõe ao simples lugar de se ser só. A olhar para o pátio interior.

27 Jul 2020

Juhu

[dropcap]I[/dropcap]magens que nos povoam e acompanham, como em álbuns de fotografias que levamos para todo o lado. Vendo bem, têm uma curiosa estranheza de imprecisão. Vistas ao pormenor, parecem cobertas de uma camada de indefinição. Como uma barreira inultrapassável, por mais que num olhar distraído comecem por parecer nítidas. No entanto, algumas estão mesmo assim gravadas profundamente.

Tanta coisa que a neurociência explica. Como acontece e porquê. Mas como se houvesse ainda um outro “porquê” antes desse. Mais subjectivo. Que fica por explicar nos meandros e longas caminhadas pelas sinapses adiante, nas ligações que como portas se abrem ou se esquecem de o fazer, ou quimicamente se recusam. O processamento ou o desperdício. Perco-me, na tentativa de entender o poder definitivo com que se cola à memória para sempre uma imagem. E somente isso já seria fenómeno a dar que pensar. Mas a persistência, como coisa importante e inesquecível, é o que sempre fica por entender. Uma imagem. Uma simples e singular imagem, produto de uma sequência de momentos, ou um curto instante da percepção. Três dias num quarto de hotel. A febre a desarrumar um deles. Sem anular.

Um jantar exausto à chegada, mesa redonda de casais estrangeiros, longínquos diálogos a saber o básico, de onde se vem, para onde se vai. Uma jovem desirmanada e de olhar seguramente já febril e alheado para um ponto distante da focagem habitual.

A febre a subir. Um quarto com vista para o dia seguinte. Sem regras. Só o corpo sem a força nem a obrigação de uma agenda para o dia. Um desperdício para quem foi de longe. Se não fosse aquela imagem. E no outro dia, todo o dia as horas estranhas ao relógio. A febre a revolver-me na cama desconfortável de um sono incerto e aquilo que parecia o dia a amanhecer, tirou-me dela e era poente afinal. Uma janela enorme para o mar. Sol poente. Uma luz de prata.

Eram cavalos e outros vultos esparsos. A praia plana. O sol no meio. Não quero dizer da beleza dos cavalos ou do apuro das formas, eram somente cavalos, vultos em contraluz, recortados por detrás de uma espécie de névoa tremida e inquieta, como os vultos de jovens, homens e mulheres. Vultos pequenos, magros e desenhados a negro. Ao longe. Sempre achei algo de harmonioso, em ver pessoas vestidas na praia.

Simplesmente vultos diferentes mas todos naquela lentidão que se impôs ao relógio. Tão grande a lentidão tão quietos os vultos porque de longe qualquer pequeno movimento se disfarçava em nada, que o tempo, à distância parou. A preto e branco, claro. E com o brilho fino da prata entre céu e terra.

Esta é a tal imagem. Que nunca foi nítida nas horas de febre e nunca ficou mais nítida à distância dos anos. Não há uma narrativa que a faça pano de fundo. A história de quem ficou para trás ou deixou para trás. De uma alma despojada ou de mãos vazias. Não há um sentido para além da premência com que se impôs aos sentidos e ali ficou colada como um paradigma para sempre. E é isso o que me intriga, quando a revejo entre tantas imagens que deveriam ter permanecido pela beleza de cortar a respiração. Afinal coadas pela memória. Porquê aquela? Há a realidade, há o fenómeno acrescido da percepção alterada e há um sentido premente na permanência. Esse sim, é estranho e inexplicável. Mas esta, ao contrário de outras imagens, felizmente inscrita num arquivo de beleza. A suplantar tantas outras, que assim gravadas em profundidade, causam erosão. E é aqui que sei que a neurociência pode explicar a lentidão das horas e a névoa atmosférica entre os olhos e o que foi visto. A beleza? Mas não a profundidade da impressão. Uma água-forte para a vida.

E sem significado legível. Uma emoção estética pura. Um pedaço de beleza irrecuperável. Depois, saber notícias desse lugar. Anos depois. As avalanches de lixo colorido, a tocar o inacreditável e arrastadas pelas marés. O Fitoplâncton, microrganismos que são a base das cadeias alimentares nos oceanos e provocam aquela bioluminescência incrivelmente azul de certas noites, ao desfazer das ondas. A mesma “silver beach”, mas outra.

No último dia, o frenesim da cidade, o colorido que se satura nas cores da humidade, da desarrumação e da pobreza, o ruído, os olhos líquidos e os rostos pequenos, febris e ávidos, as mãos escuras e estendidas a qualquer coisa por exaustão, o táxi que não avança cortando a direito a lentidão devastadora por aquela realidade adentro. As pratas, o lixo, as lãs, cheiros e águas escuras vindas de algures, como uma amálgama de vísceras à flor da pele da cidade, a falar do que dói e do que corrói nas paredes as tintas, o que faz lixo no chão, desconstrói as roupas e emagrece os corpos. Tudo. Como uma única verdade. E as cores, mesmo assim. Vivas.

20 Jul 2020

Cântico órfico

[dropcap]C[/dropcap]onfusas evidências por não serem mais que potencialidades. Por adivinhar. Divididos – nem seria o termo – entre a natureza titânica do corpo que aprisiona a alma e a natureza supostamente livre e divinamente dionisíaca desta. Mas na verdade vivemos sem fractura essa dicotomia. Eternamente aprisionados e simultaneamente livres. Na insatisfação que ao mesmo tempo transporta em si a chave da porta.

A viver inundados ou atemorizadamente afogados. De limites e olhares. Ou em fantasias de nós, ou do mundo e de uma coisa na outra. Um desejo de formular e edificar uma realidade que nos sirva e de que sejamos culto e templo, à falta de maior evidência de que existimos e valemos. Não se deixa crescer ou ascender uma realidade para se amarrar e reprimir. Há que libertar, respirar, soltar amarras…

E isto fez-me retornar àquela curiosa questão do segredo. Que tanto pode ser uma luz bruxuleante a captar curiosidade, ou um fogo-fátuo discreto, como um buraco negro em que sabemos não dever penetrar. Porque o segredo deixa pistas que não resistem a uma intuição, a uma apetência viva pelo detalhe.

Um segredo reúne em si as apetências paradoxais de ser e deixar de ser. Ser desvendado. Partilhado, é apenas um dado com universo circunscrito e ainda privado mas já não íntimo. No máximo duas pessoas ou três. Quatro ou cinco, por essa ordem de ideias. Mas continuará a ser um verdadeiro segredo? Tantos por aí.

Que se veem. Mas, no apetecível de contar, deixariam de o ser. Um segredo que se adivinha fere-se. A ele e ao ouvido adivinhador. Porque é um segredo altivo e que passa sem dirigir palavra. Sabemos que todos temos um segredo, segredos. Mas saber mesmo, que alguém tem um segrego, descendo ao particular, é quase saber-lhe metade. Não está demonstrado que seja. Mas é como dizer: vê. Descreve-me a pele, a febre para dentro e as chispas que se derramam na inocência de se querer inofensivas. Descreve-me aquilo que aos olhos não teme supurar se os olhos forem mesmo os olhos de quem vê. Lê-me no que, no mais, ninguém lê e sou livro teu. Segredo, é o que se sabe. Que existe. Senão, de tão bem guardado, não chega a ser, porque não existe para mais ninguém. E assim, como nomeá-lo?

Não podemos pensar o segredo como uma especificidade de baús de couro velho, maços de cartas antigas, enlaçadas a fita de cetim, portas que se entreabrem no lusco-fusco da noite já caída para ficar, ou figuras que se esgueiram ao olhar das vizinhas atentas. Ou de uma faca poluída da invasão daquilo que só pelo amor.

Ou mesmo de terra sobre terra a esconder o que para alguém não deveria ter existido. Muito mais se esconde em cada desconhecido rosto, em cada fachada de prédio em cada janela entreaberta para que entre um pouco do universo e saia um pouco do que excede o diâmetro físico do crânio. Pode ser o que mais se teme reconhecer ao espelho. Ou a boneca sentada igual, sobre a cama e a colcha de seda. O que nela se aprisionou e que dela dificilmente se expira ou exala.

Segredos não são coisas pequeninas, que não se querem reveladas. São coisas de volume sólido. Objectos redondos e espessos. Como esferas de chumbo. Mas que rolam sem querer. Ou, às vezes, o querendo e não querendo, no mesmo exacto ponto de decisão.

Eu vinha do reino de M. situado na palavra bonita do Magrebe, reduzida de dor recente naquele ano, em que tudo e ainda mais, um pouco depois. Saia cinza e sapatos de atacadores e casaco severo. Apeadeiro de avião. Na fila ao relento, uma cara sorridente que me antecedia, pergunta-me com simpatia evidente pelo adivinhado: missionária? Sem vontade para palavras explícitas fiquei-me por um aceno de que não nem por sombras. E ela, ainda simpática, como quem reflecte melhor e emenda um erro básico: franciscana? E a minha expressão e gesto em negativa, sem mais da minha parte a explicar a roupa ou a mala, desinteressou-a sem mais explicações nem palpites. Numa indiferença zangada.

Lembrou-me o Júlio, esse sim, missionário e reformado, diz ele. Crioulo alto mas mais magro de cada vez e andar cada vez mais arrastado. Passa todos os dias – todos – na minha rua, a caminho do rio. A caminho do rio onde se senta a olhar. E a batucar suavemente superfícies ocas de assento, a acompanhar trechos soltos.

Falámos uma vez. Dizemos boas tardes das outras em que o encontro aqui em cima. Sempre a caminho. Curiosamente nunca me lembro de o ver voltar. Como uma maré que, quer enchente quer vazante, sempre tende para a costa. E sem falhar um dia da sua missão, enquanto arrasta as pernas já difíceis, a trautear músicas de jazz, espirituais, louvores a Cristo e, uma vez por outra, como excêntrico variar em excepção, até coisas latinas de amor. Mas é raro.

Isso outra coisa. Ali, naquela pista de aeroporto, àquela mulher madura, bastar-lhe-ia ter trocado as cores, adivinhado no insólito tamanho da mala fora do formato e das medidas, tão grande e clandestino ainda assim e no amarfanhado interior quase vazio, para arrumar. Mas era curta se bem que instintiva a curiosidade. Não avançou pelo secreto conteúdo. E deixou-me amorosamente agarrada ao malão enorme e autorizado por distraído olhar, em que me trazia cuidadosamente para casa.

13 Jul 2020

Parte do corpo

[dropcap]C[/dropcap]omo uma parábola. O braço e a omoplata. Depois da arquitectura do betão e do aço e muito depois do ferro e do vidro. A omoplata e o braço. Uma arquitectura do corpo. O local do corpo e o sentimento de lugar. Passo uma carícia pela pele grossa e macia do lugar de costas voltadas. O lugar da omoplata. Naquele ponto, sei que podem nascer asas para voo.

Às vezes, mesmo o que é arrepiante se move para uma emoção estética. Quando Stelarc implantou uma orelha de cultura biológica no braço, fiquei sem fala. A sua profunda noção da obsolescência do corpo. O fascínio pela robótica. A ambição sensorial de terminais ligados em rede a possibilitar a interacção de terceiros. Esta solidão excessiva do humano no humano e face ao puramente humano. E estamos a chegar lá, com este enorme abanão à ilusória proximidade do outro. Qualquer coisa de profundamente metafórico na imposição a essa extensão das mãos, os órgãos do tacto, do sentido figurado do ouvido. Ouvimos o que é próximo e se nos aproxima em ondas de sensação. Aproximamos as costas da mão – o braço agora que não se pode tocar – de um rosto para ouvir melhor. Mesmo talvez, o que não é dito. Mas foi na primeira década deste milénio. Quando de cartilagens da costela, da jovem soldado S. B., como em gesto bíblico, se constrói um órgão que vai crescer debaixo da pele do antebraço, enervar-se e ter circulação, provocar sensações, e subir ao seu lugar antes do rosto, pode-se pensar que tudo é possível e que a arte é o imaginário que conduz a ciência à realização de sonhos. Ou, pelo contrário, a ciência a ajudar a arte a exprimir utopias.

As pessoas são apaixonadas – ou estão – ou passionais, ou emocionais ou frias ou distraídas ou sentem-se indiferentes. Fazem as coisas que fazem, sob o signo de um estado. Mais cerebral ou mais emotivo. Ou de uma alquimia irrepetível, porque instantânea, entre os dois lados. E isso, que diz da pessoa? Que é, ou que fez? As coisas fazem-se de uma maneira, Nem sempre a mesma e cada coisa nem sempre igual. Coisas são lugares pontuais. Somos colhidos na arena, pelo momento e sem pensar. Somos o braço, somos a capa, ou somos o touro.

Mas que dizer daquilo que tanto tempo nos toma – esses enormes intervalos do fazer e que são o ser em todo o desamparo e estado puro – e em que estacionamos num modo que, esse sim, pode tornar-se, por prolongado esforço, dorido, insuportável? A sós connosco e sem as coisas que fazer ou a ter que encetar, ou terminar, ou viver, ou passar nelas, ou passar por elas. Nesses intervalos que são como silêncios entre notas musicais, esses, os mais difíceis de levar. Essa pode ser a escolha mais relevante. A de como estar nos tempos prolongados que nos acolhem sem a euforia e o esquecimento do fazer. E com as mesmas dúvidas.

Podemos escolher o sentir, nesse território envolvente, estrutural. Penso: ou vejo magenta ou vejo o touro. Ver o interior da capa, ou o crepúsculo sereno. Que lhe serve de fundo.

Sento-me com vista para o infinito. E vejo-o chegar. Todos podemos ser salvos. Por quem faz crescer uma asa naquele ponto exacto da omoplata que parece ter sido criado para isso. Ou duas. E o simples adejar que refresca, parte do corpo e torna-se voo. Como numa animação 3D. Porque são dois e iguais os ossos largos que unem os braços. E planos, como um território propício a levantar voo. Semelhantes no corpo mapa a aeródromos de brincar.

E depois, ouvindo melhor, percebe-se de quem era a omoplata, ali, numa pulsação recente. Uma pequena dor de crescimento. Cada um salva através do outro. Essa magia íntegra do olhar. Oiço o trote volumoso do monstro, lá do fundo do corredor e do tempo. Os monstros não são bons ou maus. Somente assustadores.

Quando lhe abraçar o ouvido ao lugar a que me encosto, espero não ouvir a asa partida. Dúvida legítima: quem se anuncia é a trote sonoro, como coisa, ou denso silêncio, como lugar? Depois fico quieta, entretanto. A pensar com que parte do corpo devo ouvir. E de que lado.

6 Jul 2020

Z.

[dropcap]N[/dropcap]as equações matemáticas a incógnita é X. Nele, ele próprio. Z. Um diminutivo de infância que lhe ficou. A recobrir o conteúdo secreto, de anonimato e ausência.

Quem quer falar da morte? A tristeza tem que sair, suada pelos poros, ou afoga-me. Faço-lhe companhia nestas palavras como noutras alturas, noutras distâncias menores. Uniram-nos laços de sangue e de estranheza. Dão-nos os pêsames e os sentimentos, mas há um mundo de questões que se abriu desta caixa de Pandora e fica a atormentar. Porque também vamos morrer sós e sem ninguém saber por uns dias, uns anos. Faleceu hoje. De manhã. É verdade. Foi hoje, há três dias. Mas a data pode ser uma mentira. As pessoas morrem quando sabem que morreram ou morrem-nos quando o sabemos. E que sabemos nós? Que nos morrem em vida, ou se nos deixam morrer como às vezes vivem para lá do momento em que nos deixaram sem nos deixar saber. Como se fosse hoje, mas passaram dois anos. Extraviado. Morre-se quando se sabe que morreu. Não sei o que ele soube. Nós, só agora. Com esta mágoa acrescida da tristeza de não o ter sabido antes. Mesmo se assim, parece que viveu um pouco mais até ao veredicto do olhar.

Foi uma estrela pop. Uma fantasia com que em jovem sonhou gostar de ser lembrado. Uma estrela desconhecida, dos anos sessenta e setenta. Mas que importa se, pensando bem, nunca alguém conhece ninguém. E tornou-se irreconhecível. Como somos até para nós próprios, em dados momentos. Ensaios à capela à porta fechada. Vagos espectáculos. Vinis vindos de França. Sonhos. Era uma fotografia a preto e branco nas revistas cor-de-rosa que me mostrava. Lembro-me. Fotografia de estúdio, de corpo inteiro, casaco ao ombro e pose de charme contemplativo. Ou de rosto, em formato de postal. Autografadas na diagonal com uma assinatura grande e expressiva. Que se foi apagando com o tempo. E como cromos das cadernetas de estrelas de cinema, em cores artificiais e contrastante e que eu espiava em segredo. Eram bonitas. As estrelas a pousar oblíquas para a câmara, de penteados rigorosos em ondas. Que coisa, sonhar com a fama.

Morreu só. E só dois anos depois, soubemos. Deixamos as pessoas morrer sós porque as deixámos viver sós. Sem querer. Ou porque o quiseram ou porque fomos nós. Tinha vocações várias, cursos. Que dariam para tudo e não deram para nada. Era considerado estranho. Porque cada um acha a estranheza do outro sempre mais estranha do que a sua. Tinha uma vida estranha. Passou mal mas deixou bens. Suprema ironia. Talvez sentisse essa vontade de deixar algo de si. Mas deixou também o que foi e muito que não foi e se lhe adivinhava sonho.

Para além disso um rasto de invisibilidade para além dos afectos que o lembrem. Essa insignificância, imputada ao que fez ou não fez, porque sem reconhecimento. Ele a perder-se nuns casacos, cada vez mais, grandes demais. Porque era também o corpo a sumir-se-lhes no interior. Engolido pelo interior da cabeça e por uma espécie de visibilidade que realmente se esfumava.

Os lugares de Z. – todas as casas – deram-me sempre que pensar. Conjuntos de quartos tornados interiores. Janelas fechadas, paredes a perderem-se atrás de camadas de mobiliário, sobrepostas em altura e longitude, no sentido de um centro. A ocupação compulsiva do espaço até ao preenchimento total. Sempre a compará-lo com o conceptualismo da Land art, penso em Walter de Maria, nas “Earth room”, salas cobertas de uma terra limpa e uniforme, inóspita e perfeitamente estéril. E depois penso no interior das casas de Z. progressivamente tornadas inóspitas pela acumulação. Penso nas instalações de De Maria, com elementos minimais de geometria perfeita, volumes ou planos, organização rigorosa de formas rectilíneas dispostas no chão. Sempre no limite do essencial. O conceito de caminho e o de lugar O paralelismo perfeito sem pontes.

Talvez a apontar ao infinito transposto para o interior de espaços. E em Z. o excesso.
Ou Richard Long. Outra apropriação do espaço com instalação de coisas da terra meticulosamente ordenadas. Sinais repetitivos e orientados como caminhos ou como pontos focais do universo vindo do exterior ou, se no exterior, o ordenamento no rigor do que de origem natural, não o possui à partida. Ordem e sentido. E Z. vive também a apropriação do espaço interior, ocupado com objectos anódinos, materiais que acusam um critério de irrelevância essencial. Sacos, folhetos publicitários empilhados numa organização impecável, a ocupar todos os lugares do corpo, de sentar de comer de andar. Uma invasão obsessiva de todo o espaço útil da casa, como uma envolvência uterina. Ou uma fronteira onde estranhos passam a ser todos, por falta de lugar. Era recolector-colecionador, com um critério exclusivo de inutilidade, cumprido em cada objecto danificado e incompleto. Quase reduzido a matéria ferida de vida anterior. Eram esses os que levava para casa. Como animais doentes. Se Long introduz o conceito do próprio processo como obra de arte, também aí caminha Z.

E um dia, sacos de plástico de supermercado, dezenas. Lívidos, impecáveis, alinhados no chão e esticados na vertical, com pequenos conteúdos indecifráveis. Talvez víveres como na preparação de um cerco. Ou de um mergulho na ausência. A ocupar todo o chão. Seriam pacotes de leite, conservas, bolachas. Nunca espreitei mas é o que imagino. O cúmulo de uma necessidade íntima, de um anseio, psíquico, mágico. Talvez por isso nunca se saberá um objecto de arte. Tudo vai desaparecer como lixo de volta ao lixo. Uma instalação honesta, esta. A obra que não se destinou ao olhar. Veemente, necessária e imperativa.

O meu padrinho. De invisível estrela pop ao desconhecido conceptual. Uma anónima pegada na vida, que nem na morte se anunciou. Porque morreu sem me dizer? Falámos, pouco antes, mas depois fechou as portas como sempre. Nunca sabíamos dele senão quando queria. Agora, sabemos para onde foi. Mas não de onde. No lapso enorme entre uma morte e a outra. Se casa é o interior da cabeça virado do avesso, vamos agora entrar-lhe pelo secreto conteúdo de uma e outra adentro. Como de uma “showroom”. Uma viagem penosa. Face à morte de uma personagem do teatro de vida, a vida, ela própria passa a fazer-nos girar numa órbita diferente. Subtilmente diferente. Desviada.

A verdade é que morreu exactamente como uma estrela. Uma presença no firmamento de quem o lembrava, muito depois de, sem se saber, já lá não estar afinal.

29 Jun 2020

O canto do vale

[dropcap]A[/dropcap]travesso nele um olhar, de passagem por aquele seu estar sem tempo, nem mesmo realmente, lugar. Vindo, simplesmente, e tornando a vir em cada olhar. De vez em quando, preciso de ouvir esse canto do vale. E de cada vez que o poiso no chão, ecoam sinos.

Com a oxidação da distância que já tinha em si, e do tempo que acrescentou. Cada vez mais escuro. Da idade, do metal e do ar. Só das vozes que depois lhe povoam o vazio interior, nada diz. Objecto discreto e sóbrio, apagado como o são os que escondem um segredo. Que se escondem ou atraem um olhar e escolhem. Há um brilho secreto e metálico, escondido nas terrosas oxidações antigas, relações criadas entre elementos e siglas misteriosas na tabela periódica. Como na vida, mas mais definidas em cor e saturação.

Uma luz abafada por uma capa de silêncio. Mas que esconde uma voz. Uma sonoridade estranha no chão da casa onde chegou há muitos anos. O canto do vale, um ecoar de longitude. Como um búzio enorme que se cala. E como a um búzio, objecto-lugar, encosto-lhe o ouvido.

Penso porque anseiam as palavras ir longe. Porque queremos trazer o longe perto, fazer o perto longínquo, o que existe habitar o que não existe e o que não existe alargar paisagem no que existe. Horizonte tão impermanente como tudo e tão relativo como mais nada. O fugidio e adaptável horizonte. Linha que se recompõe em cada passo dado. Que se afasta na mesma proporção em que é perseguida. Ouve-se nos búzios o mar pela recordação. Um resto de mar que ecoa para sempre de uma saudade. Ou seria um ruído cósmico talvez mais abstracto e amplo. O desconhecido muito, que nos cerca.

Um cântaro de Bhaktapur. Ali na penumbra ao virar, num canto da cozinha, olho-o e não acendo a luz para não perturbar as vozes. Objecto aprisionado. De outro tempo, de um lugar distante e de uma praça onde me sentei. Ao dobrar uma outra esquina, a sombra recortada como filigrana enegrecida, da torre de madeira ao sol inclemente. Como o negativo de uma jóia. Ele, de cobre escurecido pelo tempo e beleza soturna. Algumas cicatrizes de solda em metal alheio, marcas de ferimentos de uma vida real. E sempre um pouco baço de pó. Como uma saudade da água.

Essa água e a água sugada a custo de terra ressequida, palmilhados quilómetros em peregrinação, por esses noventa por cento de água, com que saímos do útero materno, mas já não constituem o magro corpo nem do caminhante infantil. Sem filosofia nem escola, em busca da homeostasia. O utópico equilíbrio da água, corporal, total. A água fala mais alto e de mais longe, do corpo. É disso que me fala. Todos os dias ali, a lembrar caminhadas pela água necessária e limpa. Ou, pelo menos, água. E preciosa.

Não que Bhaktapur seja em África. Mas o mundo é um só, em caminhos cruzados. Trouxe abraçado, no avião, este objecto cheio de desconhecido e vozes. De entre cobres rosados e reluzentes que não me chamaram, este, um grito de eternidade. Que instinto estranho leva a retirar da sua vida de coisa, uma coisa? Para ficar, às vezes, prostrada de inacção, tristemente muda e quieta num pódio de admiração ou esquecimento. Como uma imagem. A transportar para o infinito território mental, um lugar passado. Uma distância encurtada à força. Um tempo perdido e nunca reencontrado. Que se passará na alma de um objecto, atirado sem querer para a preguiça eterna, é coisa de fantasiar. Como palavras que se descarnam de uma verdade qualquer para voar, desadequadas à função. Andou aqui, de sítio em sítio sem função. Um dia vi que procurava o seu lugar, talvez eu o meu nele. Mais perto da água, a ansiar servi-la como dantes. E eu, com olhos distraídos da importância de trazê-lo raptado de longe. Do meu longe para o seu longe. Foi isso. Viajar. Tentação de trazer coisas de uma lonjura para outra, a vencer uma, a outra. E a memória.

Chamamos recordações. Às coisas que invocam tempo. De viagens reais. Tão irreais já, desalojadas dele. Como reais as que imaginárias são apetecidas e feitas. Transportamos um lugar que procura voltar a ser lugar. Varanda sobre terra estranha. Cadeira estrangeira. Lugar onde se poisa o corpo, os olhos, o tempo. Outro lugar. Estranhamente presente e familiar, como estranho pode ser o lugar de sempre. Plástico mutante. Como se sempre o mesmo lugar de interrogação e procura de pontos cardeais. Porque nunca estamos muito tempo no mesmo lugar, mesmo em anos sem deixar a casa. Ponto de partida e de chegada.

Devia regar as plantas com o cântaro bojudo, de interior insondável e vozes. Penso para que veio o regador de plástico vermelho, se havia o cântaro de tantos anos. A pedir água como bicho encalorado e sequioso no seu mundo de coisa. A lembrar as gotas a escorrer-lhe no flanco todos os dias refrescado.

E um dia, veio para companhia uma pequena e gigante pedra de sal. Acende como um coração das montanhas. Diz-se dela, que da terra dele. Pedra que chora uma água de sal, nos intervalos de uma luz coralina mas artificial, saída das entranhas rochosas, outrora fundos de mar que se revolveram e elevaram em convulsão. A tocar o céu. Lágrimas de sal gigantescas, guardadas nas rochas e cristalizadas no tempo.

Talvez por isso chorem, longe, em determinadas circunstâncias. Iluminadas por dentro dão uma luz que purifica, dizem, mas bastava ser luz. Como um calor no ombro, uma mão na alma. Do outro objecto também.

Se as coisas têm alma por companhia. Nela as lágrimas da distância. Nele a secura. Um, conteúdo. Cristalino mas lacrimoso. Outro, continente. Do vazio da água. O cântaro e o sal, eternos opostos, como vísceras da mesma terra. Das montanhas e do vale. Cada um o seu canto.

Mas digo-lhes devagarinho: casa é onde poisamos o chapéu, penduramos o casaco, gritamos vozes das entranhas. Onde caem as lágrimas de sal ou secam na garganta. A minha. E a deles, também.

23 Jun 2020

Teatro anatómico

[dropcap]S[/dropcap]ubo a cidade, a rua, as escadas, e ao cimo o meu canto.
(Sala de anatomia. As vísceras por ali em pose de revelação. Em cadernos por abrir por debaixo da pele e segredos por guardar. Ou fechados, temporariamente sós. Há segredos mais sós do que outros. E cadernos mais distantes e livros menos tacteados e abertos mas tudo é uma questão de tempo.).

Na página anterior é uma sala de espera com todos aqueles livros de capas dura para resistir à corrosão do tempo e do esquecimento. E flores secas e animais empalhados.

Bem-vindos ao teatro anatómico. Dizia, à porta, a quem entrava, uma voz nasalada de burlesco. Sentei-me e era uma roda de cadeiras ocupadas mas depois era já a mesa, o teatro e cortinas vermelhas. Como o último acto. Viro-me de lado a esconder os órgãos se ainda é possível. Penso uma pausa. Um corte para café e redefinir a máscara, agora inútil. Na mesa. Chamo-me A. Por hoje passo. Pelas palavras, penso. E um coro monocórdico mas afável, vindo da linha semicircular de cadeiras ali, como em torno de um oráculo, responde a pronto, bom dia A.

Deitada de costas. Um lençol azulado sobre o corpo e até acima dos olhos. E as vozes a soar como uma realidade alheia. Pensava as fronteiras do tempo, finas como as da pele. A ilegibilidade dos órgãos. As coisas escuras e misteriosas por debaixo da pele, da escrita. O caminho mais fácil. Temo as colorações e texturas diferentes, coisas com uma explicação, volumes alterados. Coisas assim. Mas sei que não vão ver o essencial. Perceber para além dos sintomas. De identidade, de sentir, de ser. Um corpo coberto de autocolantes para não haver esquecimento. Observado como num sono descomposto, nas roupas impúdicas e abstraídas, no corpo indiscreto e ausente. Impúdico porque só. Mas sob os olhares expectantes e interrogativos ali em volta.

Amanheceu e um pouco cedo, ainda, para tanta luz. Puxo o lençol como uma névoa de adiamento. Mas oiço passos. Não me preocupam as batas e este lençol com uma janela, que logo retiram por inútil, as luzes fortes, dirigidas e cruas. Perturba-me não entender o que vai dar-se. Desaparecida a janela e o lençol, entendo que é por todo o lado. Pensava ser talvez uma fractura algures no corpo uma daquelas quedas e a memória um pouco ausente. Penso. Será uma daquelas perdas de memória. E penso que me lembro disso, mas da outra vez.

Os instrumentos, no tabuleiro metálico, prenunciam alguma reparação. Ou pior. Doei tudo. Será agora…talvez. E começam sem dor. Vejo que é agora e não dói mas intriga-me. O coração. Não, não, não…deixem estar. Tenho uma lista. Começam pelo coração e sigo-o com os olhos, com um desvelo que não imaginei.

Assim em mãos alheias. E se o deixam cair? Numa das tijelas afadigadas em inox. Descansei. Bordos altos, não há como atirar-se dali abaixo. Fico a ver. Há comentários e subentendidos e o afã de uma curiosidade que julgam prestes a alimentar. Mas desistem. Sorri para o lado. Nem chegaram àquele ponto onde não se alcança Para lá das fibras. Viram tudo e não viram nada. Ainda temi o bisturi, a indecisão e a incisão. O coração – ao contrário dos bolbos que se podem seccionar e voltam a crescer e a refazer-se, ou do fígado – não cresce depois de laminado. Posso descansar. Quando olhei para o lado e o vi partir pensei a parte melhor de mim. Mas depois o cérebro e pensei o mesmo. Não podem ser duas as partes. Melhores. Como se lá atrás na última fila de cadeiras, espero que digam, chegado ao cérebro o bisturi, parece que viveu bem. Se isso se vê.

Depois o fígado. Noto-os indecisos numa suspeita e num aparte irónico. Enfim. Desconfio que houve crime. Eles, em torno de uma coloração específica, de que houve desespero ou álcool. Nunca vão entender a subtileza com que este fígado lidou com o dia após dia, a sós com o coração. O cérebro a amolecer a vontade e o tempo a passar melhor. Entretido. O que é preciso é distrair o tempo. Os pulmões, mais fáceis para todos, ali em torno apertado, sentados e absortos. Pensei que sonho aquele sonho de sempre. Sonho-me a dormir e rodeada de olhares que velam expectantes e desconfortáveis e esperam que acorde. Penso o que interessa a alguém o que mora nestes órgãos. Espero que deixem os olhos para o final para poder ir fazendo as despedidas. Sempre me preocupei com a qualidade das despedidas.

Não vão entender nada, os olhos estranhos. Para trás dos sintomas, o essencial que é invisível aos olhos. A presença discreta de tudo, interior à flor da pele onde cicatrizes nem sempre são maiores. E importante para cobrir, como uma poalha de pudor ou um véu de nivelamento, os órgãos ilegíveis, os músculos desconhecidos, a circulação que não gosta de ser surpreendida numa agitação. Daquelas que arrepiam os pelos indiscretos dos braços. De colorir o rosto, sem remédio, do que se passa fora do alcance da vista.

Melhor assim, que dissecar. Já bastam os pensamentos. E foi nesse momento que me lembrei daqueles grossos volumes cheios de escrita e de sintomas diários. Os diários dos dias. Que devia ter deitado fora. Antes.

Amar é um arrepio, um calafrio enorme, um súbito cair do coração costelas abaixo como se abismo vácuo. Um tremor de susto só de ler sílabas que somadas dão o nome. Como se um espelho do sentir. O simples nome. Um tiro certeiro. Amar assim, ou por se amar, o sintoma ou a causa. Experimentem escrever o nome.

Colocar sensores e terminais de rastreio no cérebro e no coração, e medir a tenção do choque e tirar conclusões. Tento dizer, mas não oiço a voz que não sai. E a toda a volta não vejo máquinas. Somente os instrumentos reluzentes alinhados no tabuleiro. Não leram a marca do ferro a quente ou a tatuagem no flanco. Orlando. Detalhes importantes. Talvez tenham pressa.

E depois umas palmas esparsas, discretas como para não acordar o sono desigual de cada parte. Pouco público. Ainda bem.

Levanto-me intimidada e a querer, apesar de tudo, fazer o meu papel e agradecer. Há que agradecer. Faz parte do trabalho. Levanto-me e levo a mão ao pescoço a segurar o lençol. Chega de nudez. Em desesperante crescendo, a urgência de que caia o pano.

Uma tristeza repentina alojou-se na garganta à falta de lugar próprio. Sobe sem que o possa conter, um grito. Mãe.
Abro a portada e lá está aquele sol brilhante em cada superfície. Hoje amanheceu assim. Lindo. Mas há qualquer coisa neste sol. Qualquer coisa no céu e neste tom de azul. O ar quente. Não sei. Qualquer coisa de hoje. Ou talvez seja de mim. Talvez de um outro lugar de mim. O mesmo de ontem, mas hoje. O mesmo de hoje mas sempre. Ou de sonhar. Ainda bem que nunca me lembro do que sonho. Quase nunca. Olho num último relance o lençol da cama desconfiando surpreender um azulado residual, um par de luvas cirúrgicas caído por ali. Mas não.

15 Jun 2020

Nove pessoas e um cão

[dropcap]N[/dropcap]ove, talvez. Mas são curiosas as coisas da memória, onde sem se poder demonstrar já se foi verdade ou não, aparece uma colagem de talvez outros momentos naquele. E assim também os avós – e seríamos onze, afinal – que tantas vezes iam connosco, me aparecem naquele fotograma solto. Invasivo. A caminho de nada e vindos do nada. Porque nada mais ficou para lembrar, do imediatamente antes e depois. E é assim que as coisas ficam isoladas no tempo da memória.

Os velhotes não queriam acreditar quando viram abrir as portas do carro, o cão como uma seta a desaparecer de susto nos confins da planície, e no lusco-fusco que já envolvia tudo a dar para a escuridão rápida e completa, emergirem da frente dois adultos e duas criança, de trás, por camadas caoticamente desfeitas, dois adultos ou mesmo quatro e três crianças em escadinha… Tudo ileso, assustado, entorpecido e meio amolgado do aperto, furibundo e preocupado com o cãozito, e que voltasse do horizonte. Com aquela perplexidade que mais tarde voltei a sentir no momento exactamente a seguir ao choque que, inesperado, vem do nada. Processado pelos sentidos e pela razão em momentos diferentes. E, como mais tarde entendi muitas vezes, quando acontecimentos vários e preocupantes se cruzam inesperadamente, se elege um único que pode de um outro ponto de vista ser o mais pequenino ou não tão significante. E nesse se concentra toda a preocupação, remetendo outras para o estranho território da culpa. Auto-infligida. A culpa de pensar mais numa coisa do que noutra, à luz de critérios muito privados. Secretos, mesmo. É-se assim sem remédio.

E ali, no meu caso, era que ele voltasse lá do fundo da planície já escura entretanto, a perder formas e definição, na noite a cobrir o crepúsculo inexoravelmente. E depois voltou, claro. E a pergunta, de mente infantil, primeiro se voltará o canito de lá longe e só depois, se vai explodir, como se apanha um carro a cair da estrada abaixo e onde vamos dormir esta noite.

E ali ficámos a ouvir cigarras e os velhotes desfeitos em desculpas. O automóvel de ladeira abaixo e quase a virar de costas na ribanceira. Como uma carocha. Pequenina, a ribanceira, mais uma valeta grande. Jesus. E o Taunus 12 M verdinho com risca branca, a parecer uma caixa de fósforos vazia e amachucada para deitar no lixo. E este era o carro bom. Porque os outros daí para baixo só nos davam desgostos. Empanavam. No meio da Serra do Caldeirão, ou em qualquer outro sítio desabitado e sem cerimónia. Problemas de radiadores, baterias, motores de arranque. Daquele género que quando para vai abaixo é preciso empurrar mesmo em trajes de casamento para lhe elevar o ânimo a continuar caminho. As mãos um tanto mascarradas e sem água para as lavar. E porque a água ia toda para o radiador donde fugia incontinente ao longo do caminho. Também é um facto que o meu pai, que não tinha nada de distraído, deixava acabar a gasolina muitas vezes. Nunca percebi. Acho que era um jogo teimoso e íntimo de apostas. Até onde esticava a gasolina. E no meio de nenhures as bombas não abundavam. E ele furioso sabe-se lá com quem. Com ele. E de caminho, connosco. Talvez só de ter espectadores na perda da aposta consigo próprio. Mas daquela vez a culpa foi dos velhotes que vinham devagarinho, devagarinho cada vez mais, à luz dos faróis e a aquecer-se na nossa companhia numa estrada sem movimento. No Alentejo profundo e escuro. Muito pertinho, cada vez mais pertinho à medida que anoitecia. Era pela companhia mas uma distracção quando abrandámos para virar e a pancada inevitável. Coitadinhos, estavam de coração nas mãos. É no que dá quando nos aproximamos demais. O choque com estrondo. A ver-nos sair dali de dentro, amarfanhados, inteiros e com posições estranhas pelo entorpecimento do aperto e da viagem e pela posição esquisita das portas a abrir para baixo. Quase. E com pressa, antes que caísse e rebolasse, o insecto gigante sobrecarregado e desasado. E nunca mais acabávamos de sair. À frente nós os quatro, atrás eles os cinco. O tio Feliciano e a tia Angélica, Ele alto moreno e seco para lá dos olhos brilhantes e transparentes, ela sibila pequenina e doce que falava com os bichos quase corpo de criança, bem antes de África onde o deixou por não poder mais. E mais os primos. E esta colagem dos avós, que se calhar é de outro filme.

E a tradicional e estoica expressão do meu pai, furioso no fundo mas condoído dos velhotes, foi só chapa.
Coitadinhos dos velhotes. Destas nove ou onze pessoas, um dos adultos ainda vive – à época em que escrevo o texto, agora já não, nem uma das crianças de então que já partiu. Sobram quatro adultos que não o eram. Contas estranhas. Do cãozito, nada se sabe hoje. O que pode significar que ainda anda por aí, já que nada se sabe. Volta em sonhos e mesmo nos sonhos com uma aura de impossibilidade. É estranho. Que as pessoas existam num tempo dos outros e deixem um vazio nesse tempo. Um mistério. Como se convive com tantas zonas de ninguém em nós. Porque todas são insubstituíveis embora algumas ocupem um lugar maior de vazio.

8 Jun 2020

Do fundo do tempo

[dropcap]E[/dropcap]stamos, humanos, a assistir de fora e de dentro. A uma imutável mutação constante, que nos vem dos confins do tempo. Imersos no paradoxo. A teoria do devir, em que se encontram, nessa guerra de opostos, o princípio e o fim desenhados num círculo perfeito. Heráclito de Éfeso, na Jónia, no pensamento expresso pelo aforisma: “Tudo flui como um rio”, encontrou a imagem que deu forma ao que já os filósofos de Mileto intuíam sem problematizar: o dinamismo das mudanças na physis. E assim tudo passou a se nos apresentar. Pelos seus olhos, ao nosso lado, à beira do mesmo rio. O mesmo, mas outro. Em mudança. Como alternância de contrários, em que cada coisa tende para a outra numa inércia perfeita. Como um devir. Em que tudo é movimento, tudo se move, excepto o próprio movimento.

E foi a Jónia que nomeou uma das ordens da arquitectura clássica. De colunas-árvores mais elegantes, enervadas de canelulas a desenhar um olhar em altura, para a ilusória perfeição do entabelamento.

Construía-se uma geometria imperfeita para, na correcção da perspectiva, se fazer perfeita ao olhar. Eram mais altas e leves, de capitel em volutas, talvez a ilustrar a espiral do tempo. Mas também demonstram, se assim o quisermos olhar, como perfeição ou o seu contrário, não são ideias estanques e podem conviver numa mesma ordem, tendendo uma para a outra numa pequena e simples oscilação do foco. O olhar, ou a realidade mensurável.

Voltamos ao tempo antigo e a Heráclito, como voltamos sempre ao rio, em contemplação. Esse mesmo rio que não se pode percorrer duas vezes sendo o mesmo. Nem ele, nem nós, substâncias mortais. Nem contemplar as suas águas, as mesmas, porque nunca o são. E também porque o tempo de hoje nos traz pelo pensamento de Z. Bauman, em torno de uma “modernidade líquida”, o retomar da mesma ideia e da mesma realidade intangível, que vemos passar inexorável. E nos faz recuar no tempo, quando tememos o futuro.

Porque o tempo haveria de voltar a avivar, válidas senão desesperantes, as mesmas imagens dos mesmos olhares. De quem vê da margem, como quem a vê, navegante. E como quem se vê como tal. O que nos distingue afinal dos gregos antigos, diz-nos Bauman agora: nada, afinal. O filósofo de desconhecida modernidade, vindo dos confins da antiguidade sem imaginar quanto da sua percepção se haveria de agudizar tantos séculos de ideias e mentes depois. Há um olhar primeiro na primeira ideia imortal. Que nunca mais morre mesmo se adormecida por séculos. A ideia de que tudo flui, retomada hoje por Bauman. Mas que tudo flui demais para a alma humana, tendente a raízes. E de que tudo tende a despojá-la delas. Sempre as quase eternas, de tão longevas, árvores, como contraponto a esta sinfonia que custamos a acompanhar.
O que temos, de árvore ou de rio?

A desgastante impermanência que não nos dá um tempo de sentir o contrário, a exaustiva imutabilidade. A saturação tóxica do que é e sempre é e como foi e sempre será. Que não existe naquela simples constatação de que nada, nunca, será jamais o que foi imediatamente antes. Uma paradoxal nostalgia do que sempre foi mas também a apetência para o que nunca existiu antes. Ambas conviventes num mesmo olhar.
Corredor solitário. Há sempre uma geografia possível a quem não sai do seu lugar. E corre. Uma cartografia que se cumpre, se renova e se palmilha em cada renovar dos dias. Mesmo que a mesma, mesmo nas mesmas indefinições dúvidas ou paradoxos, um caminhar que é desporto, descoberta ou destino. Ou desconhecido sem mais. Sem adversário mais, do que a própria vida nos seus jogos, dificuldades e estratégias e instruções extraviadas. Um corredor solitário é um corredor sem mais gente a atravessar. Ou o corredor que corre, sem mais gente a ladear. Sendo assim, mudo de ruídos estranhos, ou surdo aos ruídos que não há. Respira, livre. Chora, sem testemunhas. Corre por si e para si – ao longe – ao longe. Corredor implica caminho a correr e margem a ladear. Corredor é caminho ou caminhante em corrida. Não é fugitivo, nem o caminho fuga. (O que me leva sempre a Bach, a fuga. Essa estrutura complexa e talvez inacabada, a repetição de um padrão em crescendo. O conceito de contraponto. A imaginar se uma vida se pode escrever numa partitura como essa).

Apurar a passada, ouvir o coração, respirar com disciplina. Ir em frente. Temporariamente, como uma linha tangente ao círculo perfeito. Em passo de caminhada ou de corrida, por entre as margens da visão distraída do que passa, ficando passa, parece passar, ficando para trás mas prolongando-se em frente. O corredor, se é solitário, não mede e não compete. É como o rio. É só e consigo. Nunca o rio se fez pasto de fúria. Nunca corre adiante e nunca corre atrás. As margens não lhe determinam a corrida nem o ritmo nem a pressa nem a venda. Mesmo dos olhos, que não se sabem fechados ou esbugalhados em frente atrás de nada. Corre como deve e como pode. Tende. Ignorando a foz, irresistível para lá flui. Animal manso, rebelde e solitário. Mudança em movimento estático. Nasce e nasce e nunca morre e morre. Como não sabemos que morremos.

Ou então: a esgrima. Um fascínio de precisão. Escolher as armas: sabre, espada ou florete, como flores. Mas na esgrima são precisos dois. É como no amor. Às vezes.

1 Jun 2020