A tua voz ao volante

Santa Bárbara, Lisboa, 11 Setembro

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] palavra podia ser esquadro,
ou fio-de-prumo,
esta contendo em si a tensão e o peso,
toque na parede, na pedra, concreto, matéria tão porosa sem o parecer,
a outra evoca a abstração de uma contagem
uma geometria recortada
(na memória: Nove-filhos era o stor de geometria descritiva, a linha de terra empre suja)
os anos contam-se, mas não valem certos minutos,
não valem nem aquele tom ou a palavra dita no momento exacto
navalha, de ponta de mola, de barbeiro,
antes de ser pedaço de lâmina substituída
porque não querias que fosse eu a desfazer-te a barba
ferida, que ferida te fiz eu?
sei das que me fizeste,
mas não trarei freud, que rima com fraude, para o assunto
menos kafka, que não será o caso.
quantas cartas ao pai se escreveram já?
quantos pais se perderam nas cartas
nem me atrevo a releituras,
afinal, como ele, nem sou assim tão literato
ofereceu-me Os Três Mosqueteiros, edição de abrir páginas
com lâmina
os lombos a sobrarem barbados, espada que se ergue
marcador de aventuras
sonhos, sonhos
fizeste-me sócio do Círculo de Leitores a troco da tabuada debitada, inútil
de que serve, para que sirvo
soube calcular impedâncias
perdidas nas volutas do esquecimento, raízes quadradas rabiscadas
matemática de corrida
vieram Herculanos no ritmo das quinzenas ou assim
o Bobo
orgulhavas-te que os filhos não te tratassem por tu
deste-me a escolher bicicleta ou máquina de escrever
aprendi o gosto da tinta nos chocos, mas começaste pelas lulas
não tantos as luas
essa foi na casa das avenidas já não tão novas
no ano da mana
o preto de branco a piscar, perto do Sidónio de parede
aquela lua fez-me sonhar em tocá-la
nem em papel lá cheguei
a revista foi, afinal, de treta, coisa fruste
sem a solidez da matéria
sem fios-de-prumo a desenhar verticais
a madeira tocando a superfície, a tensão do fio vibrando
ouves? vês?
e o traço com trabalho há-de sustentar muro, parede
trabalho, interstício nas férias dos outros
o trabalho estava feito ética que nos justificava, fazer
a preguiça era dos outros, os dos cafés
somos éramos das obras, serventias sem outro jeito
talvez tivesse, mas era a preguiça levava para as esquinas do sonho
nem bola, apenas a rua a inventar com outros histórias
mundos que podiam mudar, além de rodar
tinhas casas por construir, desenho a caneta,
ideias a rodar nos pneus do autocarro na noite
que começaram com a égua anabela, a rodar em círculo nas histórias
malandras, longe já e tão perto dos os pés na terra, na neve
a fome, a tua, mítica, mitigada com o pão, pouco mais
a minha, apenas do fiambre burguês, que a manteiga ainda era possível
a poupança, em nome dos tempos difíceis,
para confortar futuros, semeando sementes invariáveis de trabalho no hoje,
na terra, na linha de terra titubeante, rasurada, horizonte líquido
o cinto castigando desobediências sujas de lápis
peças de lego contadas na lata,
continente redondo de latão a sentir logo o tempo
e a humidade
a casa absorvia as águas das nuvens, na rua era melhor
haveria de acontecer a preço de esforço a tua casa que querias de todos
na rua passaram novelas e revoluções, carrinhos de esferas
navalhas de tempo a passar
nunca te dei a ver o filme sobre infância, oblíquo
a frontalidade vem de outro norte, não serve nesta descida
ou subida
gostavas de histórias, fazias o passado acontecer ali
quantas ruas de lisboa desenhavas
as carreiras abriam a cidade que nem fruto
figo laranja maçã brabo de esmolfe castanha cereja
cada fruto seguido de espécie, que nada pode ser apenas isso
os carvalhos desdobram-se em soutos, os pássaros poupam-se pelo cantar
geometria de volante e esquadro e prumo

(o fio-de-prumo utiliza a lei da gravidade para indicar que a posição de um elemento construtivo é realmente vertical. A corda suspensa com o peso que tem na sua parte inferior deverá ser vertical e perpendicular a qualquer outro plano de nível com o qual se cruze.)

foste perpendicular aos planos que contigo se cruzaram
pontapeaste o cão-polícia que te atacava contrariando a greve
agrediste o outro que atazanou noite inteira, arrependeste-te
gastaste as derradeiras energias em conflito com a autoridade as autoridades
ajuda-me a levantar, vamos à gomes freire, o gnr que aviei, coitado, deitado
de pé viste comboios a passar desafiando a tua fome em direcção à frente vizinha
no sangue corriam desobediências ancestrais, antígonas da beira, ventos e águas da gardunha
cidadãos livres, coluna vertebral fio-de-prumo perpendicular a outro plano de nível
linha de terra irregular, tocada pelos pés descalços, madeira contra a matéria a definir a gravidade
da história, que percorreste com o devido alheamento,
olhos e dedos nos jornais, do fundão, que não abandonaste na proibição, orgulhosamente
o orgulho é uma linha de terra ao alto
o século era jornal antes de ser contagem a esquadro do tempo, longos lençóis que lembro
o teu avô foi para o céu
o avô da burra, o avô do farrusco
foi o
que não se diz
neoplasia em escape
o teu centro a explodir na lentidão
a fugir do entendimento
abrindo brancas buracos de escopro na matéria cinzenta
quase indignado, barba por fazer
tinhas medo da minha lâmina?
perguntaste à enfermeira,
se não me conhecia a mim, «o homem que fez o funeral ao Salazar»
fi-lo aos quadradinhos
não tinha jeito para nada
o da leira, as batatas, a poda,
coisas breves de puto, a vindima, mas com jeito
sempre a sonhar, a lua, todo o dia a lua
as palavras atiradas ao chão da boca
agora na graça o avô da perna direita, invergável,
propõe-me pacto de silêncio, inviolável
não bebemos nada, pois não?,
o de três bate no meu de ginginha,
saudades de beber assim os segredos
a bengala batendo nas pedras da calçada
rimando com as águas descendo a serra em direcção ao milho
lençóis do século as crónicas do drummond no jornal do fundão
a noite inteira abrindo regos
os fios aprendendo a electricidade que me levaria à lua
que jamais me levarão à lua
que nem quis saber conduzir
olha freud, diz lá, antes do kafka, por que me queima o volante
a velocidade não me amarga
nem a preguiça
a preguiça é incestuosa irmã da velocidade
e o riso, o riso da mãe
a mãe na tela da janela
a ver destinos, a comentá-los
o vento que penteia o quadro
e a rua continua a descer
o obama pulou de um contentamento só desadivinhando partidas
os contentamos devem conter chegadas, talvez luas, toques no tronco
e apertas-me a mão com um desespero que adivinhava final
choraste lágrimas
gotas de granito escorrendo resto de rosto
sabias como perguntar à pedra o que ela podia ser,
lias-lhe os veios, marcas da água, do tempo, verticalidades,
ajeitava-la entre pernas e de maceta e escopro extraías bloco
não de urgência
uma verticalidade de enfrentar ventos
o teu destino foi de pedra
dobram sinos nas donas a dizer
que a pedra era agora nuvem
como só os sinos podem
vi mais lágrimas, ouvi as palavras escândalo e ânimo e parede
a fazerem-se promontórios na penha e na serra
sussurram-me sem número de perfumados é a vida
por acaso falando de morte, mas com raízes
por momentos, a sós apesar da mana,
a mão que apertaste tocou a madeira do caixão
era carga eléctrica, cesta de balão, árvore
ligada à terra

(continua)
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