Escritor chinês Yu Hua narra país real na ficção

[dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]a China, onde imprensa e narrativa histórica são controladas pelo Partido Comunista, a literatura ficcional oferece as descrições mais fiéis do país, como são exemplo as obras de Yu Hua, escritor publicado recentemente em Portugal.

“Devido às limitações que o jornalismo enfrenta na China, acaba por ser na ficção que muitas vezes encontramos as descrições mais autênticas de como é viver hoje no país”, concorda Tiago Nabais, de 39 anos, e tradutor para português de literatura chinesa.

Académicos e intelectuais chineses são pressionados a aderir às interpretações oficiais do regime comunista em questões de natureza histórica, enquanto a imprensa é sujeita a uma censura rigorosa.

Já a ficção tem à disposição a “sátira, o fantástico ou o absurdo”, que são “muito úteis para lidar com a sociedade e o momento histórico da China”, explica Nabais à agência Lusa.

Com cerca de 1.400 milhões de habitantes, a China, que até há quatro décadas vivia num universo à parte, mergulhada em constantes “campanhas políticas”, pobreza e isolamento, é hoje a segunda maior economia mundial.

A rapidez e profundidade das mudanças deram origem a um país onde “a vida é tão louca que precisa de um novo estilo literário: o ultra irrealismo”, sugere o escritor chinês Ning Ken.

Formado em mandarim pelo Instituto Politécnico de Leiria (IPL), Tiago Nabais traduziu directamente a partir do chinês os romances de Yu Hua “Crónica de um vendedor de sangue” e “China em dez palavras”, editados em Portugal pela Relógio d’Água.

 

Linguagem simples

Nascido em 1960, numa época em que o experimentalismo maoista, sobretudo o Grande Salto em Frente e a Revolução Cultural, causaram dezenas de milhões de mortos e afundaram a China no caos, Yu Hua trabalhou como dentista antes de se tornar escritor.

“Ele não é um académico”, diz Tiago Nabais. “Ele usa uma linguagem muito simples, um pouco infantil às vezes, mas que resulta muito bem em chinês, porque fala de coisas muito dramáticas nessa linguagem”, descreve.

As obras de Yu Hua oferecem descrições brutais da violência em que a China mergulhou durante o reinado de Mao Zedong (1949-1976) e da espectacular transformação económica que se seguiu.

“Eu escrevo romances, não livros de História, mas a partir da minha obra os jovens podem conhecer o que se passou na China”, explicou o autor à agência Lusa.

Tiago Nabais entrou para a universidade aos 29 anos, depois de “viajar bastante” e fazer “uns biscates aqui e ali”, no que se revelou uma vantagem para o estudo do chinês.

“Estudar com tanta dedicação uma coisa destas aos 18, 19 anos, é muito difícil”, diz. “Eu como já tinha tido muitos anos de outras coisas, consegui dedicar-me de uma maneira muito mais calma”, acrescenta.

Nabais considera que estudar chinês é “bastante frustrante” e “só pessoas com um determinado perfil” o conseguem. “Da minha turma, acho que para aí metade desistiu a meio”, conta.

 

Autores ainda desconhecidos

 

Também “difícil” é convencer uma editora portuguesa a publicar um autor que, apesar de ter vendido mais de dez milhões de livros em todo o mundo, continua a ser desconhecido em Portugal.

“A maioria das editoras portuguesas não está muito bem financeiramente e ninguém está muito disposto a arriscar meter-se em escritores que ninguém conhece”, conta.

A tradução e posterior publicação de “Crónica de um vendedor de sangue”, primeiro romance de Yu Hua a ser lançado em Portugal, partiu da iniciativa de Tiago Nobais.

“Fui eu que contactei o escritor primeiro e pedi-lhe autorização para traduzir alguns capítulos, para depois mostrar a editoras portuguesas”, conta. “A Relógio d’Água foi a única que me respondeu”.

Na semana passada, a mesma editora publicou “China em Dez Palavras”, um dos mais conhecidos títulos de Yu Hua.

Tiago Nabais viveu oito anos e meio na China, onde para além de estudar mandarim nas cidades de Pequim e Xi’an e na região de Macau, ensinou português em Shijiazhuang e Shaoxing.

Em meados do ano passado regressou a Portugal: “Estou em fase de adaptação a Lisboa, mas a gostar da pausa da China”, revela. “Pelo menos, para já”.

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