Como vai o mega-empreendimento funerário afectar a relação entre Hong Kong e Shenzhen?

[dropcap]H[/dropcap]oje vamos analisar um artigo publicado no dia 18 de Junho pelo site “passiontimes.com”, de Hong Kong, em que foi revelada a intenção, por parte das autoridades locais, de construir um mega-empreendimento funerário na zona de Lo Wu.

De acordo com a Wikipedia, os “serviços funerários” são designados como “negócios especializados em fornecer enterros ou outros tipo de soluções para o armazenamento de cadáveres, assim como a organização de velórios ou outro tipo de serviços religiosos de forma a marcar o falecimento de um indivíduo, assim como o acompanhamento dos seus familiares. Um exemplo normal deste tipo de serviços incluiria o velório do morto, acompanhado do respectivo funeral, contando ainda com a reserva de uma capela para a celebração de uma missa durante o funeral. As agências funerárias coordenam o serviço de acordo com os desejos dos familiares ou amigos da pessoa falecida. Ao mesmo tempo, esta entidade trata de toda a documentação necessária, assim como de eventuais licenças e ainda outros detalhes adicionais, como por exemplo a coordenação com o cemitério ou a comunicação social, para a possível disseminação de obituários”.

De acordo com as notícias avançadas por esta mesma fonte este enorme empreendimento funerário vai começar as suas operações em 2022. Nessa altura, deverão estar disponíveis no mínimo 200 mil jazigos para o armazenamento de cinzas, espera-se ainda que o empreendimento possa suportar 178 mil cremações por ano.

De momento, Hong Kong dispões de 6 locais distintos para cremações, assim como de 134 igrejas onde se possam realizar serviços funerários, tudo isto para albergar os 42.100 falecimentos que se registam, em média, todos os anos nesta cidade. Pode-se assim concluir que a RAEHK dispõe no presente de mais oferta do que procura nesta área.

O mesmo artigo referia ainda que, em 2012, as autoridades locais decidiram fazer uma auscultação pública justo dos moradores de Sandy Ridge, a zona onde vai ficar localizado este empreendimento. E, apesar de nessa altura ainda haver muita gente reticente quanto ao futuro deste projecto, a maioria destes acabou por concordar na sua realização, facto este que foi comunicado ao Legislative Council no dia 9 de Janeiro de 2013. Mesmo assim, foi concordado que mais discussões sobre o assunto viriam a ser agendadas.

Com a concordância dos residentes de Sandy Ridge, o governo de Hong Kong não deve vir a enfrentar nenhuma dificuldade de maior quando começar a construção deste projecto funerário. Porém, outras vozes se levantaram em protesto, sendo que desta vez a maioria da posição é proveniente de Shenzhen. De acordo com Wang Rui, o representante do Comité Permanente do Congresso Municipal Popular, foi entregue uma proposta ao Governo de Shenzhen solicitando a oposição a este desenvolvimento. As principais razões apontadas para justificar esta tomada de posse prendiam-se com o mau cheiro que os residentes de Lo Wu e Shekou teriam de enfrentar, como resultados das inúmeras cremações que iriam aí ser realizadas, especialmente quando estes locais são assolados por ventos provenientes de sudoeste ou de sudeste. Outro factor determinante tem a ver com a possível depreciação do mercado imobiliário nestas zonas, tendo em conta que ninguém gosta de ter milhares de túmulos como eventuais vizinhos.

O caso ganhou entretanto uma grande popularidade e recentemente tem sido alvo de grande discussão em fóruns da internet.

Não é de estranhar que seja o lado chinês a levantar objecções, pois para além das razões já apontadas, para os chineses os funerais não são vistos com bom olhos, sendo mesmo um tópico tabu para algumas pessoas. O impacto psicológico é tal que algumas famílias chinesas chegam mesmo a proibir os seus filhos de trabalharem como agentes funerários.

Até ao presente momento, as discussões e as respectivas objecções existem apenas do domínio da internet. Mas as implicações que motivaram estas tomadas de posição são vitais. A maior parte dos nossos leitores ainda se devem lembrar dos acontecimentos do dia 8 de Fevereiro do corrente ano, em que mais de 100 residentes de Hong Kong realizaram uma manifestação em Tuen Mun contra os comerciantes suspeitos de estar envolvidos na importação paralela de bens. A maioria destes compra os itens em Hong Kong para que os mesmos possam depois ser revendidos na China, o que obviamente cria uma série de problemas aos residentes da RAEHK, tais como o aumento do custo das rendas e o congestionamento do tráfego nessas localidades, além da degradação da higiene pública e a eventual escassez de bens de necessidade diária como o leite em pó e alguns medicamentos, entre muitos outros. Para resolver o problema, o “visto de visita individual” que permitiam entradas múltiplas foram mudados em Abril deste ano, tendo na altura sido substituídos por vistos que permitiam apenas uma visita por semana. Estas novas medidas foram implementadas com efeito imediato, não tendo as autoridades procedido a nenhum tipo de consulta pública prévia.

Os cidadãos de Shenzhen foram os mais afectados por estes desenvolvimentos, especialmente porque a grande maioria de comerciantes envolvidos neste tipo de negócio eram provenientes da RAEHK. Ficaram na verdade bastante insatisfeitos, pois sentiam que haviam sido prejudicados pelos seus vizinhos de Hong Kong, que eram a real motivação para a nova política de imigração. Apesar de na altura não terem sido forçados a aceitar esta nova medida, temos de nos questionar sobre o seu estado de espírito, especialmente por terem permanecido tão silenciosos na altura.

Agora, com um mega-empreendimento funerário destinado a ser construído em Lo Wu, na fronteira entre Hong Kong e Shenzhen, o seu descontentamento parece ser ainda mais difícil de conter, visto este projecto não trazer nenhuma vantagem para os residentes do continente. Ainda mais difícil é de compreender se atendermos ao facto que até alguns residentes de Hong Kong se mostraram reluctantes em aceitar esta iniciativa. Esta nova farpa no relacionamento entre a RAEHK e Shenzhen, ainda por cima depois do escândalo relativo à importação paralela que resultou num maior controle nas fronteiras, faz com que a harmonia entre estas duas cidades passe no futuro a assumir um papel de extrema importância para todos nós.

Nenhum de nós gosta de ver conflictos e discordância. Se usarmos uma família como exemplo, e imaginarmos uma situação em que o irmão mais velho discute com regularidade com o mais novo, podemos facilmente concluir que isto acarretaria um enorme desgosto para os pais de ambos.

Historicamente, Shenzhen tem prestado uma grande assistência a Hong Kong. Mas o esperado aumento na procura de serviços funerários no futuro torna uma recusa deste projecto praticamente impossível. Tendo em conta os desenvolvimentos recentes, talvez este seja um bom momento para os governantes da RAEHK começarem a escutar com atenção os seus conterrâneos de Shenzhen. Mais ainda, o governo de Hong Kong vai ter saber como minimizar ou cancelar os eventuais inconvenientes que este projecto pode vir a trazer aos residentes de Shenzhen. Que tipo de medidas devem então ser tomadas para garantir uma resolução que possa ser vista com bons olhos pelos cidadãos de ambos os lados da fronteira? Esta questão requer não só uma abordagem do ponto de vista legal, mas vai também testar o talento político e ainda as relações interpessoais dos governantes da RAEHK. Seria então uma boa ideia que os mesmos usassem a relação harmoniosa que se verifica entre Macau e Zhuhai como um exemplo a ser estudado.

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