Heitor Romana: “Macaenses têm de estar no exercício do poder”

Assessor do ex-Governador Rocha Vieira em Macau e actualmente professor catedrático no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, Heitor Romana fala do tom paternalista que a China tem assumido em relação a Hong Kong e Macau e defende que os macaenses têm de ter maior protagonismo no poder político em prol da sua sobrevivência

 

Falou recentemente, numa palestra online, da importância da cultura estratégica dos países na tomada de decisões diplomáticas. No caso da China, que análise faz?

A cultura estratégica da China tem como elemento de referência o conceito de tempo histórico, civilizacional, estratégico. Quando os líderes chineses, o Partido Comunista Chinês (PCC), nas diferentes gerações, se referem ao papel da China na ordem internacional, no equilíbrio do sistema internacional, vão sempre apoiar a posição do país no mundo, e até a sua política interna e externa, em aspectos de base ideológica. A propósito do conceito “o sonho chinês”, de Xi Jinping, é trabalhado num quadro onde estão sempre presentes as ideias de história e tradição e valores culturais. Outro aspecto da cultura estratégica associado ao tempo é a ideia de flexibilidade, dualidade, equilíbrio. Podemos dizer que há uma certa continuidade em ideias chave no pensamento chinês que incorpora os princípios do equilíbrio, harmonia.

A China tem vindo a afirmar que não quer enveredar pela via bélica.

Exactamente. A China proclama que quer harmonia para o mundo. Mas há uma dualidade, as contradições que são a marca do comportamento estratégico chinês, o Ying e o Yiang. É o equilíbrio dessa contradição que sustenta essa harmonia. A forma como a China olha para a ordem internacional também é assim. Vejamos, aliás, um conceito interessante que não é de Mao Tse-tung, mas que ele desenvolveu, que é o das contradições antagónicas e não antagónicas. Foi Lenine que avançou com isso, na ordem internacional e na luta de classes. A China pratica isso no desenvolvimento da sua política externa. As contradições antagónicas, que separam de forma incontornável os actores, e aí poderemos dizer que há uma contradição antagónica entre a China e os EUA.

Refere-se ao sistema político.

Por exemplo, mas não só. Também pela percepção que cada país tem do que deve ser a ordem internacional. A China rejeita liminarmente a hegemonia dos EUA no mundo. Hoje a China continua a assumir o papel de líder do [eixo] Sul-Sul, dos [países] que se opõem à hegemonia dos EUA ou dos blocos que se venham a constituir.

Até que ponto essa cultura estratégica se verifica na relação da China com as regiões administrativas especiais?

Há um aspecto central da cultura chinesa que é a natureza paternalista do exercício do poder ao longo da história, e também de indulgência. Primeiro por parte do Imperador e depois pelo Partido. É a ideia de que o indivíduo deixado a si próprio tem dificuldades em sobreviver, e a comunidade também. Historicamente e culturalmente Macau e Hong Kong são chineses, têm a influência do sul da China. E há uma perspectiva paternalista que, aliás, é muito visível quando Hong Kong e Macau voltam à soberania chinesa, à Pátria-mãe. Esta perspectiva paternalista do poder aplica-se perfeitamente a Macau e a Hong Kong.

Como?

Essa visão paternalista observa-se sobretudo em Macau, porque Hong Kong e Macau não são a mesma coisa. A ideia de garantir, controlar, disciplinar, monitorizar, para que tudo corra bem. Mas este discurso foi aplicado também em Portugal durante quase 50 anos, de que a sociedade deixada sozinha resultava num caos. É esse o medo da China, o caos.

Também em relação a Taiwan se verifica esse paternalismo?

É algo potencialmente belicista. O caso de Taiwan tem outros contornos, também há o regresso à Pátria-mãe. Taiwan é o filho pródigo que se afastou e que mais tarde ou mais cedo vai ter de voltar ao regaço da família e será castigado se não o fizer. Mas Taiwan tem outros contornos que não se esgotam nesta leitura, nomeadamente estratégicos. Tem uma posição geoestratégica fundamental na ligação entre o mar do sul da China e a China setentrional. Está no eixo de passagem do comércio marítimo do Estreito de Malaca até ao Japão. Hong Kong e Macau também têm esse posicionamento, mas não se compara. Mas a propósito de Hong Kong e Macau, esse paternalismo político dentro da cultura estratégica faz o seu caminho.

Mas até que ponto há diferenças?

É preciso perceber, sem complexos, que Hong Kong era uma colónia de um grande poder mundial, o Reino Unido. Hong Kong é uma grande metrópole cosmopolita, um centro de negócios, porta de entrada durante muito tempo de investimento estrangeiro na China e, por isso, tem uma posição geoestratégica ímpar, que dá à sua sociedade um carácter único. Há a figura dos naturais de Hong Kong que é diferente ds macaenses, é uma espécie de cidadania. O “hongkonguer” é até um conceito político. Corresponde a uma forma de estar e de vida e, aliás, a Lei Básica estabelece que durante 50 anos se mantém mais ou menos alterada essa forma de vida. Em Macau isso existe, mas não vale a pena fazer uma comparação com Hong Kong. Mas em relação a Macau, queria fazer a justiça do seu papel na China.

Em que sentido?

Macau já não é só a capital do jogo e verdadeiramente nunca foi só isso. Há uma funcionalidade geopolítica de Macau para a China em três momentos. Macau tem uma importância para a China que não pode ser esquecida.

Que momentos são esses?

Dois deles correspondem também a interesses de Portugal. O primeiro momento foi em 1987 com a assinatura da Declaração Conjunta. Macau estava num processo de transformação, o PCC tinha aprovado as quatro modernizações e a política de abertura ao exterior, que levou à criação das Zonas Económicas Especiais. O ano de 1987 antecede o processo de abertura da China. A China aí procurou garantir a credibilidade internacional e demonstrar que era um parceiro fiável. O processo que começou em 1987 e terminou em 1999 corresponde no plano dos interesses estratégicos externos da China ao momento de afirmação do país na ordem internacional. E Macau tem um papel importante aí porque foi o seguro da estabilidade da China. Se as coisas tivessem corrido mal em Macau a imagem da China teria sido afectada.

O processo de transição de Hong Kong foi bem mais conturbado.

É verdade. Mas mesmo assim em Hong Kong acaba por correr bem. Houve questões de natureza política que envolveram o último Governador, mas não se evitou que a transição tivesse corrido com normalidade, nunca houve uma ruptura. Houve algumas posições antagónicas, também verificadas em Macau, mas a nossa diplomacia era completamente diferente, menos agressiva.

De que posições antagónicas fala em relação a Macau?

A questão da localização dos quadros e a atribuição da nacionalidade portuguesa aos chineses residentes em Macau, uma questão muito sensível.

Resolvida por Mário Soares.

Sim. Mas era um problema. A localização da justiça também era outro problema. E há um outro que é de uma enorme sensibilidade. Participei nesse processo. Chegou a estar em cima da mesa e a ser discutido a possibilidade, quer em Hong Kong quer em Macau, da implementação da pena de morte. E não está lá, na Lei Básica. Isso são vitórias muito importantes para Portugal. Não quero ser injusto para Portugal nem para Macau, mas provavelmente a China estava naquela fase em que queria garantir que era um parceiro credível na ordem internacional, com uma posição mais defensiva.

E qual a segunda funcionalidade de Macau?

Temos de 1999 até 2016 uma funcionalidade, que achava que era mais de narrativa do que foi na prática, que é quando a China cria o China-Africa Fórum e quando Macau passa a ter a funcionalidade de ligação à CPLP graças à instalação do secretariado do Fórum Macau. Essa segunda funcionalidade de Macau é de natureza geoeconómica. A terceira funcionalidade é a que Macau vive hoje, de geotecnológica.

Em que sentido?

Tem a ver com a zona da Grande Baía, que tem um espaço extraordinário de crescimento tecnológico e científico. Tem activos tecnológicos e académicos e Portugal pode entrar novamente em Macau através da cooperação científica e tecnológica. Não nos podemos esquecer que Macau, para o seu território e população, tem muitas instituições do ensino superior. Não há falta de massa crítica para se alavancar projectos de investigação científica no espaço da Grande Baía. [Macau] até pode desenvolver pequenos nichos tecnológicos que têm a ver com essa massa crítica. Apesar da dimensão de Macau, o ponto de ligação de culturas é mais do que um discurso.

Em que sentido?

Uma vez, numa palestra, lancei uma provocação: imaginar que Macau, um dia, não tinha um único falante de português. A influência portuguesa terminava nesse dia? Acho que não. Há questões relacionadas com uma forma de vivência, modelos organizacionais da Administração, a paisagem urbana que são marcantes ainda. Há a ideia de para onde irá o macaense no futuro.

Esse é o grande debate, onde fica a comunidade macaense quando a integração regional é, cada vez mais, uma realidade.

Era inevitável. Não falo da extinção do macaense porque há sempre elementos de continuidade. Mas a apresentação da variável macaense tem de ter uma componente política, não se esgota na componente identitária e cultural. Os macaenses têm de estar também no exercício do poder.

Mas não têm estado. Hoje temos apenas um secretário macaense [Raimundo do Rosário].

Pois. Mas o macaense, no sentido identitário e sociológico, só conseguirá ter presença se essa presença for política e também na máquina da Administração pública. São esses dois pilares importantes da afirmação dos macaenses no século XXI. A comunidade macaense tem de estar nas universidades e nos centros estratégicos. No período da transição a comunidade ganhou muito maior projecção do que tinha até então. Mas Portugal fez muito e a Administração portuguesa fez muitíssimo. Deixamos dois tipos de herança, incluindo infra-estruturas físicas. Podíamos ter deixado mais, podíamos, mas fizemos em pouco tempo o inimaginável. E deixamos um modelo de organização social, de matriz portuguesa, de concepção da justiça, da Administração. Há um sistema para democrático, com a composição do órgão legislativo e elementos de participação política, mas de sujeição também.

Este sistema será mantido até 2049?

É um grande desafio. A Lei Básica de Macau, tal como a de Hong Kong, são documentos emanados do poder central. Dentro do PCC existem facções e a evolução desse jogo irá depender da aplicação mais ou menos plástica da aplicação das leis básicas. O processo de transição das duas regiões teve momentos de avanços e recuos negociais que resultaram de interpretações diferentes dos Estados, mas também das disputas internas dentro do Partido sobre o que deveria ou não ser aplicado dentro de Macau e Hong Kong. É da dialéctica dessas forças [internas do Partido] que vai resultar o ajustamento à evolução da realidade política, social e económica das duas regiões administrativas especiais.

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