Urbanismo | As dúvidas que permanecem com o projecto do Plano Director

Três arquitectos analisaram o documento de consulta pública do futuro Plano Director e dizem ser muito vago face às necessidades reais do urbanismo de Macau. Miguel Campina e Maria José de Freitas alertam para a necessidade dos planos de pormenor, enquanto Dominic Choi lamenta que a divisão do território proposta pelo Governo não tenha em conta a identidade de Macau

 

[dropcap]S[/dropcap]e o tecido urbano de Macau fosse um jogo, teria um número incontável de peças. Números populacionais e a sua base científica, as especificidades da cidade, os erros urbanísticos já cometidos e os interesses instalados seriam algumas das variáveis a ter em consideração. A ideia é deixada pelo arquitecto Miguel Campina, que conversou com o HM depois de analisar o documento de consulta pública relativo ao Plano Director de Macau.

“Mais uma vez somos confrontados com um documento que trata de aspectos genéricos e deixa para segundas núpcias a abordagem de aspectos específicos”, começou por dizer. “Não esperaria outra coisa que não fosse a importância dada à habitação, indústria e cultura, mas também é dito que isso vai ser objecto dos planos de pormenor, que estão todos por fazer. E não há um calendário”, acrescentou.

Na sexta-feira foi tornado público o projecto do Plano Director, que trouxe novidades sobre o desenvolvimento urbanístico do território para as próximas duas décadas. O documento vislumbra o aumento populacional para 808 mil pessoas até 2040, contabilidade que Miguel Campina questiona. “É um número muito auspicioso. É irrelevante ser 808 ou 850 mil, não se percebe como é que chegam a estes números.”

Está ainda previsto que os edifícios na zona do Lago Nam Van não podem ter mais do que 63 metros de altura, mas o arquitecto diz que isso não é suficiente para a preservação das características da zona.

“É tudo muito vago. São necessários parâmetros fundamentais, como os índices de ocupação do solo, a área de utilização, a relação que existe com o número de habitantes e a área destinada a cada um deles em termos de rácios. Nada disso está definido e pede-se às pessoas que concordem com o óbvio.”

No essencial, o conteúdo do documento que se encontra em consulta pública “é suficientemente vago para poder ser isto e muita coisa”. “A característica fundamental do que está a ser proposto continua a ser o carácter fluído de tudo. Há um conjunto de linhas de força, mas ainda está por ganhar forma. Enquanto estamos nesta fase a falar de objectivos vamos ter de falar, na fase seguinte, de como chegar lá. E isso não está plasmado nesse documento”, frisou Miguel Campina.

Maria José de Freitas concorda com o colega de profissão. “[O documento] fica aquém das expectativas e é muito genérico. Agora estão a subdividir o território da península e das ilhas em unidades operativas de planeamento e gestão (UOPG). E estas unidades estarão sujeitas a plano de pormenor. Remete-se para estes planos uma indicação mais assertiva. Temos apenas um alinhar de intenções e lança-nos questões quanto à eficácia do que está a ser seguido.”

Para a arquitecta, deveriam ser definidas, nesta fase, áreas prioritárias e formas como os planos de pormenor vão ser desenvolvidos. Caso contrário, “vamos ficar novamente num limbo”.

Manter os erros

Miguel Campina mostra-se ainda preocupado com o facto de o Plano Director não dar resposta a muitos dos erros cometidos no passado, como é o caso dos bloqueios na paisagem visual do Farol da Guia.
“[O documento] diz que aquilo que for definido no Plano Director não pode pôr em causa o que está definido na legislação existente. Então para que querem o Plano se não podem pôr em causa o que está errado? O que vai nascer a seguir não será melhor do que já está feito.”

O documento de consulta visa reestruturar melhor as zonas industriais e criar zonas comerciais, industriais, turísticas e de diversões. É também proposta a divisão do território em 18 UOPG.

O arquitecto acredita que, dada a pequena dimensão do território, será muito difícil dividir o território desta forma. “É impossível definir um mapeamento de zonas que seja estanque. O que será possível e vantajoso é disciplinar essa relação. Vai ser difícil relocalizar interesses, há que fazer a gestão da mudança.”

Maria José de Freitas lamenta que tudo o que está no projecto do Plano Director seja a continuação do que já existe. “Não traz nada de novo. Quanto às 18 UOPG, a única coisa a que se faz referência em relação ao Farol da Guia é o remeter para a regulamentação existente, para o despacho de 2008 e para a lei do planeamento urbanístico de 2013. Não se adianta mais nada.”

No que diz respeito à cultura e ao património, a arquitecta lamenta que se faça uma mera referência à existência de uma cultura ocidental sem mencionar que essa cultura é também portuguesa. “Seria uma mais valia”, lamenta.

Importa pensar local

Dominic Choi, arquitecto e presidente da associação Arquitectos Sem Fronteiras, lamenta que a divisão do território proposta não tenha em conta a essência de Macau.

“A separação dessas áreas parece-me que nada tem a ver com a Macau actual. É uma perspectiva muito de fora, sem base na forma como Macau se desenvolveu e naquilo em que se tornou”, disse.

O arquitecto questiona se os dirigentes querem que Macau seja como Singapura ou Hong Kong, ou se querem que se mantenha a identidade do território. “É importante olhar para as coisas segundo a nossa perspectiva.”

Relativamente ao novo aterro que será construído para ligar a zona A dos novos aterros à zona nordeste de Macau, Dominic Choi considera que pode ser uma boa iniciativa, mas que não resolve tudo.

“Parece-me que se está a criar uma nova panorâmica sobre Macau e não estamos a tentar resolver os problemas que existem actualmente. O que será feito das zonas antigas e como será feita a ligação com este novo planeamento?”, questionou.

Pergunta semelhante tem Miguel Campina. “Relativamente aos bairros antigos, o documento refere que se mantém a estrutura tal como ela existe, se possível. E se não for? O que poderá ser feito em alternativa? Deita-se tudo abaixo e constrói-se de novo? Não sabemos. Talvez a empresa criada para a renovação dos bairros [Macau Renovação Urbana SA] possa dizer o que pensa sobre isso.”

O documento fala também da criação de “vários circuitos comerciais para dar apoio a novos ciclos industriais de alta tecnologia”. O arquitecto diz não compreender como é que a diversificação industrial se vai concretizar. “É algo que ouvimos há muitos anos, mas não explicam como se faz, nem quando. Se a quantidade e qualidade de talentos continuar a ser a que tem sido a safra dos últimos anos, estamos muito mal servidos. Basta ver a forma como têm sido povoados os serviços públicos.”

Regresso à Pátria

Perante aquilo que leu, Dominic Choi teme que se perca a identidade de Macau. “Estamos mesmo a tentar implementar algo relacionado com o que é local ou aquilo que as pessoas querem em determinadas zonas? Macau tem esse problema, queremos pôr as coisas em determinados sítios, mas ignoramos como esse planeamento funciona, e se essa ligação faz sentido.”

“Importa pensar o que haverá daqui a 20 anos que permita considerar que foi protegida uma certa identidade. Estou convencido que não vai restar nada”, rematou Miguel Campina. Maria José de Freitas fala mesmo que o projecto do Plano Director “veicula muito uma ideia de regresso à Pátria”.

“É o núcleo que a China terá apontado há 500 anos para a sua relação com o mundo e que neste momento vai recolher à mater. É a inserção na Grande Baía. Mas depois temos em Macau o conceito de um lar feliz e ninguém percebe o que é.”

Apesar de não concordar com a possível perda de identidade com a nova divisão do território em UOPG, Maria José de Freitas acredita que se poderia ter ido mais longe. “[As UOPG] são uma questão de eficácia administrativa. As zonas definidas na península coincidem com as oito zonas que já estavam definidas e isso consubstancia uma determinada tradição. Há sim falta de objectivos estratégicos que posicionem Macau na sua multiculturalidade e dentro desta faceta de relação da China com o mundo.”

Miguel Campina fala num certo “exagero” na centralidade que as autoridades querem dar à RAEM no projecto da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau.

“O documento diz que Macau é uma cidade central no projecto, mas isso parece-me um pouco exagerado. Não vejo como é que isso vai acontecer. Se for no plano do jogo e do entretenimento, talvez, mas isso não chega para se ser o centro de alguma coisa”, concluiu.

Ao Jornal do Cidadão, Manuel Iok Pui Ferreira, especialista em urbanismo, defendeu que o projecto carece de mecanismos de supervisão e de regulação. O responsável diz que é essencial assegurar a execução do futuro Plano Director, além de defender revisões periódicas ao documento.

Segundo o mesmo jornal de língua chinesa, Lei Leong Wong, presidente da direcção da Associação Aliança do Povo de Instituição de Macau, acredita que o futuro Plano Director tem de estar coordenado com as mais de 30 leis e regulamentos relacionados com a área da renovação urbana, questionando se isso vai acontecer.

Lei Leong Wong espera que o Governo possa divulgar mais informações para que a sociedade discuta o assunto, lembrando que a renovação urbana não depende apenas do Executivo e da Macau Renovação Urbana SA, mas também dos proprietários.

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