Os 60 anos da casa de chá Long Wa

Para saborear a atmosfera das antigas casas de chá de Cantão, aí já inexistentes, há ainda em Macau a possibilidade de usufruir esse estar na casa de chá Long Wa, situada no primeiro andar do n.º 3 da Rua Norte do Mercado Almirante Lacerda, aberta todos os dias das sete da manhã às duas da tarde.

O prédio amarelo de dois andares, por detrás do Mercado Vermelho, chama a atenção do exterior pelos bonzais colocados ao longo da varanda a circundá-lo e nas suas sempre abertas janelas encontram-se nostalgicamente dependuradas algumas gaiolas já sem pássaros. Subindo as escadas para o primeiro andar, um mundo completamente fora do espectável. De frente, o balcão sem caixa registadora, mas onde repousa um ábaco e lateralmente abrem-se duas amplas salas, agora completamente atafulhadas de antiguidades, esculturas e mobílias, tendo nos últimos tempos aparecido, a substituir as cadeiras de madeira, inúmeras de plástico azul cerúleo a desfazer o ambiente. Nas paredes, entre as verdes janelas, relógios, quadros de caligrafia e pinturas, e o poster com o retrato de Mao Zedong.

Desde a nossa última visita passaram quase dez anos pois, devido à fama alcançada não conseguimos em várias tentativas arranjar mesa para sentar. Sentíamos falta da saborosa comida, da qualidade do chá e daquele ambiente, que ao longo da nossa estadia em Macau foi desaparecendo com o fecho da maior parte das casas de chá então existentes, devido a irem paulatinamente fechando umas atrás das outras, deixando a cidade sem inúmeras das que nos anos 70 tinham aparecido.

Abrira em 1962 com capital de Hong Kong, sendo o prédio construído de raiz para ser uma casa de chá e teve como gerente Ho Fong, nativo de Deqing, Guangdong, que viera da então colónia britânica para Macau em 1952. O negócio era florescente, chegando a ter mais de 60 empregados a trabalhar nas salas dos dois andares, ocupando a cozinha a metade do segundo andar, fora da vista dos clientes, onde num fogão a lenha se preparavam as iguarias da casa, a massa frita, carne de porco assada e pato à Cantão, sem faltar o famoso dim sam.

Na década de 70, o gerente Ho Fong comprou-a ao seu patrão e Ho Meng Te, que estudara em Inglaterra, em 1976 veio trabalhar para ajudar o pai no negócio.

CONVÍVIO COM OS PÁSSAROS

Conhecia-a ao seguir um homem transportando três gaiolas e curioso, quis ver onde ia. Já nessa altura era só usado o primeiro andar para casa de chá, com uma virtual separação das duas distintas e airosas salas, recheadas de arte chinesa. As janelas estavam sempre abertas, pois nunca teve ar-condicionado, e por baixo delas as mesas dispostas ao longo das paredes com bancos corridos para duas pessoas em cada um dos lados. Junto ao local da água a ferver, uma estante guardava, além de chá, livros e catálogos, inúmeros diferentes bules e chávenas, parecendo pertença dos clientes que aqui quotidianamente passavam as manhãs num uníssono convívio com os seus pássaros, cujo tagarelar entre eles se juntava ao dos comensais, dando grande animação à sala. Nesse embriagante ambiente de um todo envolvente, o volume de som sustentava-se harmonioso e ia aumentando acompanhado pelo chilrear dos pássaros que na sua sensibilidade se ligava ao som das vozes até atingirem um clímax. Ao se dar pelo barulho da sala, repentinamente tudo se calava e o ruído suspenso perdia pé, imperando um monumental silêncio. Aos poucos uma voz animada se elevava e outra e mais outra, acompanhadas por um piar e mais um e outro e o avolumar da sala voltava a entrar em ebulição até ao momento de se atingir a atenção e então quebrava. Era o respirar da casa.

Na fictícia divisão das salas, junto às escadas para o segundo andar da cozinha, num carrinho coziam a vapor as iguarias do dim sam, confeccionadas nos cestos redondos de bambu, com bolas de carne e de peixe, pão chinês não fermentado, carne de porco e o bolo de canela cantonense. Numa panela ao lado aquecia a sopa de arroz, o canji.

As salas estavam divididas; a reservada para comer e conversar num convívio com o chá, sem a presença de pássaros, contava com os peixes dourados da boa sorte num enorme aquário. Na outra, dependuradas nas janelas as gaiolas dos pequenos chivit (de pelugem verde e um bico longo para o tamanho desta ave) que exibiam constantemente os seus atributos, tanto no canto como em voos com cambalhotas. Já nas mesas do centro da sala, dispostas de uma maneira desordenada, repousavam as gaiolas com os wa men, chamados também de olhos de long-ngán, com uma pelugem preta e junto aos olhos um traço branco, eram constantemente mudadas para obterem os lugares de privilégio mediante o movimento do ar. Durante os meses de Março, Abril e Maio realizavam-se frequentes combates entre estes pássaros. De um momento para o outro notava-se uma movimentação estranha na sala, deslocando-se as mesas para dar lugar no chão a duas gaiolas, cada uma com um macho, cobertas com um pano branco. Uma em frente à outra e ao lado de ambas era colocada a gaiola com uma fêmea. Em redor, a tensão dos espectadores em silêncio era transmitida aos machos que vendados sentiam a presença da fêmea. Aos poucos, já com os machos assanhados, era retirada a gaiola da donzela e os panos a envolver-lhes as gaiolas. Ainda separados pelas grades tentavam com bicadas atingir-se e abertas as portas, o mais assanhado atacava, entrando para a gaiola do adversário. Durante alguns minutos as bicadas sucediam-se e com as patas se agarravam entre eles, até que por fim, um fugia e o combate terminava.

NOVOS TEMPOS

Em 2003, na sala de chá foram os pássaros proibidos de entrar pois tornaram-se potenciais transmissores do H5N1 e assim muitos dos habituais clientes matinais com as suas aves deixaram de aparecer. A sala de chá Long Wa passou a ser então local de encontro de fotógrafos e onde se realizaram exposições de fotografia, não fosse o dono Ho Meng Te um apaixonado por arte.

Com a abertura dos novos casinos apareceram clientes de todos os cantos do mundo e sobretudo da Malásia e Singapura, em busca das memórias antigas que já não encontravam nos seus países. O ambiente encantava e amplamente divulgado por artigos de jornal e programas de televisões em 2010 chegaram os turistas chineses do continente, sendo o filme Du cheng feng yün (O Mestre dos Jogos, ou From Vegas to Macau) de 2014 do realizador Wong Jing a catapultar a fama que atraiu para aqui verdadeiras multidões.

Hoje, apenas um lado da sala é usada e os quatro trabalhadores e o jovem patrão dão conta do recado, garantindo à casa uma maior estabilidade, já que sem grandes encargos, mesmo neste período difícil como o que passa desde 2020, consegue manter-se aberta. Findo o dia de trabalho e após a sala limpa, às duas e meia, três da tarde, Ho Meng Te senta-se à roda da mesa com os seus empregados e tomam a refeição em conjunto.

A casa de chá Long Wa guarda ainda as características e um ambiente das existentes antigamente e conseguiu sobreviver sem perder o charme.

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