Triângulo Estratégico Global (II)

“Winning the AI race will usher in a new golden age.”

U.S. Defense Innovation Board, 2023

Depois dos Estados Unidos, a Rússia é a única grande potência com laços de sangue profundos com Israel. A diáspora de judeus oriundos do espaço pós-soviético, iniciada há mais de quatro décadas, permitiu a Moscovo contar com uma comunidade de cerca de um milhão de russos a viver em território israelita, muitos deles integrados nas elites. A comunicação entre Netanyahu e Putin é directa e funcional. No Kremlin, há quem veja com bons olhos a eventual ascensão de Naftali Bennett judeu de origem americana e mediador informal nas negociações russo-ucranianas de 2022, interrompidas por pressões externas. Neste contexto, a possibilidade de Israel expandir os seus actuais sete teatros de guerra não é remota. A erosão acelerada dos equilíbrios internos ao triângulo com o Irão e a Turquia fragiliza os amortecedores geopolíticos da região. A distância física de quase dois mil quilómetros que separa Israel do Irão torna-se cada vez mais irrelevante, à medida que se intensifica a tensão entre os dois regimes, envoltos numa retórica de demonização mútua.

A crise do corredor estratégico que liga Herat a Beirute, passando por Teerão, Bagdade e Damasco, alimenta a hipótese de um confronto directo. Com a Turquia, o tabuleiro é outro. A Síria tornou-se o campo de manobra. Damasco, tomada recentemente por milícias jihadistas apoiadas por Ancara, está perigosamente próxima das posições israelitas para lá do Golã. Um cenário de equilíbrio instável entre turcos em Alepo e israelitas em Damasco começa a desenhar-se. Erdogan, com ambições de longo prazo, sonha com a reconquista simbólica de Jerusalém e da mesquita de Al-Aqsa, num futuro em que Israel não exista. Embora Telavive não o admita, o verdadeiro desafio estratégico não está no Irão, enfraquecido e em modo de sobrevivência, mas na Turquia, cuja visão neo-imperial se estende do Médio Oriente ao Norte de África. O pragmatismo poderia levar Israel a procurar aproximação com Teerão para conter Ancara, cuja expansão é mais tangível e ameaçadora.

O mosaico de rivalidades no Médio Oriente aparenta estar contido, mas a sua fusão com o conflito ucraniano por via do Cáucaso ou do Mar Negro não é uma hipótese a descartar. A análise cruzada dos três grandes cenários de guerra conduz a três conclusões. A primeira, a da paz possível será sempre imperfeita e só poderá nascer de compromissos graduais entre os Estados Unidos e a China, com a Rússia como peça-chave. São estas três potências que detêm a capacidade de se aniquilar mutuamente e, com isso, pôr fim à vida no planeta. O verdadeiro líder do século será aquele que conseguir atrair Moscovo para a sua esfera, oferecendo-lhe a ilusão de autonomia. A Europa, mesmo nas suas versões mais ambiciosas, disputará lugares secundários no comboio conduzido por Washington ou Pequim. Potências médias com aspirações globais como o Japão, a Índia ou a própria Turquia ocuparão lugares de destaque, mas sempre subordinados a um equilíbrio instável. Não há hegemonia absoluta, apenas uma dança de forças em tensão permanente. Nada que se compare à ordem de Viena ou à geometria bipolar de Yalta. O mundo actual é um salão de baile onde aristocratas decadentes e corsários sofisticados dançam sob vigilância mútua, mantendo esferas de influência que se sobrepõem e se entrelaçam.

O compromisso entre os grandes não é o fim da história, mas a única forma de evitar que termine. Sob essa trégua frágil, multiplicar-se-ão conflitos de menor escala, sobretudo entre o Médio Oriente e África guerras intermitentes, sem plano e horizonte, em territórios esquecidos ou disputados por vizinhos e potências distantes. Duas variáveis, no entanto, escapam a qualquer controlo a de um eventual confronto entre a Rússia e a China, ainda remoto mas plausível, e um embate directo entre a Rússia e os Estados Unidos, menos provável mas facilitado pela proximidade das linhas de contacto na Europa Oriental, especialmente após a divisão da Ucrânia. Não será amanhã. Mas depois de amanhã pode ser tarde. Vivemos num tempo de coexistência forçada, imposta pela impossibilidade de uma guerra mundial racionalmente concebida. Conflitos localizados ou até globais podem surgir, desde que se mantenham abaixo do limiar nuclear.

(Continua)

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