Segredos da Seda (21) – Altar em Beijing à Deusa dos Bichos-da-Seda (先蚕坛, Xian Can Tan)

A festa em honra da Deusa da Seda era a única cerimónia, de todas as realizadas no Palácio Imperial, não presidida pelo Imperador, sendo dirigida pela Imperatriz. Homenageava a deusa protectora dos sericicultores, todas as mulheres a trabalhar na produção de seda representadas em Lei Zu, a Bombix mori e as folhas de amoreira, o alimento das lagartas.

Nos primórdios da Dinastia Zhou (1046-256 a.n.E.) já a rainha conduzia uma cerimónia anual no palácio da capital, alimentando as lagartas do bicho-da-seda e a fiar a seda. Aí se situava o amoreiral, um observatório para o controlo da qualidade das lagartas e do seu alimento, e além de uma enfermaria havia outros departamentos onde se desfiavam os casulos e dos filamentos se criava um fio consistente para tecer os tecidos de seda e bordar. Esses trabalhos destinados à produção imperial realizavam-se nas diferentes secções de uma zona reservada do Palácio, onde as mulheres da corte, durante o período de criação a começar em Maio e prolongado por seis meses, estavam ocupadas nos afazeres ligados à sericicultura. Iniciavam o processo com a desinfecção e limpeza dos materiais antes de começar com a produção a partir dos ovos e depois como lagartas era preciso alimentá-las com folhas sempre frescas de amoreira.

Em Beijing, procuramos o recinto do Altar do Bicho-da-Seda por todas as zonas que constituíam o Palácio Imperial e preparávamo-nos para sair por a porta Norte do Parque de Beihai quando um enorme muro nos desperta. Esconde um jardim com casas no seu interior. Circundando-o, encontramos um enorme portão vermelho fechado, mas à sua frente uma tabuleta retira as dúvidas indicando ser o recinto do Altar para a Deusa dos Bichos-da-Seda, (Xian Can Tan, 先蚕坛).

Inspirado no Lei Ting Hong Ying, templo da Dinastia Ming (1369-1644), este altar ao bicho-da-seda fora construído em 1742, no reinado do Imperador Qianlong (1736-1796) da dinastia Qing, para as princesas da corte imperial rezarem a Lei Zu, a Deusa do Bicho-da-Seda. No complexo existia um terraço para a observação das amoreiras, estas plantadas nos três lados do altar e atrás deste, uma residência para a reprodução e alimentação das lagartas da Bombix mori e outro aposento para os casulos, realizando-se aí todo o resto do processo.

Entre outros edifícios havia um centro de investigação da seda [Qincandian] e um tanque onde se colocava a amolecer os casulos [Yucanchi]. Um riacho atravessava o templo, que durante a Dinastia Yuan (1271-1368) desaguava no Rio Jin Shui. De magnífica construção e elaborada decoração o recinto era um local calmo para as princesas reais trabalharem e um dos nove mais famosos altares de Beijing, como regista o texto da tabuleta. O altar de 1,3 metros de altura, com uma escada em cada lado, nele se realizaram os rituais de sacrifício entre 1744 a 1911 por 59 vezes. A primeira Imperatriz a aí celebrar foi Xiaoxianchun (1712-1748), casada em 1727 com Hongli, que em 1735 se tornou o Imperador Qianlong e reinou até 1795.

Numa cerimónia anual conhecida por Chun Yin Ji Can (春阴祭蚕, Sacrifício Feminino da Primavera ao Deus do Bicho da Seda) celebrada no dia da serpente da primeira Lua do terceiro mês lunar chinês, a imperatriz acompanhada pelas as princesas e aias dirigia-se ao amoreiral do palácio para colher três ramos de amoreira e com estes nas mãos rezava voltada para Leste. Depois, em procissão eram os três ramos levados ao templo onde se venerava a sagrada Mãe dos Bichos-da-Seda, deusa protectora dos sericicultores. Após esta cerimónia começava-se a criação dos bichos-da-seda nos aposentos da imperatriz, deixando todas as mulheres da corte os seus habituais afazeres para se dedicarem a tempo inteiro a este trabalho.

CERIMÓNIA CHUN YIN JI CAN (春阴祭蚕)

O Padre Duarte Sande S.J. (1547-1609), [referido no Boletim Eclesiástico por Eduardo Sande (1531-1600)] em Um Tratado sobre o Reino da China (publicado pelo Instituto Cultural de Macau em 1992 e com notas de Rui Loureiro) refere, “… tratemos da seda ou dos filamentos do bômbice, de que há grande fartura na China. De modo que, tal como o agricultor trabalha no adubo das terras e na sementeira do arroz, assim as mulheres empregam uma grande parte do seu tempo a cuidar dos bichos-da-seda e a fiar e a tecer a seda.

Por isso, todos os anos o Rei e a Rainha vêm com grande solenidade a uma praça pública, tocando ele no arado e ela na amoreira, com as folhas da qual se alimentam os bichos-da-seda; e ambos, com esta cerimónia, exaltam tanto os homens como as mulheres para as respectivas actividades e trabalhos. De outro modo, durante o ano inteiro, ninguém, para além dos principais mandarins, consegue avistar o Rei.”

Luís Gonzaga Gomes escreve: “a interessante cerimónia de as imperatrizes da China oferecerem, todos os anos, durante a Festividade do Estio, folhas de amoreira aos deuses, na ara de Sin-Tch’ám T’án (Altar do Primeiro Bicho-da-Seda) dos jardins da Cidade Interdita para, com este exemplo, estimular o amor do povo pela sericicultura, enquanto o imperador revolvia a leiva com as suas próprias mãos, para demonstrar aos seus súbditos ser no trabalho da gleba que se encontrava a felicidade do Império. Durante esta cerimónia as folhas eram arrancadas da amoreira sagrada, que se encontrava plantada perto do referido altar, pelas próprias mãos da imperatriz, com o auxílio de uma pequena foice e, depois de consagradas à memória de Lui-Tch’ôu [Lei Zu], eram entregues às ancilas incumbidas de alimentarem os preciosos insectos, os quais, em diversas épocas do ano, eram visitados por enviados especiais da imperatriz, sendo a seda por eles produzida destinada à fabricação de vestes usadas só em ocasião de sacrifícios imperiais. Este cerimonial, cheio de simplicidade, mas de tão profundo significado, foi ininterruptamente respeitado por todas as imperatrizes da China ao longo de quatro milénios, isto é, até à data da implementação da República (1912).”

Espreitando pela frincha das portas fechadas pude ver um edifício de construção recente. Voltamos à porta da entrada Norte do Jardim de Behai e questionando os funcionários, explicam-nos estar a actual entrada do recinto no lado de fora do Parque de Beihai, antigamente ainda pertencente ao Palácio Imperial. Devido a estar ocupado por um jardim infantil, o lugar não está aberto ao público.

Pedimos licença para entrar e tirar uma rápida fotografia. Dão-nos um número para solicitar permissão ao conselho directivo da escola, mas pelo telefone ficamos a saber ter primeiro de pedir uma entrevista ao gabinete de Turismo. Estamos para desistir, quando três professoras se preparam para sair do recinto. Expomos o pretendido e fazemos a sugestão de ser uma delas a ir tirar uma ou duas fotografias ao recinto com a nossa máquina fotográfica e a uma lápide que na parede do muro pensamos existir. Dizem-nos ali dentro nada haver relacionado com a seda.

Soubemos mais tarde ter no ano seguinte (2008) o Altar para a Deusa dos Bichos-da-Seda (Xian Can Tan) sido reparado e depois, a 19 de Abril de 2012 e no dia 24 de Abril de 2013 aí se realizaram com vestes da dinastia Qing as cerimónias Chun Yin Ji Can (春阴祭蚕) em honra da Deusa do Bicho da Seda (Xi Ling-shi, 西陵氏), Leizu, esposa de Huangdi, o Imperador Amarelo.

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