II Guerra | Escravas sexuais recusam decisão favorável a Japão

Associações sul-coreanas defensoras dos direitos de mulheres “escravas sexuais” das tropas invasoras do Japão durante a 2ª Guerra Mundial vão recorrer de uma decisão judicial recusando uma indemnização do governo japonês. Em sentido contrário a anterior decisão judicial relativa a um outro grupo de vítimas – conhecidas pelo eufemismo “mulheres de conforto” – esta semana o juiz Min Seong-cheol, do Tribunal Distrital Central de Seul, recusou um pedido de indemnização ao Governo do Japão, alegando que este dispõe de imunidade estatal.

Em reacção, o Conselho Sul-Coreano para a Justiça e Memória das Questões de Escravidão Sexual Militar do Japão, associação defensora das vítimas, emitiu uma declaração denunciando veementemente o tribunal por rejeitar o processo iniciado por 20 queixosas, incluindo vítimas sobreviventes, algumas das quais assistiram à leitura da sentença.

“Condenamos veementemente a decisão anti-direitos humanos, anti-paz e anti-histórica de Min, que será lembrada como uma grande nódoa na história mundial dos direitos humanos, bem como na história sul-coreana”, disse o grupo baseado em Seul, citado pela agência Yonhap. “A fim de restaurar os direitos humanos e a honra das vítimas, manteremos contactos com as vítimas e suas famílias para apresentarmos um recurso” da decisão judicial, disse a organização.

De acordo com a Amnistia Internacional, até 200.000 meninas e mulheres, grande parte delas coreanas, foram forçadas a trabalhar em bordéis administrados pelos militares japoneses antes e durante a Segunda Guerra Mundial.

No caso agora indeferido, 20 queixosas exigiam que o Governo japonês pagasse um total de 3 mil milhões de won (2,7 milhões de dólares) pelos crimes a que foram sujeitas há cerca de 70 anos. Em janeiro, um outro juiz do mesmo tribunal tinha decidido a favor de um outro grupo de mulheres, num pedido de indemnização no valor de 100 milhões de won (cerca de 85 mil euros) para cada queixosa, rejeitando o argumento de imunidade do Estado, por considerar que os direitos humanos se sobrepõem à mesma.

A organização de defesa das vítimas afirma que o país ficou “chocado e decepcionado” com as diferentes decisões judiciais e prometeu continuar a bater-se para que o governo japonês reconheça os crimes e compense as vítimas.

O recuo face à decisão de Janeiro foi notado pela Amnistia Internacional, que lamentou o “questionamento” de “uma vitória histórica para as sobreviventes, na sequência de uma espera excessivamente longa”. “Mais de 70 anos passaram desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e não podemos exagerar a urgência de o governo japonês parar de privar esses sobreviventes dos seus direitos à reparação total e de fornecer uma compensação adequada durante as suas vidas”, afirmou Arnold Fang, da Amnistia. Apenas quatro das 10 sobreviventes que entraram com este caso em 2016 ainda estão vivas, de acordo com a organização defensora dos direitos humanos.

Após a decisão de janeiro, o próprio presidente sul-coreano, Moon Jae-in, afirmou estar “honestamente confuso”, dado que o princípio da imunidade estatal tem prevalecido nesta e noutras decisões. O mesmo princípio é usado, nomeadamente, pelos Estados Unidos para garantir que os seus militares em missão no estrangeiro não possam ser alvo de acusações criminais.

26 Abr 2021

Mulheres de Conforto

[dropcap]F[/dropcap]aleceu Kim Bok-dong, uma das muitas mulheres de conforto do Exército Imperial Japonês, das poucas que viveu até aos 90 anos. Estima-se, com maior ou menor conservadorismo, que estas mulheres tenham existido às dezenas ou centenas de milhar naquilo a que chamavam ‘estações de conforto’ do exército japonês. Escusado será dizer que a expressão ‘mulheres de conforto’ é um infeliz eufemismo do tempo da II Guerra Mundial para nomear as mulheres que eram repetidamente violadas, violentadas e escravizadas.

As estações de conforto foram estabelecidas por todo o império com o propósito, dizem os historiadores, de confortar os soldados japoneses. Mas este é um conceito altamente contestado. A parte mais afectada afirma que os soldados japoneses raptaram raparigas e mulheres das colónias imperiais para fazer um trabalho que muitas prostitutas japonesas já se tinham voluntariado fazer, mas que, com o crescimento das tropas, sofriam de uma clara falta de pessoal, recorrendo, por isso, à escravatura sexual.

Os japoneses, por sua vez, discordam. Desde 1991 que as sobreviventes mulheres de conforto vieram a público com estes relatos de horror e desumanização para se confrontarem com muita resistência por parte do Japão em assumir a responsabilidade pelo que aconteceu – de para sempre afectar as vidas destas meninas e mulheres que julgavam ir trabalhar para fábricas de uniformes para ajudar nos esforços de guerra.

Não irei estender-me demasiado acerca do desenvolvimento deste conflito, parece-me, contudo, que o ponto mais importante desta tensão é que estas estações de conforto não são assumidas como uma política regulamentada pelo exército japonês – que tinham como intuito evitar o descontrolo total das tropas. Há quem afirme que depois do massacre de Nanjing às mãos dos japoneses, que levou à morte e violação em massa, que as estações de conforto seriam uma forma de controlar (1) a raiva militar, (2) a tensão sexual e (3) evitar espalhar doenças venéreas ao circunscrever o sexo violento a estes espaços onde – os homens punham-se em fila para repetidamente violar uma mulher.

Este esforço desmedido de desresponsabilizar os horrores de guerra japoneses faz-me lembrar algo: uma ideia verdadeiramente contemporânea que parece perseguir-nos cada vez que falamos de violência sexual.

As vozes que contestam um movimento de reparação pública a estas mulheres, tendem a proferir o que eu já estou bem farta de ouvir: que as vítimas não são vítimas. Tudo serve para justificar esta posição, ora porque as mulheres demoraram demasiado tempo para virem a público (demoraram 45 anos para verbalizar os horrores da guerra), ora porque as mulheres conforto, como prostitutas que eram, (supostamente) faziam dinheiro com isso. Parece-me que este cliché argumentativo está no meio de uma séria tensão diplomática que não só revela perspectivas ingénuas das formas da violência sexual em contexto de guerra, mas também revela os valores definidores de uma identidade colectiva e nacional. Um país como o Japão percebe o papel que teve no conflito armado, mas ainda existem realidades (verdades?) que ainda não foram integradas.
Kim Bok-dong morreu sem ouvir o que queria ouvir. Houve várias tentativas de reparações entre o Japão e a Coreia, mas Bok-dong não acreditou serem verdadeiramente honestas. Ela dedicou a vida a contar a sua história e a denunciar a violência sexual em contexto de guerra por este mundo fora – e certamente que, com alegria, percebeu que muitas e muitos ainda estão dispostos a lutar pela sua causa.

20 Fev 2019