Felicidade naturalmente

Miguel Martins

 

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão me parece descabido dizer que fazer uma pessoa culta é caro. Implica leituras, claro, mas também a exposição a uma variedade de experiências — edificantes ou não — tão vasta quanto possível, mesmo as que, à primeira vista, podem parecer distantes de um conceito simplista de cultura. Implica mundo. Muito mundo. Implica viver de modo acelerado, pois o nosso tempo de vida é demasiado curto para quanto importa aprender. Implica não perder tempo com aquilo que nada nos pode ensinar. Ser culto deve poder ser o único objectivo de uma pessoa culta. É caro. Mais caro, ainda, é fazer uma pessoa sensível. Isso, regra geral, não se consegue numa só geração. Vai-se instalando e sendo passado, de pais para filhos, desde pequeninos. A arrepio da vida bruta das massas. Contra o materialismo. Contra os egoísmos. É caro, repito. E pressupõe o contributo dos incultos. Contudo, para uns e outros, muito mais caro é não investir nisso. Condena-os a ambos. Uns à diminuição do brilho, outros a navegarem sob um céu sem estrelas.

A disciplina militar prestante/ Não se aprende, senhor, na fantasia,/ Sonhando, imaginando ou estudando,/ Senão vendo, tratando e pelejando. – Camões.

R., poeta, foi, até à sua morte, director do instituto responsável pela divulgação da cultura do Estado Espanhol em Lisboa.

C., um conhecido comum, galego como ele, importador e exportador de peixe, proprietário de um bar no Bairro Alto e intelectual de esquerda, tendo R. afirmado que estava escrevendo a sua autobiografia, arremessou:

— Ouve lá: tu já estiveste preso?

— Não, respondeu o bardo.

— Já mataste alguém?, volveu o primeiro.

— Não.

— Então, concluiu C., não tens biografia.

Dito isto, é preciso não perder de vista o seguinte: a cultura, embora, muitas vezes, construa entraves a isso ou com eles se depare, deve ser, em última análise, um contributo para a felicidade, colectiva e individual.

E, concluí há tempos, não há melhor aferidor do grau de felicidade de cada um do que a quantidade de vezes que se canta ou assobia.

Cantar ou assobiar — no banho, na rua, de manhã ou à noite, sozinho ou acompanhado — é muito bom sinal. Denota que a cabeça não está tolhida por constrangimentos que não lhe permitam os voos mais leves, mais inconscientes, mais naturais, mais saudáveis.

E aqui, embora o Canon de Johann Pachelbel ou a Primavera de Vivaldi possam servir muito bem, a música popular assume a sua função mais nobre.

Foi no Domingo passado que passei

À casa onde vivia a Mariquinhas

ou

Penny Lane there is a barber showing photographs

Of every head he´s had the pleasure to have known.

A propósito de felicidade, um sítio com que tenho uma relação feliz, a um tempo paraíso perdido e terra prometida. Uma pequeníssima aldeia da Beira Litoral, praticamente uma só rua, muito inclinada, de casas de xisto, que desemboca num rio límpido e lindíssimo, que, ali, ante uma pequena represa, forma uma piscina de claridade e reflexos, num vale de brumas e sonho (é mesmo assim, não sou eu a alinhar palavras bonitas!).

Back to nature é a sensação que aí busco. E, de facto, nessa aldeia hoje desabitada é possível comer da natureza – nalguns pontos do rio as trutas ocupam mais espaço do que a água, sob as árvores acumulam-se frutos variados, nas silvas há amoras e framboesas, se soubesse e quisesse disparar uma arma os montes ao redor oferecer-me-iam grande variedade cinegética.

Dá que pensar.

Gostaria que um dia me fosse possível alternar os meus dias entre essa aldeia e Lisboa, entre essa represa e os 360º de vista sobre a cidade e o Tejo que o topo do Mosteiro de São Vicente de Fora nos oferece. É a mais bela vista da cidade. O olhar reganha um alcance que a vida entre prédios lhe roubara.

Ao encanto dessa aldeia, acrescenta a sua relativa inacessibilidade, que me dá uma espécie de conforto, de pertença inviolada.

Algumas pessoas queixar-se-iam da falta de investimento do Estado ou das autarquias, contribuindo para isolar povoações. Compreendo. Mas, por mim, não me queixo – até agradeço.

Certa vez, em Ceuta, quase não vendo muçulmanos nas ruas da cidade, pedi a um taxista que me mostrasse onde viviam. Após uma longa viagem, em que o taxista não parou de ofender aquela comunidade, lá chegámos a um bairro isolado, bastante mais pobre do que a cidade, no meio de uma zona arborizada. Estranhamente, e sem prejuízo das opiniões que formei acerca da situação, achei o local confortável. Senti que, ao menos ali, aquelas pessoas se podiam sentir em casa. E, por isso, também eu me senti um pouco assim.

O mesmo aconteceu com uma instalação da Colecção Berardo que vi em tempos e cujo autor, infelizmente, não recordo. Entrava-se por um corredor de pano preto, em completa obscuridade, e desembocava-se numa sala idêntica. Só que, nesta, se olhássemos para cima, veríamos a projecção da água de uma piscina, filmada a partir do fundo, e nela pessoas nadando. Silêncio. Paz. Útero.

No âmbito das instalações têm sido criadas algumas das peças mais interessantes das artes visuais das últimas décadas. Muitas carecem de “instruções”, o que faz comichões a muita gente, que acha que a obra deve bastar(-se).

E, contudo, se adquirirmos um lápis, de facto, não traz qualquer instrução, mas se se tratar de uma caneta de tinta permanente muitas vezes já vem acompanhada por um papelinho que nos ensina a enchê-la, limpá-la, etc. Caso compremos uma máquina de escrever, as instruções aumentam de tamanho. E se for um computador, preencherão, mesmo, um livro algo volumoso.

Por que não poderia acontecer o mesmo com as obras de arte?

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