Mulheres de Conforto

[dropcap]F[/dropcap]aleceu Kim Bok-dong, uma das muitas mulheres de conforto do Exército Imperial Japonês, das poucas que viveu até aos 90 anos. Estima-se, com maior ou menor conservadorismo, que estas mulheres tenham existido às dezenas ou centenas de milhar naquilo a que chamavam ‘estações de conforto’ do exército japonês. Escusado será dizer que a expressão ‘mulheres de conforto’ é um infeliz eufemismo do tempo da II Guerra Mundial para nomear as mulheres que eram repetidamente violadas, violentadas e escravizadas.

As estações de conforto foram estabelecidas por todo o império com o propósito, dizem os historiadores, de confortar os soldados japoneses. Mas este é um conceito altamente contestado. A parte mais afectada afirma que os soldados japoneses raptaram raparigas e mulheres das colónias imperiais para fazer um trabalho que muitas prostitutas japonesas já se tinham voluntariado fazer, mas que, com o crescimento das tropas, sofriam de uma clara falta de pessoal, recorrendo, por isso, à escravatura sexual.

Os japoneses, por sua vez, discordam. Desde 1991 que as sobreviventes mulheres de conforto vieram a público com estes relatos de horror e desumanização para se confrontarem com muita resistência por parte do Japão em assumir a responsabilidade pelo que aconteceu – de para sempre afectar as vidas destas meninas e mulheres que julgavam ir trabalhar para fábricas de uniformes para ajudar nos esforços de guerra.

Não irei estender-me demasiado acerca do desenvolvimento deste conflito, parece-me, contudo, que o ponto mais importante desta tensão é que estas estações de conforto não são assumidas como uma política regulamentada pelo exército japonês – que tinham como intuito evitar o descontrolo total das tropas. Há quem afirme que depois do massacre de Nanjing às mãos dos japoneses, que levou à morte e violação em massa, que as estações de conforto seriam uma forma de controlar (1) a raiva militar, (2) a tensão sexual e (3) evitar espalhar doenças venéreas ao circunscrever o sexo violento a estes espaços onde – os homens punham-se em fila para repetidamente violar uma mulher.

Este esforço desmedido de desresponsabilizar os horrores de guerra japoneses faz-me lembrar algo: uma ideia verdadeiramente contemporânea que parece perseguir-nos cada vez que falamos de violência sexual.

As vozes que contestam um movimento de reparação pública a estas mulheres, tendem a proferir o que eu já estou bem farta de ouvir: que as vítimas não são vítimas. Tudo serve para justificar esta posição, ora porque as mulheres demoraram demasiado tempo para virem a público (demoraram 45 anos para verbalizar os horrores da guerra), ora porque as mulheres conforto, como prostitutas que eram, (supostamente) faziam dinheiro com isso. Parece-me que este cliché argumentativo está no meio de uma séria tensão diplomática que não só revela perspectivas ingénuas das formas da violência sexual em contexto de guerra, mas também revela os valores definidores de uma identidade colectiva e nacional. Um país como o Japão percebe o papel que teve no conflito armado, mas ainda existem realidades (verdades?) que ainda não foram integradas.
Kim Bok-dong morreu sem ouvir o que queria ouvir. Houve várias tentativas de reparações entre o Japão e a Coreia, mas Bok-dong não acreditou serem verdadeiramente honestas. Ela dedicou a vida a contar a sua história e a denunciar a violência sexual em contexto de guerra por este mundo fora – e certamente que, com alegria, percebeu que muitas e muitos ainda estão dispostos a lutar pela sua causa.

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