O não-lugar

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]cidade é composta por elementos ordinários e elementos de excepção.
Para o turista, o elemento de excepção é muitas vezes o que define a imagem da cidade que está a visitar. Em Paris, por exemplo, poderá ser a Torre Eiffel ou os Campos Elísios.
No entanto, não é certamente essa a imagem que o parisiense tem como identificadora da sua cidade. Poderá até vir a ser algo completamente oposto e distante: grafittis; hip-hop, breakdance e parkour; habitação social nos subúrbios; metro com pneus de borracha.
Porque, verdadeiramente, o que define a identidade da cidade é o ordinário – e não a excepção.

* * *

Fallen Angels, de Wong Kar-wai (1995) é indubitavelmente o meu filme preferido desse célebre realizador.
Muitas são as interpretações possíveis para essa obra-prima. Para mim foi sempre uma crítica à forma como a tecnologia se intromete na interacção do dia-a-dia entre humanos e à tendência para a despessoalização, sobretudo nas grandes cidades – nesse caso, Hong Kong. E, no meio de tudo, chega-se à conclusão que afinal quem melhor consegue entrar em comunicação com os outros é um mudo.
Mas o que verdadeiramente me seduz nesse filme é a forma como Wong Kar-wai retrata Hong Kong – não há aqui um único plano do famosíssimo skyline da cidade, nem tampouco qualquer outro landmark dessa metrópole internacional.
O que há é um leque de espaços que não são lugares singularmente conhecidos, mas que, não obstante, definem incontestavelmente a imagem e identidade de Hong Kong para quem a conhece bem: os corredores de uma estação de MTR; um McDonald’s qualquer no seio da cidade com os seus néons; uma tasca chinesa; os elevadores e a caixa de escadas de um bloco de habitação económica; o interior de um cross-harbour tunnel.
Talvez daí o meu fascínio pelo espaço que não é lugar.

* * *

O não-lugar é esse espaço supostamente sem identidade própria, de passagem, que serve uma função e ao qual não foi sequer dada especial atenção a nível de desenho, não tem grandes aspirações nem dignidade nesse sentido, mas que a cidade, sendo um organismo complexo formado pelos mais diversos equipamentos urbanos, precisa de ter para o seu bom funcionamento.
Nomeadamente,
A caixa de escadas de acesso ao pódio que cheira a mofo por causa da humidade.
O corredor que liga o edifício de escritórios à traseira da cozinha do restaurante onde o cozinheiro corta a carne com o patrão todas as manhãs.
A paragem de autocarros com o painel publicitário retro iluminado.
A casa de banho pública com o aviso para puxarmos o autoclismo no fim da coisa.
O guichet de pagamento do parque de estacionamento onde trabalha o velho que veste o pui-sam branco (*) e tem um leque de rota. (**)
A bomba de gasolina e o cantinho para encher pneus.
A passagem pedonal subterrânea que cheira a chichi.
Esses espaços não aparecem nos guias turísticos. No entanto o nosso dia-a-dia é muitas vezes vivido apenas nesses espaços, nesses não-lugares.
No nosso Macau em particular, o centro histórico e outros espaços de excepção há muito que deixaram de ser nossos. O Largo do Senado – um lugar – passou praticamente para uso exclusivo dos turistas.
O comércio é apenas para eles – quem tem fome que coma ouro, perfumes ou cosméticos.
Não tenho qualquer problema com isso – e não estou a ser cínico. Na verdade, estou-me até borrifando um pouco para isso porque (1) felizmente ou infelizmente, parece ser um fenómeno comum em todas as cidades que vivem do turismo e (2) conforme acima referido, tenho um fascínio particular pelo não-lugar das cidades. Portanto, os monumentos que vão para as urtigas.
Porque o não-lugar é o que define a nossa identidade.
O ordinário e o vulgar que se repete nas cidades tem para mim muito mais valor que a excepção.
Em Macau gosto da pastilha das paredes exteriores, dos aquários com néon verde à porta dos restaurantes, do aparelho de ar-condicionado clandestinamente instalado, da placa onde se lê “indicação do piso parado ao nível dos pisos”, do portão metálico castanho escuro que não condiz com nada do que está à volta e onde a velhinha pendura os cabides com cuecas e deixa secar a esfregona ao fim da tarde.
Porque é isso que caracteriza a minha cidade. O Farol da Guia, as Ruínas de São Paulo e essas coisas todas – sim, são peças bonitas de excepção e muito me orgulho de as ter na minha cidade. Mas deixo-as para os turistas e as suas selfies.
A minha cidade não é, por isso, a cidade do lugar, mas sim a do não-lugar.

Sorrindo Sempre

Já o disse várias vezes aqui: gosto genuinamente de Hong Kong.
Mas, entre outros, há uma coisa que me aborrece profundamente em Hong Kong: aquele típico indivíduo bem comportadinho, que foi sempre bom aluno (ou se calhar até não, não sei, enfim, mas nunca teve uma única negativa porque não fez nada na sua adolescência senão estudar e, como tal, nunca bebeu, fumou nem namorou), cursou sei lá o quê, mas algo a ver com números, talvez estatística, tem um trabalho estável e é, em geral, um tipo competente. E habituado a seguir regras, a cumpri-las todas, todinhas, sempre, porque é assim que deve ser, é assim que está correcto.
E qualquer coisa que não esteja de acordo as regras, ou conforme sempre se fez em estrita concordância com os procedimentos previamente estipulados por escrito, ai meu Deus, pânico, situação gravíssima, ai ai ai…
Por outras palavras, aquele tipo quadrado e estupidamente boring.
Hong Kong está cheio dessas pessoas, essas flores de estufa, esses calhaus, esses anti-criativos, esses ignóbeis. Tenho um nome muito bom para essas pessoas, mas não vou aqui escrever por ser inadequado.
Isto tudo a propósito do meu fim-de-semana em Hong Kong. Passei um sábado no Ocean Park com os meus filhos e o que para mim foi sempre um amusement park – e de alta qualidade, diga-se – onde supostamente se vai para se divertir sem complexos, para have fun de uma forma relaxada… O que encontrei pela frente foi regras, e regras, e mais regras. Em todo o lado.
O expoente máximo foi atingido quando um funcionário entrou em discussão com o meu filho – de 5 anos – a propósito de um jogo de barraquinha em que atiramos saquetas de areia contra cubos de madeira com o objectivo de as derrubar. Porque, segundo as REGRAS, só se pode atirar uma saqueta de cada vez. Mas o meu filho, espertinho, decidiu atirar duas – e derrubou os cubos.
Foi imediatamente confrontado pelo funcionário de uma forma estupidamente autoritária e bruta: “Sorry, that’s not allowed! One at a time, it’s written here! No prize for you!”
É assim: não parti a cara ao homem porque não faço essas coisas diante do meu filho. Mas desejo o pior a esse homem. A sério. E que arda eternamente no inferno com as suas regras.

(*) 背心 : camisola interior sem mangas, muito popular localmente
(**) Palavra em patuá derivada do Rotan, em Malaio, referente ao material vulgarmente conhecido por Rattan.

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