Cultura | FDC não revela que espectáculos contêm conteúdo “obscenos”

O Fundo de Desenvolvimento da Cultura não revela quais são os espectáculos “obscenos” que motivaram o envio de emails a associações culturais com ameaças de corte de subsídio. Dois artistas contactados pelo HM falam de falta de transparência, numa postura “absurda” do FDC e dizem sentir pressão do Governo que afecta a sua liberdade criativa

Os artistas que receberam, no início do mês, um aviso do Governo sobre a possibilidade do corte de subsídio caso produzam espectáculos com conteúdo “obsceno” continuam sem saber a que espectáculos o Fundo de Desenvolvimento da Cultura (FDC) se refere em concreto. Contactado pelo HM, o FDC, que funciona sob alçada do Instituto Cultural, manteve-se em silêncio, dizendo apenas que “recebeu recentemente várias queixas sobre o impacto negativo do projecto financiado que envolve linguagem obscena”. Desta forma, o FDC “emitiu, como princípio de boa-fé, uma mensagem aos beneficiários sobre as observações na execução de projectos financiados, cujo conteúdo é também claramente referido no regulamento do plano de apoio financeiro”.

Contactado pelo HM, Kevin Chio, da companhia teatral “Rolling Puppet” adiantou que as queixas em causa “são anónimas”, sendo que “nunca foi dito sobre quais espetáculos [em concreto] incidiram as críticas”. “Desconheço qual foi o grau do aviso, a idade das crianças visadas ou se os pais foram propriamente informados. Mesmo que tenha existido conteúdo obsceno, já existem linhas orientadoras para diferentes grupos etários. Não penso que proibir todo o ‘conteúdo inapropriado’ seja uma boa aproximação ao mundo das artes, que deve provocar, usar metáforas”, adiantou.

Kevin Chio não tem dúvidas de que esta foi a forma que o Governo encontrou para “chamar a atenção para a legislação”, nomeadamente para a parte que diz respeito aos “deveres do beneficiário” no Plano de Apoio Financeiro para Actividades ou Projectos Culturais 2024. O artista destaca que, na versão deste ano, se refere que as associações candidatas devem “garantir que o conteúdo da actividade ou projecto candidato e o procedimento de sua execução não violam as disposições legais, nem quaisquer direitos alheios”.

Contudo, na nova versão, para os apoios do próximo ano, acrescenta-se que os projectos candidatos não podem “envolver elementos impróprios, como linguagem indecente e elementos violentos, pornográficos, obscenos, de jogos, de palavrões, de insinuação ou de violação de terceiros”.

“Como pode o FDC fazer este tipo de alteração na regulação sem nos consultar?”, questionou o co-fundador da “Rolling Puppet”, que defende que “às vezes é necessário ter algo de ‘inapropriado’ a fim de reflectir a nossa vida real nas artes”.

“Absurdo e irrazoável”

Jenny Mok, dirigente da associação Comuna de Pedra, foi uma das signatárias da carta aberta. Ao HM, disse que “não há uma acusação sobre determinados espectáculos em concreto, foi apenas um aviso do FDC”.

“É algo estranho, porque eles enviaram-nos este aviso, mas não sabemos porquê. Não há nenhuma transparência naquilo que aconteceu. Não sabemos quem fez as queixas ou a que espectáculos se referem. O Governo disse que houve queixas anónimas e eles decidiram agir, o que é muito estranho porque qualquer pessoa pode agir de forma anónima”, adiantou.

Jenny Mok diz não suspeitar de nenhum espectáculo que esteja em cena, ou que tenha sido exibido nos últimos dias, que possa ter ferido susceptibilidades do público, assumindo que existem sempre conteúdos “irónicos que projectam situações ou indivíduos”, sendo algo difícil de especificar. “Qualquer espectáculo pode ser suspeito”, frisou.

A artista e coreógrafa refere que “não houve explicações concretas sobre o que aconteceu e sobre as queixas”. “Penso que este tipo de avisos tem um efeito negativo [no trabalho dos artistas]. É necessário uma explicação e comunicação [do Governo] depois deste aviso. Não é razoável haver queixas anónimas e recebermos depois um aviso daquela forma.”

“O Governo diz que houve queixas, mas não há nomes. Quando somos financiados, temos de apresentar relatórios sobre os espectáculos, por isso é estranho que tenham feito este aviso com base em queixas anónimas. Não é suposto monitorizarem a situação se houver algum problema com os espectáculos financiados?”, questionou a dirigente da Comuna de Pedra.

Para Jenny Mok, Macau vive uma fase de imposição do “politicamente correcto” que está a afectar o sector das artes. “Mais do que institucional, é algo político. Estamos sob pressão de uma espécie de censura relacionada com a moralidade.”

Na carta em questão, divulgada nas redes sociais, refere-se que o FDC enviou emails a diversas entidades culturais a alertar para que evitem “incluir nas criações [artísticas] elementos impróprios [considerados] indecentes, [como] a violência, pornografia, obscenidade, jogos de azar, insinuações ou violação dos direitos de outras pessoas”, “a fim de evitar o cancelamento do subsídio”.

Recentemente, em declarações à TDM, Alice Kok, curadora e presidente da AFA – Art for All, falou de um panorama difícil no sector das artes, com a diminuição significativa do financiamento público no “período de transição” desde o fim da pandemia.

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