Valeu a pena

Omnia fui, et nihil expediti.

Séptimo Severo

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde que nasci, vivi rodeado de livros. Esses, os que já existiam lá em casa antes de mim, continuam sendo, e creio que serão para sempre, os que mais me marcaram.

Contudo, a dado momento, naturalmente, a biblioteca do meu pai deixou de ser suficiente para alguns aspectos da minha curiosidade e do meu gosto pessoal. Assim, comecei a comprar alguns livros e, sobretudo, a socorrer-me dalgumas das bibliotecas públicas que então existiam na cidade de Lisboa. As que os governos britânico e norte-americano nos proporcionavam (entretanto, ambas encerradas), contam-se entre as que me foram mais úteis.

É bastante provável que tenha sido aí que se geraram e estruturam vários aspectos da minha anglofilia, um amor por um Reino Unido que só muito tangencialmente existe e talvez nunca tenha existido de outro modo, por uma selecção que resulta numa invenção por medida. Mas não será sempre assim, com todos os amores?

Amo Madrid. Gosto do ruído das ruas e dos bares, dos seus restaurantes e tascas, do mercado de San Miguel e de outros mais pequenos, incrustados nos bairros, do Museu do Romantismo, da Real Academia de Belas Artes de San Fernando, do Museu Lázaro Galdiano, dos três grandes museus, mesmo se com filas à porta, etc.

Também gosto muito de Bruxelas, da Bélgica, em geral, e de Bruxelas, em particular. Uma cidade mal-amada pela maior parte dos que a visitam. Gosto do pequeno Impasse Saint-Jacques, do teatro de marionetas Toone, de mexilhões com batatas fritas, do Museu dos Instrumentos Musicais, de um densíssimo ragout que comi num pequeno restaurante familiar ao pé do Menino Mijão, dos Musées Royaux des Beaux-Arts, da brasserie A La Mort Subite, etc.

Gosto muito de uma pequena vila piscatória na Cornualha, chamada Polperro.

Amo, mais do que qualquer outro lugar, uma minúscula aldeia de xisto, atravessada por um rio, no meio da Beira Litoral. Dessa, não vos direi o nome.

Acerca de Lisboa também não falarei muito. A minha relação com a cidade é demasiado pessoal, quase doentia, certamente dolorosa, para que a minha experiência possa aproveitar a terceiros. Não, não faz sentido eu falar da Lisboa que existe e não tenho idade para falar da Lisboa-aldeia, de aguadeiros e choras.

Contudo, recordo uma cidade em que muitos aspectos desta última sobreviviam ainda, nos bairros históricos, a par de cinemas e centros comerciais microscópicos, sobretudo nas Avenidas Novas, os quais anunciavam já os muitos desmandos que, paulatinamente, foram tomando conta da cidade, que ganharam dimensões assustadoras durante o “cavaquismo”, e que tiveram a sua apoteose no verdadeiro monumento urbanístico-arquitectónico à saloiice triunfante que é o Parque das Nações.

Limitar-me-ei aqui a listar alguns museus lisboetas que me encantam: a Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, a Casa-Museu Fundação Medeiros de Almeida, o Museu de Macau, o Museu da Carris, o Museu Geológico (um museu de um museu…), o Jardim Botânico Tropical (apesar do estado ruinoso em que se encontra).

Como já devem ter percebido, os museus, alguns museus, sem didactismos ou tecnologias, mais ainda do que as bibliotecas, sempre foram os locais onde me senti melhor. Porque muitos deles estão quase sempre vazios, o que convém aos momentos em que me apetece fugir do mundo, porque não pertencem ao tempo e ao espaço presentes, porque combinam bem com uma certa forma de aristocracia, novecentista, vitoriana para ser mais exacto, que sempre cultivei de mim para mim.

Certa vez, inserido num grupo, fui realizar um espectáculo a Braga, ao Museu Nogueira da Silva, outro dos meus preferidos de Portugal (o predilecto é, certamente, a Casa dos Patudos, em Alpiarça). Ao chegarmos ao museu, que era suposto providenciar-nos alojamento, a senhora que nos recebeu disse que ficaríamos a dormir no próprio edifício. Supusemos que, nas traseiras, algures por detrás do belíssimo jardim, houvesse um anexo onde seríamos hospedados.

Qual não foi o nosso espanto (perdoem-me a formulação batida) quando fomos conduzidos a quartos que integram o espaço do museu e as camas de dossel e demais mobiliário foram postos à disposição dos nossos reais costados!

Em circunstâncias várias, tenho dormido em hotéis de muito luxo, aos quais, aliás, em geral, preferiria uma hospedaria modesta. Mas nunca antes nem depois daquela noite dormi num local tão condizente com os pergaminhos que a mim mesmo me outorguei.

De facto, às vezes, sabe bem sermos bem tratados. De tal modo que só então nos apercebemos do bem que nos faz, da falta que isso nos fazia sem que nos inteirássemos.

Há uns anos, decidi presentear-me, e à minha namorada de então, com uma viagem à Grécia, sem cuidar do facto de que a Páscoa ortodoxa decorria nesse período. O nosso destino final era a ilha de Spetses, uma das Ilhas Sarónicas, logo a seguir a Hydra.

Em Atenas, encontrámo-nos com um conhecido, calhou em conversa perguntar-lhe qual o melhor restaurante da ilha, tendo em vista o jantar da noite de Páscoa, e recebemos uma resposta cabal, quase impositiva.

O que não sabíamos é que a ilha iria estar repleta de atenienses e que uma chuva copiosa se abateria sobre todos nós.

Assim, ao chegarmos à porta do restaurante recomendado, uma turba cercava já a entrada, sem que, todavia, a sorte lhe sorrisse. As mesas estavam todas reservadas, e o mesmo deveria suceder nos demais estabelecimentos.

Preparávamo-nos, pois, para regressar ao hotel e debatermo-nos com uma longa noite de larica quando o dono do restaurante me perguntou: “Portugueses?”; e, ante o nosso espanto, nos conduziu à mesa que o tal conhecido, providencialmente, nos reservara.

E mais espantados e agradecidos ficámos quando, após o excelso repasto, nos foi servido, junto com uma travessa de sobremesas variadas, o anúncio de que a conta fora, previamente, saldada pelo nosso anjo da guarda.

Nessa noite, para mais embalados pelo marulhar das águas que lambiam as fundações do hotel, dormimos um daqueles sonos que não nos é dado dormir todos os dias.

19 Out 2017

Irma | Portugueses em Cuba retirados para zonas seguras

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s portugueses que se encontrem em estâncias turísticas em Cuba estão a ser retirados para locais mais seguros pelas autoridades locais, devido à passagem do furacão Irma nas Caraíbas, disse à Lusa o secretário de Estado das Comunidades.
“As autoridades cubanas pediram-nos para transmitir que todos os cidadãos que se encontram em turismo naquela região serão deslocalizados para outros locais onde se prevê que não haja consequências de maior com a passagem do furacão”, afirmou José Luís Carneiro à Lusa, num novo balanço sobre a situação de portugueses afectados pelo Irma, o mais poderoso furacão atlântico numa década, e que já causou dez mortos. O gabinete de emergência consular está em contacto permanente com as autoridades locais e embaixadas e postos consulares, bem como com as agências de turismo portuguesas, que, por sua vez, contactam com as unidades hoteleiras. “Os cidadãos [portugueses] em Punta Cana [República Dominicana] estão bem”, assegurou.

SSM | Gastroenterites em queda

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s casos de gastrenterites têm vindo a diminuir. A informação é dada pelos Serviços de Saúde de Macau (SSM) e ilustrada com números. Houve uma redução de 253 casos a 30 de Agosto – o que pode ser considerado um valor alto – para 127 casos a 6 Setembro. Os SSM referem ainda que estes casos podem ser considerados de esporádicos, não estando relacionados com restaurantes ou alimentos em específico. Até à passada quarta-feira, foram também notificados sete casos de gastroenterite colectiva, envolvendo cada um entre duas a cinco pessoas, o que representa um ligeiro aumento em comparação com o habitual. Os serviços alertam ainda que o risco de ocorrência de várias doenças transmissíveis após a tempestade ainda não está completamente eliminado e que a situação de doenças transmissíveis continua a ser monitorizada

8 Set 2017

Timor-Leste | Português condenado fala de incongruências na sentença

“Fomos todos enganados”

Tiago e a esposa, Fong Fong Guerra, foram condenados a oito anos de prisão pelo tribunal de Timor-Leste pela co-autoria do crime de peculato. Em entrevista, Tiago Guerra diz que há incongruências na sentença e muitas dúvidas sobre o paradeiro do dinheiro que o tribunal afirma estar nas contas do casal. O português, que aguarda a decisão do recurso, fala de entraves na sua defesa

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]erdeu 14 quilos enquanto esteve preso preventivamente em Díli. Tanto ele como a esposa necessitam de ser operados e de tratamento médico que não conseguem ter em Timor-Leste.

Do país não podem sai r por terem os passaportes confiscados e estarem sujeitos ao termo de identidade e residência. Os pedidos para que possam procurar ajuda médica no estrangeiro, foram entretanto recusados.

Eles são o casal português Tiago e Fong Fong Guerra, que desde 2014 se vêem a braços com um caso na justiça timorense. No passado dia 24 de Agosto foram ambos condenados pelo tribunal a oito anos de prisão pelo crime de co-autoria num caso de peculato, tendo sido absolvidos dos crimes de branqueamento de capitais e falsificação de documentos. O tribunal condenou-os ainda ao pagamento de 859 mil dólares.

Foram acusados de “prejudicar as finanças e a economia do Estado” de Timor-Leste, por alegadamente se terem apropriado de fundos oriundos da indústria petrolífera, que pertencerão ao país.

Tiago Guerra está na fase de recolha de mais provas para sustentar o seu caso. “Estes dias têm sido muito complicados. Somos condenados por um crime que não cometemos e estamos a ver as nossas vidas destruídas”, contou ao HM.

Tiago Guerra não faz a mínima ideia de quando será proferida a última de todas as decisões. “Aqui em Díli o tribunal de recurso pode demorar um ano ou dois a apreciar um caso. Aqui há dias houve uma decisão que tinha sido interposta em 2014, ainda estava preso. Pode demorar muito tempo.”

O português diz não aceitar a sentença e fala de entraves na apresentação de provas durante a preparação da sua defesa.

“A questão mais importante aqui é o direito à defesa. Os juízes tinham dúvidas, e isso está escrito no acórdão, sobre o paradeiro dos fundos. Queríamos chamar as testemunhas que fizeram a transferência, mas foram todas negadas, os juízes indeferiram esses pedidos. Depois tentamos ainda trazer uma testemunha do banco que fez a transferência, mas o pedido também foi indeferido”, contou.

O português adiantou que “sem direito à defesa, e sem cumprir os princípios básicos de justiça, tem sido muito complicado pensar em como podemos fazer isto”. “Estamos focados na apresentação do recurso e em garantir que está lá tudo”, acrescentou.

Onde está o dinheiro?

Em 2011, Tiago Guerra detinha a Olive Unipessoal, uma empresa sediada em Timor-Leste, a partir da qual efectuava negócios e recebia pagamentos por trabalhos de contabilidade, consultoria e auditoria. Desde 2010 que Fong Fong Guerra, a sua esposa, detinha em Macau uma outra empresa, a Olive Consultancy.

Segundo Tiago Guerra, foi esta empresa que serviu como intermediária no pagamento de 860 mil dólares norte-americanos entre uma sociedade de advogados norueguesa, em representação de uma empresa, a uma outra empresa norte-americana. O pagamento, feito através de um contrato de agente depositário (contrato escrow), foi feito a convite de Bobby Boye, nigeriano com nacionalidade americana.

Esse contrato valeu à Olive Consultancy o pagamento de dez mil dólares americanos, sendo que, a partir da transferência do dinheiro para os Estados Unidos, Tiago Guerra assume nunca mais ter tido contacto com Bobby Boye.

Boye, que chegou a desempenhar funções como assessor do Estado timorense no sector do petróleo, cumpre hoje pena nos Estados Unidos pela prática de vários crimes financeiros.

Tiago Guerra fala das diversas incongruências que encontrou na leitura da sentença que o condenou a si e à sua esposa, relativas ao paradeiro do dinheiro.

“Os juízes dizem que o dinheiro (860 mil dólares) foi enviado e saiu da conta, como ficou provado graças aos peritos do Banco Central, mas depois dizem que está em parte incerta. Há uma terceira afirmação de que o dinheiro está nas nossas contas em Macau. Quando têm estas dúvidas, penso que o principio da defesa não está a ser respeitado.”

Para descobrir o rasto do dinheiro, as autoridades timorenses enviaram cartas rogatórias, a pedir diligências e informações, às autoridades de Macau.

“Pediram cartas com informações sobre nós, e foi enviado um resumo, assinado pela Polícia Judiciária e Interpol, de todas as contas bancárias em nosso nome. O saldo de todas essas contas dá pouco mais de seis mil dólares. Dizem que estão congelados 860 mil dólares? Nessa altura estava preso, não tive nada a ver com esse pedido. [As autoridades timorenses] ignoraram todas essas informações”, clarificou Tiago Guerra.

O português, que foi condenado por alegadamente ter transferido dinheiro que pertence aos cofres públicos de Timor-Leste, afirma ainda que a sentença que ouviu não dá certezas sobre se os 860 mil dólares pertencem, de facto, ao país.

“As autoridades dizem que o dinheiro que foi transferido para a nossa conta lhes pertencia, mas essa é outra questão. Isso não ficou provado em tribunal. A lei diz que os pagamentos de quaisquer receitas do petróleo devem ser feitos directamente ao fundo soberano, que pertence ao Estado timorense e cuja conta está na Reserva Federal em Nova Iorque. Estamos a falar de um banco dessa dimensão”, referiu.

Tiago Guerra questiona: “a partir do momento em que o dinheiro não foi transferido para lá, alguém pensa que pertence ao Estado timorense?”

O português assegura que, quando fez a transferência do montante, em 2011, jamais poderia imaginar que esse dinheiro pertencia a Timor-Leste.

“Só em Dezembro de 2016, quando tivemos acesso aos autos, vimos que o dinheiro está em disputa entre a empresa norueguesa e o Estado timorense. Até então não tínhamos a mínima ideia de que o dinheiro poderia pertencer a Timor e muito menos que viesse dos impostos [da indústria petrolífera].”

Alguma ingenuidade

Tiago Guerra, licenciado em engenharia e com carreira feita na área das telecomunicações, chegou a Timor-Leste em 2010, depois de ter passado pelo Brasil e pela China. Trazia na bagagem uma proposta para abrir a Digicel, empresa irlandesa, em Timor-Leste, projecto que falhou.

“A empresa contratou-me para começar uma empresa de operações de telecomunicações, e quando cheguei não havia uma licença nem a legislação que permitisse ter a licença. Não havia nada.”

Na cabeça do casal Guerra começou a pensar-se a ida para Macau, e foi nessa altura que foi criada a Olive Consultancy. A ideia era colocarem os filhos na Escola Portuguesa de Macau, onde tinham uma reunião agendada que nunca chegou a acontecer, devido ao facto de terem sido detidos no aeroporto de Díli dois dias antes.

A ligação do casal Guerra com Bobby Boye surgiu pelo facto de serem vizinhos.

“Houve a necessidade de um agente depositário e na altura Boye era uma pessoa bem vista aqui. Sei que entretanto fomos todos enganados e ludibriados por ele. Na altura tinha uma óptima reputação aqui, eu diria que era o assessor mais visível em Timor-Leste. Era recebido por todos os ministros. Quando recebemos esta proposta decidimos avançar”, lembrou Tiago Guerra.

Hoje o português não tem duvidas de que foi algo ingénuo na hora de aceitar este contrato.

“Nunca pensei que alguém pudesse ser assim. Éramos vizinhos, quando cheguei a Díli a casa dele era mesmo ao lado da minha. Agora sabemos que é criminoso, está a cumprir a pena, e que já tinha estado antes na prisão. Mesmo assim conseguiu ser escolhido no processo de contratação de um assessor internacional.”

Tiago Guerra frisa ainda não compreender como é que o tribunal timorense nunca notificou Bobby Boye como co-arguido no crime de peculato.

“Não sei como é que estou a ser condenado de ser co-autor de um crime de peculato, quando o autor do crime nem sequer foi notificado pelas autoridades. Está a cumprir pena nos Estados Unidos e são conhecidas todas as informações sobre ele. Dizem que não o conseguem encontrar? Essa informação é difícil de aceitar”, remata.

5 Set 2017

Tufão Hato: Escola Portuguesa de Macau com “maiores danos de sempre”

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] tufão Hato provocou hoje os “maiores danos de sempre” na Escola Portuguesa de Macau, com a queda de dois muros exteriores – incluindo um mural do Vhils – além de árvores, e janelas e portas partidas, disse à Lusa a vice-presidente.

“Sem sombra de dúvida foram os maiores danos de sempre”, disse Zélia Baptista.

Numa visita da Lusa à escola foi possível constatar um amontado de cimento dos muros que estavam a delimitar dois jardins exteriores, a queda de quase todas as árvores na zona de recreio, e algumas janelas e portas partidas, sobretudo na ala mais nova das instalações, junto ao hotel Grand Lisboa.

Uma das ruas junto à escola – onde o artista português Vhils tinha em Junho esculpido um mural – continuava, ao início da noite (tarde em Lisboa), cortada ao trânsito, com árvores arrancadas a atravessar a estrada, e um candeeiro de rua tombado junto a uma paragem de autocarro estilhaçada, testemunha da força dos ventos que assolaram o centro da cidade.

Zélia Baptista explicou que a ala nova da escola foi “bastante afectada por placas que voaram do Grand Lisboa”, situado a poucos metros.

O tufão Hato partiu também um painel em vidro na zona da cantina, e causou danos num carro da direção e nos ares condicionados instalados nos telhados da escola.

Zélia Baptista disse à agência Lusa que já foi feito um levantamento dos estragos, mas que “ainda é cedo para avaliar os prejuízos”.

“Amanhã [quinta-feira] é preciso conversar com os elementos do conselho de administração, planificar as intervenções a realizar, e assim dar-se o máximo para se conseguir começar as aulas no dia 6 conforme previsto”, afirmou a vice-presidente.

“Fiquei muito frustrada. Senti uma mágoa muito grande quando cheguei à escola. Parecia um cenário de destruição total e já tínhamos practicamente tudo pronto para o início das aulas”, afirmou, indicando que já tinham sido realizadas limpezas, pinturas e algumas intervenções no interior e exterior.

A prioridade, explicou, “é limpar a sujidade e lamas e remover o lixo. Depois é pedir orçamentos e começar as obras, o mais rapidamente possível”.

“Agora voltámos quase à estaca zero”, disse, afirmando que os trabalhos deverão começar “pelas salas de aula, recreios e cantina”.

24 Ago 2017

Entrevista | Cláudia Varejão, realizadora

O filme “Ama-San”, da realizadora portuguesa Cláudia Varejão, integra o ciclo que está a decorrer na Cinemateca Paixão, dedicado ao cinema documental. O interesse pelo Oriente vem de longe. A produção dedicada às “amas”, mulheres mergulhadoras japonesas, já foi galardoada em vários festivais e é um momento de encontro entre a cineasta e este lado do mundo

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo é que apareceu a ideia de fazer “Ama-San”?
Tive conhecimento destas comunidades de mulheres mergulhadoras em 2012, ao ler um livro de poesia de uma amiga, onde encontrei uma referência aos seus corpos que partiam à procura de pérolas, nas zonas costeiras do Japão. Na altura, não sabendo se era uma imagem ficcionada pela autora, comecei a pesquisar. Impressionou-me muito o que fui encontrando, desde a existência desta prática, que tem cerca de dois mil anos de existência, à bravura destas mulheres que arriscavam as vidas num trabalho tão duro. Estamos a falar de um contexto patriarcal, absolutamente dominado pelo poder dos homens e onde estas mulheres, muitas vezes, são o elemento estrutural na economia da família. Preocupou-me também que estivesse diante de uma tradição em vias de extinção. Ao longo do processo, tive a sorte de me fazer acompanhar de pessoas que acreditaram na minha vontade e capacidade de fazer este filme. Recebi uma bolsa da Fundação Oriente de Lisboa para fazer uma primeira viagem ao Japão, onde fiz um levantamento fotográfico de algumas vilas piscatórias onde as “amas” mergulham. Foi nesse período que conheci Wagu, a vila onde mais tarde viria a filmar. Na segunda viagem, em 2014, trabalhei exclusivamente no filme. Contei com a produção da Terratreme Filmes em Portugal, a Pillow Films no Japão e o apoio financeiro do Instituto do Cinema. Para finalizar o filme, contámos com a co-produção com a suíça Mira Film e apoio financeiro da televisão suíça. O Oriente em geral e o Japão em concreto sempre fizeram parte dos meus interesses culturais e até de vivência quotidiana. Não é inocente portanto o meu interesse pelas “amas”.

Além da experiência cinematográfica, foi uma experiência pessoal? 
Sim. Procuro um cinema com fortes laços na realidade, na vida que se move diante dos meus olhos. Geralmente, quando filmo, crio fortes laços de afecto com as pessoas. Desde as pessoas que estão diante da câmara, passando por todas as que estão em redor e as que me acompanham depois, na fase mais isolada de pós-produção. Neste filme criei um laço que me é muito querido com uma das “amas”, a que corresponde à geração do meio, a Mayumi. Foi ela que me ajudou a concretizar muitas das cenas que desejei filmar. Houve um entendimento muito bonito, muito maternal da parte dela para comigo, que se transformou dentro de mim num agradecimento profundo. Ainda hoje, à distância, trocamos mensagens por telefone. Não são escritas por causa da língua, trocamos fotografias semanalmente uma com a outra. Para o público, o que fica, são os filmes. Para nós, que os fazemos, o que nos fica são as memórias, mas sobretudo as relações que criamos para o resto da vida.

Existiram algumas dificuldades específicas na produção deste filme?
Não tenho propriamente um método para encontrar o meu cinema. Há muitas ferramentas de trabalho que ainda estou a descobrir e a explorar. Em nada muda a minha aproximação à realidade ou à ficção. Eventualmente, apenas a constituição da equipa com quem trabalho. Mas o meu olhar e a forma como o dirijo a quem está diante de mim são sempre os mesmos. Nesse sentido, é possível que se confundam os géneros nos meus filmes. Em verdade, parece-me que a catalogação do género é um conceito criado para o mercado de distribuição e de exibição em festivais e salas. Nós, realizadores, somos mais livres internamente se pensarmos menos isso. Não preparei absolutamente nada com as “amas”, em termos de cenas e narrativas, antes de filmar. O que foi acontecendo foi sendo filmado com a cadência da realidade, do quotidiano, da relação que íamos estabelecendo entre nós e moldado pelo meu olhar com a câmara. Muito pontualmente, repetiu-se alguma cena. Mas pouco. Depois, houve a incompreensão da língua, para ambos os lados. Filmar num contexto em que não se domina o nosso mais seguro cartão-de-visita, a palavra, exige a criação e recriação dos modelos em que estamos habituados a trabalhar e a comunicar. No caso deste filme, o facto de não dominar o japonês, acabou por resultar a favor do próprio filme: deu-lhe uma determinada intimidade. Falava sempre através da minha assistente de realização, a Aya Koretzky, que ia traduzindo aquilo que eu precisava. Por isso mesmo, quando filmava, as “amas” ignoravam a minha presença pois sabiam que não iriam falar directamente comigo. E talvez isso resulte no tal olhar íntimo que se atribui ao filme, na naturalidade dos gestos.

É um filme que tem sido destacado um pouco por todo o lado. Mais um trunfo para o cinema português?
O filme tem tido um percurso muito fluido no circuito de festivais, com alguns prémios que nos têm deixado a todos felizes. A força que atravessa a vida destas mulheres tem dado que falar. Motiva as pessoas a irem ver o filme e cria um discurso após as sessões. Quer dizer que qualquer coisa no mundo está a mudar. As consciências estão a criar raízes mais profundas, o olhar está mais livre, menos submisso às ideias que carregamos de um passado profundamente desequilibrado para as questões de género. Os estereótipos estão, lentamente, a cair. A curiosidade do público tem enchido as projecções nos festivais e a estreia comercial em Portugal foi um sucesso de bilheteira, tendo em conta o tipo de filme: é de baixo orçamento e é documental. Por todo esse retorno e reconhecimento pelo trabalho da equipa, mas sobretudo pelas “amas”, eu fico feliz. Gostava que a vida das “amas” ecoasse nas nossas próprias vidas, que nos fizesse sentir mais do que pensar. Estas mulheres viraram do avesso a própria sociedade japonesa. São um caso raro, não só no Japão mas em todo o mundo, em que as mulheres conseguiram anular uma série de estereótipos associados à feminilidade. As “amas” conquistaram a sua liberdade através do amor e força, pelo mar, pelas suas famílias, pela vida. São a poesia, mas é ainda mais, tudo verdade.

O que falta à indústria portuguesa para que se possa desenvolver e internacionalizar?
Portugal não tem uma indústria de cinema. Portugal é dos países europeus com maior dificuldade em produzir os seus próprios filmes. A única fonte de financiamento dentro do nosso país é o Estado português que, através da lei do cinema, cobra uma taxa às operadoras que depois reverte para os cofres do Instituto do Cinema e Audiovisual. Esta é a única verba disponível localmente. E, como é fácil de imaginar, o dinheiro não chega para alimentar nem um terço do potencial que temos no nosso país. Grande parte dos filmes produzidos actualmente recorre a co-produções internacionais, um pouco por todo o mundo. Vivemos com muita dificuldade. Há uma linha imensa de profissionais no cinema, desde produtores, realizadores, técnicos, distribuidores, festivais de cinema, que vivem permanentemente a fazer omeletas sem ovos. O trabalho é extremamente subvalorizado e precário. Somos um grupo de loucos alimentados quase só pela nossa fé e prazer. Para as novas gerações o estrangulamento é uma barreira bruta para darem início aos seus filmes. Ao cinema, e a toda a cultura que se produz em Portugal, falta investimento, estratégia, visão, e responsabilidade do Governo. Vivemos subfinanciados há muitos anos. É assustador que não se aprenda com os erros cometidos no passado. Os cortes no sector são permanentes. Cultura é produção de saber e, por sua vez, crescimento de uma sociedade. É a nossa mais preciosa herança. Sem memória não somos nada. Não posso naturalmente exigir o mesmo financiamento para a cultura e para a saúde. São necessidades de uma ordem muito distinta. As doenças culturais não são visíveis da mesma forma que o nosso corpo se expressa. São doenças que, por exemplo, se reconhecem na forma como as cidades crescem. Estão à nossa volta se as quisermos ver. E enquanto não existir esta consciência generalizada, continuaremos a viver, no sector da cultura, desamparados e a levar as nossas próprias energias ao limite. Para rematar este discurso triste, ainda que necessário, devo dizer que o cinema português está em grande forma. Aliás, sempre esteve. Temos autores com uma obra extraordinária, que são reconhecidos dentro e fora do nosso país e cujo os prémios que permanentemente lhes são atribuídos enchem de orgulho o público em geral. É, para mim, quase comovente que se consiga caminhar tanto e tão longe quando o corpo está permanentemente a ser impedido. Maior sinal de que o cinema que produzimos é dos mais ricos do mundo parece-me impossível. E a ideia de que o público português não vê o seu própria cinema é um boato mal contado. Por exemplo, os números de espectadores que o “Ama-San” tem feito em sala revelam um público muito curioso e participativo. Maior sinal de vitalidade é impossível. Só falta mesmo que olhar dos nossos políticos se encontre com a realidade. Entretanto, nós continuamos, individualmente mas unidos, a cuidar do cinema.

O que é que a impressionou deste lado do mundo? 
O Oriente é, de facto, um mundo específico dentro do nosso mundo. Muito se aprende na diferença. Mas o ser humano é sempre o mesmo. É aí que reside o meu fascínio e o meu olhar: na total diversidade humana que converge num só.

20 Jul 2017

Vocês em Macau

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]xistem inúmeros dogmas que foram criados sobre a vida dos portugueses e outros expatriados em Macau e que, para quem não acompanhou a evolução da nova realidade, continuam actuais, e com os quais eu próprio tomo contacto cada vez que vou a Portugal de férias – e vai sendo cada vez menos. Não foram uma, nem duas, nem três as vezes que de repante salta um comentário do tipo “Vocês em Macau…”, seguido de qualquer coisa do género “…têm todos um rolls-royce na garagem”. Não é bem assim, mas não anda muito longe. Assim decidi compilar uma série de ideias feitas que muitos portugueses da metrópole ainda têm sobre nós, os expatriados, às quais convém fazer um “update”.

“Vocês em Macau” têm facilidade em arranjar emprego, sendo portugueses.

Já foi assim, mas vai sendo cada vez menos verdade que a nacionalidade portuguesa é meio caminho andado para garantir um emprego em Macau. Antes de 1999 bastava ser cidadão nacional português e obter uma declaração de que residia no território há mais de três meses confirmada por duas testemunhas para se obter o BIR, mas hoje em dia não só os critérios são mais rígidos, mas há também uma demora processual na autorização da residência que ninguém consegue explicar, e nem as autoridades justificam – é um mistério.

“Vocês em Macau” não se pode dizer exactamente que “trabalham”, quer dizer, “vão ao emprego”…

Essa é talvez uma das maiores diferenças em relação ao período da administração portuguesa. Trabalha-se sim e quem está no sector privado nem pense “encostar-se à sombra da bananeira”. Na hora de distribuir as atribuições, os portugueses não são menos que os outros.

“Vocês em Macau” têm como que “um desconto”, ao contrário dos chineses ou de outros estrangeiros.

Tal como na presunção anterior a esta, nada disso. Quem está com contrato e “pisa na bola” vai parar ao olho da rua com a mesma facilidade, seja ele português, chinês, italiano ou outro qualquer. Chefes chatinhos como aí também há por estas bandas, com a agravante de ainda precisarmos de atender ao aspecto cultural, e para quem não domina a língua, pior ainda.

“Vocês em Macau” ganham bem… em “pataquinhas”.

O mito da árvore das patacas é uma coisa do passado. Essa proverbial árvore, se realmente existiu , já há muito que secou; é verdade que se ganha melhor que em Portugal em algumas profissões, mas as despesas são muito mais que no passado. A habitação, por exemplo, tem um peso na ordem dos 30-40% da despesa total, ou mais para quem opta por viver sozinho ou dividir a renda por menos pessoas. Quem tem casa própria ou atribuida pela empresa onde trabalha está mais à vontade, mas não deixa de sentir a subida galopante da inflação em muitos dos bens de primeira necessidade.

“Vocês em Macau” têm uma vidinha tranquila. É tudo perto.

Sim, de facto é possível a muitos (como eu próprio) deslocar-se a pé para o emprego, apesar de já ter sido mais agradável, quando não era inevitável andar aos encontrões e aos empurrões, já para não falar do calor e da humidade. Para quem precisa de apanhar transporte ou conduzir, as distâncias também não são as mesmas do que entre Lisboa e a Margem Sul, por exemplo, mas a qualidade do serviço de transportes deteriorou-se, e o trânsito passou a ser um dos problemas que demoram a resolver.

“Vocês em Macau” não precisam de se preocupar com a questão da segurança, dos assaltos…

Apesar dos números da criminalidade terem vindo a aumentar, ainda é possível andar a qualquer hora e em qualquer lugar de Macau sem recear os assaltos, pois aqui não existem bairros “problemáticos”, como em Portugal. No entanto começam a surgir certas preocupações com algumas liberdades que em Portugal são praticamente “intocáveis”. Ah sim, e as penas pelos delitos relacionados com droga são muito mais pesadas que em Portugal – aqui não há lugar a certas “brincadeiras”.

“Vocês em Macau” têm os casinos, que resolvem todos os problemas de fundo, enquanto aqui os políticos são uns aldrabões e não mexem um dedo.

Os casinos são uma fonte de receitas que muitas economias invejam, sem dúvida, especialmente as micro-economias, como é o caso de Macau. O problema é que não se sabe muito bem por onde andam essas receitas, que em tempos batiam recordes atrás de recordes, e de como não estão a ser usadas para resolver problemas de longa data que têm vindo a agravar-se cada vez mais.

“Vocês em Macau” têm uma data de países à volta, praias paradisíacas, ilhas de sonho… é só passear!

É verdade e é muito mais fácil a alguém ir passar um fim-de-semana prolongado à Tailândia ou às Filipinas do que a um português fazer o mesmo em Bruxelas ou Amesterdão, que ficam mais ou menos à mesma distância de um voo. E é muito mais barato, também. Mesmo assim não se queixem, pois se vivem no litoral estão a meia-hora de carro de qualquer praia decente, enquanto para nós é necessário apanhar um avião.

“Vocês em Macau” agora queixam-se tanto… então o que estão ainda aí a fazer?

Parece uma provocação ou uma pergunta parva, mas é pertinente. Há os que se fartaram e se foram embora, há os que não gostam mas não têm outra escolha porque em Portugal têm as portas fechadas, e há os que mesmo tendo a opção de regressar, criaram aqui raízes, casaram com pessoas de cá, tiveram filhos e fazem aqui a sua vida. E para esses “queixar-se” quando as coisas correm mal é o mesmo que toda a gente faz quando quer o melhor para a si e para os seus. Esclarecidos?

Mas melhor que ouvir falar, e ainda por cima confiar em testemunhos que nada têm ver com o Macau do presente, era vir cá ver como isto é. Se não vos dá jeito, se é longe, caro, não vos interessa, ou não conhecem aqui ninguém e portanto acham que não vale a pena, paciência, só que antes de afirmar com essa dose de certeza que aqui é uma espécie de “mundo do faz-de-conta”, o melhor é informarem-se primeiro. Valeu, ó “vocês em Portugal”?

6 Jul 2017

Baixos salários no consulado de Macau motivam queixas

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s salários dos funcionários do consulado-geral de Portugal em Macau, considerados baixos para a média do território, motivaram ontem queixas ao secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, que disse não ter solução para o problema.

“O consulado tem uma grande falta de pessoal. Espero que olhe para Macau por um prisma diferente, porque Macau é uma cidade que ama muito Portugal”, disse Rita Santos, conselheira das comunidades portuguesas pelos círculos da China, Macau e Hong Kong, durante um encontro com José Luís Carneiro.

A conselheira explicou que os salários dos funcionários consulares rondam as 11 mil patacas, o que, “reduzindo os impostos” resulta em cerca de sete mil patacas. “É muito baixo”, frisou.

A queixa foi repetida por António José de Freitas, provedor da Santa Casa da Misericórdia: “Um funcionário público do cargo mais baixo, um servente, ganha cerca de 12 mil patacas, que é para ver como o pessoal do consulado ganha mal”.

As queixas foram feitas durante um encontro de Carneiro com 23 representantes de todas as associações de matriz Portuguesa, em que também esteve presente o cônsul-geral. Vítor Sereno lembrou que muitos dos funcionários falam quatro línguas – português, inglês, cantonês e mandarim –, o que os torna ainda “mais apetecíveis” em Macau.

“O custo de vida é dos mais altos do mundo”, alertou Sereno, lembrando que, entre 2013 e 2014, o consulado fez 16 rescisões. “As pessoas batiam-me à porta e diziam-me ‘A felicidade não enche a dispensa, não aguento mais’”, recordou.

Dilema partilhado

O problema dos salários é antigo e os conselheiros já o levaram à reunião plenária do Conselho das Comunidades Portuguesas, no ano passado, em Lisboa. Desta vez, a resposta não foi diferente.

“Não temos solução, temos uma vontade de encetar diálogo com os sindicatos. É uma questão complexa, muito difícil de resolver. Mexer nas condições remuneratórias de Macau significa mexer nas condições remuneratórias de todo o mundo. Passa por uma revisão global das carreiras”, disse Carneiro.

O problema não é exclusivo de Macau, sublinhou o responsável português. Em São Francisco (Estados Unidos) e Londres, por exemplo, foram abertos concursos e as vagas ficaram por preencher devido aos montantes oferecidos, acrescentou.

24 Mar 2017

José Manuel Rosendo, repórter: “O jornalista não é um vendedor de sabonetes”

Porque não se trata de oferecer às pessoas os aromas que elas querem, os jornalistas não estão hoje a fazer o que devem. Faltam recursos, investimento, opções editoriais que permitam os caminhos certos a quem tem a informação como profissão. José Manuel Rosendo, jornalista da Antena 1, tem a carreira marcada pelos cenários de conflito, pelo Médio Oriente que aprendeu a conhecer nas piores circunstâncias. Uma conversa sobre a guerra, as ideias feitas que é preciso combater e a atenção que não se dá ao mundo

[dropcap]C[/dropcap]omo é que aconteceu fazer reportagem de guerra? Como é que a oportunidade surgiu?
Lembro-me muito bem. O nosso saudoso Luís Ochoa passou por mim na redacção e perguntou-me se eu queria ir até ao Afeganistão. Não estava minimamente à espera, mas disse que sim. Acabei por não ir dessa vez. Isto foi em 2001, logo a seguir ao 11 de Setembro. A oportunidade voltou a surgir em 2003, com a invasão do Iraque. Aí, a Antena 1 enviou um jornalista para o Iraque e havia a possibilidade de entrarem tropas no país através da fronteira com a Turquia. E eu fui, nessa perspectiva, que acabou por não se concretizar, porque a Turquia não abriu a fronteira e, portanto, por ali não houve invasão terrestre, apenas permitiram que o espaço aéreo fosse utilizado. Confesso que fiquei um bocado frustrado. Ninguém passou, ficámos todos na zona turca. Acabei por ir lá quando soube que a GNR ia para o Iraque. Fiz a proposta de ir ver para onde é que a GNR ia, fomos lá fazer reportagem, em Nassíria. Depois, como já lá tinha estado, quando a GNR foi mesmo para o Iraque, fui eu também. A partir daí, fica aquele bichinho, não pela guerra, mas por tratar aquele tipo de informação, aquela área do mundo. Tinha uma noção da importância do Médio Oriente, mas essa noção cresceu muito a partir do momento em que comecei a acompanhar e a perceber que é uma coisa central em termos de política internacional, e é uma zona permanentemente em conflito.

“Quem vai fazer este tipo de reportagem não se pode queixar. E dormir no chão também não é nada do outro mundo. Já sabemos como é.”

É uma zona também complicada de compreender. Há o obstáculo da língua, as características culturais e políticas são muito diferentes das nossas. Como é que se ultrapassa tudo isto?
É curioso e, às vezes não temos noção disso, que o chamado Ocidente começou por ser ali. O Ocidente, há uns milhares de anos, era ali, na zona do Crescente Fértil, aquela zona que vai do Líbano, passa pelo norte do Iraque, pela Síria, pelo sudeste da Turquia, até pelo Irão. Aí era o Ocidente, em contraponto ao Oriente, que era na China, na zona do Rio Amarelo. Os povos começaram a deslocar-se para a Europa e o Ocidente é aquilo que hoje sabemos. Acho que é preciso ler muito, estudar muito. Para entender o Médio Oriente é preciso, sobretudo, tentar escapar a alguns conceitos que estão enraizados e que não correspondem à realidade. À medida que vamos conhecendo o terreno, percebemos que há conceitos que interiorizámos – não todos, obviamente – que são retratos distorcidos da realidade. A realidade é diferente.

Nomeadamente na relação com a religião.
Sim. Na maior parte daqueles países, o Islão é um pilar central da vida das pessoas. Mas não faz delas radicais, nem extremistas – não tem nada que ver uma coisa com a outra. Os povos árabes são como outros povos quaisquer, onde há pessoas más e pessoas boas, onde há pessoas radicais e outras mais ponderadas. Agora, como é uma região em permanente ebulição, que tem fronteiras artificiais, rica em recursos, onde meia dúzia de décadas em termos históricos não é nada – portanto, até há pouco tempo estava uma região colonizada –, tudo isso contribui para que haja até agora um conflito quase permanente naquela zona. E depois há a interferência externa que dificulta ainda mais as coisas.

Para o Ocidente mais a Ocidente, até há poucos anos o Médio Oriente era um problema que não lhe dizia respeito. De repente, com as alterações políticas, a guerra, as vagas de refugiados, o Médio Oriente foi bater à porta das pessoas de outra maneira. O desconhecimento é o principal problema em relação à integração de refugiados?
Acho que sim. É uma parte do problema que, se calhar, é potenciada pela situação financeira que a Europa atravessa. Mas, se os refugiados estão agora a bater à porta da Europa, a Europa bateu durante muito tempo à porta dos países onde estas pessoas viviam. Essa é que é a questão. O Médio Oriente era uma questão de segunda linha em termos de actualidade. Era lá longe. De repente, percebemos que não é bem assim. Aliás, sobretudo os países do Sul da Europa deviam olhar com mais atenção para todo o Mediterrâneo. Neste momento, a política externa da União Europeia (UE) é uma coisa que ninguém sabe muito bem o que é, não se dá a devida atenção à questão do Mediterrâneo mas, de facto, é a nossa vizinhança próxima. Estamos mais próximos dos nossos vizinhos africanos do que do Norte da Europa. Também entendo que os países do Norte da Europa não tenham grande apetência por discutir os assuntos do Mediterrâneo. Isto é um dilema no qual a UE está envolvida, não sei como se poderá resolvê-lo, e é mau que tenham de se tomar decisões sobre pressão – nomeadamente por causa dos refugiados – não havendo uma política externa já definida para estabelecer uma relação com estes países que são a nossa vizinhança. A geografia é uma coisa à qual não se pode fugir: por muito que nós queiramos, não mudamos isso. Portanto, há que encontrar formas de estabelecer um relacionamento que seja bom para todas as partes. Tem de se encontrar esse ponto comum.

Até que ponto deverá ser uma preocupação dos jornalistas, e de quem tem um conhecimento maior em relação ao Médio Oriente, ter um papel de sensibilização – diria até pedagógico, se quisermos – para que a integração dos refugiados em Portugal seja bem-sucedida? O jornalismo deve ter este papel de garantir que as pessoas têm acesso ao quadro todo.
Sim. Mesmo que não seja com o objectivo pedagógico, o facto de divulgarmos informação correcta, de aprofundarmos os problemas, de darmos contexto às pessoas, isso faz com que, de facto, resulte numa atitude pedagógica em relação aos problemas. E acho que devemos fazer isso, dar a conhecer, informar, relatar com o máximo rigor, fugindo aos tais conceitos, aos lugares-comuns. Mas é preciso ter espaço para isso.

“Tento fazer sempre reportagem com pessoas lá dentro. Não é aquela reportagem que recorra muito a fontes políticas ou militares.”

E há espaço?
Não há espaço suficiente, sobretudo em Portugal, o que tenho dificuldade em perceber. Temos três canais nacionais de televisão, 24 sobre 24 horas. Temos rádios nacionais. Perdemos horas e horas e horas a falar sobre futebol. Debates de gente sentada, a discutir se foi penálti ou fora de jogo, e com as imagens do respectivo jogo a andarem para trás, para a frente, para trás, para a frente. Perdemos horas. Bastava que se desse uma horinha por semana a estas questões – e não digo para falar apenas do Médio Oriente, estamos completamente afastados daquilo que se passa na Ucrânia, que é à porta da Europa. Se, neste momento, fizéssemos um inquérito e perguntássemos o que é que se passa, por exemplo, na Holanda, em termos de eleições, ou o que se passa na Alemanha, as pessoas não sabem. Pura e simplesmente não sabem, porque nós temos uma informação que mantém em agenda determinados assuntos – e não digo que não sejam assunto, continuam a ser, mas são mastigados e remastigados. Se há uma coisinha nova, para se dar esse acrescento de informação vai buscar-se tudo o resto, constrói-se ali uma novela e lá vão dez minutos ou um quarto de hora de telejornal com aquilo. No dia seguinte, a história repete-se. Isto é muito complicado. Não sei como é que se dá a volta a isto. Dá-se a volta havendo vontade editorial, mas depois não há pessoas. Estamos numa situação complicadíssima.

Voltando à guerra. Vários países percorridos, muitas situações complicadas. Para quem não é jornalista, como é chegar de repente, com uma equipa pequena – ou sozinho – a um cenário de guerra, recolher informação e passá-la de uma forma que, ainda por cima, não é visível, atendendo a que trabalha sobretudo na rádio? Como é que se conta essa guerra?
A maior parte das vezes vou sozinho, sem mais ninguém. Só para ter uma ideia, recordo-me, por exemplo, de ver a CNN alugar um piso de hotel. Chegam lá e alugam um piso inteiro: produtores, jornalistas, câmaras, motoristas, segurança, tradutor. Em 2011, Kadhafi foge de Trípoli, entrámos na cidade e os hotéis estavam fechados, porque a maior parte dos trabalhadores eram imigrantes dos países ali à volta e tinham fugido. Como caíram lá os jornalistas todos, reabriram à pressa dois ou três hotéis. Esperámos na recepção, deitados no chão, que nos dessem a chave do quarto. Esse hotel tinha um jardinzinho que era o único sítio onde se conseguia ligar o satélite. Recordo-me de ver a equipa da Al Jazeera, de manhã, a fazer os briefings, e eram mais de 20 pessoas. E isto só em Trípoli, não contando com os que já estavam na rua. Isto dá uma ideia da dimensão. Quem vai sozinho faz passo a passo. Somam-se contactos, conhecem-se fixers [locais que ajudam os correspondentes estrangeiros], vai-se tendo referências, e é com isso que se consegue trabalhar. Depois, tento fazer sempre reportagem com pessoas lá dentro. Não é aquela reportagem que recorra muito a fontes políticas ou militares, sobretudo em termos de informação pura e dura – acho que a maior parte das vezes somos enganados nesse tipo de coisas. Aquilo é de uma riqueza informativa tal que as histórias quase que vêm ter connosco, muitas vezes. Temos de ter os sentidos despertos para perceber, quando vamos a passar, onde é que está a história, e para perceber o ângulo. Depois, tem de se cuidar de tudo: os países em guerra funcionam de uma forma anárquica, os serviços não funcionam, a maior parte das vezes é preciso recorrer ao mercado negro para arranjar combustível, tenho de me preocupar com o carro, com o guia, com o tradutor, com as comunicações, com a alimentação, com o sítio onde vou dormir. Mas quem vai fazer este tipo de reportagem não se pode queixar, isto não é uma lamúria. E dormir no chão também não é nada do outro mundo. Já sabemos como é.

Das muitas histórias que guardou, alguma que o tenha marcado particularmente?
Há histórias. Há a de um camarada que depois morreu, e isso mexe um bocadinho connosco. Mas há histórias… Lembro-me que, no Líbano, tinha estado em Beirute e depois houve um dia em que decidimos ir para a sul, para a zona mais Hezbollah. Telefonaram-me da rádio a dizer que Israel tinha acabado de bombardear Qana e as agências estavam a dizer que foi um morticínio. Íamos a meio do caminho, fizemos um desvio e fomos para Qana. Israel bombardeou e atingiu um edifício que abateu, as pessoas tinham-se refugiado na cave, morreram lá em baixo, e muitas eram crianças. Quando cheguei lá, parámos e uma série de pessoas apareceu à volta do carro. Agarraram-me e percebi que me queriam mostrar qualquer coisa. Levaram-me para junto de uma carrinha, abriram as portas de trás e eram só corpos de crianças. Estavam as equipas de socorro a tirar as crianças lá de baixo, e adultos também. É uma imagem que fica.

Como é que se lida com esse contacto com a morte? Presumo que a primeira vez seja muito complicada.
É. Mas às vezes nem é preciso chegar à morte. Aconteceu-me agora no Iraque, da última vez que lá estive. A minha primeira preocupação é o som, obviamente, mas também faço fotografia, mas para mim. Quando percebo que tenho ali um espaço faço umas fotografias. Estava numa zona, à entrada de Mossul, que era o primeiro posto da frente para onde eram transportadas as pessoas feridas nos combates. Era um corrupio brutal. Uns chegavam mortos, crianças, adultos, velhos. E eu estava ali a fazer fotografias daquele movimento. As pessoas que estavam ali, os militares, não tinham meios. Não se podia chamar hospital àquilo – era uma vivenda, com umas macas. Quando enchia – o fluxo era grande –, começavam a pôr as macas cá fora, na rua, no meio do pó. Às tantas chega um miúdo, que devia ter uns nove ou 10 anos, que vinha ferido, ensanguentado. Deitam o miúdo na maca, o médico põe-lhe a faca nas calças e abre. Quando vou a fazer a fotografia, vi que o joelho praticamente tinha desaparecido. Acho que foi a primeira vez que não fui capaz. Talvez por ter um filho daquela idade, naquele momento houve ali um clique, virei a cara e fui embora. Não sei porquê. Sabemos que na guerra morrem pessoas, que há bombardeamentos e que vamos encontrar pessoas mortas, inconscientemente até já vamos preparados para isso, mas, de facto, naquele momento, virei a cara. Se calhar fui mau jornalista na altura, não faço ideia. Passado um bocado voltei, mas aquela imagem daquele miúdo, ferido daquela forma… Não consegui.

“Para entender o Médio Oriente é preciso, sobretudo, tentar escapar a alguns conceitos que estão enraizados e que não correspondem à realidade.”

E voltar ao dia-a-dia de uma redacção, dos assuntos que, de repente, perdem toda a importância?
Isso é que é uma chatice, porque voltas, chegas à redacção e dizes “não se passa nada”. Começas a olhar para os assuntos e pensas “mas que importância é que isto tem?”. Essa é a parte mais difícil, retomar o ritmo da informação diária, corriqueira, ainda por cima porque valorizamos muito a trica política. Gosto muito de política, a grande política – as políticas de desenvolvimento, de educação, esses temas fortes que devem ser debatidos com profundidade e agarrados com unhas e dentes – mas detesto a trica política, que não leva a lado algum. Passamos a vida com um que diz que o outro acordou mal disposto e depois vamos ouvir o que foi acusado de ter acordado mal disposto. Chegamos ao fim do dia, esprememos esta informação e vemos o que tivemos aqui: nada, na maior parte dos casos. Essa trica política faz parte do marketing político e deixamo-nos ir atrás dela. Se calhar é por isso que as pessoas se afastam um bocadinho de nós, e deixam de ler, de ouvir e de ver televisão, porque estão fartas. Não estamos a ser capazes de dar às pessoas aquilo que é realmente importante.

Há vontade de voltar à guerra?
Não digo voltar à guerra, mas vontade de voltar ao Médio Oriente, sim. Ninguém sabe muito bem o que vai por ali acontecer, há muito tempo que se fala na necessidade ou até na inevitabilidade de se redesenharem as fronteiras no Médio Oriente. No Iraque, vamos ver o que vai acontecer em Mossul. Não sei até que ponto continuará a ser como o conhecemos até 2003. Não sei se a Síria vai continuar a ser com as fronteiras que tinha até agora, há ali um problema entre xiitas e sunitas que não sei como vai acabar. Temos a Rússia agora metida em força na região, os Estados Unidos dão sinais de querer regressar, depois de Obama ter tido uma política em que passou a questão do Médio Oriente para segundo plano. É um tempo de expectativa e é preciso voltar lá, perceber o que está acontecer. Mas enquanto tivermos estas opções editoriais e esta falta de recursos… É preciso investimento na informação porque, se não há recursos, não há retorno financeiro, e então corta-se. Passado um tempo, os recursos são ainda menos, o retorno é ainda menos, e corta-se de novo. É o caminho para o abismo. Também é importante que quem invista na informação não veja nela um pote de rebuçados ou de sabonetes. A informação não é isso, é outra coisa. Houve alguém que disse, aqui há uns tempos, que deixámos de dar às pessoas o que é importante e passámos a dar aquilo que elas querem. Pronto, acabou. Isto é o inverso do que devia ser o jornalismo; é o vendedor de sabonetes, que dá à pessoa o sabonete com o aroma que ela quer.

16 Mar 2017

À beira da maioridade: Trânsferência de Administração foi há 17 anos

Faz hoje 17 anos que Rocha Vieira entregou a administração de Macau a Pequim. Fê-lo abraçado a uma bandeira portuguesa, numa transição emocionada. O HM ouviu vários testemunhos que nos fizeram o balanço da vida da RAEM

[dropcap]O[/dropcap] início eram as descobertas. O espírito aventureiro dos navegadores portugueses chegou aos Mares do Sul da China, e aqui ficaram a administrar o território durante mais de quatro séculos. Até 1999, quando se deu a transferência de administração para a República Popular da China, nascendo a Região Administrativa Especial de Macau. Em dia de aniversário, ouvimos as opiniões de quem aqui vive, para um balanço destes 17 anos.

O designer Manuel Correia da Silva considera que podemos olhar para a idade da RAEM como olhamos para o crescimento de uma pessoa. Houve uma infância e, hoje em dia, estamos à beira da maioridade mas ainda a atravessar uma fase tardia da adolescência. “Espero que a maturidade chegue a todas as figuras de poder desta cidade, não só ao Governo local, mas também à sociedade civil”, comenta.

“Espero que a maturidade chegue a todas as figuras de
poder desta cidade, não só ao Governo, mas também à sociedade civil.”
MANUEL CORREIA DA SILVA, DESIGNER

A ideia de chegar à idade adulta é intimamente ligada a um sentido de autonomia, “já podemos sair sozinhos”, como comenta Correia da Silva. A ideia é uma maior capacidade de auto- gestão que permita a internacionalização, o envolvimento com a região. O designer não se refere apenas a factores comerciais. Nesse aspecto houve, realmente, maior abertura ao exterior, mas a um novo olhar político, uma nova forma de pensar o território. Nesse sentido, considera que a RAEM devia “olhar para as lusofonias como um bom canal de internacionalização”, na forma como a marca Macau se pode instituir lá fora. Para tal, será necessário projectar uma imagem mais graúda, “e isso tem que ver com responsabilidade”.

Hoje em dia, Macau é uma cidade mais cosmopolita, que oferece maior liberdade de movi- mentos aos cidadãos, mais ligada ao que se passa em seu redor. “Nós já estávamos envolvidos neste Delta, uma zona do mundo especialmente activa nestes últimos 10 anos”, algo que melhorou com “as políticas de abertura da China para o resto do mundo”. Factos políticos com impacto, e que forçaram a competitividade e inovação.

BOOM VERTIGINOSO

Portugal entregou Macau à China com os cofres em situação modesta. “Quando passou a administração tínhamos apenas um fundo de 10 biliões de patacas, o que não dava para alimentar sequer um ano de Orçamento”, lembra o economista Albano Martins. Neste momento, o Governo tem os cofres cheios. Facto que é incontornável neste balanço de aniversário, assim como os números do desemprego. Aquando da transferência, Macau tinha uma taxa de mais de sete por cento, hoje em dia está abaixo dos dois por cento, um número que representa pleno emprego.

Au Kam San, deputado à Assembleia Legislativa, aponta a óbvia “liberalização do jogo de grau limitado e a política de visto individual oferecida pelo Governo Central”, como “factores decisivos para o desenvolvimento a grande velocidade”. Estes foram os pilares que enriqueceram a administração da RAEM, e que possibilitaram o investimento numa série de infra- -estruturas que enriqueceram o nível de vida dos habitantes de Macau.

“As comunidades portuguesa e macaense continuam dinâmicas, são partes fortes do sistema, e merecem o reconhecimento devido pelos Governos Central e local.”
CARLOS MARREIROS, ARQUITECTO

Albano Martins acrescenta que “os grandes desenvolvimentos se deram durante a administração de Edmund Ho que foi, de facto, a grande dinamizadora”. O economista considera que durante esse período houve coragem para tomar decisões mas, infelizmente, o segundo mandato ficou manchado pelo escândalo Ao Man Long. “Nesta última administração pouca coisa se fez, tirando uma ligeira acção neste último mandato, embora sempre com um atraso que não era expectável dadas as capacidades financeiras que a administração de Macau hoje tem”, comenta o economista, que vive há quase 40 anos no território.

O arquitecto Carlos Marreiros reforça este ponto, acrescentando que “a administração não soube acompanhar a dinâmica do investimento, a uma escala gigantesca, à qual não estávamos acostumados”. Também no panorama regional, a inacção governativa levou à perda de competitividade. A inércia administrativa é algo palpável, a que a população reage. “A população tem um relacionamento muito crispado com a administração. O que a administração faz é sempre mau, o que não é verdade, também há coisas muito positivas”, acrescenta. Nesse aspecto, salienta a classificação pela UNESCO do centro histórico de Macau como património mundial e o investimento recente na educação. “O acesso ao ensino melhorou bastante, é gratuito e estendido a todas as idades com um apoio pecuniário para quem queira continuar a estudar.”

Apesar destas melhorias, a apatia generalizada do poder local é sentida pelo povo, levando a “um processo de pré-divórcio, como uma comunicação impossível, alicerçada no conflito que não resulta em consenso, mas numa sociedade fracturante”. “Isso não é bom numa terra pequena, é mau para a criação de soluções e para o diálogo”, acrescenta o arquitecto nascido em Macau.

Para a deputada Melinda Chan, “uma das vantagens que vieram com a transição foi a melhoria na segurança”. Chan elenca ainda nos aspectos positivos o reconhecimento da RAEM ao nível internacional, “que se sentiu com a entrada de grandes empresas e investimento, e com o aumento de turistas”.

NEM TUDO SÃO ROSAS

A prosperidade trouxe por arrasto alguns problemas, particularmente no que diz respeito à poluição, ao crescimento desordenado, ao trânsito e à habitação. Este último capítulo é destacado por Lam U Tou que considera que, anterior- mente, “a população mais pobre conseguia com algumas poupanças ter as suas próprias casas”, algo que o boom no mercado do imobiliário veio dificultar. Para o membro do Conselho Consultivo dos Serviços Comunitários da Zona Central, esta é a maior falha do Executivo e o factor de maior desagrado da população.

Já o deputado Au Kam San vê na corrupção o pior efeito secundário do boom económico, com consequências muito nefastas para a sociedade. “Durante a administração portuguesa havia problemas de corrupção, mas eram de menor dimensão. Hoje, o problema cresceu à medida que o Governo ficou mais rico, como exemplificou o caso Ao Man Long”. O pró-democrata acha que a promiscuidade entre o ciais da administração e grupos empresariais atinge maiores proporções. Uma das razões apontadas por Au Kam San prende-se com o défice de democracia, com os quadros governativos a ocupar muito tempo o poder. Este é um problema que “sacrifica o interesse dos pequenos cidadãos”, acrescenta.

“Durante a administração portuguesa havia problemas de corrupção, mas eram de menor dimensão. Hoje, o problema cresceu à medida que o Governo ficou mais rico, como exemplificou o caso Ao Man Long.”
AU KAM SAN, DEPUTADO

No rol de aspectos negativos, Albano Martins destaca a ausência de “um sistema de reformas digno desse nome, adequado aos rendimentos do Governo”, não esquecendo as problemáticas questões do trânsito, cultura e a poluição. Para o economista, é como se a administração da RAEM não soubesse lidar com o crescimento exponencial. “A solução encontrada parece ser parar esse crescimento.”

Carlos Marreiros olha para este quadro socioeconómico com alguma preocupação, num panorama em que “as pequenas e médias empresas têm dificuldade em se imporem”. Para tal, tem contribuído um desenvolvimento mal distribuído, “nem sempre para benefício do povo”. Mas o arquitecto também vê o copo meio cheio, e faz “um balanço globalmente positivo”. “As comunidades portuguesa e macaense continuam dinâmicas, são partes fortes do sistema, e merecem o reconhecimento devido pelos Governos Central e local. Nestes 17 anos não deixámos de participar, fomos fazedores do passado de Macau, um passado com mais de quatro séculos, estamos a fazer o presente e a projectar o futuro de todos nós”, comenta o arquitecto. Neste aspecto, o sabor diferente que a portugalidade oferece à região torna Macau num local diferente do resto da China, sendo que “uma das principais razões é a existência desta universalidade que é a cultura portuguesa, miscigenada localmente a vários níveis, e que cria originalidade na ponta desta enorme China”.

Foi há 17 anos que o Governador Vasco Rocha Vieira levou a bandeira ao peito e partiu para Portugal

Não obstante os 17 anos da transferência de administração de Macau para a China, a alma lusitana ainda se faz sentir na universalidade de que Carlos Marreiros fala. Um bom exemplo desse aspecto fluido culturalmente é a própria vida de Manuel Correia da Silva. Há três anos, o designer viu-se na iminência de ter de mudar de cidade, empurra- do pelo desconforto que sentia, pela deterioração da qualidade de vida e a subida vertiginosa da in ação. As circunstâncias empurraram-no para lá das Portas do Cerco e a procurar outra vida em Zhuhai. “Para mim isto também já é Macau, apesar de existir aqui uma fronteira administrativa que é preciso ultrapassar. Macau vem comigo para este lado da fronteira e o mesmo acontece no sentido inverso. É uma fronteira um bocado orgânica, ela vai e volta comigo”, explica. Uma fluidez que parece ser a metáfora perfeita para simbolizar Macau.

20 Dez 2016

Por uma EPM com paredes de Vidro

Por uma Escola Portuguesa de Macau progressista e inovadora, com valores humanistas, e que proporcione uma aprendizagem global, preparando os alunos para os desafios e a complexidade do Século XXI, conscientes dos seus direitos e deveres cívicos…

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ou um pai descontente e inconformado com uma escola que, na sua génese, era avançada, até pela qualidade da “matéria prima” que trabalha (os nossos filhos), abundância de recursos e condições de trabalho. Mas que se deixou ultrapassar de forma inquestionável, quer em termos organizativos, quer na objectividade mensurável nos ditosos “Rankings”, como se reflectiu no afundanço de 175 posições em 2015 (237ª posição em 500), pela generalidade das Escolas Públicas Portuguesas, geridas de forma eficiente, eficaz, transparente e responsável.

Não quero ferir susceptibilidades, quero, outrossim, ser mobilizador e focar a vossa atenção nas propostas que temos para a APEP e para a EPM. A disputa dos órgãos sociais da APEP é secundária e acessória.

O que nos trás aqui são expectativas positivas, é o futuro de uma Escola que se constrói diariamente… e que não pode parar por autocomprazimento e orgulho de se dizer “excelente”! Que queremos mais focada na aprendizagem do que na avaliação!

Entendemos que faz todo o sentido que os pais estejam representados de pleno direito na gestão duma Escola que, sendo privada, tem uma origem, função e orçamento eminentemente públicos. Que estejam vigilantes, influenciem e façam progredir a mesma, fazendo repensar os procedimentos, a oferta educativa e extra-curricular.

Somos de opinião que há um excessivo corporativismo derivado do carácter “monolítico” da Direcção da Escola (constituída exclusivamente por membros do seu corpo docente), o que não lhe dá as competências de gestão que reputamos essenciais e imprescindíveis para assegurar que a mesma se pauta por critérios de eficiência e eficácia.

Assim defendemos uma gestão multidisciplinar, com um gestor profissional, escolhido por concurso. Este deverá gerir com eficiência, maximizando os recursos disponíveis e implementando urgentemente um necessário controlo interno, transparência e responsabilidade na gestão. Um docente, a coadjuvar o Director, também admitido por concurso, em que a antiguidade não seja o critério de escolha, mas a formação e as competências de liderança. que se ocupe da parte pedagógica. Transitoriamente temos um perfil: experiente, mas ainda jovem, vigorosa, elegante, sedutora e com capacidade de liderança para mobilizar o corpo docente para superar os desafios que a escola enfrenta.

Assim para a APEP propomos:

  1. Que seja possibilitado a todos os pais e encarregados de educação da EPM se associarem de forma voluntária, e sem custos, promovendo uma alteração ao regulamento de jóias e quotas para um valor simbólico de 1 pataca/mês. Esperamos assim, suprimindo os constrangimentos financeiros e administrativos, conseguir atingir a plenitude do universo de pais, congregando-os e chamando-os a vida associativa. Para tanto solicitaremos a introdução de um novo campo no boletim de matrícula da EPM que, mediante a mera selecção dicotómica, autorize a Escola a ceder os dados pessoais do encarregado de educação a APEP, com a mera aposição da assinatura. Simplificando o procedimento.
  1. Criação de uma Hot-Line que permita aos pais comunicarem com o membro da Direcção em escala, durante a hora de expediente através de mensagem escrita –Whatsapp, Viber, Wechat ou email – e possibilitando um atendimento programado por voz através do número já existente 66989675 e email da APEP.
  1. Uma aposta inequívoca na Provedoria dos Pais, centralizando a resolução dos seus problemas de forma personalizada, oportuna e atempadamente pelo órgão de gestão.
  1. Planeamento e gestão prévios de actividades extra-curriculares que não possa ser oferecida pela EPM em primeira linha: áreas das artes, das letras, línguas e desporto colectivo, em parceria com outras instituições públicas ou privadas da RAEM, mas sempre sem lucro para a associação, reflectindo o custo para o associado o custo real descontado os apoios que seja possível obter.
  1. Continuação do estímulo da reciclagem de livros e uniformes

Para a Escola Portuguesa de Macau esperamos conseguir através de consenso com a Direcção da Escola e Conselho de Administração da Fundação:

  1. Implementar uma plataforma informática que permita o acompanhamento da vida escolar dos nossos educandos – Google Classroom – interagindo professores, alunos e pais;
  1. Implementar um Observatório Escolar que permita o acompanhamento da aprendizagem através dos resultados dos testes em termos estatísticos – media de negativas por disciplina, ano e turma, de modo a obter uma monitorização consistente das aprendizagens, numa perspectiva formativa e reguladora do ensino.
  1. Valorizar o corpo docente da EPM promovendo a publicitação da formação académica e pedagógica dos mesmos na página da EPM, com email personalizado para comunicação da comunidade com os mesmos. Se uma boa parte deles já têm essa informação disponível on-line em plataformas como o Linkedin não antevejo compreensível qualquer tipo de perplexidade ou resistência por parte de pessoas bem formadas académica e pedagogicamente.
  1. Pugnar pela publicitação dos avisos de abertura relativos a concursos de professores e que sejam previamente publicitados também os critérios de selecção e estimular a contratação de professores novos com formação recente (até para contrabalançar os que já têm uma longa experiência de ensino, a medida que estes se forem aposentando).
  1. Promover um diálogo regular com a Fundação Escola Portuguesa de Macau, com auscultação dos pais previamente a qualquer medida estruturante a tomar.

Pretendemos uma APEP activa e mobilizadora, que esteja sempre pronta a auscultar e a congregar a opinião dos pais e a ser uma incansável provedora dos interesses dos mesmos.

Encaramos a próxima Assembleia Geral com a tranquilidade de quem só pode ganhar:

ou a glória da vitória que assumiremos com humildade e lealdade as propostas do nosso programa,

ou a honra da derrota com o fair play e a liberdade readquirida, na certeza do dever cumprido, esperando que, ainda assim, as ideias que defendemos possam vir a ser implementadas, por úteis e necessárias ao devir da Escola Portuguesa de Macau.

Faço um apelo à Vossa participação na vida associativa da APEP de modo a permitir que os anseios dos pais e encarregados de educação sejam considerados na comunidade educativa. Mais caladinhos ou empenhados o que está em causa é necessário esse esforço de perder algumas horas por ano, de modo a dar força à APEP.

Não votar, ou delegar n´outrem, é o mesmo que votar naquilo que não queremos!

Manuel Gouveia

Candidato a Presidente da Direcção da APEP


P.S.: Lamento e penitencio-me perante todos aqueles que se mobilizaram para votar dia 29 e se depararam com a impugnação. Acreditem que tudo fiz, previamente, para o evitar. Mas como jurista penso que não nos devemos sujeitar a factos consumados sem lutar para que as listas tenham as mesmas possibilidades de sucesso, no respeito escrupuloso pelos princípios e pelas regras eleitorais.

5 Dez 2016

EPM | Eleições impugnadas pela Lista B. Adiamento para terça-feira

Manuel Gouveia, candidato à presidência da associação de pais da Escola Portuguesa de Macau pela Lista B, resolveu impugnar as eleições por não ter tido acesso aos cadernos eleitorais. Dois membros abandonaram a lista. O novo acto eleitoral está agendado para a próxima terça-feira

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]inda não foi desta que os pais escolheram o seu representante para a associação de pais da Escola Portuguesa de Macau (APEP). Manuel Gouveia, líder da Lista B, uma das duas candidatas ao acto eleitoral de ontem, resolveu pedir a anulação das eleições por não terem sido concedidos os cadernos eleitorais por parte da Lista A.

O documento, enviado ao HM, deixa claro que Manuel Gouveia se mostrou incomodado com o facto de nunca ter recebido informações sobre os cadernos eleitorais e os associados com capacidade de voto. Nas suas palavras, tal situação “afigura-se insólita, incompreensível e inaceitável, em manifesta contravenção dos princípios da boa-fé e igualdade, que distorcem de forma irremediável o processo eleitoral em curso, eivando-o do vício da anulabilidade”.

“O acto silente de todos e cada um dos órgãos da APEP é significativo da postura dos respectivos membros em funções que primam pelo facto consumado”, lê-se ainda. “Não é essa a nossa maneira de estar e não podemos compactuar com este tipo de práticas que viciam de forma incontornável o acto eleitoral ao não dar a possibilidade que a Lista A teve de contactar directamente aqueles a quem o mesmo se destina: os associados que constam do caderno eleitoral e do ficheiro de associados activo da APEP.”

Membros saíram

As eleições começariam ontem às 18h, tendo tido uma grande adesão por parte dos encarregados de educação, soube o HM. Carlos Simões, membro da Lista A e presidente da mesa da assembleia-geral, acabaria por coordenar a votação do novo dia das eleições, tendo estas sido reagendadas para a próxima terça-feira, dia 6.

O HM sabe ainda que dois elementos resolveram abandonar a Lista B por não se reverem nas palavras de Manuel Gouveia. Este terá assinado a sua presença e saído nas instalações da EPM, tendo cabido a outro membro da lista a tarefa de ler o documento que pedia a impugnação das eleições. Manuel Gouveia remeteu mais esclarecimentos para Carlos Simões, com o qual não foi possível chegar a contacto até ao fecho desta edição. Também não foi possível chegar à fala com Valéria Koob, candidata à presidência da APEP pela Lista A.

30 Nov 2016

Manuel Gouveia, candidato à associação de pais da EPM: “Stanley Ho podia dar o nome à escola”

Opacidade da Fundação da Escola Portuguesa de Macau, ausência de publicitação das contratações de docentes, carga horária lectiva excessiva. Há muitos aspectos que Manuel Gouveia, líder de uma das duas listas candidatas à associação de pais, gostaria de mudar. Para resolver o problema das instalações, só mesmo se Stanley Ho fosse o patrono da instituição

[dropcap]E[/dropcap]ste ano há duas listas candidatas à Associação de Pais da Escola Portuguesa (APEP). É um sinal positivo?
Penso que sim. Nos últimos dez anos, as listas têm sido feitas um pouco com base na reciclagem das direcções anteriores. É positivo que haja novas ideias, porque ao fim de dez anos é natural que surjam cumplicidades entre quem está na direcção da APEP e os próprios membros da direcção da escola. Os consensos geram harmonia mas, da nossa parte, somos mais favoráveis ao progresso e à inovação, a sair de um certo marasmo em que a escola caiu. Não há sinal nem notícia de grande inovação.

Em que sentido é que nota esse marasmo?
A escola está esgotada em termos físicos. As salas estão ocupadas a cem por cento e, no primeiro ciclo, já há uma turma do segundo ano que teve de ir para a ala do segundo ciclo, porque não há salas suficientes. Isso dita que não houve previsão ou não houve decisão política de quem de direito. Temos notícia de que a escola perdeu quase cem alunos desde 2004 até 2014, e agora surgem mais turmas. É preciso mobilizar a comunidade de língua portuguesa para que as entidades de Portugal e o Governo da RAEM tomem as medidas que são necessárias. Não queremos uma mega escola, estamos bem com uma dimensão média, mas há potencial de crescimento.

Quem é o principal culpado desse marasmo? O Ministério da Educação em Portugal, a Fundação da EPM ou a direcção da escola?
A fundação é o primeiro equívoco. Não tem património suficiente para atingir o fim social de que está incumbida. Está dependente de subvenções anuais por parte de Portugal e de Macau. Uma coisa é clara: não se conhecem planos ou relatórios de actividade, e muito menos se conhecem orçamentos. Como isso não é reportado junto do público, no portal da escola, a sociedade não sabe e haverá algumas razões para que os decisores políticos não forcem para que se saiba. A Fundação Oriente saiu e houve uma continuidade de apoios, mas é preciso que se saiba onde estamos e para onde queremos ir. Informação gera confiança e também responsabilidade. O que se pretende são condições de aprendizagem para os alunos, professores e para os encarregados de educação não serem sobrecarregados com outro tipo de danos colaterais. A EPM é uma escola dita de excelência, e isso é quase um mantra. Mas em termos práticos é excelente porquê? Porque tem resultados de fim de ciclo e acesso à universidade em Portugal acima da média? Mas a verdade é que temos uma realidade socioeconómica acima da média. Não estamos sobrecarregados de impostos, temos um rendimento superior e podemos proporcionar aos nossos filhos acesso a livros e a informação. Quando os miúdos não têm o resultado esperado, os pais arranjam professores particulares que não têm os créditos que acabam por reverter para a EPM. Há que ter a frontalidade de assumir isso: a EPM precisa de dar um apoio maior em quantidade e qualidade.

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Sobre a fundação, há ainda a polémica doação da SJM que nunca foi clarificada.
Mais grave do que esse mistério é não haver transparência. É a assembleia da comunidade educativa reunir e a própria APEP não ter acesso às actas. Quando não há uma memória escrita daquilo que foi discutido, para que serve essa assembleia? Quanto à fundação, não há informações para a comunicação social ou para os pais sobre que tipo de pensamento ou projecto é que têm. A fundação resultará mais num encargo, porque tem membros que não se sabe quanto ganham. Num país na situação em que se encontra [Portugal], não nos podemos dar ao luxo de desperdícios. Há a fundação e a direcção da escola, e é preciso apurar quanto é que isso custa. Tem que se ponderar se este será o melhor modelo organizativo.

A extinção da fundação e a adopção de outro modelo de gestão seria uma melhor possibilidade?
Falou-se num parecer da Procuradoria-Geral da República que referia que um instituto público seria desejável, até para um controlo mais directo por parte da tutela. O Ministério da Educação pode nomear o presidente e um administrador, a APIM tem outro e as coisas correm não se sabe muito bem como, porque é uma instituição absolutamente opaca. A direcção da escola também tem um presidente, um vice-presidente, e depois tem um séquito de assessores e de apoio e ninguém sabe quanto custam. Não se sabe se são professores no topo da carreira, se dão ou não aulas… Uma gestão profissional, com um director que fosse gestor, sairia mais barato e até mais eficiente. É preciso fazer a contabilidade da EPM. Ultimamente parece que se equilibraram as contas, o Governo da RAEM provavelmente estará a injectar os milhões que são necessários.

A Fundação Macau anunciou a continuação do apoio, aliás.
Ficamos satisfeitos com isso, mas precisamos de mais apoio para o Português e a Matemática, e precisamos de um observatório educativo, que nos dê aos pais e à comunidade informações que digam como é que as coisas andam, ano a ano, turma a turma, teste a teste. As melhores escolas em Portugal têm nos seus portais observatórios em que dão essas informações em tempo real. É um indicador que gera transparência e naturalmente que, se há essa transparência, é uma escola que toma as medidas necessárias para corrigir eventuais problemas. Outra das coisas que está dentro do sistema e que me parece aberrante é que agora, por imposição de Portugal, as aulas são de 90 minutos. Isso dá uma multiplicação de gasto de tempo lectivo que me sugere que estamos demasiado fixos na avaliação e pouco preocupados com a aprendizagem efectiva.

Em que sentido é necessário maior apoio no Português?
Como tenho um filho no sexto ano, apercebi-me da enormidade da extensão e complexidade dos programas, mas não apenas no Português, em todas as disciplinas. A carga horária é excessiva. Há dificuldades porque a língua portuguesa, além de ser difícil em ambiente multilingue, é ensinada num ambiente em que os alunos funcionam muito com o inglês.

O ensino do mandarim tem sido alvo de críticas.
Também é preciso fazer essa contabilidade. Quantos alunos é que se inscrevem e quantos desistem? Ao fim de cada ciclo era preciso fazer uma avaliação externa e apurar se, de facto, os alunos estão a ter o aproveitamento esperado. As estatísticas são uma coisa que fica para consumo interno da direcção, mas penso que os miúdos a partir do sexto ano do mandarim começam a não gostar do idioma. Depois, é dado apenas um terço dos manuais anualmente, não ficam com as bases.

 As propinas são aumentadas anualmente. Obtiveram explicações nesse sentido?
Há quem tenha a perspectiva (não é o meu caso) de que se o Governo de Portugal contribuir com 50 por cento e Macau contribuir com o resto, que não há motivo aparente para haver propinas. Mas prefiro pagar mais propinas se me for assegurado um ensino e um apoio aos alunos que tiverem mais necessidades. Desde os alunos com apoio e também com necessidades educativas especiais. Mesmo os que têm apoios têm de ter apoios fora para conseguirem evoluir à medida das necessidades.

Acham que há falta de docentes de ensino especial?
A direcção diz que não. Mas não bastam docentes, precisamos de terapeutas da fala, uma partilha de recursos com os Serviços de Saúde e a DSEJ, e gera-se essa dificuldade. Queremos os meios que sejam necessários para o sucesso da aprendizagem.

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Alguns dos elementos que compõem a Lista B, uma das duas candidatas à associação de pais da EPM

Que diferenças apresentam em relação à lista A?
Temos o maior respeito por quem tem desempenhado o cargo, mas temos uma perspectiva diferente. Há uma cumplicidade e uma não pertença aos pais, mas a uma gestão ou solidariedade para com essa gestão. Tenho o maior respeito e há duas medidas que foram bem tomadas, como a reciclagem de livros e de uniformes, e algumas actividades. Nota-se que a equipa da lista A, que foi bastante renovada, tem vindo a perder força. Pedi os orçamentos e contas e nota-se que há devolução de verbas de apoios que obtiveram porque não conseguiram realizar essas actividades. Disseram, aliás, que não se iam candidatar caso aparecesse outra lista. Mudaram de opinião, legitimamente.

Portugal e os sucessivos ministros da Educação estão alheados do projecto da EPM?
As passagens por Macau são demasiado rápidas para se aperceberem da realidade. Por outro lado, também é compreensível, mas não é positivo que o façam, que pensem: “Estamos em Portugal com dificuldades, esta comunidade tem rendimentos superiores e nós vamos dar o que entendemos, e eles que complementem”. Devia haver uma visão estratégica e a EPM devia ser um modelo de escola. Devia albergar uma biblioteca de referência e um espaço multiusos. Mas isso não cabe na opção que foi feita inicialmente pelas instalações da escola Pedro Nolasco. Ao terem aberto mão do liceu de Macau perdemos uma mais-valia estratégica. Tinha todo o potencial que hoje tem o IPM e não aquele constrangimento que hoje temos. Essa falta de visão só poderá ser corrigida se Stanley Ho, que ainda é vivo, der o seu nome à EPM e a patrocinar de forma a dar a dimensão que merecemos. Pela simbiose que houve com Stanley Ho e os portugueses, seria possível resolver o imbróglio em que estas instalações se tornaram.

Que outros problemas pode apontar ao actual funcionamento?
Não temos o balanço social da escola. Era preciso saber, além das categorias, a idade média das pessoas, os funcionários deveriam estar categorizados. A EPM, dirigida por professores, não os valoriza, caso contrário teria na sua página quem são e que formação têm. Porque é que a escola não pode ter os rostos e a formação pedagógica dos docentes? Outra questão é as admissões de professores: se há concursos os avisos não são publicitados, nem são publicitados os critérios de selecção. Isso faz com que a confiança fique diminuída. Apesar de se dizer uma escola privada, deveria ter boas práticas porque é financiada com fundos públicos.

A cantina também tem gerado críticas junto dos pais.
É preciso perguntar a quem está adjudicada a cantina.

E a quem está?
Eu não sei. Se calhar isso explica. Serve ou não serve? Se não serve, anula-se o contrato e promove-se um concurso com um caderno de encargos. No D. José da Costa Nunes a associação de pais, presidida por acaso por um elemento da nossa lista, conseguiu uma cantina com um bom fornecimento. Na EPM o que noto é que na direcção cessante é tudo muito difícil, muito impossível. Há um baixar de braços.

É esta a escola que esperava 16 anos depois da transição?
A EPM precisa de se renovar e há pessoas que precisam de dar espaço a que outras surjam.

Está a referir-se à direcção?
Sim. São pessoas que têm poucos horizontes, estão em Macau há 30 anos e a visão que têm é a da Baía da Praia Grande.

24 Nov 2016

Presidente da República portuguesa felicitou pilotos do Grande Prémio de Macau

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s sucessos dos pilotos portugueses António Félix da Costa, na Taça do Mundo FIA de Fórmula 3, e de Tiago Monteiro, na Corrida da Guia, na 63ª edição do Grande Prémio de Macau não passaram ao lado em Portugal. Ontem, o Presidente da República felicitou os dois pilotos lusos.

“Foi com enorme satisfação que tomei conhecimento das vitórias dos pilotos Tiago Monteiro e António Félix da Costa no Grande Prémio de Macau”, disse Marcelo Rebelo de Sousa, em nota publicada no portal da Presidência da República. “Neste circuito citadino e emblemático de Macau, e com enorme apoio da comunidade portuguesa e luso descendente, Tiago Monteiro tornou-se no primeiro português a ganhar a Corrida da Guia e que contou para o campeonato do mundo de WTCC, enquanto Félix da Costa, repetiu a vitória de 2012, vencendo a corrida de Fórmula 3, nesta que foi a 63ª edição do Grande Prémio de Macau”, acrescentou.  “Em meu nome pessoal e de todos os Portugueses felicito os pilotos Tiago Monteiro e António Félix da Costa por mais estas vitórias, que vêm consolidar a carreira de dois dos mais bem sucedidos pilotos portugueses, e que dão relevo a Portugal nos desportos motorizados”, concluiu Marcelo Rebelo de Sousa.

FPAK também gostou

A Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting (FPAK) também emitiu no final de domingo uma nota de imprensa, com as palavras do presidente da associação.

“Ver os nossos pilotos a conseguirem títulos mundiais e a levarem o nome de Portugal  aos quatro cantos do mundo é um enorme privilégio. Sabemos que temos alguns dos melhores pilotos do mundo e acreditamos que são estes sucessos  que nos vão fazer continuar a trabalhar para formar mais pilotos de nível internacional”, referiu Manuel de Mello Breyner, Presidente da Federação, que foi um dos convidados no 60º aniversário do evento.

Para além de Félix da Costa e de Monteiro, o responsável máximo da FPAK e ex-praticante referia-se também ao piloto algarvio Rui Águas, cujo o irmão Paulo é capitão na Air Macau, e que este fim-de-semana venceu o troféu de pilotos da categoria GTE-Am do Campeonato do Mundo FIA de Endurance (WEC).

22 Nov 2016

Grande Prémio de Macau de Fórmula 3 – Supremo Félix da Costa

Estava escrito nas estrelas que ontem iria ser o dia de Portugal no Grande Prémio de Macau. Quatro horas depois de Tiago Monteiro vencer a Corrida da Guia, António Félix da Costa triunfou com enorme classe na Taça do Mundo FIA de Fórmula 3

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] jovem de 25 anos de Cascais, que nem era suposto cá vir e conduziu um Dallara-VW sem um único patrocinador, numa clara aposta da equipa Carlin no talento do português, repetiu o feito de 2012 e juntou-se a Felix Rosenqvist e a Edoardo Mortara na galeria daqueles que venceram por duas vezes esta prova.

Apesar de só ter tido a oportunidade de efectuar dois dias de testes num Fórmula 3 antes de viajar até nós, Félix da Costa chegou a Macau confiante e bem disposto, sem qualquer pressão e com um espírito bem diferente daquele que em 2013 “só” lhe valeu o segundo lugar. Na quinta-feira o português fez a pole-position provisória para a Corrida de Qualificação, mas acabaria por perder a primeira posição nos treinos de sexta-feira para os britânicos George Russell e Callum Ilott.

No sábado, no arranque, ao lado do brasileiro Sérgio Sette Câmara, deixou para traz o poleman George Russell, subindo a segundo. Callum Ilott manteve o primeiro posto. No recomeço após o primeiro momento de Safety-Car, após 5 voltas decorridas, na primeira abordagem à Curva do Hotel Lisboa, Félix da Costa fez a manobra decisiva da corrida e ultrapassou o britânico Ilott, assumindo o primeiro posto.

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No domingo, na verdadeira corrida de 15 voltas que atribuía o título mundial da categoria de Fórmula 3, o piloto português não esteve tão bem no arranque e foi surpreendido por Ilott nos primeiros metros, mas o rookie inglês ficou à mercê de Da Costa e de Câmara. Na travagem para o Lisboa, com três carros lado-a-lado, o brasileiro, que estava por dentro, levou a melhor sobre o seus rivais. O português caiu para segundo e viu o seu companheiro de equipa fugir ligeiramente nas primeiras voltas. Mas o cenário mudou com a entrada do “Safety-Car” à quinta volta, para retirar o bólide danificado de Nikita Mazepin no Paiol.

No reinicio, Félix da Costa passou ao ataque e ultrapassou Câmara. Daí até ao final o piloto luso não mais descolou da liderança, nem mesmo depois de mais um período de “Safety-Car” que a três voltas do fim permitiu a Félix Rosenqvist, que tinha arrancado de sexto e vinha a subir lugares, suplantar Câmara. Lá na frente, Félix da Costa já preparava a festa que vinha a seguir.

Para gáudio dos muitos portugueses que estavam ontem no Circuito da Guia, “A Portuguesa” voltou a tocar e António em lágrimas no pódio comemorou um triunfo em todo merecido, sem antes ter brindado o público com uns donuts em pista!

A meio do pelotão, e sem dar nas vistas, o jovem piloto de Macau Andy Chang conseguiu um refulgente 12º lugar, apenas três lugares atrás de outro brasileiro, Pedro Piquet, filho de Nelson Piquet. O representante da RAEM veio sempre a melhorar a sua performance ao longo do fim-de-semana e partindo do 16º lugar, chegou mesmo a rodar à porta do “Top-12” com o Dallara-NBE da equipa inglesa T-Sport. O 12º lugar de Chang, que esta época só fez duas provas de Fórmula 3, é o seu melhor resultado no Grande Prémio de Macau.


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O que eles disseram…

1º António Félix da Costa – “O Tiago ganhou hoje de manhã, e eu meti na cabeça que também tinha que ganhar. Sou competitivo e não conseguia vir aqui sem ser para ganhar. Estar ali no pódio e ver o apoio dos portugueses, e com toda a gente a cantar o hino, foi emocionante. Hoje (a vitória) foi para a equipa. Agora quero voltar aqui a Macau, mas não de Fórmula 3, mas sim ali com os maduros, nos GT.”

2º Felix Rosenqvist – “Não foi um fim-de-semana fácil. Tivemos que trabalhar muito duro, ontem o carro não estava bom. Para hoje fizemos muitas mudanças e andamos muito melhor. Tirei vantagem nos reinícios após os Safety-Car para ganhar posições. Dei o meu melhor mas não chegou para vencer.”

3º Sérgio Sette Câmara – “Desde ontem à noite, depois de ter ficado em terceiro na Corrida de Qualificação, comecei a acreditar que podia ganhar Macau. Quando eu na primeira volta estava em primeiro, comecei a acreditar ainda mais mas depois veio o Safety-Car. Este ano nunca estive na primeira posição atrás do Safety-Car e não arranquei bem, e o António passou-me. Depois comecei a perder a minha traseira e o Félix conseguiu ultrapassar-me também.”

21 Nov 2016

Hong Kong | Portugueses ponderam criação de associação

São jovens, com vidas organizadas e trabalhos sólidos. A comunidade portuguesa em Hong Kong é pequena, mas bem resolvida. O desemprego em Portugal contribuiu para um novo fluxo de emigração para a região vizinha. Procuram-se agora pontos de encontro

[dropcap style≠’circle’]Á[/dropcap]lvaro Monteiro está em Hong Kong há dois anos e meio e é um caso especial. Para começar, tem uma profissão que é, no mínimo, diferente: é treinador de esgrima. Depois, chegou à antiga colónia britânica através de Macau, o que não acontece com a maioria dos portugueses que, nos últimos anos, decidiram passar a viver aqui ao lado.

Desde que Hong Kong é Hong Kong que há portugueses na região. As primeiras – e mais expressivas – vagas de emigração tiveram como ponto de partida o outro lado do Delta, em alturas atribuladas da vida política e social de Macau. A comunidade teve importância, ficou para a história de um território que se transformou em metrópole. Hoje, ainda se vive de um certo passado, mas há uma nova comunidade a nascer dentro da comunidade. São os sub-30, como lhes chama o cônsul-geral de Portugal em Macau e Hong Kong.

Pelas contas de Vítor Sereno, há cerca de 30 mil cidadãos com passaporte português na antiga colónia britânica. “Mas imagino que, entre a comunidade expatriada e a comunidade tradicional, andem à roda dos 5000.”

É no equilíbrio entre as duas comunidades que o cônsul-geral e o cônsul honorário, Ambrose So, desenvolvem o trabalho que fazem na região vizinha. Tenta-se a aproximação entre as duas comunidades: a tradicional, com sede sobretudo no centenário Club Lusitano, e a expatriada, espalhada um pouco por toda a cidade, sem um ponto de encontro concreto.

Destino de trabalho

Hong Kong apareceu na vida dos portugueses com quem o HM falou por motivos profissionais. Nem todos eles chegaram directamente de Lisboa, mas poucos são aqueles que fizeram as malas e aterraram com espírito de aventura.

Voltamos a Álvaro Monteiro, que tropeçou em Hong Kong por causa de Macau. O treinador de esgrima tem cá a viver um dos melhores amigos. “Fui visitá-lo, estive um mês por cá, vim visitar Hong Kong e surgiu uma proposta de trabalho nessa altura. Foi por acaso”, conta.

O acaso dura há mais de dois anos e é um acaso feliz: “Faço aquilo que sempre quis fazer e encontrei essa oportunidade aqui na Ásia. Na Europa, principalmente em Portugal, não é assim tão fácil viver da esgrima. Por cá, está a crescer de uma forma muito interessante – em Hong Kong, na China, em Singapura, no Japão. É um mercado que está a crescer”.

Marcos Melo Antunes viveu alguns meses em Macau há mais de uma década, mas passou por outros continentes antes de chegar a Hong Kong, onde está há já seis anos. A trabalhar numa multinacional, a região serve-lhe essencialmente de base. A empresa “precisava de reforçar a equipa na Ásia, estava em grande crescimento na China, no Japão e na Coreia, e utiliza Hong Kong como uma plataforma para lidar com esses países”, explica.

A experiência “tem sido boa”, porque “Hong Kong oferece várias coisas que uma grande cidade cosmopolita oferece”, destaca. “Tem sido uma experiência interessante e intensa. Hong Kong, a par de outras grandes cidades como Nova Iorque ou Londres, é uma cidade com grande actividade e pode chegar-se facilmente a vários países aqui à volta.”

Melo Antunes corresponde ao perfil mais comum dos portugueses que, nos últimos anos, se mudaram para Hong Kong. Quando pisou a região na qualidade de representante do Estado português, há quase quatro anos, Vítor Sereno encontrou “uma comunidade expatriada muito ligada às profissões liberais”.

“Houve um boom de emigração de Portugal pós-2010, 2011, muitos deles vieram para esta zona do mundo, adaptaram-se muito bem. Muitos deles estão na área da banca, do IT, na área financeira, nas grandes empresas multinacionais, e foi essa comunidade que eu vim encontrar”, descreve Vítor Sereno.

Há seis anos, quando Marcos Melo Antunes saiu da Europa, “havia um pequeno grupo de portugueses, jovens empreendedores, muita gente ligada ao trading”. Havia também “pessoas que tinham vindo à procura da sua sorte – porque tinham ouvido dizer que havia pouco desemprego –, tinham vindo à procura de novas oportunidades e encontraram-nas aqui”.

Não é “um grupo expressivo, mas são alguns”. Melo Antunes já viu pessoas a aterrar, outras a partir. “Algumas começam a chegar com o interesse das empresas chinesas na economia portuguesa, nas áreas da electricidade, dos transportes – há já portugueses ligados a essa área. Há também grupos portugueses, como a SONAE, que fizeram investimentos na China e que trouxeram pessoas para cá.”

Uns aqui, outros ali

Em termos de vida social, Marco Melo Antunes relaciona-se com expatriados de vários locais, sendo que alguns deles são de Portugal. Já Álvaro Monteiro, o treinador de esgrima, conta que, neste momento, não tem nenhum contacto com portugueses – o único que conhecia e que o ajudou a adaptar-se à cidade mudou-se para o Médio Oriente. O círculo de amigos faz-se com pessoas de outras nacionalidades.

Mathias Simão, osteopata, está em Hong Kong há cerca de dois anos. Chegou à cidade depois de um ano a viver na Malásia e, em termos profissionais, dificilmente podia estar melhor. “As pessoas em Hong Kong procuram a osteopatia. São das classes média-alta, alta, e estão preocupadas com tudo o que é a saúde e a forma física, pelo que estão bastante abertas à osteopatia.” A antiga colónia britânica tem ainda a vantagem de ter comunidades de língua inglesa, o que é importante para um profissional com um diploma do Reino Unido.

Simão explica que se dá com “pessoas das mais diferentes origens”, uma realidade à qual esteve sempre habituado, até porque nasceu em França. “Há relativamente poucos portugueses. Estou à espera de integrar o Club Lusitano, mas a comunidade portuguesa está bastante dispersa.”

É a pensar nesta realidade que Vítor Sereno gostaria que Hong Kong tivesse uma associação de portugueses, projecto que está já a ser pensado por Gonçalo Frey Ramos, o português deste texto com mais anos de casa: são quase 11 a residir na região.

O cônsul-geral recua no tempo para uma contextualização: o primeiro contacto com Hong Kong, à chegada, mostrou-lhe “uma comunidade muito tradicional, muito respeitada, muito assente no Club Lusitano, criado em 1866, foi o segundo gentlemen’s club de Hong Kong”. Associado ao clube, destaca, “existem várias figuras – como o Comendador Sales, Sir Roger Lobo – que fizeram muito pelo nome de Portugal em Hong Kong, antes e depois do handover em 1997”.

Acontece que a outra comunidade – a expatriada – “não se revê muito naqueles princípios”, explica. O Club Lusitano de que o osteopata Mathias Simão está à espera tem ainda critérios de admissão que o tornam pouco acessível. “A primeira vez que festejei o Dia Nacional, percebi que havia outro tipo de comunidade, uma comunidade expatriada muito mais nova. Há aqui uma espécie de outra comunidade dentro desta comunidade e tentei aproximá-las.”

Desejo de ano novo

Vítor Sereno acrescenta que, quase quatro anos depois e com uma mudança de direcção do Club Lusitano pelo meio, há hoje um maior contacto. Mas, ainda assim, faz falta um outro tipo de presença organizada.

“Para 2017, tenho o desejo que se constitua a associação dos portugueses em Hong Kong e que esta associação se coordene com o Club Lusitano, mantendo esse lado tradicional, essa âncora. Que esta comunidade tradicional – que tem as suas raízes no Club Lusitano e a quem Portugal muito deve – se mescle com esta nova comunidade, que aparece todos os meses, todos os dias, e que é constituída pelos sub-30, como lhes chamo”, aponta o diplomata.

O cônsul esteve há pouco tempo num almoço com esta nova geração. “Éramos cerca de 100, entre senhoras grávidas, bebés a chorar, miúdos pequenos, uma grande algazarra que contrasta um bocadinho com o formalismo que existe no Club Lusitano. É entre formalismo e informalismo que devemos conformar a nossa comunidade em Hong Kong”, defende.

Neste almoço esteve Gonçalo Frey Ramos, “o elemento agregador desta comunidade”, forma como Vítor Sereno descreve o jovem licenciado em Gestão, a trabalhar na área dos vinhos.

Frey Ramos decidiu mudar-se para Hong Kong há mais de uma década, depois de um ano a viver em Xangai, onde esteve ao abrigo do então programa Contacto. “Em 2008 conheci a minha mulher. Curiosamente não é de Hong Kong, é japonesa, e entretanto tivemos duas filhas – a Maria e a Elena”, relata. Completamente integrado, conhece muitos portugueses, em especial os que chegaram nos últimos anos.

“A comunidade portuguesa é muito diversa, há vários grupos de pessoas, mas que se relacionam todos bem”, diz o autor de uma página no Facebook destinada especialmente aos cidadãos portugueses residentes na região.

Gonçalo Frey Ramos está a trabalhar na ideia da criação da associação de portugueses. “Há muita gente que não se revê no Club Lusitano, uma instituição bastante antiga que foi fundada numa altura em que a comunidade portuguesa tinha muita força e era uma das mais importantes”, afirma. “Hoje em dia, faz sentido [criar uma associação], porque não há nenhum sítio que acabe por juntar todos os portugueses”, diz. “Existe a vontade de que haja um sítio onde se possam encontrar, que saibam que, se forem ali, estão lá portugueses. Para algumas pessoas, seria uma solução muito válida.”

Se tiver pernas para andar, a associação será constituída por elementos de uma comunidade muito bem resolvida. “Estão muito bem orientados. Normalmente, as empresas para onde vêm trabalhar oferecem bons contratos, a própria integração social deles e das famílias é feita a priori, não é feita a posteriori com recurso ao consulado, à última hora, ou ao consulado honorário”, explica o cônsul Vítor Sereno. Há um “vínculo histórico de seriedade e de competência” da comunidade portuguesa em Hong Kong que está para durar. Agora com a ajuda dos sub-30.

Macau da saudade

Fica a uma hora de viagem, mas não é um destino procurado com frequência pelos portugueses que vivem em Hong Kong. Macau serve, sobretudo, para matar saudades de casa.

“Desde que estou cá em Hong Kong tenho tido pouco contacto com Macau. Pensava que, vivendo aqui, ia ter uma relação mais próxima”, admite Marcos Melo Antunes, que residiu no território durante alguns meses há mais de uma década.

“A verdade é que as comunidades não se relacionam. Vou a Macau com amigos portugueses de quatro em quatro meses para uns jantares, vamos comer comida portuguesa. Tenho pessoas conhecidas em Macau mas que vejo muito raramente e os portugueses de Macau vêm a Hong Kong, mas não há uma relação muito forte entre os portugueses” das duas regiões.

Melo Antunes, que trabalha numa multinacional na antiga colónia britânica há seis anos, relata que “os portugueses que chegam a Hong Kong têm curiosidade, vão visitar Macau”. Mas, acrescenta, “esperava uma maior relação, uma relação que não vejo, não sinto, não está presente”.

Mathias Simão confirma a descrição de Marcos Melo Antunes: “Vou de vez em quando a Macau, uma vez de seis em seis meses, pela gastronomia portuguesa”. O osteopata confessa que, quando visitou o território pela primeira vez, ficou surpreendido com o facto de haver pouca gente a falar português. “Pelo que vejo aqui, Macau acaba por ser um destino, mas só de vez em quando, para comprar algo de Portugal ou para ir comer qualquer coisa. Não será um destino ao qual se vai com frequência.”

Já Álvaro Monteiro, que começou a vida em Hong Kong depois de um mês de férias em Macau, faz uma visita mensal ao território. “É um bocadinho de Portugal aqui na Ásia, sinto mesmo isso. Dá para falar a língua, o que, para mim, é espectacular, porque estou sempre a falar inglês. Dá para comer comida portuguesa e estar com amigos”, descreve o treinador de esgrima.

21 Nov 2016

António Félix da Costa: “A comunidade portuguesa faz-me sentir em casa”

António Félix da Costa regressa este ano ao Circuito da Guia e à prova de F3 que venceu categoricamente em 2012. O piloto da linha de Cascais está confiante num bom resultado, mas sabe que tem pela frente uma concorrência fortíssima a todos os níveis.

[dropcap]O[/dropcap]s olhos da comunidade portuguesa do território na prova de F3 vão estar em si e a torcer por um resultado igual ao de 2012. O que tem para lhes dizer?
Que o apoio deles é fundamental e faz-me sentir verdadeiramente em casa, é uma corrida espectacular e todo aquele carinho pode fazer a diferença, por isso o que peço é que tragam a nossa bandeira de Portugal e encham as bancadas! Do meu lado, tudo farei para lutar pela vitória.

A Prema PowerTeam – Theodore Racing tem dominado completamente a F3 nos últimos tempos. Acredita que a Carlin poderá ter um carro à altura para lutar pela vitória?
Sim, Macau é uma corrida à parte onde a afinação base do carro é totalmente diferente dos circuitos convencionais, portanto acredito que poderemos lutar contra eles, que obviamente são uma excelente equipa. Mas em 2012 venci com a Carlin, pelo que vamos entrar em pista com esse objectivo em mente.

Não fez qualquer corrida de F3 este ano, assim como o Felix Rosenqvist ou o Dani Juncadella. Acredita que a vossa experiência num circuito como este poderá fazer a diferença contra pilotos com menos experiência na Guia, mas que conduziram estes carros o ano todo?
Sim, em Macau principalmente a experiência, conhecimento do circuito e a maturidade contam muito, mas há sempre roockies a andar bem e de certeza que vamos ter vários pilotos mais novos a andarem rápido em Macau. Vai ser entusiasmante ver a luta dos “velhos” contra os miúdos novos com sangue na guelra.

Depois de ter estado cá, mais nenhum jovem piloto português veio ao Grande Prémio de F3. O que acha que está a faltar em Portugal para existir uma sucessão?
Esta pergunta daria para estarmos um dia inteiro a falar deste tema, mas basicamente é preciso investir desde novo numa carreira. No meu caso, abdiquei de muitas coisas desde os meus 12 anos, não se pode querer ser piloto profissional aos 16 ou 17 anos, ai já é tarde, tem de haver um trabalho e uma preparação desde cedo, um foco, um objectivo em que se aposta tudo. Não falo especialmente do lado financeiro, mas sim de um piloto, toda a sua família e estrutura de gestão acreditarem e focarem-se num único objectivo – levar um jovem o mais longe possível.

17 Nov 2016

A pele de um independente

Horta Seca, Lisboa, 12 Novembro

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]empre em dúvida, sempre em dívida. Podia tatuá-lo no braço só para me poupar ao trabalho de responder à quotidiana pergunta: como vais? Ou nos cada vez mais frequentes debates sobre edição: defina lá o trabalho do editor independente, se faz favor. Independente tornou-se a minha segunda pele – ainda que não perceba de quê, tantas são as dependências –, do mesmo modo que abysmo passou a primeiro nome: abysmo de joão paulo cotrim.

Estaremos sempre em dívida para com os autores. Cabe-nos ajudá-los a apurar o veneno do texto, a desenvolver o invólucro certo capaz de inocular a potencial multidão dispersa. Não basta um qualquer, tem que ser o leitor: inteligente e conhecedor ou emocional e dedicado, se possível uma hábil mistura de ambos. Capaz de admirar a vanguarda, sem esquecer as tradições, esforçado para reconhecer a explosão das estruturas narrativas, ainda que aceitando dançar com a frase fulgurante, enfim, prazer e esforço algures no cruzamento de físico teórico com groupie ou de bailarina clássica com adepto de futebol. Além dos direitos, claro, no confronto da prática que dá corpo ao livro, esperam ainda que os ajudemos no despertar da vocação: levá-los à frase, ao género, ao tema em que se cumpram.

Duvidaremos sempre do caminho. Isto não é tanto um negócio, mas uma maneira de ver o mundo, de estar no centro das ideias, da criação, da discussão, das coisas. Duvidamos da estratégia, dos tempos, das parcerias. Se corremos contra o tempo, se não devíamos olhar para trás na vez de procurar o futuro. Duvidaremos se não haveria ainda mais uma volta a dar, se não deixámos escapar uma gralha (e deixámos, pois). Se o recusado não era merecedor de segunda alternativa. Se o editado não era merecedor de recusa. Duvidaremos sempre de que tenhamos feito tudo, de que os argumentos oferecidos eram exactos, se estavam afiados como x-acto.

Servirá isto para alguma coisa? Azar. Se estamos, como Wile E. Coyote, no meio do precipício, o melhor é seguir em frente na vez de olhar para baixo. E cair.

A Tout Livre, Paris, 23 Setembro

As rentrées tendem a ser infernais. O ano passa a correr e parece que uns bons dez meses se espatifam contra a montra do Natal. O ano dos livros há anos que dança a mesma dança. Dos pleonasmos, portanto, uma das mais graves maleitas do mundo editorial. Esta reentrada foi quente como bólide celeste rasgando a atmosfera. Contudo, não poderíamos ter tido melhor maneira de comemorar cinco anos de abysmo do que a edição da Chandeigne, por via do empenho da Anne Lima, da bela tradução de Autismo, do Valério, assinada por Elisabeth Monteiro Rodrigues. Foi muito bem recebido pela crítica, nomeado para o Prix Femina, que só não venceu, confirmado por várias fontes, devido às movimentações politicamente correctas que o entregaram a um jordano. Os prémios vivem bastante de correntes de ar, e constipam-se. Saltemos.

Este contacto com o sistema editorial francês, que lançou por esta altura quatrocentos e tal romances e mais de uma centena de romances, sublinhou-me mais as fragilidades do português. Descontemos por ora a diferença estrondosa de um país que gosta de livros, campeonato que Portugal perdeu há anos. Ali, veja-se, os distribuidores e os livreiros lêem os livros. Em Maio, em encontro dos editores com as principais distribuidoras, todas ao barulho, grandes, médias ou pequenas, foram apresentadas as novidades, algumas delas já impressas. Autisme circulou em pdf, mas foi o suficiente para tocar a parte fria da cadeia antes de chegar aos entusiastas: os livreiros. A eles se deve, estou em crer, a fortuna que o romance está a ter [a entrar em segunda edição, por estes dias]. Fui testemunha de um exemplo desse entusiasmo, logo no dia do lançamento, em conjunto com novos títulos do Gonçalo M. Tavares e do Valter Hugo Mãe, mas basta percorrer, no mural das Editions Chandeigne as inúmeras fotos de montras e dos coup-de-coeur, um pouco por todo o país, para perceber que não foi caso único. As apresentações de Quentin Shoëvaërt-Brossault foram de uma profunda simplicidade. Era apenas um leitor, em modo partilha. Fazem-nos tanta falta os leitores.

Centre Pompidou, Paris, 24 Setembro

As filas já eram grandes, mas agora são enormes para garantir que não levamos kalashnikovs para os museus, enfim, além das que já lá moram. Pensei que a exposição pop, Beat Generation – New York, San Francisco, Paris, acrescentaria ainda mais culpas do que Magritte, a sua parceira no andar mais rente ao céu, na mais bela panorâmica da cidade. Pisamos os telhados antes de entrar nos subterrâneos da arte, parece-me programa. Estava errado. As multidões abarrotavam as salas do Magritte, afinal pop. Paris reconciliou-se com o ignorado de há umas décadas? Que poder de atracção possui este óbvio inimigo do óbvio? As imagens dizem muito mais do que mostram e inteligência pode bem ser espectacular e lúdica. Que prazer ler primeiro os títulos e procurar a copa a partir desta raiz! Ou vice-versa.

A Beat apresentava-se com um eixo em torno do qual orbitava tudo o resto, que foi muito e variado: On the road, de Jack Kerouac, feito estrada sobre uma mesa. Ao longo de dezenas de salas podíamos atender telefones e ouvir Giorno, ver filmes com Dylan, gastar horas nas legendas das fotografias de Ginsberg, ler e ouvir Burroughs, Ferlinghetti, Corso, passear por instalações, pinturas, documentários, cartazes, fanzines, colagens, cut ups, perder o olhar nas fotos de Robert Frank, até à Dreamachine, de Brion Gysin, que nos põe a sonhar acordados. Desde o dadaísmo, mais coisa, menos coisa, se pensarmos em movimento literário temos que contar com as outras linguagens. E que cada uma conte as outras.

S. Luiz, Lisboa, 13 Novembro

Arnaldo Antunes em concerto. A energia é arrebatadora e o tom metálico estica os sentidos da língua tuga até altos penhascos. De súbito, uma declaração de amor ao leitor: «Se sou voraz, me sacie./Se for demais, atenue./Se fico atrás, assobie./Se estou em paz, tumultue.//Você é que me continua.»

16 Nov 2016

Valério Romão: “Não me interessam os temas da moda”

[dropcap]E[/dropcap]nquanto outros seguem guiões pré-definidos, como por exemplo ter de escrever uma cena de sexo (ou mais de uma) e uma piada (ou mais do que uma), ou seguir um imaginário completamente retórico, quase até ao limite da publicidade, os teus livros começam a partir daí, como a Marina Tsvetaeva para a poesia russa, nas palavras do poeta Joseph Brodsky em “Less Than One”: “Marina começa os seus poemas onde os outros acabam”. Tens a consciência de que escreves ao arrepio do que se escreve hoje em Portugal?
Não sei se é exactamente ao arrepio daquilo que se escreve em Portugal, embora eu tenha uma consciência, ainda que pouco nítida, de que faço um caminho que tem um formato e trajecto com algumas particularidades que o distingue dos restantes. Talvez isso corresponda, grosso modo, à noção de estilo – seja lá o que isso for neste tempo em que parece que a única ocupação moral e eticamente permitida é o estilhaçar de categorias (e não para criar algo de novo, mas para terraplanar diferenças, um ideário paradoxal no qual se propõe que a criação não tem de criar nada e que o seu propósito é normalizar tudo, seja pela ironia, seja pelo pastiche, até nada se distinguir de nada). Não me interessa esse manifesto de terra queimada, não me interessam os temas da moda, não me interessa ser “actual”. Interessa-me sobretudo trabalhar com coisas que me são próximas e, simultaneamente, desconfortáveis. O que me interessa – pedindo desculpa pelo pretensiosismo inerente ao que vou dizer em seguida – é fazer qualquer coisa que, tendo um pé no agora, possa transcendê-lo: qualquer coisa de humano.

A única forma literária que nunca escrevi foi o conto. Nem sei se sei fazer ou não. Tu tens uma predilecção pelos contos, ou entre o conto e o romance venha o diabo e escolha? Qual a diferença dessas duas formas de escrita em ti?
Grande parte da minha formação enquanto leitor tem que ver com a leitura de contos, sobretudo os da escola do absurdo: Gogol, Kafka, Buzzati, Cortázar. Um conto é, passe a obviedade, muito diferente de um romance; um romance é uma corrida de fundo, uma ultra-maratona na qual parágrafos ou páginas inteiros podem estar ligeiramente ao lado ou mesmo desalinhados. Há um grau de tolerância relativamente ao romance que diminui exponencialmente quando passamos para formas mais breves de literatura: é muito menor no conto (talvez um, dois parágrafos) e ainda menor na poesia (às vezes, nem a um verso se permite o coxear). O conto para mim é a forma mais adequada para preparar desfechos inusitados e para testar ambientes e contextos incomuns, duas coisas que eu próprio procuro enquanto leitor. Tem ainda o bónus de ser possível começar e acabar um conto no mesmo dia, coisa que naturalmente não acontece com um romance.

E como entendes a arte da crítica literária, que rareia nesta urbe?
A função essencial da crítica literária é a recondução de um autor e/ou de uma obra ao lugar que pertencem na história da literatura, lato sensu. A crítica dispõe (ou devia dispor) das ferramentas necessárias para aquilatar o grau de novidade, sofisticação e relevância de uma obra. Só ela, dado a sua memória histórica, assente no trabalho de leitura e de crítica, pode encontrar o lugar do autor. O autor não faz isso sozinho. Não faz isso através do público. É o crítico o geógrafo capaz de encontrar o lugar do autor e a sua afiliação. O que normalmente lemos são recensões. E um e outro trabalho podem coexistir. Ambos são necessários. Descuidar a crítica, porém, é prestar, em primeiro lugar, um mau trabalho ao autor e ao público.

Viveste muitos anos em França, qual a razão pela qual não te tornaste um escritor de língua francesa?
Não me senti nunca em casa, em França. E não me sentido em casa, o francês, embora fosse a minha primeira língua, nunca se tornou um médium literário. Há que igualmente notar que saí de França com 11 anos, uma idade insuficiente para que a língua francesa tivesse obtido competência literária. Tornei-me leitor de francês mas não falante, e essa falta de prática aliada ao facto de nunca ter sentido França como “a minha casa”, fez com que acabasse por ser perfeitamente natural escrever em português.

Tens uma licenciatura em filosofia. Achas que o curso que fizeste foi determinativo para seres o escritor que és? Vias-te a fazer outro curso, que não te conduzisse tanto a ti como o de filosofia? Eu não me imagino sem filosofia.
Absolutamente. E atrevo-me a dizer que sou ainda mais específico: é o curso de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova. Não teria as mesmas competências de análise fenomenológica se não tivesse tido aulas com o Nuno Ferro, com o Mário Jorge de Carvalho, com o António de Castro Caeiro. Do mesmo modo, a minha perspectiva relativamente à estética não seria a mesma se não tivesse sido aluno da Filomena Molder. Não raras vezes socorro-me do que retive da minha passagem pelo curso de filosofia e do que vou lendo, entretanto, para escorar um capítulo, uma personagem, um livro inteiro. A filosofia está sempre presente, é mais que um conteúdo, é uma forma de pensar. Está presente de forma inconspícua, são as costuras das coisas, o espaço entre os retalhos, a geometria oculta que transforma um arrazoado de acontecimentos numa estrutura narrativa. Pode fazer-se tudo isto sem filosofia? Claro. Mas para mim seria mais difícil.

11 Nov 2016

Rogério Miguel Puga, académico: “Há muita investigação ainda por fazer”

São histórias de mulheres com olhares muito diferentes, que completam o vazio sobre o quotidiano da Macau do século XVIII. O investigador Rogério Puga voltou ao território para participar na conferência internacional “Discursos memorialistas e a construção da história”, que termina hoje na Universidade de Macau. E explica-nos o que se descobre sobre o passado desta cidade quando se vai de Boston a Filadélfia.

[dropcap]T[/dropcap]rouxe a Macau o caso do diário de Caroline H. Butler Laing, uma norte-americana, escritora, uma mulher de família também, que passou por cá no século XIX em viagem com o marido. Que diário é este? Que escritas femininas são estas?
São escritas protestantes, um olhar protestante sobre Macau, que estranha quer o chinês, quer o português católico. É uma mulher que vem de Nova Iorque, muitas vinham de Boston, e nunca tinham visto católicos. O português católico é tão exótico para estas mulheres quanto o chinês. Elas têm de descodificar esses dois outros que encontram em Macau. São exercícios religiosos: os católicos confessam-se, os protestantes não, pelo que escreviam diários como exames de consciência para ver o que tinham feito bem e o que tinham feito mal. Estas mulheres passam o ano todo em Macau, os maridos estão em Cantão seis meses, elas ficam sozinhas aqui com os empregados e os filhos, aborrecidas até à morte, rodeadas de católicos e de chineses, e descrevem desde o cão que está a latir aos cortinados e às cadeiras. Para se reconstituir a história do quotidiano da Macau do século XIX estas fontes são riquíssimas, são muito melhores do que as fontes portuguesas. Elas eram tradutoras culturais, porque tinham de explicar tudo ao mínimo pormenor sobre a China. Estes diários eram epistolares, em forma de carta, eram enviados para os Estados Unidos, e a rua e o bairro inteiro liam aqueles diários. Foram também responsáveis pelas primeiras imagens americanas sobre a China. São quase ferramentas da sinologia norte-americana.

Porquê esta mulher? O que tem de especial Caroline H. Butler Laing?
Tem o que todas as outras têm, mas há neste diário uma coisa muito interessante: o dia-a-dia da mulher protestante em Macau. Ela no fim faz uma espécie de um esquema do quotidiano de uma mulher norte-americana: as orações, a hora a que se levanta… Há outro diário, da Rebecca Kinsman, que enviuvou cá em Macau – o marido, Nathaniel Kinsman, está enterrado no cemitério protestante. Eles, por exemplo, trouxeram uma vaca dos Estados Unidos da América. Como os chineses não bebiam leite, as vacas não eram leiteiras. Se traziam crianças, traziam uma vaca. Quem ia embora deixava a vaca leiteira aos amigos que cá ficavam, assim como mobília – ofereciam ou faziam leilões. Este diário tem isso de especial: ela descreve o quotidiano da mulher de língua inglesa, protestante, em Macau: se ia visitar as amigas, se ia passear a pé até às Portas do Cerco, se ia visitar uma aldeia chinesa. Há todo este ponto de vista dos estrangeiros que chegam a Macau. Por exemplo, estranham o repicar dos sinos de hora a hora, que é uma coisa que não acontece nos países protestantes. É um olhar muito diferente do de uma mulher portuguesa que visitasse a Macau católica do século XIX: não estranharia o repicar dos sinos porque em Portugal também soam para dar as horas. É muito interessante esta focalização protestante sobre um território simultaneamente português e chinês.

Porque observa pormenores que seriam dados adquiridos para portugueses e chineses. É, portanto, uma fotografia mais completa.
É. Muitas vezes permite encontrar os vazios das fontes portuguesas, certas práticas que não estão descritas nas nossas fontes e que eles descrevem. Acontece muito, nas fontes oficiais, aquilo que interessava aos portugueses esconder do Rei de Portugal, os americanos ou os ingleses falarem abertamente, e vice-versa – o que interessava aos ingleses esconder, as fontes portuguesas muitas vezes revelam. Esse cruzamento das fontes de línguas diferentes permite encontrar vazios quer numas fontes, quer noutras.

Destacou o facto de serem fontes de religiões diferentes também, num contraste com os escritos de residentes e viajantes católicos. Existe uma diferença muito grande na abordagem do mundo, certo?
Existe, a cosmovisão é diferente. Estas mulheres americanas, quando vão para festas portuguesas até às quatro da manhã, sentem-se culpadas, há o peso da seriedade protestante. Os hábitos são diferentes, quase que se sentem forçadas a justificar porque é que ficaram até às três da manhã numa festa na casa do Governador. Há esse peso religioso. Há as práticas dos quakers e dos unitarianos em Macau, que casavam entre primos. Os próprios americanos espantam-se com os hábitos uns dos outros, o que não deixa de ser curioso. Existiam várias Macau – não eram só a portuguesa e a chinesa, havia também uma norte-americana, uma britânica. Esta visão caleidoscópica de um território tão cosmopolita como Macau era e continua a ser muito importante no cruzamento destas fontes.

Era uma Macau interessante, esta que a Caroline H. Butler Laing descreve?
Era. Sobretudo até à fundação de Hong Kong, era a única porta de entrada para a China e foi esse o segredo de Macau. Por isso é que ficamos tantos anos aqui: também era útil para as autoridades chinesas manterem os estrangeiros todos em Macau, delegando nos portugueses a responsabilidade de os administrar. Nenhum estrangeiro estava mesmo na China – ia de Macau para o complexo das feitorias de Cantão, que também era fechado como Macau, que funcionou um pouco como tubo de ensaio, desde o século XVI, para o comércio da China, nos séculos XVIII e XIX. Replicou-se o formato encerrado de Macau com as Portas do Cerco nas feitorias de Cantão. E daí a utilidade: manter os estrangeiros com um pé fora e outro dentro da China, encerrando-se as Portas do Cerco quando os portugueses e os outros estrangeiros não respeitavam o desejo das autoridades chinesas.

Na outra intervenção nesta conferência, que faz hoje, traz uma descoberta que revelou em 2012, que tem que ver com o primeiro museu da China e que foi criado precisamente aqui em Macau.
Foram exactamente estes diários que me permitiram fazer esta descoberta. Parece impossível como é que só em 2012 é que se faz esta descoberta, mas deve-se ao facto de ter sido uma iniciativa completamente anglófona, de língua inglesa. Este museu foi fundado por funcionários da Companhia das Índias inglesa e por missionários protestantes, e era sobretudo frequentado pelos visitantes estrangeiros e pela comunidade anglófona. Por isso, não aparece muito nas fontes portuguesas – quase ninguém lhe fez referência. Quando começo a ler estes diários de mulheres norte-americanas, aqui e ali encontrei frases como ‘Fui ao museu britânico de Macau’, ‘Fui ao museu de Macau’. Comecei a juntar uma linha ou duas, em vários diários, o que depois me permitiu, com o tempo, ir chegando à conclusão de que aquilo, para a época, era um museu representativo. Juntei várias referências, investiguei em revistas da época, e cheguei à conclusão de que entre 1829 e 1834 tinha sido inaugurado o ‘British Museum of Macau’ e que, ao contrário do que toda a gente dizia e do que a história da museologia da China defendia, foi o primeiro museu que abriu portas, e não um museu fundado por um jesuíta francês, Pierre Heude, em 1868. Portanto, o primeiro museu da China de cariz ocidental não abriu as portas em 1868, em Xangai, mas em 1829, em Macau, e fecha depois com o final do monopólio da Companhia das Índias em 1834.

Sabe-se qual era a localização?
Não. Foi uma das coisas que me perguntaram, quando a revista da Cambridge University Press avaliou o meu trabalho. Também queria saber. Penso que seria na zona onde hoje é o Palácio do Governo, porque era na Praia Grande que estava a sede da Companhia das Índias. Penso que seria algures entre a Penha e o actual Palácio do Governo mas, até à data, não encontrei ainda nada. Era uma casa arrendada e os comerciantes ingleses e chineses traziam peças para esse museu, havia um guarda, e as peças estavam legendadas.

Dois anos depois desta descoberta, escreveu sobre a primeira biblioteca de língua inglesa na China. Que biblioteca é esta?
É uma biblioteca itinerante. Todos os estrangeiros que vinham para Macau traziam livros – da América, de Inglaterra, da Irlanda –, deixam-nos ficar, trocam-nos. Esses livros vão sendo depositados na sede da Companhia das Índias em Macau e na feitoria inglesa e norte-americana em Cantão. Os livros viajavam Rio das Pérolas acima, Rio das Pérolas abaixo, com os comerciantes ingleses, que passavam o Verão e a Primavera em Macau, e o Outono e o Inverno a comprar chá, porcelana e outras mercadorias nas feitorias de Cantão. Alguns livros ficavam lá, outros voltavam, e a maioria, com o final do monopólio da Companhia das Índias, foi para a biblioteca que é hoje a Biblioteca Robert Morrison na Universidade de Hong Kong. A Companhia das Índias tinha também de defender o seu bom nome – o museu e a biblioteca [aparecem nesse contexto], até porque em Inglaterra eram cada vez mais acesas as críticas ao monopólio. A Companhia das Índias tinha de se preocupar com a sua imagem pública e provar que também se preocupava com o local onde fazia negócios. Essa era uma forma de o fazer e depois não houve nenhuma estrutura que substituísse a Companhia das Índias – as firmas norte-americanas já cá estavam – e isso acabou por influenciar o tipo de presença britânica aqui. Esse desregulamento da presença britânica vai dar lugar mais tarde à Guerra do Ópio. Mas estas duas actividades relacionam-se com as diaristas femininas de Macau. É necessário também estudar esta presença, não apenas a presença portuguesa, mas de todas estas comunidades que contribuíram em larga escala, no século XIX, para a vida cultural de Macau. Havia peças de teatro organizadas pela comunidade de língua inglesa, os cenários eram pintados pelo George Chinnery, que ainda chegou a fazer algumas personagens.

Como é que decidiu dedicar-se ao estudo das fontes em língua inglesa e não ao estudo das tradicionais fontes portuguesas?
Percebi que havia um vazio enorme que era não só o estudo dessas fontes americanas e inglesas, como também o cruzamento com as fontes portuguesas. Tendo estudado Estudos Portugueses e Ingleses, poderia fazê-lo, casar as duas línguas e culturas que estudei. Fiz o doutoramento em Estudos Anglo-Portugueses exactamente sobre um romance inglês cuja acção se passa em Macau: ‘City of Broken Promises’, de Austin Coates. Apercebi-me de que havia muita coisa a fazer e que estas fontes eram importantíssimas para o estudo do quotidiano da Macau portuguesa. Uma das razões pelas quais pude fazer essa descoberta e ajudar a reescrever a história da museologia na China foi porque os estudiosos estrangeiros não dominam, a maioria deles, o português, e fogem de Macau – estudam Hong Kong, Xangai, são fontes francesas e inglesas. Os historiadores portugueses, até há bem pouco tempo, também não se debruçavam sobre as fontes em língua estrangeira, porque estavam manuscritas, era preciso ir para Inglaterra e para os Estados Unidos. Tive de correr a costa toda, desde Boston até Filadélfia, em busca de diários de mulheres, não publicados. Contactei com familiares. A relação dos norte-americanos com este tipo de fontes é completamente diferente: emprestam tudo, fotocopiam, enviam-nos livros, criei em certa medida uma relação com os descendentes destas diaristas. Adoram ver estes estudos publicados. Há depois o medo em relação à referência ao tráfico de ópio – digo sempre que me interessa a história cultural, não a do comércio nem do tráfico, e aí ficam mais descansados e o tipo de relação é outro. Mas há muita investigação ainda por fazer.

28 Out 2016

Joaquim Franco, artista plástico: “Quero muito internacionalizar o meu trabalho”

Deixou a gravura no estúdio que um dia teve e que o preço das rendas já não lhe permite suportar. Agora só pinta. E pinta quadros com outras cores, influência das viagens, de paragens diferentes. Joaquim Franco tem um ateliê no Macau Art Garden, na Avenida Rodrigo Rodrigues. No quarto andar de um espaço cheio de luz e de silêncio encontramos um artista que se fechou no trabalho para um dia destes chegar lá fora, a outros destinos

[dropcap]H[/dropcap]á dez anos dizia que o ambiente artístico em Macau é sempre muito individual. Continua a ser assim?
Sim, embora as coisas tenham mudado bastante nestes últimos dez anos. Julgo que a mentalidade local abriu um bocadinho, até por influência do exterior, porque há mais estrangeiros. Mas, de facto, ainda continua a ser muito cada um no seu quintalzinho, cada um no seu cantinho.

Mas hoje partilha um espaço com outros artistas plásticos.
Sim, tive esta hipótese fabulosa que foi o James Chu ter-me ligado um dia destes a convidar-me para eu vir para aqui, porque sabia que eu não tinha estúdio, que está muito complicado ter um em Macau por causa do preço das rendas. Arranjei então este espaço. É pequenino, mas é simpático, estou concentrado no trabalho que estou a fazer e é muito bom.

O facto de estar num ambiente com outras pessoas – e, claro está, ter um estúdio – veio dar outra dinâmica ao seu trabalho?
Talvez possa considerar que sim. O que se passa é o seguinte: os artistas que estão aqui instalados neste edifício são, quase todos eles, jovens. São jovens que acabaram os cursos aqui de Macau, no Politécnico, há um ou outro que estudou fora na China, sobretudo –, mas são jovens. É engraçado e interessante conversar com eles sobre arte, sobre pintura. Não falam muito, porque a maior parte não domina o inglês, mas é interessante e simpático falar com eles, sobretudo porque são jovens e estão a começar.

Está cá há 26 anos. Como é que se faz, no caso de um artista plástico, para não ficar naquilo que estava a fazer quando chegou cá, dada a dimensão do meio?
É preciso ter a cabeça muito arrumada, na realidade. É preciso um grande esforço, muito trabalho e tenho lutado muito para chegar ao nível mais alto possível.

Veio para Macau fazer um trabalho completamente diferente daquele que tem hoje: arqueologia nas Ruínas de São Paulo.
A ideia era ficar 10 meses em Macau e já cá estou há 26 anos.

Como é que olha para estes 26 anos?
Olho bem, são simpáticos. Podiam ser melhores, podiam ser piores. É sempre uma questão à qual não conseguimos responder, porque se não tivesse sido aqui, teria sido noutro sítio e as coisas teriam sido com certeza diferentes. Agora, há uma coisa muito interessante, que gostava de focar nesta conversa: estes 26 anos não me transformaram num chinês ou num oriental, mas influenciaram muito o meu trabalho. Digamos que me aculturei e essa aculturação é extremamente importante perceber e digerir. Julgo que o meu trabalho foi muito influenciado pela arte chinesa e pela arte oriental.

E como é que essa influência se traduz?
Quando se olha para um quadro meu, à primeira vista, provavelmente as pessoas não se apercebem mas, na realidade, em termos de composição… Por exemplo, a composição da arte tradicional chinesa é vertical, da direita para a esquerda. Porquê? Porque tradicionalmente os chineses escreviam – e escrevem – de cima para baixo e da direita para a esquerda. Nós, no Ocidente, escrevemos horizontalmente e da esquerda para a direita, de cima para baixo. Resultado: a composição da pintura abstracta ocidental é normalmente muito horizontal, por essa influência, e, na minha pintura e no meu trabalho, a influência oriental existe, sinto-a e isso é interessante.

Esta aculturação não foi um processo deliberado…
Todos nós somos influenciados pelo meio, seria uma cobardia dizer que não, ninguém me influencia, eu sou o maior – isso não existe. No jornalismo, em todas as profissões, as pessoas são influenciadas pelo meio que as rodeia. É evidente que um artista plástico também sofre influências do meio. De repente, um dia acorda de manhã para um quadro e diz assim: ‘olha, afinal, que interessante, não tinha reparado nisto, mas isto é oriental’. É um pouco isto, é assim que acontece, não é ir à procura da influência. É um processo natural.

Nesta nova série em que está a trabalhar sente essa influência?
Sinto bastante. O mais interessante foi quando estive na Colômbia, no ano passado, em que aí se notou muito porque, na América Latina – apesar de terem a sua própria cultura –, a cultura deles é muito mais próxima da europeia do que a cultura asiática. Foi muito interessante porque, nos meus trabalhos, essa influência existia e nas conversas que tive com artistas lá discutiu-se muito isso, o que foi, de facto, interessante. Foi das coisas mais interessantes de verificar.

Tem uma nova série de trabalhos. O que é esta nova série?
Vem no seguimento do trabalho que já faço há dez anos – não parece, mas é verdade que já passaram dez anos e continuo a fazer mais ou menos a mesma coisa. Agora, a realidade, a influência da minha estadia na Colômbia – ainda foram quatro meses e meio em Medellín – ajudou a abrir outras portas, provavelmente. Ainda não estou muito certo disto mas penso que ajudou, talvez em termos de outras cores. A cor latino-americana é muito viva, muito brilhante, e eu usava muito laranjas e azuis, uns azuis muito escuros. Ainda uso, mas penso que, nesse aspecto, ajudou, influenciou.

Há quadros de grande dimensão?
Não, neste momento não tenho espaço suficiente para quadros de grande dimensão. Tenho uns quadros muito pequeninos, com 20 centímetros, 30 centímetros, e depois tenho uns maiores, com um metro por um metro, um metro e oito por oitenta. Gostaria de fazer coisas de grande dimensão, mas não é possível neste momento.

Está mais focado na pintura.
Só trabalho em pintura neste momento.

Onde é que ficou a gravura?
A gravura ficou no tinteiro, porque não é possível fazer gravura sem ter um ateliê. Eu tinha um ateliê montado, com prensa de gravura, com sala de ácidos, com tudo isso, mas é impossível manter, porque as rendas são muito caras e infelizmente não vendemos trabalho todos os meses. Do ponto de vista económico, a gravura é muito interessante, porque é a democratização da arte. Quando faço uma pintura é uma única; com uma gravura faço 30 provas e são 30 provas da mesma imagem. Todas elas têm o mesmo valor, mas o leque de pessoas que vão usufruir dessa imagem é muito maior. Por isso é que os artistas dizem que a gravura e a serigrafia são a democratização da arte. Mas infelizmente não é possível fazer gravura sem um ateliê, uma oficina, e neste momento não tenho espaço.

O que tem que ver com as mudanças também destes últimos anos. Dizia ainda há dez anos que o Governo e as instituições públicas não encomendam trabalho aos artistas.
Sim, isso continua mais ou menos na mesma. É pena – estão a fazer, por exemplo, o metro de Macau, podiam convidar os artistas para fazerem a decoração das estações de metro. Há uma questão em Macau que não existe: equipas interdisciplinares. Fazem-se casinos, fazem-se estações de metro, faz-se tudo, mas não se inclui um artista plástico numa equipa de engenheiros, arquitectos e, no caso dos casinos, designers de interiores. E é pena, porque poderia acontecer um trabalho muito mais interessante, mas não há essa tradição.

Algumas operadoras do sector do jogo têm trazido até Macau trabalhos de artistas de renome. Outras têm chamado para a curadoria de iniciativas um ou outro artista local, mas não há um investimento claro dos casinos nos artistas que vivem no território.
Tive a sorte, por exemplo, de fazer quatro painéis para um casino, em 2015, mas foi só isso. Fiz os painéis e pronto, não aconteceu mais nada. Conheço um casino que tem uma sala enorme cheia de quadros que foram comprados na China e na Tailândia mas que não podem ser usados, porque não estão de acordo com o ‘feng shui’, porque são quadros a óleo quando deviam ser a acrílico, por causa da questão da segurança, etc. Se convidassem artistas locais, provavelmente não teriam este tipo de problemas, mas é esta a realidade. De qualquer forma, tudo bem. Estou sempre aberto a propostas – venham elas.

Uma das áreas em que tem trabalhado é a formação. É uma vertente que continua a interessar-lhe?
Muito. Fiz arte-terapia por causa do tufão em Taclóban e da guerra em Zamboanga [nas Filipinas]. Fiz durante quase toda a minha vida, quando tinha um ateliê grande, workshops de formação. Há 20 anos – quando conheci este meu amigo colombiano com quem estive no ano passado – fiz um projecto exactamente ligado à educação, de intercâmbio internacional de artistas. Trazia artistas de fora a Macau, que fariam workshops e exposições, que trabalhariam em residência, e esse contacto com outros artistas, numa altura em que não havia escola de artes – hoje em dia já há o Politécnico, mas não há uma universidade de artes em Macau –, seria interessante. Talvez tenha sido muito cedo para as pessoas entenderem a dimensão de um projecto deste tipo e, portanto, acabou por não ser apoiado e desisti, porque lutei durante quase 15 anos e os resultados foram um bocadinho desastrosos. Não tive capacidade económica para continuar a custear o projecto.

Ainda assim, nomeadamente na Casa de Portugal, desenvolveu muito trabalho na área da formação.
Sim, sim. Dei aulas, fui o primeiro artista a dar aulas para a Casa de Portugal, a abrir os workshops, e durante uns anos dei aulas lá.

Sente que aquilo que foi passando durante estes anos a quem foi tendo contacto consigo deu frutos? Não digo necessariamente na formação de artistas, mas na sensibilização para a arte, na formação de público.
Acho que sim. Sempre que dou workshops não tenho na ideia que estou a formar artistas plásticos e que todos os meus alunos vão ser artistas plásticos. Por exemplo, durante 18 anos dei aulas no curso de Verão de Língua e Cultura Portuguesa da Universidade de Macau e é evidente que tive milhares de alunos durante esses anos, porque cada ano eram 60, 70, e julgo que não andei a formar artistas. Mas sensibilizá-los para as técnicas, para a arte em geral, isso sim, acho que foi um trabalho que fica sempre.

Projectos para o futuro?
A internacionalização do meu trabalho. Neste momento, à revelia de tudo, fechei-me a pintar e estou muito concentrado no meu trabalho. Quero muito internacionalizar o meu trabalho.

Sente que se estão a abrir portas para que isso possa acontecer?
Acho que sim. Por exemplo, estive na Colômbia numa cidade que era considerada, há uns anos, a mais perigosa do mundo: Medellín. Depois da captura do grande chefe da máfia colombiana, as coisas apaziguaram bastante, o Governo colombiano entrou em conversações com as FARC para estabelecer a paz no país, porque a guerra civil já dura há imenso tempo. Medellín, em 2014, foi considerada a cidade com maior desenvolvimento cultural do mundo. Porquê? O alcaide de Medellín – e o Governo da Colômbia também – apercebeu-se de que pela educação é que vai conseguir apaziguar a situação. Estão a investir imenso na cultura e na educação, porque perceberam que a cultura pode influenciar e abrir portas para que a paz se estabeleça no país. Foi bastante interessante ver isso. Por exemplo, a Feira de Artes de Medellín, na qual tive dois trabalhos expostos, é neste momento uma das maiores feiras internacionais da América Latina. Não vendi, mas saiu um artigo sobre o meu trabalho numa revista, o meu trabalho entrou nas exposições, fiz também enquanto lá estive uma pintura mural num complexo de restaurantes onde uma fundação tinha uma grande exposição de arte. Convidou-me para fazer um painel e ofereci-o a essa fundação. Fiz imensos contactos, fiz imensos amigos e vamos ver os resultados disto tudo. É preciso semear para depois colher.

24 Out 2016

Rita Amorim O, psicóloga clínica | Uma mulher de família

[dropcap]R[/dropcap]ita Amorim O é psicóloga clínica mas, e acima de tudo, é uma mulher de família. Chegou a Macau há cinco anos. Casada com um designer com ligações ao território, foi opção conjunta, após o nascimento da primeira filha, tentar a vida neste lado do mundo. “O início foi muito complicado”, afirma Rita Amorim O, ao recordar a chegada com um bebé nos braços.

Apesar de já conhecer a cidade, “mas só de passar férias”, os primeiros tempos foram marcados principalmente pelas dificuldades enquanto jovem mãe. No entanto, e rapidamente, ambientou-se, até porque considera que “o ser humano tem uma capacidade de adaptação muito maior do que se imagina” e hoje vê Macau como sendo também a sua casa.

“É uma cidade muito generosa”, principalmente para quem tem filhos. Para a psicóloga, Macau é um lugar onde existe tempo. “Vinha de Lisboa, uma capital onde só se corre de um lado para o outro e com uma outra dimensão, enquanto aqui está tudo muito mais à mão.” Para ilustrar a qualidade de vida com que foi surpreendida, Rita Amorim O lembra que, “na altura, conseguia almoçar todos os dias em casa, aproveitava muito a bebé”.

A vida mudou e o tempo também mas Macau continua a ter mais-valias. “Continuo a achar que esta terra é muito generosa para quem tem filhos pequeninos, por exemplo”, apesar de muita gente ter o hábito de se queixar de que não há nada para fazer. “Claro que as actividades que fazemos dependem um bocadinho da rede social que nos envolve mas, por exemplo, em Portugal temos de partilhar o nosso tempo com a nossa família e o fim-de-semana por vezes é passado com almoços entre pais e sogros” e o tempo para os amigos escasseia. O mesmo não acontece em Macau. Com menos família a requisitar horas “conseguimos partilhar melhor o tempo com toda a gente”, explica Rita Amorim O. “Conseguimos combinar sempre coisas diferentes: uma ida ao parque ou mesmo a estes casinos todos que já contam também com espaços dedicados a quem tem filhos.”

Por outro lado, e para a mãe de família, o tempo pode passar-se muito bem por cá e mesmo a usufruir de actividades ao ar livre. “A Taipa tem agora uma marginal espectacular e, se quisermos, passa-se ali uma tarde com as crianças a andar de bicicleta, numa zona bonita e a aproveitar um programa de que todos gostamos”, ilustra, acrescentando que “isto são coisas que nos ajudam muito mais do que aquilo que possamos imaginar.

De mãe para mãe

Rita Amorim O não separa a vida pessoal da escolha profissional. A psicóloga é uma das fundadoras da “Moms”, um projecto ao qual dá o coração para ajudar as famílias da terra. A iniciativa surgiu da necessidade que a própria sentiu quando cá chegou relativamente ao apoio à parentalidade. “Temos vários projectos que vão desde a preparação para o parto ao apoio às rotinas do bebé. Também fazemos cursos de massagens a crianças e formação para quem dedica a vida a tomar conta dos mais pequenos.” Paralelamente, também dá consultas no âmbito da psicologia da família.

“A maternidade está realmente sempre presente, na vida e na profissão” conta, ao mesmo tempo que recorda que “acabou por acontecer naturalmente, apesar de sempre ter sido muito maternal”. No fundo, o projecto começou com o nascimento da segunda filha, “correu tudo muito bem mas, pelo facto de não falar chinês, senti-me pouco apoiada”. Juntou-se a Maria Sá da Bandeira, que é sua sócia, e optaram por trabalhar nesta área, de modo a ajudar as mães que não falam chinês. Com a iniciativa, a “Moms” acaba por ser pioneira neste tipo de iniciativas que cada vez mais recebem mulheres chinesas. Para já, são apenas casos cujo cônjuge é ocidental, mas já representa uma nova etapa.

Para o futuro é o sucesso da “Moms” que ocupa as preocupações de Rita Amorim O. Tal como ver um filho a desenvolver-se, o desejo da psicóloga é ver este projecto também a crescer. “Nem tudo acontece, por vezes, no tempo que queremos e há momentos em que as coisas não são fáceis, mas continuaremos a fazer tudo pelo sucesso da ‘Moms’”, remata.

23 Out 2016

Paulo Alexandre Ferreira, Secretário de Estado: “Noto um forte interesse da China na aproximação a Portugal”

Lidera a delegação portuguesa que veio este ano à Feira Internacional de Macau (MIF). O secretário de Estado Adjunto e do Comércio de Portugal, Paulo Alexandre Ferreira, acredita que há condições para uma presença mais forte no mercado chinês, sejam os empresários de ambos os países capazes de perceber os diferentes contextos em que se movem. A grande aposta é feita nas novas tecnologias.

[dropcap]E[/dropcap]stá em Macau para participar na MIF, que tem Portugal como país parceiro nesta edição. O que é que se pode esperar desta parceria, da forma como Portugal se apresenta este ano?

Espero que haja um reforço dessa parceria e que seja algo mais, primeiro em termos daquilo que é o sector mais representado – o sector agro-alimentar. Mas espero que se reforce a presença de Portugal noutros sectores de actividade. Temos, por exemplo, a participação de empresas tecnológicas e isso permite catapultar a imagem de Portugal – não só as empresas que participam, mas também todas as outras que não estão representadas – também como um parceiro na área tecnológica. Esperto que isso possa ser visto pela China e pelos outros participantes da Feira com uma visão de que Portugal tem mais para oferecer do que aquilo que são os produtos que tem trazido habitualmente à Feira.

Foi visível na recente reunião ministerial do Fórum Macau um interesse diferente de Portugal pela China. Chegou o momento de Lisboa aproveitar e apanhar um barco que, de certa forma, perdeu, em relação à presença no Fórum Macau e à própria China?

Não sei se perdeu. Neste momento, há uma grande vontade do Governo em afirmar Portugal como uma ponte entre a China e a Europa, entre a China e os países de língua oficial portuguesa, e é nesse sentido que estamos a trabalhar. Esperamos que, em face desse esforço que estamos a desenvolver, isso possa dar frutos e a curto prazo.

Mas houve uma altura, sobretudo nos primeiros anos do Fórum Macau, em que Portugal se colocou, de certo modo, à margem daquilo foi sendo a relação entre a China os países de expressão portuguesa. Nota-se agora, por parte da China, também um novo interesse por Portugal. Sentem isso nos contactos que vão tendo por aqui.

Sim. Mesmo na esfera que tutelo, ao nível da economia, seja em sectores como o consumidor, as actividades económicas e mesmo no domínio da ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica), noto um forte interesse da China e de instituições ligadas ao Governo chinês em ter essa aproximação a Portugal. Há já uma série de protocolos assinados connosco nestes domínios e que demonstram uma apetência da China pela aproximação a Portugal – e Portugal tem todo o interesse em fomentar esse espírito de cooperação.

Voltando à MIF e à questão do sector agro-alimentar que, em Macau, tem uma presença forte. Portugal tem sempre o problema da capacidade de produção para um mercado com a dimensão da China. Com as novas tecnologias essa questão já não se coloca.

Não, consegue-se chegar a todo o lado. Aliás, na semana passada, estávamos a discutir num fórum que se realizou entre a ACEP – a Associação de Comércio Electrónico em Portugal – e a congénere chinesa que pequenas empresas portuguesas nas áreas tecnológicas conseguem colocar-se no mundo de forma plena e ter a pretensão de alimentar um mercado como o chinês. Espero que não haja esse problema e que as empresas portuguesas – não só do sector tecnológico, mas de todos os sectores – vejam a China como um mercado que podem tentar agarrar. É para isso que estou aqui, também para passar a palavra e dar um incentivo às empresas nacionais.

 Ainda no sector tecnológico, existia um grande receio por parte do Ocidente em relação ao modo como a propriedade intelectual é tratada na China. No contacto com as empresas portuguesas, sente que esse problema já foi ultrapassado e que não é assim tão difícil chegar ao mercado chinês?

Sim, não noto isso nos nossos empresários. Não é uma restrição. Consideram que o mercado chinês é um mercado com potencial, não só em termos de dimensão, como em termos qualitativos. Há já uma classe média chinesa que pode revelar apetência por aquilo que são os produtos e serviços portugueses. Não vejo isso como um impeditivo, nem me tem sido assinalado como um problema.

E qual será o problema efectivo para uma aproximação maior entre aquilo serão as potencialidades portuguesas e a China? A distância? As diferenças culturais?

Acho que é perceber a dinâmica do mercado chinês, as particularidades – e penso que é um problema ou um desafio recíproco. As empresas chinesas também têm de perceber o contexto europeu em que Portugal se insere. Os aspectos culturais aproximam-nos, não nos afastam. Agora, as realidades dos mercados em que nos movemos são diferentes – não é um obstáculo, mas constitui um desafio. Penso que há hoje condições para ser ultrapassado da melhor forma. Lá está: é preciso haver cooperação e proximidade entre entidades não só públicas, mas também entre empresas.

Temos assistido nestes últimos anos a um grande investimento por parte de grupos estatais chineses em Portugal, através da aquisição de empresas em áreas fulcrais. Existe, portanto, uma grande presença no país. O contrário tem também de acontecer, com as devidas diferenças em termos de dimensão e numa outra proporção? Portugal não pode ficar à espera, mas sair também do país para captar outro tipo de investimento?

Espero que, neste momento, a porta de entrada seja uma porta para o mercado e, a partir daí, logo se verá. Não podemos ter a veleidade de querer ter uma presença na China como a China consegue ter, neste momento, em Portugal, em termos de aquisição de activos. A minha preocupação é também contribuir para que possa existir uma presença de empresas portuguesas no mercado chinês. Não a colocaria ao nível da aquisição de activos, mas de acesso e de presença no mercado.

E em relação ao que poderá ser a presença chinesa no futuro? Já houve a aquisição de activos em sectores fundamentais. Como é que poderá ser a presença da China em Portugal – e que não colida com aquilo que é a posição manifesta do Partido Socialista em relação a áreas estruturais da economia?

Não colocaria a questão em termos do Partido Socialista; neste momento são os termos que foram definidos pelo Governo. Um sector que pode beneficiar do que a China pode oferecer é a área da logística. Também aí Portugal pode ser uma porta de entrada na Europa e tirarmos partido de alguns activos que temos – como o Porto de Sines, as boas ligações ao resto da Europa –, e permitir centrar novamente o país naquilo que é a sua posição no mundo. Colocá-lo, mais uma vez, como porta de entrada de mercadorias – seja da China, seja de outros sítios – na Europa, e também aí ganharmos competitividade face a outras portas de entrada que neste momento existem.

20 Out 2016

Carminho: “Não tenho pele, sou uma intérprete”

A fadista portuguesa Carminho actuou em Macau no sábado no âmbito do Festival Internacional de Música. Horas antes falou do novo disco que sai em Novembro, só com músicas de Tom Jobim, e da vontade de gravar com um músico chinês

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] vinda a Macau concretizou-se, por fim, após uma tentativa falhada de vinda ao território onde se fala português. Carminho, uma das fadistas portuguesas mais conhecidas da actualidade, actuou no Festival Internacional de Música de Macau (FIMM) e procurou, sobretudo, chegar a um público vasto, que represente o território.

“A expectativa é encontrar um público distinto, uma plateia que represente o lugar onde vou. É um público que muitos deles não ouviram fado antes, ou têm um avô que tinha uns discos em casa. Macau é um lugar único no mundo, porque consegue ter duas culturas numa só, tão distintas, mas manter-se ao longo destes anos com a preservação da língua e de todos estes elementos que reconhecemos nos letreiros e nas ruas.”

Carminho, prestes a celebrar dez anos de carreira, lança em Novembro um álbum que não é de Fado, mas sim de Bossa Nova, só com músicas de Tom Jobim, compositor e músico brasileiro, o qual foi gravado no Rio de Janeiro. “Foi um convite da família de Tom Jobim para fazer um disco com o seu repertório, todo escolhido por mim.” Jacques Morenlabaum é o produtor de um trabalho que conta com participações de Chico Buarque e Marisa Monte.

Quando lhe perguntamos se foi fácil despir a pele de fadista, Carminho assume: “não tenho pele, sou uma intérprete”. “O fado é como vivermos num país e quereremos viajar. Nós somos a mesma pessoa, não somos outra pessoa. Como não me sinto com a pele de fadista não me sinto sufocada por ela, tenho a pele de intérprete e posso assumir diferentes linguagens. O Fado é o meu maior amor, é a minha língua mãe. É onde me sinto em paz total, é o que gosto de ouvir. Houve sempre o universo do Fado na minha casa e à minha volta, mas o expressar-me nasceu comigo antes do Fado”, acrescentou.

Carminho assume-se livre nas suas escolhas musicais. “Ao longo deste tempo tive a oportunidade de viajar muito com o Fado. E não só no Brasil, mas em Espanha, por exemplo. Há duetos com outros artistas e são momentos de abertura e de encontro. O Brasil foi outro destino que acabou por acontecer, e é um destino natural por causa da língua. Mas estou sempre aberta a outras experiências, e acho que o Fado sempre me libertou, nunca me prendeu.”

Cantar com músicos chineses

Depois da experiência de gravar um disco no Brasil e de já ter pisado palcos nos Estados Unidos, América Latina, Europa e até Tailândia e Coreia, Carminho admitiu que gostava de gravar com um artista chinês.

“Seria uma experiência interessante, já pensei nisso. É importante conhecer bem a música e estar por dentro de uma linguagem, seja ela falada ou não. Já viajei bastante na China e sei as dificuldades que existem de comunicação básica. Mas depois existe outra comunicação, a dos gestos, dos sorrisos, da empatia. Se houvesse algum artista que me inspirasse, e vice-versa, tinha de ser algo bilateral. Acho que a música não tem limites.”

Com nove anos de canções, Carminho defende que ainda é cedo para comemorar, porque uma década nos palcos é quase nada. “Gosto de pensar que ainda falta muito para os meus dez anos de carreira, para os meus 35 anos. Tudo se vai construindo, até porque não acho que dez anos de carreira seja algo que se comemore, porque é muito pouco.”

Contudo, a realização em cada trabalho discográfico esteve sempre presente. “É sempre bom uma introspecção e retrospectiva do que estamos a fazer. A minha grande alegria é de nunca ter abdicado do que gosto e do que sou, em nenhum momento. Os meus discos, o que eu canto e faço, é fruto do que eu gosto. Todos os meus discos foram o meu melhor naquele momento. Isso é um motivo de grande realização pessoal, e isso também me dá vontade de continuar. dá-me vontade de fazer novos discos, de não ter medo de arriscar.”

A melhor fase dos fadistas

Ao lado de Carminho existe nomes como o de Ana Moura, Mariza, Gisela João, Camané e tantos outros que seguiram o legado que Amália Rodrigues deixou. Mas mesmo com novas vozes e novas formas de interpretação, para Carminho o Fado é uma linguagem viva, que não muda na sua génese.

“Sou da nova geração e há uma nova geração que aí vem. Não há um novo Fado. O Fado continua a andar, se vai por um caminho ou outro…o Fado é uma linguagem viva. Mudou com a Amália, e continua a mudar constantemente, porque os artistas têm um ADN próprio. Interpreto canções que não são Fado, mas eu venho desse ADN e dessa cultura. Os meus discos têm sempre fados tradicionais porque essa é a minha raiz. O Fado tem de ser respeitado e preservado, e não podemos chamar de tudo Fado. O Fado caminha, porque é uma linguagem viva.”

Se hoje os fadistas têm maiores oportunidades de actuação e se viajam mais lá fora, a verdade é que, para Carminho, esta não é a época de ouro do Fado, apesar de crescerem as casas de Fado em Lisboa e deste género musical ser hoje Património Mundial Imaterial da UNESCO.

“É preciso conhecer muito bem o Fado para falar da sua melhor fase. Já houve outras fases de ouro muito grandes, uma fase onde existe a Beatriz da Conceição, a Amália Rodrigues, o Alfredo Marceneiro. Talvez esta seja a melhor fase para os fadistas, porque na altura não se viajava tanto. Mas são poucos os fadistas que viajam muito e que têm uma carreira internacional. Falo da Kátia Guerreiro, Mariza, Ana Moura, Ricardo Ribeiro, e depois há umas viagens. Mas mesmo assim todas estas carreiras têm dimensões distintas, mas é um universo pequeno para o mundo inteiro. Ter uma carreira internacional não é ir cantar lá fora, é estar nos circuitos internacionais”, concluiu Carminho.

17 Out 2016

Fórum Macau: Cartões não chega

[dropcap]O[/dropcap] Fórum Macau foi uma iniciativa de Pequim de uma extraordinária importância para a RAEM. Não tanto por aquilo que até hoje tem sido feito por aqui, mas porque definiu, no longo prazo, uma estratégia para Macau. E, por muito que isso ainda possa custar a alguns dos actores desta praça, esta decisão da capital catapultou a região especial para fora de si mesma, obrigando-a à internacionalização.

Macau não pode, aos olhos de Pequim, viver apenas do Jogo, pois tal não é conveniente para o país e pode ser fatal e desinteressante para a população. E também não chega a especulação imobiliária que tem feito a riqueza de alguns. É cumprindo a sua vocação de sempre (porta para a China) que Macau serve o país desde o século XVI. É pena que pessoas menos informadas, talvez aqui chegadas há pouco tempo, não metam de uma vez na cabeça que este é o caminho, que ele não é novo e que está aqui para lavar e durar. A ponte para os países lusófonos é uma óbvia fonte de diversificação, uma das poucas exigências de Pequim.

Por outro lado, Portugal está em ano abençoado. Ele é o campeonato da Europa de futebol e a ONU; a geringonça, o turismo e o investimento estrangeiro. Mas o que me surge como mais curioso na relação com a China é o facto das empresas chinesas compreenderem a importância de terem quadros portugueses para as suas relações com os países lusófonos.

Os portugueses, quando chamados pelos chineses, têm dado bem conta do recado e isso parece estar a dar os seus frutos. Ora esta mudança de paradigma tem a vantagem de ultrapassar o mero domínio dos números para se centrar nas pessoas.

Como sempre dissemos, não existe cooperação entre países que possa ser reduzida a negócios. As relações interpessoais são fundamentais para estabelecer confiança, metas comuns, situações interessantes para ambos os lados.

Como disse muito bem Fernanda Ilhéu, não basta trocar cartões, coisa que o Fórum Macau tem levado demasiado tempo a perceber. É preciso trocar ideias, analisar contextos, detectar os pontos de interesse comuns e as eventuais complementaridades. É preciso um maior conhecimento mútuo e esse surge através da cultura e das pessoas. Os números não têm país, não têm cara, nem vão à bola ao domingo. Os cartões, sozinhos, também não.

11 Out 2016