ReportagemAcontecimentos de Tiananmen noticiados em Portugal como “banho de sangue” Hoje Macau - 3 Jun 2019 Há 30 anos, os acontecimentos na Praça Tiananmen foram noticiados nos jornais portugueses como um “banho de sangue” e geraram preocupações no poder político em Portugal. Hoje, em Lisboa, a Amnistia Internacional organiza uma acção de rua para recordar a repressão contra o movimento pró-democracia protagonizado por estudantes [dropcap]A[/dropcap] imprensa portuguesa noticiou, há 30 anos, o massacre de Tiananmen como “um banho de sangue”, com multidões a defenderem-se com paus e pedras dos tanques e balas com que o governo chinês tentava aniquilar o movimento pró-democracia. Há seis semanas que os estudantes ocupavam a praça de Tiananmen, no centro de Pequim, para exigir reformas democráticas, num movimento a que se juntaram muitos cidadãos e que começava a ter eco em outras cidades chinesas. Na noite de 3 para 4 de Junho, os confrontos com o exército intensificaram-se e tropas forçaram a entrada no reduto ocupado pelos estudantes. Um telex emitido pela Lusa reportava: “Pequim entrou hoje no caos, com os soldados a dispararem indiscriminadamente sobre multidões exasperadas de cidadãos desarmados, enfrentando a morte para protestarem contra o que descrevem como os seus dirigentes fascistas”. As embaixadas estrangeiras preparavam planos de retirada dos seus cidadãos e aconselhavam os residentes a não saírem de casa. Os jornais davam conta de milhares de vítimas, com base em testemunhos, manifestantes e fontes diplomáticas. A China apenas reconheceu algumas centenas, entre soldados e manifestantes, invocando razões de segurança nacional para justificar o massacre. As imagens que chegavam de Pequim chocavam o mundo. À comunidade internacional exigiam-se medidas e criticava-se a falta de acção. Os jornalistas debatiam-se com apreensões de materiais, censura e uma lei marcial que duraria um ano, como noticiava a Capital em 1990: “Tiananmen limpa de tropas. Levantada Lei Marcial em Pequim em oito meses”. Preocupação lusitana O movimento ganhara força nas universidades meses antes do massacre, onde os estudantes decretaram uma greve geral. Em Maio, a demissão de Deng Xiaoping e dos principais líderes chineses, como o primeiro-ministro, Li Peng, era exigida nas ruas de Pequim por um milhão de pessoas, numa manifestação de apoio a “centenas de estudantes em greve de fome”, conforme noticiou o Europeu. O semanário Independente, à época dirigido por Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas, revelava o plano da diplomacia portuguesa para lidar com o problema, dias depois do massacre. “Portugal manda Roberto Carneiro avisar a China” foi a manchete de 9 de Junho do semanário, para noticiar a viagem do então ministro da Educação a Macau, a pretexto do 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. A ideia colhia o apoio do Presidente da República, Mário Soares, e do primeiro-ministro, Cavaco Silva, evitando-se assim envolver directamente o ministro dos Negócios Estrangeiros, João de Deus Pinheiro, o que daria “um caráter internacional” à viagem. De acordo com o jornal, Roberto Carneiro levava no bolso uma mensagem de Soares e recados de Cavaco. Na mensagem, citada pelo jornal, Soares transmitia “grande preocupação” pela situação na China, afirmando esperar que não ameaçasse “a liberdade e segurança” do território de Macau, então sob administração portuguesa. O chefe de Estado português falava ainda da “necessidade de restabelecimento dos equilíbrios sociais e políticos na China” como única forma possível de “cumprir em absoluto” a Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre o Futuro de Macau, a que Portugal se afirmava “inteiramente fiel”. Durante a deslocação, Roberto Carneiro deveria também manter contactos com políticos e empresários, para aferir “sentimentos e intenções”, e proferir duas declarações, a primeira, à chegada, para manifestar a “solidariedade de Lisboa” com a população portuguesa de Macau, e uma segunda com alusão aos acontecimentos de Pequim, “condenando o uso arbitrário de violência sobre civis desarmados”. A perseguição contra os líderes do movimento estudantil continuou muito para além de Junho de 1989, com alguns a procurarem asilo nos Estados Unidos e na Europa. AI recorda movimento A Amnistia Internacional (AI) Portugal vai assinalar os 30 anos do massacre com uma manifestação em Lisboa, um abaixo-assinado em defesa de um activista preso na China e o envio de mil postais ao Presidente chinês. A manifestação está marcada para hoje, dia 3, data que marca o início da “invasão da Praça de Tiananmen” pelo exército chinês, disse à agência Lusa Teresa Nogueira, coordenadora da AI Portugal para as questões da China, recordando “as imensas mortes” civis que nunca foram reconhecidas pelas autoridades chinesas. “Temos também postais já editados, dirigidos a Xi Jinping, dizendo que as famílias das vítimas ainda esperam que seja feita justiça, 30 anos depois”, indicou, alertando que continuam a ser detidos cidadãos por lembrarem os acontecimentos que culminaram no massacre de estudantes e outros civis reunidos na principal praça do centro de Pequim em defesa de reformas democráticas. Mais uma vez será pedido às autoridades que reconheçam publicamente as vítimas, que levem a tribunal “os culpados pelas violações de direitos humanos” e que “acabem com a perseguição a todos aqueles que querem relembrar” os acontecimentos de há 30 anos. Os postais serão enviados por todos os grupos da Amnistia em Portugal, de norte a sul do país. Paralelamente, decorrerá uma recolha de assinaturas pela libertação de Chen Bing, “um activista que está preso por querer relembrar” o massacre, frisou. Em entrevista à Lusa, Teresa Nogueira recordou que pouco depois dos acontecimentos, a China reconheceu a existência de cerca de 300 feridos e 30 mortos, entre soldados e estudantes, mas afirma que “foram muito mais, foram milhares de pessoas mortas e pensa-se que centenas de estudantes”. Três décadas depois, as famílias continuam a pedir justiça, quer em colectivo, como as “Mães de Tiananmen”, quer individualmente, como é o caso de Chen Bing, tentando que seja feita uma reapreciação dos acontecimentos em que, diz Teresa Nogueira, as vítimas “ainda são consideradas culpadas pela tal revolta que visaria acabar com a estabilidade social”, na versão das autoridades chinesas. “Logo a seguir, os próprios familiares das vítimas começaram a ser perseguidos, de tal maneira que as pessoas tinham medo de dizer que familiares seus tinham sido mortos nos acontecimentos”, lembrou a activista. Perseguições continuam Ainda hoje, segundo a responsável da AI Portugal, grupos de familiares directos das vítimas continuam a ser perseguidos e a ver as movimentações “muitíssimo restringidas”. São pessoas que “de vez em quando estão em prisão domiciliária, são constantemente vigiadas, por vezes cortam-lhes a Internet, as comunicações”, relatou. Teresa Nogueira citou o caso de uma professora universitária em Pequim, cujo filho de 17 anos foi baleado no coração no dia 3 de Junho de 1989. “O marido já morreu, sem ter visto a justiça ser feita”, lamentou. “Além disso, ainda actualmente aqueles que querem relembrar o que aconteceu e evitar que caia no esquecimento – tal como as autoridades chinesas tudo têm feito para que aconteça – continuam a ser perseguidos”, reiterou, evocando um caso recente. “Em 2016, quatro activistas foram detidos porque produziram um vinho branco chamado Baijiu – um vinho típico chinês – e que engarrafaram, cuja marca registaram e que, depois de colocados os rótulos, puseram à venda”, contou. Mediante um jogo de palavras, os rótulos diziam “Lembrem-se de 89 – 04 de Junho”. As garrafas estiveram à venda cerca de três semanas, até que as autoridades chinesas descobriram o que estava a passar-se e prenderam os quatro activistas”, afirmou Teresa Nogueira. “Apenas foram julgados no princípio de Abril deste ano, depois de terem estado desde 2016 até agora presos sem julgamento”, acrescentou. Três elementos deste grupo foram condenados a três anos de prisão, com pena suspensa. Chen Bing foi condenado a três anos e meio e continua preso. “É em relação a ele que vamos recolher assinaturas, durante a manifestação e vamos também colocar uma petição online”, avançou, indicando que está a decorrer, a nível mundial, uma acção urgente neste sentido. Nos postais a enviar ao Presidente da República Popular da China constará a foto que celebrizou um dos manifestantes, sozinho frente a uma fila de tanques, e cujo nome e paradeiro permaneceram desconhecidos até hoje. Macau, Taiwan, Hong Kong, Estados Unidos e Reino Unido são alguns dos territórios onde a data será lembrada, com vigílias, debates e outros eventos públicos, à semelhança da manifestação de Lisboa, que decorrerá na avenida 24 de Julho, frente à sede da EDP. Algumas secções da AI decidiram também pedir aos parlamentos dos respectivos países que leiam um de três textos enviados pelo secretariado internacional: a declaração escrita em cativeiro pelo falecido activista Liu Xiaobo, quando da atribuição do Prémio Nobel da Paz, a Carta 08, um manifesto de que foi o primeiro subscritor e que esteve na origem da detenção ou uma carta das “Mães de Tiananmen”.