Uma história de outro mundo

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]ra um pequeno planeta muito semelhante ao nosso, no qual hominídeos em tudo semelhantes a nós tinham chegado ao topo da cadeia evolucionária e alimentar. Tinham aprendido muito cedo a dominar a natureza; faziam chover onde era necessário chuva, o sol acontecia onde era necessário o sol acontecer e debelavam tempestades e terramotos com comandos vocais que accionavam complexas contra-medidas.

Tecnologicamente, eram muito mais avançados do que somos hoje. Como tinham inventado o teletransporte, não havia acidentes de trânsito ou engarrafamentos. Mas, como contrapartida, não havia ninguém na rua ou nas praias, ou junto dos lagos e das montanhas. As pessoas eram transportadas de uma casa para outra casa, consoantes as suas necessidades. O trabalho tornara-se obsoleto. O complexo industrial de produção de tudo quanto podia ser produzido entrara em autogestão. Não havia guerras, não havia doenças, não havia poluição. Quando as pessoas morriam, eram desintegradas e convertidas numa sopa de partículas que reencontrava o seu lugar no universo.

Existia um Deus, embora fundamentalmente não interventivo, ao contrário do nosso. E esse Deus estava tão velhinho que a sua omnipotência já não era o que a omnipotência deve ser. Já não conseguia, por exemplo, ver dentro de espaços cujo revestimento fosse sólido. Esta aberração óptica – comum a muitas divindades de provecta idade – aliada à tendência de recolhimento que progressivamente se instaurara naqueles hominídeos, faziam com que este Deus desfrutasse cada vez menos da sua condição divina. Era como ter um formigueiro de estimação num terrário, em casa, no qual as formigas evitassem teimosamente fazer túneis junto dos vidros.

Tremelico – tanto quanto uma alma pode tremer – e míope, Deus contentou-se durante alguns milénios em olhar para aquele mundo tão organizado e funcional como uma criança olha para as luzes de Natal. À medida que o planeta rodopiava sobre si próprio na órbita de um sistema binário de duas estrelas anãs brancas, as cidades que deixavam de receber luz solar acendiam as múltiplas luzes pelas quais pintalgavam a superfície do planeta imersa na escuridão.

Mas um dia, Deus desconfiou. E quando um Deus desconfia, a desconfiança tem um tamanho e alcance incomensuráveis. E se as criaturas dele tivessem perecido de uma qualquer doença arqueológica incapaz de ser debelada mesmo com recurso às tecnologias de que dispunha esta civilização? E se tivessem sido involuntariamente envenenados? E se tivessem pura e simplesmente renunciado àquela vida completa e perfeita em todos os sentidos menos no da imortalidade (o único atributo que Deus optara sempre por guardar exclusivamente para si próprio)?

A dúvida e a desconfiança entranharam-se como uma nódoa, e Deus não mais conseguiu ter sossego. Incapaz de perceber, pelo estado muito condicionado da sua audição e da sua visão, a verdadeira condição daqueles a quem chamava seus, o divino entregou-se a um desespero lento como quem se entrega à bebida. Deixou de ter vontade de ser, o que, para Deus, implica conseguir, de facto, não ir sendo, e, como uma estrela que parece infinita e intemporal até perecer, por vezes numa explosão frouxa e morna, Deus deixou-se ir até se anular.

Passados apenas alguns dias, as pessoas começaram a sair das suas casas.

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