Medo e dissuasão

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]casionalmente, as grandes cadeias internacionais de televisão conseguem fazer reportagem na Coreia do Norte. Sempre acompanhadas por funcionários do Ministério da Informação (ou da Propaganda ou dos Serviços Secretos, as instituições que representam não são particularmente relevantes, o que importa é que o exercício de recolha de informação não é livre, estando por isso fora daquilo que é considerado liberdade de imprensa), vão aos locais que lhes é permitido ir, falar com as pessoas que estão ali, à mão do microfone do repórter, seguramente “por acaso”. A narrativa que se escuta nestas reportagens espontâneas é extraordinária: os Estados Unidos estão à beira de invadir o território e, por isso, o supremo líder (não sei se esta é a hipérbole em uso pela nomenclatura do regime, mas aceitemo-la, na falta de melhor) está empenhado na construção de armamento nuclear para defender a Coreia do Norte. Di-lo o jovem estudante, repete-o o engenheiro, mais tarde afirma-o a enfermeira. Cada lançamento de um míssil balístico é saudado com o mesmo entusiasmo quer pela pivot do telejornal quer pela populaça. Foi isso que se pôde ver recentemente na CNN, que obteve um raro acesso a Pyongyang e autorização para falar nas circunstâncias já referidas com alguns transeuntes “anónimos”.

O que impressiona nesta construção argumentativa debitada com convicção é que não se encontra um resquício de possível alternativa, de dúvida contraditória. É assim. Na Coreia do Norte o acesso ao mundo exterior é totalmente controlado. A internet é uma rede interna na qual só se tem acesso a um número reduzido de sítios previamente aprovados. A televisão a que se pode aceder é apenas a estatal, que emite a propaganda oficial. Não há acesso a DVDs ou a filmes. Enfim, o resultado de políticas de isolamento de décadas deve traduzir-se, se o pudéssemos aferir, na maior aproximação alguma vez tentada ao imaginário mundo descrito por George Orwell em 1984.

Para combater este estado de coisas e permitir que os norte-coreanos tenham um pouco mais de mundo do que aquele que a elite lhes dá, há uma organização na Coreia do Sul que contrabandeia USB, discos de memória, cheios de filmes, de documentários, de séries, de música e de livros electrónicos, que são depois distribuídos num circuito (evidentemente) ilegal e perigoso que permite a uns quantos saber um pouco mais do que se passa no mundo. O exercício é notavelmente arriscado. A polícia de fronteira, por exemplo, tem instruções para passar a pente fino os computadores portáteis dos visitantes que chegam ao país, para verificar se possuem uma cópia da péssima sátira de Hollywood a Kim Jung-un, The Interview. Há relatos que dão conta de que os sortudos que têm acesso a estas preciosidades as vêem na cama, debaixo dos lençóis, de auscultadores nos ouvidos, para não correrem o risco de serem denunciados pelos vizinhos. É claro que isto só é possível, porque a corrupção é uma instituição que mina todas as sociedades. Particularmente as mais fechadas, onde o acesso às mordomias é reservada apenas a uma camada muito reduzida da elite.

A pequeníssima minoria que duvida e a que tem acesso a estes fragmentos de liberdade sabe bem que não pode falar sobre o que poderia ser a outra visão do que se passa na Coreia do Norte. A grande maioria nem estará preocupada por parecer alinhada. É assim. Nem se pode falar de medo. É como se vivessem na Idade Média. O Iluminismo está por chegar.

Ao contrário, o que impele o regime de Kim Jong-un é o medo. É ele que tem impulsionado o Norte a recorrer ao armamento nuclear, com o objectivo de se manter incólume, a salvo de uma possível invasão do sul, apoio pelos norte-americanos. Numa lógica realista das relações internacionais, o investimento de Pyongyang no nuclear faria sentido. Na incerteza de a China estar ao seu lado, como em 1950, recorrer ao nuclear para contrabalançar o poderio dos Estados Unidos seria a única forma de assegurar que a invasão nunca teria lugar. Pyongyang e Seoul estão apenas a 200 quilómetros uma da outra, o que as torna em alvos fáceis para o vizinho. E garantiria que o povo continuaria alinhado com o supremo líder, orgulhoso dos feitos que ele (pai e o avô) lhes têm alcançado. Povo que assim não se sentiria tentado a querer experimentar um outro tipo de regime político.

Também no sul, é o medo que comanda as acções. Fustigada pela guerra – quase toda a Coreia do Sul foi tomada pelos comunistas, mas antes tinha também sido ocupada pelos japoneses –, a aproximação ao amigo norte-americano foi uma espécie de garantia de sobrevivência. É o medo da possível ameaça que pode vir do norte que mantém esta relação forte ainda hoje. Os Estados Unidos estão, por exemplo, a expandir a sua presença em Camp Humphreys, a pouco mais de uma hora de carro a sul de Seoul, aumentando a sua capacidade dos actuais 11 mil militares para um total de 40 mil, transformando-o numa das maiores bases norte-americanas do mundo.

A pergunta que todos fazem é como se lida com Pyongyang e a sua política agressiva? É de facto um jogo muito difícil de se aprender. Com Seoul e os seus 10 milhões de habitantes localizados tão perto do ninho de vespas, qualquer opção militar colocaria em risco milhares de vidas humanas. A possibilidade de o norte contra-atacar imediatamente com mísseis balísticos é um cenário que ninguém no sul quererá arriscar. Com um líder errático em Pyongyang, que elimina meio-irmãos, tios, embaixadores e generais, a capacidade de influência de Pequim é diminuta. Torna qualquer diálogo numa conversa sem sentido. A solução diplomática não tem produzido os efeitos desejados. As resoluções das Nações Unidas são totalmente ignoradas por Pyongyang. A hipótese mais prática seria talvez a de garantir que as sanções que ameaçam a elite e que visam travar as actividades ilegais de Pyongyang – contrabando, tráfico humano, tráfico de droga – sejam eficazes. O que até hoje não se tem revelado particularmente persuasivo.

6 Mar 2017

Diplomata português preocupado com direitos humanos na Tailândia

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] situação dos direitos humanos na Tailândia é ainda “preocupante”, apesar dos avanços que foram feitos nos últimos anos, destaca à Lusa o embaixador de Portugal em Banguecoque, Francisco Vaz Patto.

“É verdade que existe aqui um regime militar, é verdade que a situação de direitos humanos é preocupante e é importante defendermos os nossos princípios. Não é aceitável que haja golpes militares para destituir governos, que por mais criticáveis que sejam, foram eleitos. Infelizmente isso aconteceu muitas vezes aqui. Esperamos que rapidamente as eleições tenham lugar e possa haver um verdadeiro governo democrático neste país”, afirma o embaixador.

Apesar de Vaz Patto defender o recomeço das negociações entre a União Europeia (UE) e a Tailândia para um acordo de comércio livre, reconhece, ao mesmo tempo, que é importante defender os princípios democráticos e contrariar a versão desse modelo político que o Governo tailandês adopta.

“O regime tailandês é especial. Eles dizem que a democracia na Tailândia tem de ser uma democracia especial. Não podemos aceitar. Não há uma democracia tailandesa ou portuguesa, há a democracia. Dizemos sempre que como país amigo temos a obrigação de criticar de forma positiva para ajudar a que as coisas se resolvam. Eles não aceitam, acham que no caso deles a democracia só funciona se for austera e controlada”, explica.

Estamos juntos

Segundo o diplomata, a embaixada portuguesa junta-se às restantes missões europeias na promoção dos direitos humanos, reunindo-se com organizações não-governamentais que trabalham nessa área e abordando o tema em encontros bilaterais, ainda que admita que Portugal não é “tão pró-activo como a Suécia ou a Finlândia”.

Esses esforços não caem em saco roto, e a UE acredita que se vai realizar em breve uma reunião de alto nível sobre direitos humanos, com todos os estados membros da UE e a Tailândia. Esta reunião, explica Vaz Patto, foi cancelada, mas “finalmente os tailandeses terão aceite”, aguardando-se por um entendimento.

O diplomata português destaca, em particular, a lei de lesa-majestade, que considera “muito dura, com penas muito pesadas para o crime que é cometido” – o Código Penal prevê penas de entre três a 15 anos de prisão – e dá como exemplo o caso de um jovem activista que está detido, sem direito a aguardar julgamento em liberdade, por ter partilhado um artigo da BBC que é crítico da monarquia. “Tem de haver respeito por princípios fundamentais de liberdade e a liberdade de expressão é essencial para nós”, frisa.

Algum empenho

Já no âmbito do tráfico humano, Vaz Patto sublinha os esforços do Governo tailandês para melhorar a situação, tanto no que toca ao tráfico laboral como para prostituição.

“Na indústria de pesca foram identificados escravos que eram traficados do Myanmar ou países vizinhos, postos em barcos e explorados. A Tailândia fez um grande esforço neste último ano para criar legislação, mecanismos de controlo. As coisas ainda não estão perfeitas mas isso ajudou”, garante.

Quanto ao facto de o país ser “conhecido como um destino turístico sexual”, o embaixador explica que essa é uma imagem que “os tailandeses não gostam” e que foi criada durante a guerra do Vietname, quando a Tailândia funcionava como uma base norte-americana, para onde os soldados vinham “descansar”.

“Há uma grande aposta da actual ministra do Turismo em tentar acabar com isso. É uma luta muito difícil porque é uma indústria que dá muito dinheiro e que não pode ser só combatida pelo Estado, tem de ser combatida pelos próprios turistas. [Mas] acho que é uma imagem que está um bocadinho desactualizada”, afirma.

Quase 40 mil turistas portugueses visitaram a Tailândia no ano passado, indicou o embaixador.

Cerca de 120 famílias portuguesas estão registadas na embaixada em Banguecoque e Vaz Patto acredita não serem mais de mil os portugueses a viver no país, tendo em conta que muitos não se registam na representação diplomática.

Os pedidos de passaporte por tailandeses são poucos “e alguns complicados, baseados em documentos antigos”, estando por isso pendentes em Lisboa. “Acho que é importante que em Portugal se facilite, a comunidade não é assim tanta”, diz, referindo-se aos luso-descendentes.

6 Mar 2017

AL | Pedido debate sobre aumento das taxas de veículos

 

Leong Veng Chai entregou um pedido de debate na Assembleia Legislativa sobre o aumento das taxas de veículos, questionando se este é “razoável”. O deputado teme que mais aumentos venham a acontecer

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão basta uma reunião com o secretário para os Transportes e Obras Públicas, um protesto e uma marcha lenta para encerrar o assunto. A questão do aumento das taxas de veículos continua a gerar reacções negativas, o que levou o deputado Leong Veng Chai a apresentar na Assembleia Legislativa (AL) uma proposta de debate sobre a matéria.

Questionando se o aumento das taxas “é razoável”, o número dois de José Pereira Coutinho pretende esclarecer uma situação onde afirma existirem interesses por detrás.

“Espero que, através de um debate, todos os deputados possam apresentar as suas opiniões, de modo a ir ao encontro da opinião pública e evitar suspeitas sobre a existência da transferência de interesses entre o Governo e entidades privadas”, pode ler-se na proposta. Leong Veng Chai espera ainda que o Chefe do Executivo, Chui Sai On, “possa reunir amplamente os conhecimentos, a fim de tomar uma decisão resoluta”.

As actualizações das taxas para a remoção de veículos dos lugares de estacionamento ocupados de forma ilegal passaram das 120 para as 750 patacas para as motas. No caso dos veículos, estes começaram a pagar 1500 patacas, bastante mais do que as anteriores 300. O maior aumento regista-se no caso dos veículos pesados e especiais, já que os valores subiram de 450 para seis mil patacas.

“Em 2017 também aumentaram substancialmente as despesas para o desbloqueamento e a remoção de veículos por parte das empresas de parquímetro. Além disso, em várias taxas, registou-se um aumento para o dobro ou mais. Há, por isso, suspeitas de transferência de interesses”, acusa Leong Veng Chai.

Novos aumentos?

O deputado recorda declarações de Lam Heong Sang, director dos Serviços para os Assuntos de Tráfego (DSAT), quanto à possibilidade de aumento progressivo das referidas taxas.

“O director da DSAT revelou, ao ser entrevistado por jornalistas, que era possível que as referidas taxas continuassem a aumentar. Se os cidadãos ignorarem este caso, que nunca antes tinha acontecido, será que o Governo vai continuar a aumentar outras taxas da mesma forma, ou seja, através de um despacho do Chefe do Executivo e sem realização de uma consulta pública?”, questionou Leong Veng Chai.

Um argumento que tem sido utilizado nos protestos é o de que muitas famílias não têm capacidade financeira para suportar estes aumentos, pois já convivem com uma elevada inflação. Algo que Leong Veng Chai também expõe na sua proposta de debate.

“Nos últimos 17 anos, os rendimentos dos residentes só aumentaram ligeiramente. Com o desenvolvimento em flecha da economia, a inflação faz com que os preços dos produtos do dia-a-dia estejam em constante aumento. Contudo, os salários dos residentes não só não conseguem suportar a subida em flecha, como estes também vão ter de suportar a subida do valor das taxas, aumentando, cada vez mais, o custo de vida das famílias.”

O deputado recorda que, na maioria das vezes, não existem mais alternativas a não ser andar de mota ou de carro. “Os residentes que são utentes dos transportes públicos não conseguem prever com segurança o período necessário para chegar ao trabalho e às escolas, por isso, são obrigados a utilizar motas ou automóveis para se deslocarem.”

Vida difícil

Leong Veng Chai considera também que ainda não existem lugares de estacionamento suficientes, apesar das promessas já feitas pelo Executivo nesse sentido.

“Nestes 17 anos o número de veículos registados em Macau teve um aumento constante. De acordo com os dados publicados pela Direcção dos Serviços de Estatística e Censos de 2016, esse número atingiu os 250 mil. Nas Linhas de Acção Governativa para o presente ano, apenas se refere que vão entrar em funcionamento quatro novos auto-silos públicos, onde só se vão disponibilizar 3600 lugares de estacionamento”, refere.

Para Leong Veng Chai, “a actual rede de trânsito é desequilibrada”, sendo que, sem vagas de estacionamento suficientes para todos os veículos, “torna-se mais difícil a vida dos cidadãos”.

“Para melhorar a qualidade de vida, de que ponto devemos partir? Porque é que o Chefe do Executivo não compreende as dificuldades dos cidadãos? Isto é que é ‘melhor servir a população’?”, remata o membro do hemiciclo.

A proposta já foi admitida na AL, mas ainda não há uma data para a sua votação. Caso seja aprovado pelos deputados, o debate será posteriormente agendado.

5 Mar 2017

Apoios | Subsídio provisório de invalidez deverá passar a pensão

A Comissão para os Assuntos de Reabilitação discutiu ontem a possibilidade de tornar permanente o subsídio provisório de invalidez. O plano para tornar a cidade mais acessível a quem tem dificuldades de locomoção também esteve em debate. As regras não vão chegar ao sector privado

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] proposta partiu do Fundo de Segurança Social e foi ontem debatida na Comissão para os Assuntos de Reabilitação. Na primeira sessão plenária do ano, propôs-se que seja eliminada uma das condições exigidas para o pedido de atribuição da pensão de validez. Se a sugestão for acolhida, deixa de ser necessária a obtenção da qualidade de beneficiário antes da verificação da invalidez. Com esta alteração à legislação em vigor, pretende-se que os portadores de deficiências possam ter direitos iguais em termos de protecção social.

“Vamos propor que o subsídio provisório de invalidez passe a pensão de invalidez”, sintetizou o chefe do Departamento de Solidariedade Social do Instituto de Acção Social (IAS). “Por isso, as pessoas que reúnem as condições podem passar a receber a pensão de invalidez, sendo o valor mensal de 3450 patacas”, indicou Choi Siu Un.

Este ano, o prazo de atribuição do subsídio foi alargado até 31 de Dezembro de 2017. A lei que consagra este tipo de apoio entrou em vigor em 2010 e há mais de dois anos que tem estado a ser analisada. A Comissão para os Assuntos de Reabilitação acredita que a mudança resultará na simplificação das operações, com vantagens para os beneficiários.

Só inspiração

Em cima da mesa esteve ainda o projecto sobre as “normas para a concepção de design universal e livre de barreiras”. Macau acordou tarde para a necessidade de acabar com os obstáculos a quem tem dificuldades de locomoção, mas não só – as directrizes estão a ser pensadas também para quem transporta malas e empurra carrinhos de bebé. Agora, a Administração quer arrepiar caminho e ter o processo concluído até ao final deste ano.

No entanto, o projecto diz apenas respeito às instalações com intervenção do erário público. “As normas vão ser aplicadas primeiro nas obras públicas e nas obras subsidiadas. Uma vez implementadas as instruções, devem ser respeitadas pelos serviços públicos”, garantiu Choi Siu Un.

Questionado sobre a obrigatoriedade de aplicação destas regras em construções a serem feitas, no futuro, pelo sector privado, o chefe de departamento do IAS não respondeu directamente. Disse apenas que as directrizes “servirão de padrão para que haja um ambiente sem barreiras”. Além disso, funcionarão como um “exemplo para as instituições particulares”. Serão elas a decidir se querem ou não facilitar a vida a quem, por exemplo, não consegue subir umas escadas.

Em meados do mês passado, a Administração fez cinco sessões de recolha de opiniões sobre este projecto, tendo ouvido 25 entidades que lidam com a reabilitação, 230 pessoas portadoras de deficiência, e 12 organizações profissionais e associações comerciais.

Mais dois autocarros

O serviço de autocarros de reabilitação foi outro assunto abordado no encontro que contou com a presença do secretário Alexis Tam. Neste momento, existem sete veículos em circulação que, por ano, providenciam 30 mil viagens. “Estes autocarros são utilizados com marcação prévia. Agora, estamos a planear traçar outro projecto sem marcação prévia. Estamos ainda a pensar no circuito, porque tem que ver com a rede de transportes públicos, pelo que tem de ser estudado”, declarou Choi Siu Un.

A Caritas Macau vai dar o apoio necessário ao projecto. O IAS – que financia os autocarros – está ainda a planear a introdução de mais duas viaturas. “As instituições particulares vão ajudar-nos a gerir este serviço”, rematou o chefe do Departamento de Solidariedade Social.

5 Mar 2017

37.º Festival Internacional de Cinema do Porto | “O ruído não mata mas o medo sim”

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ia 1 de Março, 16h30, o ecrã do grande auditório Manuel de Oliveira no Teatro do Rivoli abriu-se para o formato 2:39.1. A projecção de “Comboio de Sal e Açúcar”, filme de Licínio de Azevedo, com argumento a partir do livro com o mesmo nome que o mesmo autor escreveu, começa. É uma viagem iniciática e transformadora de 93 minutos, onde a contenção e a exuberância do continente África são expressão da voz humana sitiada em corpos e almas em guerra com as trevas e as visões de luz.

Em 1988, a independência de Moçambique, a afirmação do direito de soberania e consequente anulação do estatuto de território colonizado pelo império português desde o séc. XV, tinha 13 anos. No entanto, o mundo da geopolítica, dividido entre livre e marxista, mantinha em África uma guerra pelo poder. É em Novembro de 1989, com a queda do muro de Berlim, que se precipita o fim de uma visão do mundo divido em dois blocos ideológicos e políticos.

Em 1988, em Moçambique, a guerra colonial continuava, eram outras as potências mandatárias, é sabido, e o nome dado à guerra outro.

Moçambique está em plena guerra civil. A viagem no comboio puxada pela locomotiva D 67, que liga Nampula ao Malawi, é uma oportunidade de comércio para as mulheres com a sabedoria da exigência da sobrevivência num mundo de terror e delinquência com força normativa. Trocam sal por açúcar e garantem desta forma a subsistência das famílias. Uma viagem a 5km/h numa linha sabotada, que expõe e torna vulnerável todos aqueles que a fazem, uma viagem em que se confronta a esperança e o pesadelo da guerra.

Lorenzo Esposito, programador do Festival de Locarno, festival em que o filme esteve seleccionado, escreveu: “Um relógio que já não marca o tempo. A câmara mergulha no cais de uma estação perdida. Um grande grupo de pessoas, maioritariamente mulheres e crianças, ali se sentam em silêncio à espera. (…) trabalhadores, observados de longe por um grande contingente militar trabalham para fortalecer o comboio que parte. (…) um Western africano. Estamos a bordo de um comboio de amor e guerra, em direcção ao Inferno ou ao Céu, onde as mulheres têm que se defender da raiva dos soldados, apesar de algumas se apaixonarem por eles e darem à luz os seus filhos (…) o caminho é longo e perigoso, mais de 700 quilómetros que tresandam a sangue e a morte, interrompidos por sabotagens contínuas: assaltos por milícias ao serviço de senhores da guerra e ataques suicidas por tropas sem nome. (…) Os picos de violência, as mortes mais dolorosas e até os duelos pareciam ansiar fugir para fora do ecrã. São restringidos, não por serem anti-espectaculares, mas para contar a história da dignidade melancólica de um povo roubado dos seus sonhos e esperanças.”

Sim, Western africano, tal como “Apocalypse Now” (Coppola, 1979) é um a Western no Vietname, ainda que aqui sejam bem menos os planos americanos (o plano western por definição), embora sejam claramente assumidos no momento do combate final entre o herói, o tenente Taiar, que mais que a guerra sonha a paz, a agronomia e a tranquilidade de uma vida normal em família como modo de vida, e o bandido, o Alferes Salomão, que tornou a guerra sem lei a marca do seu carácter.

É Licínio de Azevedo quem diz sobre estes dois personagens que “o Taiar é um tenente com mentalidade moderna, científica, que estudou numa academia militar na Ucrânia, ex-União Soviética, e que tem um pensamento diferente por ser jovem e ter recebido formação fora do país. O seu antagonista é o alferes Salomão, que ganhou a sua patente na guerra. É um grande combatente, mas tem um visão mais fechada. Sente-se dono do mundo, dono das mulheres, do comboio.”

Licínio Azevedo, cineasta formado pelo Instituto Nacional de Cinema de Moçambique, nos anos que se seguiram à independência, teve como professores Jean Rouch, Godart, Ruy Guerra, é mestre nesta sua assinatura cinematográfica, capaz de uma contenção, de um fechamento dum comboio que se move enclausurado num carril a céu aberto, num jogo permanente de tensão entre a escuridão e o desejo da luz. E não é fácil resistir à grandiosidade da expansão territorial do continente africano, mas Licínio Azevedo consegue permanecer perto das almas dos homens e mulheres, sem que o fora de campo deixe de estar presente no ecrã, não estando. Por vezes, quando a respiração da narrativa o permite, temos um plano geral da exuberância do território africano mas, quase sempre, num trabalho de grande assertividade, são personagens construídos com uma sabedoria de fino recorte, que a câmara nos dá a ver e sentir.

Ainda sobre o universo do personagens, diz-nos o cineasta: “Neste filme há três grupos de personagens: os militares que protegem e controlam o comboio, entre os quais há os bons e os maus; os trabalhadores dos caminhos-de-ferro que permitem que o comboio siga o seu caminho e que são a intelligentsia; e os civis, sobretudo mulheres, que viajam e que representam a luta humana mais básica: a sobrevivência. É como um microcosmos onde coexistem muçulmanos, cristãos e animistas, numa atmosfera de traições, ataques e morte, mas também de esperança renovada. ‘Quando o sol nasce todas as esperanças se renovam’, já dizia o meu velho Hemingway. E assim se vai mantendo o equilíbrio, porque dentro do comboio todos os passageiros arriscam as vidas. Durante a guerra temos tendência a diferenciar os bons e os maus, mas isso nem sempre é fácil. Aqueles que atacam o comboio são terríveis mas, por vezes, aqueles que o deveriam proteger são piores.”

Há personagens outros, bem desenhados, magistrais, o Caravela, uma espécie de assistente de maquinista, padre e febril nas suas preces religiosas, ou comandante, carismático, animista, líder incontestado.

O filme, uma co-produção entre Portugal, Moçambique, França e Brasil, chega ao Fantasporto após selecção em Locarno e um prémio no Egipto. Veremos o que o 37.º Festival Internacional de Cinema do Porto lhe pode oferecer.

5 Mar 2017

Pequim | Advogados processam autoridades por altos níveis de poluição

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] advogado Cheng Hai quer receber do Governo de Pequim uma compensação pelo “desgaste emocional” e danos para a saúde provocados pelas vagas de poluição que frequentemente atingem a cidade.

“Há quem pense que, com o desenvolvimento económico, a poluição atmosférica é inevitável, mas isso é um erro”, disse Cheng, de 64 anos, citado pela Associated Press.

“Temos leis que protegem a qualidade do ar e níveis altos de poluição podem ser evitados se estas foram devidamente aplicadas”, acrescentou.

As palavras de Cheng ilustram o crescente descontentamento da classe média chinesa com a poluição que afecta a maioria das cidades do país. O tema deve voltar a ser debatido durante a sessão anual da Assembleia Nacional Popular, órgão máximo legislativo da China, três anos após o primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, ter declarado “guerra à poluição”.

Desde então, as autoridades encerraram fábricas a carvão e retiraram os veículos mais antigos e poluentes das estradas.

Dados oficiais revelam que essas medidas têm surtido efeito, com a qualidade do ar em Pequim a melhorar todos os anos, desde 2013.

No entanto, a concentração média de partículas PM 2,5, as mais finas e susceptíveis de se infiltrarem nos pulmões, em Pequim, continua a ser sete vezes acima do nível máximo recomendado pela Organização Mundial de Saúde.

“Somos vítimas da poluição e temos o direito de pedir ao Governo um pedido de desculpas e uma compensação”, afirmou o advogado Yu Wensheng, de 50 anos e natural de Pequim, citado pela AP.

As acusações de que as autoridades falham em lidar efectivamente com a poluição são importantes para mostrar que o Governo não está acima da lei, afirmou Yu.

“Se o Governo não é condicionado pela lei, que mais o poderá condicionar?”, questionou Yu, que em 2014 esteve detido, acusado de apoiar os protestos pró-democracia em Hong Kong e advogados dos Direitos Humanos.

O grupo de advogados tentou ainda processar a província de Hebei, que confina com Pequim, e a cidade portuária de Tianjin, a 120 quilómetros da capital. Dizem que os processos visam sobretudo chamar a atenção para a inércia do Governo.

Prós e contras

Três décadas de acelerado desenvolvimento económico permitiram retirar da pobreza centenas de milhões de chineses, mas tiveram efeitos devastadores para o ambiente do país.

Só este ano, Pequim vai gastar 2,7 mil milhões de dólares (2,5 milhões de euros) a combater a poluição. Parte do dinheiro será destinado a encerrar ou modernizar mais de 3.000 fábricas poluentes, substituir o uso de carvão por energias limpas e retirar das estradas 300.000 veículos altamente poluentes.

5 Mar 2017

Blanche Lachmann, a tal Madame Paiva

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o artigo da semana passada, com o título Boémio macaense suicida-se em Paris, focamos a vida de Branca Lachmann através de dois autores, um romancista, Camilo Castelo Branco, que diz ser ela uma polaca de nascimento e outro, o historiador Padre Manuel Teixeira, que a refere como “filha bastarda do Grão-duque Constantino, da Rússia, sendo uma judia polaca” e “favorita do Sultão de Constantinopla, espia da Alemanha e veio a casar com o alfaiate Francisco Hyacinthe Villoing”. É da tradução deste padre historiador, de um artigo escrito por Peter Flectwood-Hesketh e publicado na revista Country Life de 25 de Setembro de 1969, que complementamos com informações mais detalhadas o anterior texto.

“Ester Paulina Blanche Lachmann nasceu em Moscovo, sendo filha de um pobre alfaiate Martins Lachmann e de sua mulher Ana Maria Klein, judeus refugiados da Polónia. Sobre o seu nascimento aparecem duas datas: – uma, a de 7 de Maio de 1826, dada pelo livro Genealogisches Handbuch der Fürslicher Haüser;” outros, como Frederich Loliée (que em 1914 publicou a relação completa da sua vida), “dão o ano de 1819 – uma diferença de 7 anos”, a qual foi usada por Peter Flectwood-Hesketh. (…) “Aos 17 anos, Teresa – nome que adoptou [somente em Paris] em vez de Ester – casou com Antoine François Hycacinthe Villoing, jovem alfaiate francês tão pobre como ela (ainda que no Handbuch aparece como banqueiro), de quem teve um filho. O jovem casal trabalhava longas horas no rés-do-chão mal iluminado dum prédio de Moscovo. No entanto, Teresa convenceu-se que esta vida não era para ela. Resolvida a alcandorar-se um dia ao pináculo mais elevado da riqueza e do triunfo e fixando uma linha de que nunca mais se desviou, ela, numa bela manhã, lançou-se sozinha para o mundo, abandonando o marido e a sua criança.

Dizem que era dotada duma bela figura, pescoço grego, cabelo espesso castanho-aloirado e olhos soberbos. Com estes atributos, uma inteligência astuta, uma vontade indomável e uma energia quase ilimitada, abriu o seu caminho de capital em capital – Berlim, Viena, Constantinopla – e aí por 1841 chegou à estância alemã de Ems. Aqui encontrou Heinrich Herz, pianista e compositor já célebre, e sentiram-se atraídos imediatamente um pelo outro. Ela tinha 22 anos, ele 35 e depressa Teresa passou a viver com ele como sua <esposa> em Paris, cidade dos seus sonhos, ingressando no seu meio musical e intelectual. Teresa tornara-se, no entanto, uma boa música e com Herz ficaram patronos de muitos jovens profissionais que eram convidados a fazer sua estreia parisiense no salon Herz”. [Heinrich Hertz (1803-1888), um dos mais célebres pianistas e compositores do seu tempo, nascera em Viena, na Áustria, mas adoptou a França como seu país, onde fez a sua vida, sendo professor no Conservatório de Paris. Como na Europa os tempos não eram muito propícios para os judeus, escondeu essa sua origem.]

“Herz estava próspero. Fundou uma fábrica de pianoforte [em 1830], construiu uma casa e um salão de concertos [o salon Herz criado em 1838 na rua de la Victoire, onde muitas vezes Berlioz e Offenbach deram concertos], mas nem os seus recursos bastavam à extravagância de Teresa”, segundo Hesketh. Tal levou Henri Herz em 1848 a “fazer uma tournée na América para recuperar a sua fortuna, deixando Teresa com a criança que tinha dele. Esteve ausente cinco anos e nesse intervalo, os seus parentes puseram Teresa na rua, mas ela levou consigo muitas das suas pertenças”.

Aqui ajustamos tais informações com as de Camilo Castelo Branco que refere, “Ligada primeiro a Herz, pianista célebre, sob a falsa estampilha de esposa, chegou a sentar-se entre as duquesas nos saraus de Luís Filipe. Depois, desvelado o segredo da sua concubinagem, foi expulsa afrontosamente dos círculos também falsamente carimbados de honestidade, e fugiu para Londres, deixando ou levando o pianista”. Compreender-se-á pois a razão dos pais de Herz a terem colocado fora de casa, quando o seu filho se encontrava em digressão pela América e por isso, se desfaz a dúvida que Camilo colocou se terá ou não levado o pianista com ela para Londres. Também o que refere Peter Flectwood-Hesketh sobre o filho que teve de Herz parece ser produto de uma confusão pois este, como mais à frente refere, faleceu em 1862 com 25 anos, sendo assim a data de nascimento a de 1837, logo ainda do tempo em que vivia com o alfaiate. A esse filho [Antoine de seu nome] pagou a educação, apesar de nunca mais o ter visto. Como se pode ler mais à frente nesse artigo, a filha que teve com Herz nascera em 1841/42 e viria a morrer em 1854 com 12 anos. No entanto, há fontes que indicam essa filha, Henriette ter nascido aproximadamente em 1847 e falecido a 1859.

Milionária em Londres

Ainda antes de ter ido para Londres, a senhora Villoing (pois o seu esquecido marido apenas faleceu a 15 de Junho de 1849) retornou à “pobreza, estando demais a mais desesperadamente doente. Teófilo Gautier visitou-a e ela ameaçou suicidar-se; mas prometeu que, se recuperasse, havia de construir um dia a casa mais linda de Paris. Outros foram também em auxílio de Teresa. O jornalista Jules le Comte ajudou-a a ingressar no mundo da moda, ao passo que a sua amiga Ester Guimont apresentou-a a Camilo, famoso modista, que, pressentindo uma cliente promissora, colocou à sua disposição toda a sua indumentária”, segundo refere Peter Flectwood-Hesketh.

Agora sim, em Londres sozinha no seu camarote de ópera, “ameaçada por uma segunda catequese de fome, ajuntou a sua fulminante formosura um vestuário de espaventos, sentou-se langorosamente num camarote de Covent-Garden”, como refere Camilo Castelo Branco. “Ornamentada resplendentemente, atraiu depressa a atenção da jeunesse dorée, tirando bom proveito dos amorosos sucessos. Com a confiança restaurada e os cofres repletos, regressou a Paris em 1848”, como refere Flectwood-Hesketh e com ele continuando, “Surgindo novamente como figura conspícua na ópera, Teresa tornou-se objecto de lisonja na imprensa ligeira e entre os seus admiradores não havia nenhum mais devoto do que o jornalista napolitano Angélico Florentino”.

Com a morte do marido, que se estabelecera num recanto de Paris sem nunca interferir na vida dela, faltava agora apenas a Thérèse um título para lhe dar a dignidade, digna da sua opulência. Encontrou tal em Albino Francisco de Paiva de Araújo, que Flectwood-Hesketh diz ser “marquês de Paiva Y Aranja com quem se casou em Passy em 5 de Junho de 1851.”

Mas quem era este macaense, que Thérèse Esther Blanche Lachmann conhecera em Baden-Baden? Os jornais portugueses transcrevendo parte de “notícias, com outras particularidades romanescas e algumas anedotas um pouco boulevardières, revelam não terem obtido perfeito conhecimento do português que deu canonicamente o seu apelido Paiva àquela mundana”, como refere Camilo Castelo Branco.

5 Mar 2017

Catarina Santiago Costa: “Tenho sempre um especial interesse pela poesia feminina”

[dropcap]T[/dropcap]ens dois livros de poesia editados, ambos pela Douda Correria e ambos em 2016, Estufa e Tártaro (acerca do qual se escreveu recentemente aqui no Hoje Macau). Consideras que são livros diferentes, isto é, com estéticas diferentes, ou antes pelo contrário, há uma continuidade do primeiro livro no segundo?
Estufa foi editado em Dezembro de 2015; Tártaro, em Junho de 2016. O que se passou foi que, aquando do lançamento da Estufa, já o Tártaro estava na gaveta da Douda Correria. O segundo não prolonga nem completa o primeiro. Estufa foi escrito sem saber que era livro, teve de ser cortado à catanada e depois muito cinzelado; o Tártaro nasceu, como o próprio nome indica, caoticamente. Talvez de tão impetuoso, parecia impossível de ser mexido e de uma deformidade fatal. Teve de dormir para ser cirurgicamente cortado e colado.

A parceria com a Douda Correria é para continuar?
Não sei o que o futuro trará mas sei que a Douda Correria dança um pas de deux com os seus autores. Editora livre que é, não dita sentenças nem espera (muito menos exige) exclusividade. Quase todos os autores da Douda relacionam-se com outras editoras. Mas confesso que gosto de ser convidada e foi isso que o Nuno Moura fez, convidou-me a enviar-lhe a Estufa. Quando chegou a vez do Tártaro, já me sentia confortável para o enviar por iniciativa própria.

Há neste momento, em Portugal, muitas jovens mulheres a publicar poesia, e com qualidade. Sugeres alguma explicação para isso?
Na minha opinião, o aumento consistente da educação e da emancipação das mulheres, que, como sabemos, são processos lentos e demoram décadas a produzir resultados palpáveis. O importante é que, mais ou menos jovens, não faltam poetas vivas para encher as estantes dos leitores: Regina Guimarães, Ana Luísa Amaral, Rosa Maria Martelo, Adília Lopes, Cláudia R. Sampaio, Raquel Nobre Guerra, Rosalina Marshall, Maria Sousa, Inês Dias, Rita Taborda Duarte, Ana Tecedeiro, Matilde Campilho e tantas, tantas mais.

Quais as tuas afinidades electivas, na poesia?
Tenho sempre um especial interesse pela poesia feminina, especialmente a de americanas do século XX – Sylvia Plath, Anne Sexton, Sharon Olds… E, apesar de ser do século XIX, também tenho uma fixação pela Emily Dickinson, que tem poemas de uma mística sensual que me cativam – há ali um contraste que gera um equilíbrio estranho.

A Emily Dickison é uma poeta extraordinária. E, para além da mística sensual, com a que te identificas, há também uma solidão imensa naquelas páginas.
Sim, era uma monja confinada ao domicílio, que chegou a frequentar um seminário, e que convoca uma sensualidade e um erotismo místicos que verte na sua poesia. O resultado é uma contenção explosiva. Atesta-o, por exemplo, este poema (aqui, na tradução do Jorge de Sena): “Morri pela Beleza – mas mal eu / Na tumba me acomodara, / Um que pela Verdade então morrera / A meu lado se deitava. // De manso perguntou por quem tombara… / – Pela Beleza – disse eu. /– A mim foi a Verdade. É a mesma Coisa. / Somos Irmãos – respondeu. // E quais na Noite os que se encontram falam – / De Quarto a Quarto a gente conversou – / Até que o Musgo veio aos nossos lábios – / E os nossos nomes – tapou.”

Estás a escrever um novo livro?
Penso que sim. Mas ainda não tenho a certeza.

O que te leva a não ter a certeza?
Tenho escrito em torno de um tema que me tomou – não o determinei mas constato que estou cativa daquele lugar. Mas só digo que escrevi um livro quando não há ponto de retorno, quando já ali está, mesmo que venha a ser sujeito a alterações. Ainda estou naquele estágio em que posso implodir tudo.

Para além da poesia, escreves prosa, ficção ou ensaio?
Por minha iniciativa, escrevo sempre poesia. Mas já escrevi notícias, fiz entrevistas, press releases, sempre em trabalho. Fui convidada a escrever um texto dramático infanto-juvenil em conjunto com a Teresa Coutinho (actriz) e o Pedro Moura (guitarrista) para a Trupe do Bichos. Estou a gostar imenso da experiência. Mas não tenho nenhum projecto em prosa no horizonte.

5 Mar 2017

Lembrando Roosevelt

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o dia 26 de Fevereiro apresentei um seminário sobre as “Relações da China com o Vaticano” numa iniciativa da revista que dirijo. O Cardeal Joseph Zen Ze-kiun, representante da Diocese de Hong Kong, e o Cardeal John Tong Hon, ex-colaborador do Centro do Espírito Santo de Hong Kong, participaram como oradores convidados.

O Cardeal John Tong Hon tem 500 artigos publicados sobre o relacionamento da China com o Vaticano que alimentaram imensos debates e discussões. Por seu lado, o Cardeal Joseph Zen é um homem de posições bem definidas e um pastor fiel aos princípios da fé. Um dos motivos que determinou o convite ao Cardeal Joseph Zen foi proporcionar aos cristãos de Macau a possibilidade de entrarem em contacto com as suas diversas perspectivas sobre esta matéria. Durante os preparativos do seminário vários amigos partilharam comigo a preocupação sobre a possibilidade do Cardeal Joseph Zen não poder entrar em Macau. Na verdade, nunca me inquietei com este assunto e, lembrei-me das famosas palavras do Presidente Roosevelt, “só devemos temer o medo”. Estas palavras continuam a ser aplicáveis aos dias de hoje, porque se ultrapassarmos os nossos medos, já não há mais nada a temer!

Quando os preparativos chegaram ao fim, o Cardeal Joseph Zen entrou em Macau sem problemas e o seminário foi um completo sucesso. Embora tenha exigido um grande esforço, compensou ver que os cristãos de Macau puderam assistir a debates de grande sabedoria e à queda de barreiras invisíveis.

Chip Tsao, um ilustre académico de Hong Kong, também citou Roosevelt num dos seus artigos, “Só um optimista insensato pode negar a realidade ameaçadora que vivemos”. Na minha opinião, o verdadeiro optimista deve, em primeira mão, compreender as realidades ameaçadoras e depois acreditar nas suas capacidades e na sua coragem para derrotar a escuridão e lutar para que a luz regresse.

O Cardeal Joseph Zen é um verdadeiro optimista porque, embora reconheça a crise, está disposto a encará-la com coragem e, sujeitando-se a críticas, luta para despertar aqueles que ainda não se aperceberam dos perigos da situação.

Apesar das suas pequenas dimensões, Macau ganhou um lugar na História moderna. Sun Yat-sen deu os primeiros passos como revolucionário em Macau. O Instituto Cultural restaurou recentemente a Antiga Farmácia Chong Sai e abriu-a ao público. Foi aqui que Sun Yat-sen prestou serviço como médico. Macau é considerado como um dos principais centros missionários do Extremo Oriente a desenvolver trabalho na altura do Natal. É também a porta de entrada de muitos missionários que vêm pregar na China. Depois da fundação da República Popular, na década de 50, grandes grupos de missionários estrangeiros foram expulsos do País. Alguns deles fixaram-se em Macau, como o missionário e Padre Jesuíta Luis Ruiz Suárez S.J., que contribuiu para aumentar o trabalho de caridade e para o desenvolvimento da educação. A Santa Sé encara o papel da Diocese de Macau como um agente de ligação entre a Igreja Católica e a China. Embora as relações entre a China e o Vaticano sejam tratadas ao mais alto nível, Macau é indissociável desta discussão.

O Cardeal Joseph Zen revelou-nos toda a sua generosidade durante a visita a Macau, e provou-se que os receios que certas pessoas alimentavam se devem a uma falta de conhecimento sobre a realidade dos Governos da RAEM e da China. O desenvolvimento das relações entre a China e o Vaticano não está dependente de optimismos nem de pessimismos, mas sim de empenho e coragem. Esta posição é defendida pelo Cardeal John Tong Hon num dos seus artigos, onde afirma “ambas as partes (a China e o Vaticano) precisam de confiar uma na outra, de paciência e de diálogo para resolver os problemas de boa fé e sem comprometer os princípios de cada uma delas.” É sem dúvida uma tarefa extremamente difícil que requer comunicação, negociações e boa vontade.

Já que o Cardeal Joseph despendeu algum do seu tempo para vir a Macau, penso que no mínimo os residentes não devem desperdiçar as suas boas intenções.

No meu próximo artigo vou falar-vos da demissão de Jason Chao da vice-presidência da Associação de Novo Macau e da sua saída de membro da associação.

5 Mar 2017

Os maus e os outros

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi um acontecimento raro sobre um episódio que, infelizmente, nada tem de invulgar. Esta semana, os jornais de Macau publicaram uma corajosa carta de uma residente do território que conta um episódio assustador que teve com a polícia. Em termos muito sucintos, devido a uma multa por excesso de velocidade – da qual não teve conhecimento e que deu origem a um julgamento à revelia –, a autora da carta acabou na esquadra, identificada e detida, depois de ter sido levada pela polícia à chegada a Macau.

Pelo modo como todo o processo decorreu, sentiu-se ultrajada e humilhada. Por considerar injusto o tratamento que teve, deu voz à sua indignação, coisa pouco frequente por estas bandas. Quase sempre por cansaço, outras vezes por sabermos de que nada adianta, habituámo-nos a engolir os sapos tal e qual nos são colocados no prato. Crus e amargos, sem direito a sobremesa para adoçar a boca.

A partilha da carta nas redes sociais teve o resultado que se esperava: a indignação de uns foi acompanhada por relatos de outros acerca de episódios semelhantes. O caso desta residente não é único, não se tratou de um equívoco no modo de lidar com um cidadão, não foi (apenas) um problema de comunicação. É uma questão de atitude.

Há várias histórias do género, com algumas diferenças de contexto, de objecto, da natureza da prevaricação. Em todas elas, sobressai um facto: a polícia de Macau, em termos gerais, tem tendência a tratar um condutor que comete a maluqueira de andar a 74 quilómetros à hora numa estrada em Coloane como se estivesse a lidar com um bandido a sério, daqueles maus e feios e muito, mas muito perigosos.

Não sei o que é que se anda a ensinar na escola da polícia da terra, mas há um princípio que deveria ser trabalhado: os agentes das forças de segurança existem para servir a população. É neste conceito abrangente que cabe tudo o resto: a prevenção, a protecção, a acção, o combate ao que não vai de encontro à lei.

Aos agentes policiais deveria ser também incutida a noção de que é necessário separar o trigo do joio. Uma contravenção ao volante não é o mesmo que um sequestro num quarto de hotel por dívidas de jogo. Um condutor que ultrapassa o tempo do parquímetro não é um doidivanas a 150 quilómetros à hora no Iao Hon, à procura de velhinhas para atropelar. Um residente desesperado por um lugar de estacionamento, que aguarda por um lugar vazio à porta de um auto-silo, não é um agiota. Um pai que pára o carro à porta de uma escola para ir apanhar o filho não é um serial killer. Um doente que estaciona cinco minutos à frente da farmácia não foi branquear capitais através da aquisição de paracetamol.

A polícia não pode ser vista como o bicho-papão da cidade, pelo que não pode comportar-se como tal. Multas para passar e multas por pagar devem ser tratadas como aquilo que são. Os direitos dos cidadãos devem ser respeitados, começando pela informação. Fala-se hoje menos português, mas é inadmissível que um polícia desate aos berros em chinês quando o seu interlocutor, visivelmente, não percebe a língua.

Há que ensinar que o excesso de zelo é de evitar, porque facilmente descamba em abuso de poder. E que medo e respeito não devem ser confundidos porque são conceitos incompatíveis: é impossível respeitar alguém de quem se tem, apenas e só, medo pela farda que veste.

5 Mar 2017

Tam Kam Chun, construtor de barcos | O fazedor de pequenas memórias

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]as mãos de Tam Kam Chun a história não morre, não pode morrer. Onde outrora havia barcos grandes, feitos no seio de uma indústria bem-sucedida, há hoje barcos pequenos, que já não servem para transportar pessoas e mercadorias, mas sim para transportar memórias de um tempo que foi e já não volta.

Este artesão dedica-se a fazer barcos em miniatura, mas foi durante décadas construtor de juncos de madeira. Primeiro na península, junto ao Mercado Vermelho, e depois em Lai Chi Vun. Quis o destino que continuasse a trabalhar no ofício de uma vida, mas hoje as suas mãos trabalham pequenos pedaços de madeira que não são para vender, mas para contar histórias.

“Como já estou reformado e continuo a ter interesse por isto, então faço estas miniaturas, para que as pessoas possam conhecer um pouco desta indústria”, contou ao HM.

É na imensidão do vazio do estaleiro Son Weng, já sem actividade, que diariamente vai trabalhando nas suas peças. “Este estaleiro não é meu, mas de uma pessoa que conheço. Como os estaleiros ficam sem funcionamento, então um amigo emprestou-me este local.”

O trabalho com as miniaturas começou “há pouco tempo”, mas os barcos de grande dimensão começaram a sair das suas mãos quando ainda nem tinha 20 anos. Recorda de então tempos áureos, de quando havia trabalho e cada um aprendia as antigas técnicas como podia.

“Não trabalhava num lugar fixo, estava em qualquer estaleiro, onde fosse preciso. Não tive um mestre fixo e os que faziam os barcos comigo também não tinham. Aprendíamos uns com os outros. Perguntávamos sempre onde era precisa mão-de-obra e íamos aprendendo.”

O rigor acabaria por vir com o tempo. “Precisava de observar a técnica dos profissionais e com a passagem do tempo ia descobrindo a maneira correcta para fazer barcos. Só aí me tornei profissional.”

Na época, construir barcos era uma opção natural. “Antes não havia muitos trabalhos que pudéssemos escolher e tínhamos de ganhar dinheiro para a família. O meu pai também fazia barcos e tinha contacto com esta indústria. Então decidi começar.”

Igual ao original

Muitos dos que se deparam com Tam Kam Chun a trabalhar no estaleiro perguntam se ele pretende vender os pequenos barcos que faz. Mas para este antigo construtor naval o objectivo é mesmo contar um pedaço da história.

“Muitos perguntam-me se vendo as miniaturas, mas levo muito tempo, dez dias ou até meio ano. O objectivo é mostrar como era a indústria antes. A estrutura das minhas miniaturas é diferente dos barcos reais, mas tento esforçar-me e imitar a forma original. São as mesmas técnicas que usava para os barcos.”

Se as suas mãos enrugadas ainda são capazes de construir barcos, as mãos dos mais novos demorariam a aprender o ofício. Os tempos são outros e os interesses também, assegura.

“Não há muitos jovens que queiram aprender a fazer barcos, porque esta indústria já não garante o rendimento. Além disso são precisos vários anos para dominar esta técnica. Os jovens têm de estar mesmo interessados na indústria naval. Levei três anos a aprender as técnicas mais básicas, mesmo quem está interessado não tem hoje as condições suficientes para trabalhar”, aponta.

Ouvir primeiro

Anunciada a demolição dos estaleiros onde trabalhou uma vida inteira, Tam Kam Chun não aceita que o fim chegue de forma súbita. “Os estaleiros são a última amostra que existe sobre esta indústria, vou ter pena se o Governo decidir demolir tudo. O mais importante é que o Governo não fez qualquer planeamento ou consulta sobre isto, para que nós possamos saber se vale ou não manter isto.”

Mesmo que o Governo destrua e construa de raiz, “um novo estaleiro não vai ter história”, considerou. “Na sociedade há várias vozes contra a decisão do Governo e acho que não se pode manter essa decisão. Quero que Governo desenvolva a parte do turismo na zona de Lai Chi Vun.”

Para Tam Kam Chun, a população deveria ter a última palavra, mesmo que fosse contra a manutenção dos estaleiros. “A indústria naval tem uma grande história, que continuou até aos dias de hoje. Os cidadãos também precisam de avaliar se vale a pena manter. Se disserem que não vale a pena, então concordamos. Mas não queria que o Governo demolisse os estaleiros. O Governo diz sempre que quer salvaguardar a história e o património, mas agora quer destruir isto.”

5 Mar 2017

Kim Jong-nam | Coreia do Norte atribui morte a ataque cardíaco

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m emissário da Coreia do Norte negou ontem que Kim Jong-nam, meio-irmão do líder do país, Kim Jong-un, tenha sido assassinado com veneno e atribuiu a sua morte em 13 de Fevereiro a um ataque de coração.

Ri Tong Il, embaixador da Coreia do Norte na ONU, que dirige uma delegação norte-coreana enviada à Malásia para reclamar o cadáver, negou a versão malaia numa declaração à imprensa diante da embaixada norte-coreana, segundo o canal televisivo Channel News Asia.

O embaixador adiantou que a vítima tinha um historial médico de problemas cardíacos e pressão sanguínea alta e assegurou que há fortes indícios de que a sua morte se deveu a um ataque de coração, adiantou a mesma fonte.

Ri disse ainda que se a causa da morte fosse o veneno VX, como disseram as autoridades da Malásia, deveriam enviar-se amostras do agente tóxico para a Organização para a Proibição de Armas Químicas.

Outra verdade

A Malásia indicou, com base numa autópsia preliminar, que Kim Jong-nam morreu minutos depois de duas mulheres, uma indonésia e uma vietnamita, terem lançado para o seu rosto o agente VX, no aeroporto internacional de Kuala Lumpur, a 13 de Fevereiro.

A polícia malaia crê que ambas foram recrutadas por quatro norte-coreanos que fugiram do país no mesmo dia 13 de Fevereiro, horas após o incidente, e pediu a ajuda da Interpol para os localizar.

Siti Aisyah, de 25 anos e nacionalidade indonésia, e Doan Thi Huong, de 28 e oriunda do Vietname, foram formalmente acusadas de homicídio na Malásia na quarta-feira e podem ser condenadas à pena capital se forem consideradas culpadas.

Horas depois de as duas mulheres suspeitas do ataque serem formalmente acusadas, a agência oficial norte-coreana KCNA escreveu que a alegação, no relatório da autópsia, de que pequenas quantidades do veneno extremamente tóxico foram detectadas no cadáver é “um absurdo” a que falta “rigor científico e coerência lógica”.

5 Mar 2017

Ponte do Delta | Au Kam San questiona custos para Macau

Contas são um mistério

O deputado Au Kam San pretende saber o valor total que Macau terá de suportar face às derrapagens orçamentais com a construção da nova ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau. E questiona o silêncio do Executivo sobre o assunto

[dropcap]A[/dropcap] nova ponte que vai ligar Hong Kong, Zhuhai e Macau deverá receber os primeiros veículos ainda este ano, tendo um orçamento superior a cem mil milhões de yuan. Porque o projecto foi sofrendo atrasos e derrapagens orçamentais, com Hong Kong a anunciar, recentemente, que as duas regiões administrativas especiais teriam de investir mais na obra, o deputado Au Kam San questionou o Governo sobre o valor da factura que será suportada pela RAEM.

Numa interpelação escrita, o deputado lembra que o orçamento inicial do projecto estava estimado em 38 mil milhões de yuan, sendo que 15,73 mil milhões seriam nanciados pelas três regiões onde a ponte vai ser construída. Por sua vez, os restantes 20 mil milhões de yuan “seriam pagos através do crédito bancário a ser contraído pelo consórcio do empreendimento”.

“De acordo com essa estrutura de nanciamento, Macau teria de assumir 1,980 mil milhões de yuan. Porém, com a contínua derrapagem orçamental que se tem veri cado nesse empreendimento, qual vai ser, a nal, o montante da des- pesa que Macau vai ter de assumir?”, questiona Au Kam San.

O deputado alerta ainda sobre o silêncio do Governo sobre esta matéria, defendendo que “o público tem vindo a ser iludido e completamente deixado às escuras”.

“Quando o membro do Governo responsável pela tutela desse projecto, Raimundo do Rosário, foi questionado sobre o assunto, apenas respondeu que o ‘Governo tem verba já cabimentada para a ponte sobre o Rio das Pérolas’e, quando questionado sobre se aquele montante seria su ciente, apenas a rmou ‘vamos ver à medida que andamos’, sem acres- centar mais nenhuma informação para o público”, lembra Au Kam San.

E AS LIGAÇÕES?

Para Au Kam San, há também muito para explicar sobre o custo das instalações físicas da ilha arti cial. O projecto é da responsabilidade do Governo local, tendo as obras sido entregues a empresas da China Continental.

Contudo, “não foram revelados por- menores quanto ao montante das despesas relativas a essa parte do empreendimento. Qual é o montante das despesas com essas obras? E quando é que as mesmas vão estar concluídas?”, inquiriu.

“O público tem vindo a ser iludido e completamente deixado às escuras.”

Au Kam San destaca ainda o facto de serem necessárias duas ligações para unir a futura ilha artificial aos novos aterros e também à península, além de serem “indispensáveis as infra-estruturas rodoviárias situadas na zona dos novos aterros, que estão relacionadas com essas duas ligações”.

Também para estes projectos o de- putado deseja saber detalhes. “Quando é que vai ser iniciada a construção dessas três ligações? E quando é que estará concluída? Qual é o orçamento para cada uma das referidas ligações?”, perguntou.

UM MILAGRE

Na interpelação escrita, o deputado de- fende também que “Macau tem passado ao lado da construção da ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau”, pois “olhando para o que está a acontecer, até agora nada se mexeu”.
“Segundo o secretário Raimundo do Rosário, Macau vai tomar medidas necessárias para que a ponte seja aberta à circulação automóvel em finais do corrente ano. Mas ninguém acredita que, em dez meses, possa estar concluída a ligação do troço de Macau da ponte sobre o Rio das Pérolas, no qual se inclui o edifício da inspecção alfandegária de Macau.”

O deputado duvida ainda que “estejam prontos os canais aquáticos que estabelecem a ligação da ilha artificial à zona dos novos aterros e a conexão desta área com a península de Macau, bem como as obras de infra-estruturas desses dois canais localizados nos referidos novos aterros”.

Au Kam San questiona mesmo se “vai haver algum milagre” para que todos esses projectos sejam edificados a tempo e horas. Ainda assim, “até ao momento, a maior incógnita continua a ser o encargo da construção do troço de Macau da ponte sobre o Rio das Pérolas, e o montante da derrapagem orçamental e da despesa que Macau vai ter de assumir. E, além disso, ainda o montante das despesas com as infra-estruturas rodoviárias para a ligação entre essa ponte e a península de Macau”, rematou.

4 Mar 2017

Justiça | São Januário no banco dos réus

Relato de um parto acidentado

Os pais de uma criança nascida no São Januário moveram um processo por negligência médica contra a unidade hospitalar e a equipa que acompanhou o parto. Em causa estão alegadas más práticas médicas momentos antes do nascimento que originaram a paragem cardíaca do recém-nascido, que terão resultado em paralisia cerebral

[dropcap]E[/dropcap]ncontra-se em julgamento no Tribunal Administrativo um caso por erro e negligência médica num parto que resultou em paralisia cerebral profunda do bebé. O processo foi instaurado pela família em 2013 contra o Centro Hospitalar Conde de São Januário, o médico, Huang Yaobin, e a enfermeira, Vong Iok Lin. Os pais do menino, que hoje tem seis anos, reclamam uma indemnização superior a quatro milhões de patacas.

Tudo começou na madrugada do dia 1 de Novembro de 2010, por volta das cinco da manhã, quando rebentaram as águas à futura mãe. O casal apressou-se a seguir, esperançoso, para o hospital. A partir daí, tudo correu mal no nascimento do primeiro lho do casal. A grávida foi medicada com Citocitol, um fármaco que induz as contracções que preparam o feto para o parto natural. Neste momento, adianta salientar que a futura mãe teve uma gestação sem incidentes e entrou na unidade hospitalar com um bebé saudável. Mesmo depois de um dia inteiro com indução, não havia sinais de progresso no trabalho de parto, sem dilatação do colo do útero.

No dia 2 de Novembro continuou a ser dada medicação à parturiente, ainda sem resultados. Este tipo de fármaco provoca contracções que podem causar stress ao bebé. Como tal, entre as 12h e as 14h começam a registar-se alterações nos batimentos cardíacos do feto, alegadamente sem que a equipa médica tomasse conta da situação. A enfermeira que acompanhou a grávida administrou-lhe oxigénio. Esta situação, de acordo com Malcolm Griffiths, especialista inglês em obstetrícia que testemunhou ontem em tribunal, “indicia que alguém cou preocupado, apesar da medida não ter qualquer mérito médico”.

PARAGEM CARDÍACA

Algo não estava a correr bem. De acordo com a testemunha ouvida ontem no Tribunal Administrativo, à preocupação da enfermeira devia ter sido correspondida com uma reavaliação médica. Em vez disso, continuou-se com a medicação, até que tudo descambou. Às 15h34 deu-se a primeira bradicardia no feto, o que significa uma diminuição do ritmo cardíaco que, num bebé, reduz a circulação sanguínea. Malcolm Griffiths esclareceu que mais de 10 minutos desta situação são o suficiente para provocar danos irreversíveis no cérebro, por falta de irrigação de sangue. Os normais batimentos cardíacos de um feto estão entre os 110 e os 160 por minuto, sendo que abaixo dos 100 já há um esforço considerável para um bebé. Neste caso, os batimentos chegaram aos 60 por minuto.

Esta questão, de acordo com a testemunha, deveria ter alertado a enfermeira para a gravidade da situação. Nesta altura, foi reduzida a medicação de indução, mas a resposta deveria ter sido mais robusta, ou seja, parar totalmente a medicação, chamar o médico e começar a preparação para a cesariana. Porém, o bebé recuperou o ritmo cardíaco, “milagrosamente”, segundo a análise de Malcolm Griffiths.

Malcolm Griffiths esclareceu que mais de 10 minutos desta situação são o suficiente para provocar danos irreversíveis no cérebro

Segundo a testemunha ouvida pelo colectivo de juízes, se nesta altura tivesse sido chamado um médico, talvez hoje a criança não sofresse da paralisia profunda que a deixou completamente incapaci- tada para a vida.

Porém, isso não aconteceu. Às 15h59, o ritmo cardíaco do feto voltou a descer para níveis graves de bradicardia, onde se manteve até ao parto, às 16h16. Em resultado desta ocorrência, o bebé nasceu sem pulso, tendo sido reanimado sete minutos depois. Ou seja, es- teve 24 minutos sem oxigénio no
cérebro, algo que, alegadamente, resultou na paralisia cerebral pro- funda do recém-nascido.

CONTESTAÇÃO VIRAL

A contra-argumentação do São Januário, além de ter recorrido ao lugar-comum de que a paralisia cerebral pode ter várias causas, sustentou-se num vírus que a mãe terá contraído. Para ser mais concreto, o citomegalovírus. A hipótese foi afastada pelo especialista em obstetrícia e ginecologia chamado pelos autores do processo. Numa observação às análises realizadas à mãe, Malcolm Griffiths garantiu que esta estava imune ao vírus, provavelmente contraído durante a adolescência, afastando o argumento dos réus. Para o obstetra inglês, não se encontra aí a razão da paralisia cerebral profunda. De resto, os réus argúem que o parto correu com toda a normalidade, que foram seguidos à risca os procedimentos do hospital, não havendo nada a apontar à equipa médica envolvida no parto.

Porém, o resultado foi uma criança totalmente dependente que não se senta, não come sozinha, não anda, que usará fraldas a vida inteira e que apenas consegue comunicar com os olhos para dizer sim, ou não. Um menino sem qualquer tipo de autonomia.

De acordo com o que o HM apurou, o médico, Huang Yaobin, tem outro processo no mesmo tribunal também devido a um incidente que resultou em paralisia cerebral, felizmente, não tão profunda como este caso. É de salientar que depois deste segundo incidente, o clínico saiu do Conde de São Januário, estando agora a trabalhar no Kiang Wu.

O julgamento prossegue no Tribunal Administrativo.

4 Mar 2017

Margarida Saraiva: “É necessário avançar com coragem”

Margarida Saraiva dedica a vida e o tempo à arte. A fazer curadoria no Museu de Arte de Macau, tem a carreira marcada pela dedicação à investigação e à educação. Há três anos fundou a Babel, associação que se dedica à arte contemporânea numa vertente pedagógica, sem esquecer questões ambientais

[dropcap]O[/dropcap] seu nome tem estado, ultimamente, associado à curadoria. Como é que apareceu esta vertente no seu trabalho?
Estudei História de Arte e depois Museologia. Trabalhei muito tempo como investigadora, mas era um trabalho que acabou por ser tornar aborrecido por sentir que tinha pouco contacto com as pessoas. Foi então que comecei a trabalhar voluntariamente em educação e a fazer cursos de artes para crianças. A minha função dentro do Museu de Arte de Macau (MAM) passou a estar mais ligada à educação do que à investigação. Entretanto, decidi criar a Babel para fazer mais coisas e a curadoria acabou por se lhe seguir. Sou curadora das pinturas históricas e contemporâneas do MAM e, em Abril, vai ser inaugurada a primeira exposição com esta função.

O que podemos esperar desta exposição?
É um trabalho centrado na mulher. A exposição divide-se em dois momentos: um baseado em pinturas, aguarelas e gravuras históricas que vão até meados do séc. XX com agenda para Abril e, perto do final do ano, tem lugar um segundo momento que inclui obras feitas apenas por artistas mulheres de Macau. O primeiro momento dá uma visão do papel da mulher na sociedade e a forma como ela é apresentada ao mundo da história da arte. A história da arte reforça o papel que a mulher deve ter. Temos obras sobre os dez trabalhos da mulher na sociedade chinesa, o casamento, a mulher na publicidade e o seu papel na família. Temos também retratos a óleo de mulheres proeminentes na sociedade local. É uma visão alargada daquilo que existe na colecção do museu. Vamos incluir também cerâmicas e tentar que a exposição não se feche, tentei uma abordagem interdisciplinar. A colecção do Museu de Arte de Macau situa-se, de um certo ponto de vista, na con uência de duas tradições artísticas muito diferentes. Temos obras que são maioritariamente de tradição chinesa e outras de tradição ocidental. Juntar as duas coisas na mesma exposição não é fácil, mas penso que consegui encontrar o fio à meada.

Porquê o tema? Uma forma de intervenção?
É absolutamente evidente que o papel da mulher continua a ser subvalorizado na sociedade contemporânea local. Nessa perspectiva, vale a pena pensar acerca desse assunto, até para estimular a criação artística entre as mulheres.

Como é que vê o panorama dos museus e espaços de exposições em Macau?
Macau tem espaços óptimos. A ideia de que não os há é uma falsa questão. A arte, hoje em dia, não precisa de galerias da mesma forma que as instituições não precisam de ter um lugar físico. O que é necessário é criar conteúdos porque há muitas instituições com espaços sem nada e que estão cheias de equipamentos sem ser utilizados. O que realmente interessa é criar conteúdo de qualidade e, quem for capaz de o fazer, tem as portas abertas em todas as instituições. Há também a cidade inteira que pode ser uma galeria gigante e que é um espaço fantástico a precisar de arte em todo o lado.

“É absolutamente evidente que o papel da mulher continua a ser subvalorizado na sociedade contemporânea local.”

Onde estão os artistas para esses espaços?
Nenhuma cidade do mundo trabalha apenas com os artistas locais. É preciso criar sinergias e, nesse particular, os curadores podem dar uma ajuda: pôr as pessoas a trabalhar em conjunto. Colocar pessoas que sabem mais a comunicar com aquelas que possam ter menos oportunidades, os que têm mais conhecimento e menos capacidade económica com o inverso. É preciso fazer um caleidoscópio para que as coisas brilhem. Mas, para isso, é preciso fazer e querer. É necessário avançar com coragem, que é uma coisa que, por vezes, falta. Falta capacidade de visão, falta coragem na realização e falta capacidade de criar esse tal caleidoscópio.

É aí que se insere a Babel?
Gostava de trabalhar de uma forma interdisciplinar nas vertentes da arte contemporânea, da arquitectura e do ambiente com uma missão educativa, ou seja, com o objectivo de gerar oportunidades de aprendizagem reais, concretas, eficazes e, de alguma forma, inesquecíveis para jovens de Macau. O primeiro projecto que fizemos foi o “Influxos”. É uma ideia que envolve pessoas de Pequim, Macau e Portugal. É um projecto em movimento em que cada edição tem início em lugares diferentes. Juntamos estudantes da área do cinema e da arte contemporânea num processo criativo comum. Apresentamos aos alunos a forma como os artistas contemporâneos têm introduzido o cinema nas suas obras. Por exemplo, um filme pode ser concebido para ser projectado numa bola de gelo gigante que está permanentemente a derreter e, neste caso, a forma como vemos o filme, como o pensamos ou o escrevemos é diferente do que se aprende numa escola de cinema – e também não se aprende numa escola de artes onde as disciplinas ainda estão muito divididas. Com o “Influxos” queremos criar uma oportunidade que seja inesquecível, não só pelo facto de permitir aos alunos de várias partes do mundo trabalharem num projecto comum, mas também por promover uma abordagem mais experimental do que a que propõem, hoje em dia, as universidades. Foi um projecto muito bem-vindo pela parte do Instituto Cultural e, como tal, não tivemos dificuldade para que fosse financiado, porque vai ao encontro de toda uma política de promoção das indústrias culturais.

Como é que tem sido a adesão, especialmente dos estudantes do território?
Os alunos são, até agora, escolhidos pelas universidades e cabe às instituições decidirem o método de selecção. Estamos agora a pensar abrir, nas próximas edições, candidaturas independentes. Mantemos o modelo em que há uma participação fechada e, ao mesmo tempo, abrimos espaço a alunos que mostrem o portfólio para poderem ser seleccionados. O novo modelo tem a vantagem de abrir o leque de participações. O sucesso do projecto regista-se quando alunos de Macau descobrem que sabem pouco e que vale a pena investir em estudos em Pequim ou em Portugal. O confronto com a necessidade de mais conhecimento é muito importante para os alunos que nunca saíram do território.

O “New Visions” é outro projecto da Babel, mas com foco na divulgação.
As exposições em Macau são sempre colectivas. É evidente que, numa mostra colectiva, não se consegue ver a qualidade da obra de um artista. As exposições colectivas são muito boas porque mostram muita gente. Isto é óptimo para pôr nos relatórios que as instituições têm de fazer umas para as outras, para justificar gastos e preencher formulários. Dá muito jeito dizer que uma exposição teve 30 artistas, mas o que é que realmente as pessoas viram do trabalho de um criador ou o que é que o artista bene cia com a participação? Quisemos deliberadamente criar uma oportunidade dirigida a jovens artistas locais e trazer a este espaço pessoas que nunca tivessem tido oportunidade de fazer uma exposição individual.

“Há a cidade inteira que pode ser uma galeria gigante e que é um espaço fantástico a precisar de arte em todo o lado.”

Como é que se processa? Não se trata apenas de uma exposição.
Cobrimos todos os gastos de produção da exposição, o que também é uma coisa rara em Macau. As instituições normalmente têm espaços, gastam todo o dinheiro na sua manutenção e acabam por não ter meios para apoiar os artistas.

O resultado é que os artistas que quiserem expor têm onde fazê-lo, mas têm de pagar do seu bolso toda a produção da obra. Isto não acontece em mais nenhuma profissão. O objectivo, aqui, é ainda produzir um livro. Aqui não há produção de um discurso crítico sobre a arte e, como tal, as exposições são apenas acerca de pôr obras na parede. Não há o pensamento do porquê de estarem expostas, de como estabelecem um diálogo entre si, como se ligam ao que é produzido na China e como se articulam com o que se faz no mundo. A qualidade das obras depende de uma malha de referências em relação às quais se situam e que lhes permite produzir discurso crítico visual a um nível mais alargado. Foi neste sentido que quisemos fazer um catálogo que produza esse discurso crítico. É um livro com muito texto que nos permite, a longo prazo, escrever a história da arte contemporânea de Macau.

As preocupações da Babel associam a arte ao ambiente. Como é que se concretiza esta vertente?
Relativamente ao ambiente, acabámos de participar na produção do livro “Árvores e Grandes Arbustos de Macau”, de António Paula Saraiva. O lançamento está previsto para este mês. Trata-se de um livro técnico e é a mais completa compilação sobre as árvores de Macau, numa edição trilingue e com ilustração de artistas portuguesas. Os desenhos são feitos a lápis e aguarela. Originalmente, a intenção era a produção de 256 gravuras mas não houve orçamento para tanto. Já zemos uma exposição no Instituto Internacional, e os desenhos vão ser digitalizados e impressos em tela de modo a circularem pelas escolas de Macau. O objectivo é dar a conhecer os principais arbustos da cidade à população mais jovem. É uma forma de sensibilização para as questões ambientais. Macau é muito densamente povoado e construído, mas não conseguimos ver as árvores. Quando andávamos a fazer o livro era impossível fotografar as árvores inteiras. Há sempre muito ruído e as plantas estão cobertas de pó. Este foi o trabalho que abriu as hostes na área do ambiente.

“Não quero cá trazer um artista que depois se vá embora sem deixar rasto. É fundamental que os jovens locais possam trabalhar em conjunto com artistas que vêm de fora.”

Este ano tencionam criar uma instalação num espaço público em grande escala que conta com a participação de um arquitecto japonês. O que é que vai acontecer?
Na área da arquitectura temos o “Macau Arquitecture Promenade” (MAP) em que intervimos em espaços da cidade. É um projecto que não é tão linear quanto os anteriores. Enquanto o “Influxus” e o “New Visions” vão de encontro às linhas de acção governativa, o MAP vai mais à frente. Não é de nível. A edição de 2017 não está garantida. Temos o programa nalizado, mas ainda não temos orçamento suficiente para avançar. Contamos com a vinda de um artista japonês que resulta de uma parceria que a Babel tem com o Departamento de Arquitectura da Universidade de São José. Surgiu, desta forma, a possibilidade de trazer um arquitecto que trabalha com questões modulares no espaço público. Chama-se Kengo Kuma. Temos o arquitecto satisfeito com a ideia de cá estar e queremos também trabalhar com os alunos da universidade no desenvolvimento do design final da instalação. Não quero cá trazer um artista que depois se vá embora sem deixar rasto. É fundamental que os jovens locais possam trabalhar em conjunto com artistas que vêm de fora.

4 Mar 2017

Kim Jong-nam | Suspeitas acusadas de homicídio. Seul propõe suspensão de Pyongyang na ONU

 

Insistem que são inocentes, que foram enganadas, mas arriscam a pena de morte. Já há duas acusações formais em relação ao homicídio de Kim Jong-nam mas, para já, os mentores do ataque continuam a monte. Ou protegidos pelo regime de Kim Jong-un. O uso de uma arma química altamente mortífera deve ser entendido como um aviso, dizem os vizinhos do Sul e quem trabalha na defesa dos direitos humanos na Coreia do Norte

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s duas mulheres alegadamente envolvidas na morte de Kim Jong-nam foram ontem formalmente acusadas de homicídio. A indonésia Siti Aisyah, 25 anos, e a vietnamita Doan Thi Huong, de 28, foram presentes a tribunal em Sepang. Além das duas mulheres, foram acusados quatro homens de nacionalidade norte-coreana que se encontram em paradeiro desconhecido, depois de terem saído da Malásia em meados do mês passado.

As arguidas são acusadas de terem atacado Kim Jong-nam no Aeroporto Internacional de Kuala Lumpur, no dia 13 de Fevereiro, ao colocarem-lhe no rosto um gás tóxico asfixiante – o VX, um agente nervoso letal. Ao abrigo da legislação da Malásia, as duas jovens poderão ser condenadas à morte, por enforcamento, se forem consideradas culpadas. Não foi interposto qualquer recurso após a leitura da acusação.

Ambas disseram aos representantes diplomáticos dos seus países que foram pagas para participarem no que acreditaram ser uma brincadeira para um programa de televisão.

As agências internacionais de notícias relataram que o dispositivo policial nas imediações do tribunal era grande, com cerca de 200 agentes presentes. A polícia conduziu as mulheres algemadas para o tribunal. À saída, envergavam coletes à prova de bala, um reflexo da preocupação das autoridades malaias em relação à possibilidade de que outros envolvidos no crime queiram silenciar as arguidas.

Espera de mês e meio

Ainda antes do início da audiência, em declarações aos jornalistas, o advogado de Siti Aisyah, Gooi Soon Seng, mostrou-se preocupado com questões processuais prévias ao julgamento. Está marcada uma nova sessão no tribunal para 13 de Abril, altura em que a acusação vai pedir que as duas mulheres sejam julgadas em simultâneo, num só processo.

À porta do tribunal, o advogado de Doan Thi Hong afirmou aos jornalistas que a sua cliente lhe disse estar inocente. “Negou, negou tudo. Disse ‘sou inocente’”, relatou Selvam Shanmugam. “Claro que está obviamente muito nervosa porque arrisca a pena de morte.”

Ontem, as acusações contra Siti Aisyah foram lidas em primeiro lugar, seguindo-se o processo relativo a Doan Thi Huong. Há um homem norte-coreano detido, identificado pela polícia como sendo Ri Jong Chol, mas ainda não foi acusado de qualquer crime.

A polícia malaia deteve as duas mulheres nos dias que seguiram ao ataque. As imagens do circuito de segurança do aeroporto, que tiveram uma ampla divulgação pelos media, mostrava as arguidas a abordarem Kim Jong-nam, com uma delas a colocar-lhe um objecto sobre o rosto. O filho mais velho de Kim Jong-il, que se preparava para apanhar um voo com destino a Macau, morreu 20 minutos depois.

Em declarações feitas em Jacarta, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros manifestou a esperança de que Siti Aisyah possa ser julgada de forma justa. “Esperamos que o princípio da presunção da inocência seja respeitado. O advogado de defesa de Siti fará o seu melhor e desejamos que tenha um julgamento justo, em que sejam respeitados os seus direitos, e que não seja julgada pela opinião pública.”

Doan Thi Huong, a mulher vietnamita, foi detida 48 horas depois do homicídio no mesmo terminal do aeroporto onde Kim Jong-nam foi assassinado. Será a mulher que usava uma t-shirt branca com o acrónimo “LOL” estampado, e que foi captada pelas imagens do circuito de segurança enquanto esperava um táxi, já depois do ataque.

A suspeita indonésia, Siti Aisyah, foi apanhada no dia seguinte. A polícia explicou que, na prisão, teve ataques de vómitos, admitindo que se tratará de efeitos secundários da exposição ao VX. Os diplomatas indonésios que a visitaram depois disseram que se encontra bem.

Segundas intenções

Kim Jong-nam morreu vítima de uma das mais mortíferas armas químicas alguma vez criadas. O VX é muito mais potente do que o gás Sarin, usado na Síria em 2013 e no metro de Tóquio em 1995. Os especialistas dizem que umas gramas de VX são suficientes para causar a morte a muita gente. Existem fortes dúvidas sobre o modo de manuseamento do VX pelas arguidas, uma vez que, sem as devidas precauções, também elas teriam morrido.

De acordo com os serviços secretos sul-coreanos, a Coreia do Norte tem centenas de toneladas de armas químicas, incluindo VX, espalhadas por todo o país. Pyongyang nega que assim seja. Parece não haver dúvidas, entre os analistas, de que o regime de Kim Jong-un, o meio-irmão mais novo de Kim Jong-nam, é o responsável pelo que aconteceu.

“É impossível a uma associação criminosa vulgar obter VX, pelo que é uma prova de que o Estado norte-coreano está envolvido”, assinalou ao HM o activista e investigador japonês Ken Kato. O director da Human Rights in Asia vinca que “não há outro país, além da Coreia do Norte, com razões para matar Kim Jong-nam”.

A utilização deste tipo de químico levanta questões acerca dos verdadeiros motivos de Pyongyang num dos homicídios mais estranhos dos últimos anos. Há quem entenda que a escolha do VX teve que ver com a necessidade de os autores terem a certeza de que não haveria falhas. Outros analistas especulam que, ao matar um homem – aquele homem – num aeroporto internacional, a Coreia do Norte quis mostrar ao mundo o que é capaz de fazer com armas químicas, facilmente esquecidas pela comunidade internacional, que está preocupada com os avanços nucleares do regime.

Depois, existe ainda a teoria de que Pyongyang não pretendia que o VX fosse descoberto, por não querer arriscar mais sanções impostas pelas Nações Unidas.

Ken Kato acredita que a Coreia do Norte entrou num “comportamento que demonstra a incapacidade de tomar decisões racionais”. Se assim não fosse, prossegue o activista, não teria entrado em conflito directo com a Malásia, um dos poucos aliados do regime. “Isto é extremamente perigoso para a comunidade internacional porque o Norte pode vender armas nucleares, químicas e biológicas a terroristas”, sublinha o activista, com vasto trabalho desenvolvido sobre o regime. “Não é um assunto que diga respeito à Malásia, mas sim ao mundo todo.”

O castigo

Os estados que assinaram a Convenção sobre Proibição de Armas Químicas podem invocar que existiu uma violação da legislação internacional no caso Kim Jong-nam. A Malásia faz parte deste pacto desde 1993 – que proíbe a produção, a transferência e a utilização deste tipo de armamento –, mas a Coreia do Norte não.

As autoridades policiais de Kuala Lumpur já deram indicações de que estão disponíveis para fazerem chegar os resultados da autópsia e das investigações às Nações Unidas. Resta agora saber se o Conselho de Segurança da ONU irá tratar o caso como altamente prioritário.

No limite, os estados que ratificaram a convenção podem invocar o pacto e tomar medidas colectivas em relação a Pyongyang que poderão mesmo resultar na suspensão dos direitos e privilégios da Coreia do Norte no âmbito das Nações Unidas. Seul defende este caminho: esta semana, numa convenção sobre desarmamento em Genebra, o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Coreia do Sul, Yun Byung-se, afirmou que a utilização de armas químicas é um aviso, pelo que a comunidade internacional deve agir. O diplomata entende que o regime de Kim Jong-un deve ficar temporariamente impedido de ocupar o assento que detém nas Nações Unidas.

“A comunidade internacional não está habituada a lidar com um país como a Coreia do Norte”, considera o japonês Ken Kato. “Devia perceber que o regime norte-coreano é uma associação criminosa. Deve ser tratado como tal e não como um país em desenvolvimento, em fase de aprendizagem das normas internacionais. De outro modo, o regime jamais mudará.”

 

 

 

 

Só Pyongyang pede o corpo

Membros do Governo da Malásia estiveram reunidos com uma delegação norte-coreana que chegou a Kuala Lumpur esta semana para um encontro de alto nível sobre a libertação do cidadão da Coreia do Norte que se encontra detido, bem como para a entrega do corpo de Kim Jong-nam.

O ministro da Saúde, Subramaniam Sathasivam, disse aos jornalistas que não esteve presente no encontro, mas adiantou que terá de ser tomada uma decisão acerca do que fazer com o corpo, uma vez que não apareceu qualquer parente próximo para identificar formalmente a vítima do ataque do passado dia 13.

A Coreia do Norte diz que o morto é um cidadão norte-coreano, mas nega que seja o meio-irmão do líder Kim Jong-un. Logo a seguir ao assassinato ter sido tornado público, o regime exigiu que o corpo lhe fosse entregue e tentou evitar a realização da autópsia.

A morte de Kim Jong-nam desencadeou o pior conflito diplomático entre Kuala Lumpur e Pyongyang de que há registo, com a Malásia a insistir que o corpo do homem assassinado no aeroporto internacional da capital só será entregue a um familiar próximo após exame de ADN. As agências internacionais de notícias ainda chegaram a dizer que o filho mais velho de Kim Jong-nam, Kim Han-sol, estava a partir de Macau para a Malásia, para resgatar o corpo do pai. Até à data, tal não se verificou.

2 Mar 2017

Eleições | Comissão cria mecanismo para comunicação de infracções

A Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa vai colocar ao dispor dos residentes um número de telefone para que possam informar as autoridades de qualquer irregularidade que detectem no processo eleitoral. A ideia é conseguir umas eleições mais transparentes

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] uma linha telefónica para que os residentes possam denunciar infracções que detectem no processo eleitoral. A novidade foi anunciada ontem pela Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa (CAEAL). O mecanismo resulta da cooperação com o Comissariado contra a Corrupção (CCAC). A informação foi dada ontem pelo presidente da CAEAL, Tong Hio Fong, após uma reunião com o organismo liderado por André Cheong.

“A comissão e o CCAC chegaram a consenso numa questão: depois de termos trocado várias opiniões, vamos disponibilizar uma linha uniformizada para facilitar à população a denúncia de qualquer irregularidade”, disse Tong Hio Fong.

Para o responsável, estão reunidas as condições para implementar o serviço que irá “evitar a repetição do uso nos recursos despendidos”. O mecanismo de comunicação pretende dar respostas rápidas aquando do surgimento de qualquer acção que possa ser tida como irregular dentro da legislação vigente. “Basta um telefonema e o CCAC irá dar resposta imediata no que respeita ao acompanhamento do caso”, referiu.

A linha telefónica insere-se num conjunto de mecanismos de comunicação entre as duas entidades. No entanto, não foram divulgadas mais acções, sendo que o foco dos trabalhos conjuntos é conseguir uma rede de comunicação eficaz. “Chegámos a consenso para que, aquando do começo dos procedimentos eleitorais, tenha início o funcionamento de uma rede de comunicação para assinalar qualquer irregularidade que possa acontecer nas eleições. Vamos trocar informações e, sempre que for detectada alguma infracção, estaremos em comunicação estreita com base nesse mecanismo”, disse Tong Hio Fong.

Eleições às claras

Para o comissário do CCAC, André Cheong, a reunião resultou num entendimento do agrado de ambas as partes. “Estou satisfeito com a comunicação realizada com a comissão de forma a trabalharmos juntos na identificação e resolução dos problemas”, afirmou.

Os mecanismos a serem adoptados demonstram, de acordo com o comissário, o empenho numa “cooperação estreita e feita de forma atempada”.

Caberá também ao CCAC a comunicação com as entidades responsáveis pela execução da lei. “O objectivo é fazer uma boa divisão dos trabalhos e distinguir as infracções detectadas para que possamos reforçar a nossa cooperação, e para que todo o processo eleitoral possa ser justo e claro”, disse André Cheong.

O responsável do organismo não deixou de sublinhar o trabalho que tem vindo a ser feito desde que a Lei Eleitoral foi alterada, no ano passado, e salienta que, agora, é altura de prestar atenção essencialmente a dois aspectos. “Um dos pontos em que nos temos de concentrar é a campanha e a propaganda eleitoral, porque envolve regras específicas que se destinam a reforçar a justiça e a integridade das próprias eleições”, diz. Por outro lado, e não menos importante, é “a execução da lei que resultará da comunicação com a própria comissão”, esclareceu.

Para um melhor resultado das estratégias ligadas à execução legal, André Cheong afirma que irá ser criado um guia de trabalho para dar a conhecer à população a legislação sobre as eleições, de modo a que seja devidamente cumprida.

“No que diz respeito à execução da própria lei, contamos com a organização dos recursos, pessoal e equipamentos para a garantir”, acrescentou, sendo que mais revelações ficam para outra altura. “Não vou revelar concretamente a execução legal no caso de registo de infracções, mas seguiremos as disposições que estão no Código Penal”.

O papel da polícia

Após o encontro com o CCAC, a CAEAL reuniu com as forças de segurança. De acordo com Tong Hio Fong, a reunião versou essencialmente nos mecanismos de troca de informação entre os organismos durante o processo eleitoral de modo a identificar “irregularidades, infracções e crimes”.

Qualquer infracção será comunicada às entidades competentes ou à comissão. Ao Corpo de Polícia de Segurança Pública (PSP) caberá, por exemplo, o controlo do tráfego e de qualquer problema que possa surgir “nestas circunstâncias especiais”. “Durante um determinado período de tempo poderá haver uma maior mobilidade de pessoas e situações, o que pode gerar alguma confusão, pelo que contamos com o trabalho da PSP”, afirmou o presidente da CAEAL.

A Polícia Judiciária vai colaborar no tratamento das queixas e crimes que eventualmente sejam cometidos e denunciados através da linha a criar.

2 Mar 2017

Lucros da SJM caíram 5,6 por cento em 2016

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Sociedade de Jogos de Macau (SJM) anunciou uma queda de 5,6 por cento nos seus lucros em 2016, que totalizaram 2,327 mil milhões de dólares de Hong Kong.

Num comunicado enviado à bolsa de Hong Kong, a SJM reportou uma queda de 11,5 por cento no EBITDA ajustado (resultados antes de impostos, juros, depreciações e amortizações) para 3,417 mil milhões de dólares de Hong Kong, comparando com 2015. As receitas de jogo diminuíram 14,5 por cento, de 48,282 mil milhões de dólares de Hong Kong para 41,272 mil milhões em 2016.

A SJM informou que em 2016 as receitas do grupo geradas pelo mercado VIP caíram 20,5 por cento e que as receitas no segmento de massas diminuíram 8,2 por cento.

“Em 2016, o grupo representou 19,1 por cento das receitas dos casinos de Macau, no valor de 216,709 mil milhões de dólares de Hong Kong. A quota de mercado global do grupo diminuiu em relação aos 21,7 por cento registados em 2015”, adianta o comunicado.

Até 31 de Dezembro, a SJM tinha 315 mesas de jogo VIP em operação (menos 71 em relação a 2015) e 20 promotores VIP (mais um do que no ano anterior).

As receitas VIP do grupo passaram a corresponder a 17,3 por cento do total gerado pelos casinos de Macau nesse segmento, quando em 2015 a SJM detinha 20,2 por cento de quota no mercado VIP.

Segundo a informação divulgada à bolsa de Hong Kong, a construção do novo empreendimento da SJM – o Grand Lisboa Palace – iniciada a 13 de Fevereiro de 2014, deverá estar concluída no final deste ano e abrir no primeiro semestre de 2018.

A SJM disse em comunicado que “o desempenho do grupo em 2017 e no médio prazo é susceptível ao desempenho económico global da região envolvente, às políticas governamentais, e ao nível de visitantes, assim como ao ambiente de concorrência entre os operadores de casinos em Macau”.

“Embora não seja claro por quanto tempo vão manter-se as condições que inibiram o crescimento da receita de jogo, o grupo mantém-se optimista quanto às suas perspectivas de futuro, tendo em conta o potencial de crescimento dos visitantes e despesa em Macau, o desenvolvimento de infra-estruturas que melhorem o acesso à região, e a prosperidade geral da região asiática”, acrescentou.

2 Mar 2017

Obras | Trabalhadores da construção civil com salários em atraso

Um grupo de trabalhadores da construção civil da obra do Wynn Palace reclamam salários em atraso. Em causa estão dois meses, Setembro e Outubro, e um empurrar de responsabilidades de empresa para empresa

Com Vítor Ng

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]ntem de manhã, uma pequena comitiva de trabalhadores da construção civil manifestou-se perto do Wynn Palace a exigir o pagamento de salários em atraso. Apesar de serem apenas cinco, representaram 60 operários que reivindicam vencimentos devidos desde o ano passado. “Os salários de Julho e de Agosto foram pagos, mas o resto ainda não”, revelou Chao Tong Fong, gerente de uma empresa subempreiteira da obra.

Segundo o gerente, das várias vezes que exigiram o dinheiro devido à empreiteira geral, a resposta que obtiveram foi que ainda estavam a calcular o valor dos salários em atraso. O chefe e representante dos trabalhadores em protesto suspeita que poderá estar a ser alvo de fraude.

De acordo com Chao Tong Fong, normalmente e como está estabelecido no contrato, os vencimentos são pagos a cada 45 dias. Mas, passados estes meses todos, os trabalhadores ainda não receberam os salários referentes a Setembro e Outubro. Neste aspecto, é de salientar que a empresa subempreiteira terminou a sua tarefa a 23 de Outubro.

Num encontro entre o empreiteiro-geral da obra do Wynn Palace e os trabalhadores que reclamam salários, foi negociada a verba a pagar, com um resultado que foi insatisfatório para os trabalhadores em questão. “A companhia queria dar-nos apenas 1,820 milhão de patacas, adiantando que o resto do dinheiro não seria pago”, comentou o representante dos operários. De acordo com os trabalhadores, os salários em atraso ascendem aos 2,5 milhões de patacas.

Jogo do empurra

Apesar de não terem concordado com a sugestão da empresa, como os trabalhadores precisavam dos vencimentos, ainda para mais com o Ano Novo Chinês à porta, Chao Tong Fong aceitou em Dezembro o pagamento do montante que o empreiteiro-geral estava disposto a pagar. Ficou com a intenção de solicitar, mais tarde, o remanescente que considera ter a receber.

Até hoje, a situação mantém-se na mesma. Como resultado, o subempreiteiro diz que teve de pedir dinheiro emprestado a familiares para adiantar algumas verbas aos trabalhadores que ficaram em maiores dificuldades. No meio disto tudo, o gerente receia “ter de pagar os restantes salários”, no valor de 680 mil patacas. Chao Tong Fong teme que a sua empresa de construção civil não sobreviva a este prejuízo. Chegou mesmo a adiantar ao HM que, de momento, está sem trabalho e com dificuldades para garantir dinheiro para subsistir.

2 Mar 2017

Ho Chio Meng | Acusação passa a pente fino milhares de contratos

 

As testemunhas ouvidas pelo Tribunal de Última Instância não têm feito referência ao ex-procurador. Wong Kuok Wai, empresário a ser julgado no processo conexo, é a pessoa de quem se fala quando em causa estão transacções e contratos

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]as últimas sessões do julgamento de Ho Chio Meng, o nome do antigo procurador não tem sido referido pelas testemunhas chamadas ao Tribunal de Última Instância. De acordo com o Canal Macau, que tem estado a acompanhar o julgamento, o empresário Wong Kuok Wai é o nome que tem sido apontado quando se fala na maior parte das transacções e contratos assinados.

Segundo a estação de televisão, as testemunhas têm deixado a ideia de que era o empresário que contactava as empresas para a prestação de serviços, sendo que era também Wong Kuok Wai que cobrava comissões às companhias e o responsável pelo pagamento das despesas dos contratos.

Nas últimas sessões, em que a acusação tem passado a pente fino os milhares de adjudicações, o nome de Ho Chio Meng não tem surgido. A acusação tem sublinhado que as adjudicações foram autorizadas pelo antigo líder do Ministério Público, mas as testemunhas, com ligações às empresas subadjudicatárias, não reconhecem sequer o nome do ex-procurador.

O Canal Macau conta ainda que ontem foi possível ver alterações a facturas de uma empresa de construção. O documento original faz referência a despesas de obras de decoração da residência oficial de Ho Chio Meng, onde foi construída uma piscina para crianças que custou mais de 100 mil patacas. Foram também exibidas provas sobre obras na casa do irmão do ex-procurador e na residência de Cheoc Van que serviria para albergar convidados do MP, mas que Ho Chio Meng utilizaria para seu benefício.

Também nestes casos terá sido Wong Kuok Wai a encomendar os serviços, de acordo com o que foi dito em tribunal. Uma das testemunhas explicou que o empresário pediu para que a referência ao local das intervenções fosse retirada das facturas apresentadas ao MP.

De resto, numa sessão em que foram ouvidas mais de dez testemunhas, três delas apontaram Roque Chan – funcionário do MP e irmão da antiga secretária para a Administração e Justiça –, como o outro nome de contacto.

 

Em silêncio

A mulher de Ho Chio Meng compareceu ontem pela primeira vez no Tribunal Judicial de Base para ser julgada pelos crimes de riqueza injustificada e prestação de falsas declarações, noticiou a Rádio Macau. Arguida no processo conexo ao do antigo procurador, Chao Sio Fu faltou às primeiras semanas de julgamento para dar assistência a um dos filhos do casal que está em tratamento hospitalar. No tribunal, Chao Sio Fu permaneceu em silêncio.

2 Mar 2017

João Palla, arquitecto: “Macau inspira brutalmente”

É inaugurada amanhã a exposição “Tracing * Liners”, de João Palla, na Casa Garden. Falámos com o arquitecto e multifacetado artista sobre a beleza de linhas pintadas no alcatrão, acerca de mosaicos urbanísticos, assim como da paradoxal relação entre os mimetismos e a autenticidade de Macau

[dropcap]D[/dropcap]e onde vem o nome desta exposição?
A exposição intitula-se “Tracing * Liners”. Baseia-se no ‘tracing’, que é o acto de delinear, o delineamento. São feitos pelos ‘liners’, os homens que fazem os traços nas estradas. De certa maneira, a exposição também é uma homenagem, um tributo, aos homens que fazem esse trabalho, que são bastante invisíveis na sociedade. Acabei por trabalhar com eles num sentido evolutivo, tudo começou com a observação da realidade das linhas que nos rodeiam. Uma pessoa todos os dias conduz e vê os traços contínuos, linhas amarelas, linhas brancas, por aí fora. Também no passeio há sinais que, ao mesmo tempo que nos guiam, também nos baralham. Uma pessoa vai ao aeroporto e também é bombardeado com sinalética, linhas no chão, não pode passar aqui, nem ali. Nos museus a mesma coisa, não se podem pisar as linhas porque se não fica-se demasiado próximo das pinturas. Alguém pensa nessas linhas, alguém as faz, comecei, simplesmente, a olhar para elas e achar que tinham qualidades gráficas e pictóricas muito especiais. Porque elas variam, se uma pessoa estiver na China elas são feitas de uma maneira, com um código próprio, mas se estiver em Macau elas são feitas com outra forma. Em Taiwan as linhas de proibição são desenhadas a vermelho, aqui são a amarelo. A tinta, em si, também tem muito que se lhe diga, precisa de ser aquecida a 300 graus para ser aplicada, tem cristais reflectores. Essas qualidades da tinta, e de quem a faz, interessaram-me muito e essa é a base da exposição.

Que suportes usou nesta exposição?
Uso a fotografia para registo, uso instalação na rua que, como não pôde ser transferida para a galeria, foi novamente fotografada. A fotografia volta com um sentido diferente, uma coisa é a observação do que lá está, outra coisa é o sentido de registo daquilo que foi feito. Depois há o trabalho que foi feito com os próprios homens que desenham as linhas, que se traduz em pintura e vídeo. São estes quatro veículos que foram usados para exprimir o conceito exposto, uns que ajudam à observação e outros que são de dispersão. 

Enquanto arquitecto, como vê a evolução de Macau?
Vivo cá há quatro anos e meio, estive cá nos anos 1980 e 1990. Sou, mais ou menos, daqui. Sou também, mais ou menos, dali. Em termos arquitectónicos e urbanísticos, não sendo demasiado saudosista, acho que muito do bom património arquitectónico de Macau acabou por ficar sucumbido. Aquilo que restou é uma arquitectura de cariz religioso, ou fortalezas, coisas mais institucionais. Da arquitectura civil pouco, ou nada, restou. Com a avalanche e o advento do betão dos anos 1970/1980, que ainda aconteceu nos anos 1990, a parte do património que era muito interessante, a escala da cidade, transformou-se por completo. Lamento, porque havia uma escala humana que hoje em dia não me parece tão sustentável e que tem implicações ao nível do clima e temperatura, dos ventos que acabam por não correr.

Mas nem tudo é mau.
Não, por outro lado Macau viu um desenvolvimento brutal que também tem lados positivos, que trouxe uma certa internacionalização ao território com pessoas com know-how. Pessoas que vêm de todo o mundo e que, neste momento, coexistem nesta terra, valorizam-na e têm iniciativas. Nesse sentido, acho que Macau melhorou. Mas se formos para os lados dos casinos, acho aquilo um absurdo. Não tanto a escala, mas a arquitectura que se fez, o mimetismo de coisas que já existiam, pastiches. Na minha escola de arquitectura nunca aprendemos a apreciar este tipo de atitude de projecto arquitectónico.

Como arquitecto europeu no Oriente, como é que coabita com as réplicas da Torre Eiffel ou, por exemplo, com a Doca dos Pescadores?
Não convivo muito bem, mas uma pessoa aprende a conviver. Mas, à partida, não é uma coisa com que esteja de acordo. Há aqui arquitectos e designers com criatividade suficiente que podiam ter tornado Macau numa cidade única, que já era, e não num sítio de repetições. Esse mimetismo, essa redundância é a tal ponto que julgo que os próprios chineses preferem ir aos sítios originais. Eles já têm poder de compra para ir às cidades originais, em vez de virem para aqui. Antes havia uma certa fantasia desses lugares, isso justificava-se, hoje em dia não se justifica de todo. Os chineses que podem não vão ao Venetian, vão a Veneza. Penso que as repetições são sítios que se vão esgotar e terão de ser reinventados mais tarde. Talvez tenham servido um propósito durante algum tempo.

Acha que Macau corre o risco de perder autenticidade, no meio desta mutação constante, ou isso é a sua própria identidade?
Uma das coisas que tem caracterizado Macau nas últimas décadas é a sua transformação rápida. A sua identidade depende disso, mas também das pessoas que cá moram. O que vemos hoje em dia é que Macau está a perder essa identidade também pelas pessoas que a habitam, não são só pessoas de cá.

Há um factor transitório na cidade.
Costuma-se dizer que Macau é um ‘melting pot’ de culturas. De facto, foi durante estes 500 anos, mas era a mistura da cultura portuguesa e da cultura chinesa, assim como de poucas outras que não tinham expressão. Hoje em dia há mais pessoas de várias nacionalidades que vivem em Macau. Mais tarde, ou mais cedo, também será interessante ver como as coisas se vão modificar, o poder de Macau se metamorfosear noutra coisa. Desse ponto de vista nada está perdido.

Tudo se transforma, uma espécie de Lei de Lasoivier urbanística.
O que está feito hoje não quer dizer que fique. Interessa-me muito ainda a questão do património vernacular, ou seja, tudo aquilo que as pessoas normais fazem pela sua própria cultura. Isso inclui os vendedores de rua, as farmácias antigas, as mercearias, a ourivesaria antiga já não existe, assim como o homem que fazia as sedas, o alfaiate. Este património pode ser engolido pelo fenómeno globalizante que está a acontecer um pouco por todo o mundo como, por exemplo, em Lisboa. Considero esse património a base da identificação e da autenticidade, esse valor diferente que Macau tem sente-se quando uma pessoa anda na rua e vê as pessoas que vendem maçãs. Esse aspecto está-se a perder, não está a ser cuidado, ninguém toma conta disso e isso é lamentável. Depois há as técnicas de construção tradicionais, algumas ainda se mantêm, como a construção em bambu que é um aspecto a valorizar, como é valorizado o fado. No fundo é um conhecimento empírico que vai de geração em geração. Se essas pessoas que sabem fazer hoje não passarem esse conhecimento, essa arte, também vai morrer. Trabalhei muito em bambu com os mestres carpinteiros, a fazer cenários para peças de teatro e instalações. Interessam-me estas artes antigas de como se fazem as coisas. Esta exposição, de alguma maneira, também está relacionada com isto. Qualquer dia também já não existem os homens que pintam as ruas, são substituídos por máquinas. Eles fazem aquilo manualmente, quase à unha, pintam delicadamente.

No meio disto tudo, Macau ainda é uma cidade que o inspira?
Inspira brutalmente, porque Macau é uma cidade onde há muitas actividades de rua, pessoas de passagem, onde ainda há muita tradição, muitas sobreposições. Além disso, é uma cidade muito fotogénica. Há sempre motivos para uma pessoa se inspirar aqui. Não preciso de ir a lado algum. Macau é uma terra suficientemente rica de sinais para extrair qualquer coisa, é uma cidade que inspirou, desde há muito tempo, artistas e acho que vai continuar a inspirar. Macau sempre teve muita diversidade. Vais à Praia Grande, que era a cidade onde viviam os portugueses, passas da cidade cristã para a cidade chinesa, onde é hoje em dia o Bazar e a Nossa Senhora do Amparo. Ainda hoje se consegue perceber pela textura da cidade, pelo desenho urbano, se vires o tamanho dos quarteirões, as ruazinhas em contraponto com as avenidas mais largas, isso é reflexo daquilo que já estava desenhado há muito tempo. Esse urbanismo é muito interessante, assim como o crescimento sempre evolutivo da cidade com os sucessivos aterros desde o século XVI até hoje, sempre em mosaico.

2 Mar 2017

Hong Kong | Regina Ip desiste de candidatura a chefe do Executivo

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] antiga secretária para a Segurança de Hong Kong Regina Ip anunciou ontem a desistência das eleições para o cargo de chefe do Executivo da cidade, depois de não ter conseguido as necessárias 150 nomeações do comité eleitoral.

Regina Ip disse que não só não conseguiu mais nomeações como perdeu algumas para outros candidatos a chefe do Executivo, depois de alguns membros do comité eleitoral terem mudado de ideias e desistido de apoiá-la.

Qualquer candidato a chefe do Executivo de Hong Kong tem de conseguir o apoio de pelo menos 150 membros do comité eleitoral para concorrer às eleições. O comité eleitoral composto por cerca de 1.200 membros vai escolher o próximo líder de Hong Kong a 26 de Março.

“Não posso continuar a minha campanha”, disse, segundo o jornal South China Morning Post.

Regina Ip foi a primeira mulher secretária para a Segurança de Hong Kong, tendo apresentado a sua demissão em Julho de 2003, depois da contestação nas ruas contra uma polémica proposta da lei anti-subversão no território.

A presidente do partido pró-Pequim New People’s Party disse que iria regressar na quinta-feira ao Conselho Legislativo (parlamento) para continuar o seu trabalho de deputada, escreveu a Rádio e Televisão Pública de Hong Kong (RTHK).

Corrida a três

Os outros três – Carrie Lam, John Tsang e Woo Kwok-hing – submeteram as suas nomeações e foram confirmados como candidatos oficiais à eleição para o chefe do Executivo.

A antiga número dois do actual governo, Carrie Lam, foi a que conseguiu maior apoio entre os membros do comité eleitoral, tendo visto aprovadas 572 das 579 nomeações que submeteu na terça-feira.

Já as candidaturas de Tsang e de Woo obtiveram o apoio de 160 e de 179 membros do comité eleitoral, respectivamente.

Nos últimos meses houve outros interessados nas eleições, mas que desistiram antes de apresentarem a respectiva candidatura oficial. É o caso de Leung Kwok-hung, o activista e deputado da League of Social Democrats (Liga dos Sociais Democratas), também conhecido por ‘long hair’ (cabelo comprido), que no sábado disse que não iria tentar a corrida eleitoral.

2 Mar 2017

ONU | Pequim e Moscovo rejeitam sanções contra Damasco 

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Rússia e a China vetaram terça-feira um projecto de resolução da ONU que previa sanções contra a Síria pela utilização de armas químicas no conflito que afecta aquele país há quase seis anos.

Na votação realizada terça-feira no Conselho de Segurança da ONU, o projecto de resolução, apresentado pelo Reino Unido, França e Estados Unidos, recebeu nove votos favoráveis e três votos contra (China, Rússia e Bolívia).

O Cazaquistão, Etiópia e o Egipto abstiveram-se.

Washington, Paris, Londres, Pequim e Moscovo são os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e têm todos poder de veto.

Na semana passada, a Rússia, aliada tradicional do regime de Damasco, já tinha anunciado o seu veto ao projecto de resolução.

É a sétima vez que Moscovo utiliza o seu poder de veto para proteger o regime de Bashar al-Assad de sanções da ONU. Em seis dessas ocasiões, a China apoiou o veto russo.

Algumas horas antes da votação, o Presidente russo, Vladimir Putin, afirmou que era inoportuno impor sanções à Síria em pleno processo de negociações de paz entre a oposição síria e o regime de Damasco.

A guerra na Síria já fez mais de 310.000 mortos e milhões de deslocados e refugiados, desde 2011.

“Esta resolução é muito oportuna”, afirmou a embaixadora dos Estados Unidos junto da ONU, Nikki Haley, diante dos membros do Conselho de Segurança, após a votação.

“É um dia triste para o Conselho de Segurança quando os membros começam a encontrar desculpas para outros Estados-membros que matam o seu próprio povo. O mundo está definitivamente mais perigoso” após esta rejeição, acrescentou a embaixadora.

O projecto de resolução rejeitado terça-feira previa sanções contra 11 responsáveis sírios, principalmente chefes militares, e 10 organismos, todos com ligações a pelo menos três ataques com armas químicas, em 2014 e 2015. Estes ataques visaram as cidades sírias de Tell Mannas, Qmenas e Sarmin.

2 Mar 2017

Do superior interesse das crianças

 

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão foram passados séculos desde o tempo em que uma criança pelo facto de o ser lhe era negado o querer. De forma mais branda ou rigorosa, a voz delas era uma expressão paralela onde se rasurava de vez a vontade própria, caso tivessem a ousadia de se insurgirem. Elas faziam parte de uma estrutura onde não devia entrar as suas vontades e tanto quanto possível haver mundos separados, onde, felizmente, e por sensatez ambiental, os adultos também não participavam. Passaram-se poucas décadas e toda esta aparente e, quiçá, condenáveis práticas foram revertidas no seu oposto com comportamentos obsessivamente antagónicos de modo a aparecer um memorando da criança-deus, que emerge carregada de quereres, elaborada para centro, estimulada para o todo, opinativas entre coisas, onde para que tudo corresse bem e não se criassem traumas convinha responder de forma obsessionalmente afirmativa também. Tornámo-nos sem querer “entreteiners” da pequenada a quem devíamos amestrar com parcimónia e muitas cautelas.

Veio muito recentemente a público o superior interesse das instituições que, pasme-se, deve ser um núcleo infantil mais abrangente dado que por cabeça o Estado paga bem a quem os realojar num Jardim Escola esperando aí a tão benemérita adopção que porá fim aos seus pesares e alegria institucional, dado que jamais se saberá da dor das mães nestes tão programáticos interesses.

Uma mãe pobre é metade de nada! A lei pune a pobreza como anátema tal como se deu no caso da lepra romana e esquece-se que os fios que ligam a progenitura são bem mais vastos que este exercício da regência do “bem estar”. É que uma criança que nasça nestes pouco interessantes ambientes pode estar ligado a ela, mas nada continua a ser-lhe perguntado por causa dos seus superiores interesses. Amputada ao seu ambiente que, mau ou bom, é onde está a sua mãe, ela parte, depois fica lá aos cuidados pedagógicos e interessados dos tratadores que as mantêm anos a fio até à clivagem final da adopção.

O amor nada tem a ver com os interesses e um lar completamente destruturado terá a sua maneira de o expressar que não devemos censurar ou mesmo esquecer no meio, também ele agreste, desta azáfama bem-dita. Chegou-se ao desregramento inquisitorial de se poder ouvir uma criança a chorar na casa ao lado e chamar-se o “Santo Ofício” sem que se pergunte primeiro se alguém precisa de um conselho ou de uma ajuda. É aqui, nestes superiores contextos, que aparecem os paragonais casais das personalidades públicas com as suas crianças.

As crianças dos casais economicamente fortes estão ilesas de tão brutais e desonrosos tratamentos, mas os seus poderosos pais nem sempre as tratam melhor no contexto humano a que presidem, dado que as crianças sabem ler, andam na escola, observam como ninguém, e, quantas vezes, elas mesmas são o elemento de arremesso entre estes factos, o que as torna sem dúvida extremamente vulneráveis. Mas partindo do princípio que o dinheiro é o interesse em si mesmo, o estar que todos procuram, estas crianças estão então amplamente “defendidas” e aqui entramos na zona negra deste proteccionismo, a usura e a total insensibilidade perante os mais frágeis. Os filhos dos pobres, outrora, também eram retirados bem cedo para servirem as pessoas, para mão de obra, ninguém poria a questão em moldes afectivos, como hoje continua a não ser feito por razões ardilosamente mais polidas mas que servem interesses, mercado e grandes áreas de inférteis anónimos que, por vazio e descrença das suas vidas que nada têm de misantropo, se apoderam das vidas que lhes possam fazer sentir ainda as suas.

É porventura ainda cedo para se fazer uma abordagem da revolta dos “defendidos” mas creio que a ver pela revolta dos escravos não passarão muitos anos para deixarem ensanguentadas muitas áreas de benfeitorias ou, num processo psicótico mais que provável, termos uma percentagem de gentes que raiam o perigoso, dado que mesmo mau, o amor quando é, torna sempre melhores os seres. As boas intenções e as boas práticas podem não ser suficientes face a coisas maiores: teremos nós mais adiante a capacidade de nos metermos em causa? É cedo para sabermos, porém, creio que graves transtornos nos esperam. Rompida a fina película por onde as coisas importantes se inscrevem somos com o tempo personalidades ameaçadoras: lembro aqui Heiner Muller o dramaturgo e poeta alemão que escreveu assim no seu livro «O Anjo do Desespero»:

…. depois do desaparecimento das mães o trauma do segundo nascimento e o que vi era mais do que podia suportar ….

Este autor é quase um arauto terrível, mas nós precisamos da lucidez dos poetas e, talvez, da sua estranha prefiguração para desvendarem o fim provável dos mesmos terrores mostrando assim outros graus da nossa humanidade. O Homem não foi feito para se ajustar aos modelos económicos, mas os modelos económicos, esses, terão de se ajustar a cada pessoa, enquanto não fizermos isto de forma concertada deixando intacto o que une um ser ao outro, produzimos miséria e lixo que no ponto máximo da sua insuportabilidade desaparecerá da ordem das coisas.

Tudo desaparecerá, é certo, na voragem do tempo, mas o amor manter-se-á como vínculo imperecível, e é desta matéria que serão possíveis os seres futuros que saberão de nós por este vínculo nos seus sonhos distantes e poderão algures em qualquer recanto do Universo sorrir-nos ainda.

Orfeu o bardo era um homem que não sabia esperar. Depois de perder a mulher,

porque a possui cedo demais a seguir ao parto ou porque olhou quando não

devia ao tirá-la do mundo dos mortos depois de a libertar da morte pelo canto,

fazendo-a regressar ao pó antes de ela novamente se fazer carne.

Orfeu inventou a pederastia , que evita o parto e está mais perto da morte que o

amor pelas mulheres. (Heine Muller)

2 Mar 2017