Teatro anatómico

[dropcap]S[/dropcap]ubo a cidade, a rua, as escadas, e ao cimo o meu canto.
(Sala de anatomia. As vísceras por ali em pose de revelação. Em cadernos por abrir por debaixo da pele e segredos por guardar. Ou fechados, temporariamente sós. Há segredos mais sós do que outros. E cadernos mais distantes e livros menos tacteados e abertos mas tudo é uma questão de tempo.).

Na página anterior é uma sala de espera com todos aqueles livros de capas dura para resistir à corrosão do tempo e do esquecimento. E flores secas e animais empalhados.

Bem-vindos ao teatro anatómico. Dizia, à porta, a quem entrava, uma voz nasalada de burlesco. Sentei-me e era uma roda de cadeiras ocupadas mas depois era já a mesa, o teatro e cortinas vermelhas. Como o último acto. Viro-me de lado a esconder os órgãos se ainda é possível. Penso uma pausa. Um corte para café e redefinir a máscara, agora inútil. Na mesa. Chamo-me A. Por hoje passo. Pelas palavras, penso. E um coro monocórdico mas afável, vindo da linha semicircular de cadeiras ali, como em torno de um oráculo, responde a pronto, bom dia A.

Deitada de costas. Um lençol azulado sobre o corpo e até acima dos olhos. E as vozes a soar como uma realidade alheia. Pensava as fronteiras do tempo, finas como as da pele. A ilegibilidade dos órgãos. As coisas escuras e misteriosas por debaixo da pele, da escrita. O caminho mais fácil. Temo as colorações e texturas diferentes, coisas com uma explicação, volumes alterados. Coisas assim. Mas sei que não vão ver o essencial. Perceber para além dos sintomas. De identidade, de sentir, de ser. Um corpo coberto de autocolantes para não haver esquecimento. Observado como num sono descomposto, nas roupas impúdicas e abstraídas, no corpo indiscreto e ausente. Impúdico porque só. Mas sob os olhares expectantes e interrogativos ali em volta.

Amanheceu e um pouco cedo, ainda, para tanta luz. Puxo o lençol como uma névoa de adiamento. Mas oiço passos. Não me preocupam as batas e este lençol com uma janela, que logo retiram por inútil, as luzes fortes, dirigidas e cruas. Perturba-me não entender o que vai dar-se. Desaparecida a janela e o lençol, entendo que é por todo o lado. Pensava ser talvez uma fractura algures no corpo uma daquelas quedas e a memória um pouco ausente. Penso. Será uma daquelas perdas de memória. E penso que me lembro disso, mas da outra vez.

Os instrumentos, no tabuleiro metálico, prenunciam alguma reparação. Ou pior. Doei tudo. Será agora…talvez. E começam sem dor. Vejo que é agora e não dói mas intriga-me. O coração. Não, não, não…deixem estar. Tenho uma lista. Começam pelo coração e sigo-o com os olhos, com um desvelo que não imaginei.

Assim em mãos alheias. E se o deixam cair? Numa das tijelas afadigadas em inox. Descansei. Bordos altos, não há como atirar-se dali abaixo. Fico a ver. Há comentários e subentendidos e o afã de uma curiosidade que julgam prestes a alimentar. Mas desistem. Sorri para o lado. Nem chegaram àquele ponto onde não se alcança Para lá das fibras. Viram tudo e não viram nada. Ainda temi o bisturi, a indecisão e a incisão. O coração – ao contrário dos bolbos que se podem seccionar e voltam a crescer e a refazer-se, ou do fígado – não cresce depois de laminado. Posso descansar. Quando olhei para o lado e o vi partir pensei a parte melhor de mim. Mas depois o cérebro e pensei o mesmo. Não podem ser duas as partes. Melhores. Como se lá atrás na última fila de cadeiras, espero que digam, chegado ao cérebro o bisturi, parece que viveu bem. Se isso se vê.

Depois o fígado. Noto-os indecisos numa suspeita e num aparte irónico. Enfim. Desconfio que houve crime. Eles, em torno de uma coloração específica, de que houve desespero ou álcool. Nunca vão entender a subtileza com que este fígado lidou com o dia após dia, a sós com o coração. O cérebro a amolecer a vontade e o tempo a passar melhor. Entretido. O que é preciso é distrair o tempo. Os pulmões, mais fáceis para todos, ali em torno apertado, sentados e absortos. Pensei que sonho aquele sonho de sempre. Sonho-me a dormir e rodeada de olhares que velam expectantes e desconfortáveis e esperam que acorde. Penso o que interessa a alguém o que mora nestes órgãos. Espero que deixem os olhos para o final para poder ir fazendo as despedidas. Sempre me preocupei com a qualidade das despedidas.

Não vão entender nada, os olhos estranhos. Para trás dos sintomas, o essencial que é invisível aos olhos. A presença discreta de tudo, interior à flor da pele onde cicatrizes nem sempre são maiores. E importante para cobrir, como uma poalha de pudor ou um véu de nivelamento, os órgãos ilegíveis, os músculos desconhecidos, a circulação que não gosta de ser surpreendida numa agitação. Daquelas que arrepiam os pelos indiscretos dos braços. De colorir o rosto, sem remédio, do que se passa fora do alcance da vista.

Melhor assim, que dissecar. Já bastam os pensamentos. E foi nesse momento que me lembrei daqueles grossos volumes cheios de escrita e de sintomas diários. Os diários dos dias. Que devia ter deitado fora. Antes.

Amar é um arrepio, um calafrio enorme, um súbito cair do coração costelas abaixo como se abismo vácuo. Um tremor de susto só de ler sílabas que somadas dão o nome. Como se um espelho do sentir. O simples nome. Um tiro certeiro. Amar assim, ou por se amar, o sintoma ou a causa. Experimentem escrever o nome.

Colocar sensores e terminais de rastreio no cérebro e no coração, e medir a tenção do choque e tirar conclusões. Tento dizer, mas não oiço a voz que não sai. E a toda a volta não vejo máquinas. Somente os instrumentos reluzentes alinhados no tabuleiro. Não leram a marca do ferro a quente ou a tatuagem no flanco. Orlando. Detalhes importantes. Talvez tenham pressa.

E depois umas palmas esparsas, discretas como para não acordar o sono desigual de cada parte. Pouco público. Ainda bem.

Levanto-me intimidada e a querer, apesar de tudo, fazer o meu papel e agradecer. Há que agradecer. Faz parte do trabalho. Levanto-me e levo a mão ao pescoço a segurar o lençol. Chega de nudez. Em desesperante crescendo, a urgência de que caia o pano.

Uma tristeza repentina alojou-se na garganta à falta de lugar próprio. Sobe sem que o possa conter, um grito. Mãe.
Abro a portada e lá está aquele sol brilhante em cada superfície. Hoje amanheceu assim. Lindo. Mas há qualquer coisa neste sol. Qualquer coisa no céu e neste tom de azul. O ar quente. Não sei. Qualquer coisa de hoje. Ou talvez seja de mim. Talvez de um outro lugar de mim. O mesmo de ontem, mas hoje. O mesmo de hoje mas sempre. Ou de sonhar. Ainda bem que nunca me lembro do que sonho. Quase nunca. Olho num último relance o lençol da cama desconfiando surpreender um azulado residual, um par de luvas cirúrgicas caído por ali. Mas não.

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